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43 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Unidade II 3 REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL (1865-1890) Figura 9 - Jean François Millet (1814-1875)- Les Glaneuses - As respingadeiras - 1854 Nessa pintura de Millet, podemos observar uma das principais características do Realismo: a preocupação em descrever cenas do cotidiano, de forma objetiva e detalhada. A idealização romântica é deixada de lado. Volte à Unidade I e compare essa pintura realista à pintura romântica. Observe não somente os temas, mas os detalhes de cada imagem. Nessa tela, não vemos a paixão romântica, a emoção a flor da pele e sim uma cena comum, ao gosto dos realistas. Observação Jean François Millet e Gustave Courbet foram os primeiros pintores realistas franceses. Suas obras tratam geralmente de temas cotidianos e rurais. Saiba mais Para saber mais sobre as pinturas de Millet, acesse: <http://www.ibiblio. org/wm/paint/auth/millet/>. Acesso em: 22 maio 2012. 44 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 3.1 Contexto histórico e social A segunda metade do século XIX foi marcada pelo Cientificismo, a valorização das ciências, e por uma demanda material e ideológica gerada pela Revolução Industrial. Surgem teorias positivistas que valorizam o progresso e o conhecimento científico. Com os novos modos de produção, surge uma grande massa de operários explorados e marginalizados: o proletariado. Assim, um novo cenário social se constrói: a pobreza tornou-se um problema associado à industrialização. Como o emprego era insuficiente, havia um grande número de camponeses perdidos nas grandes cidades, vivendo da mendicância. Infelizmente, essa é uma situação que ainda encontramos nos grandes centros urbanos. Novas teorias passaram a ser apreciadas e estudadas pelos escritores dessa época, que procuram aplicá-las em seus romances em uma postura mais engajada, repudiando a “ arte pela arte”. Vejamos algumas dessas teorias principais: Positivismo: filosofia que propunha uma ciência mais objetiva, oposta ao idealismo, mais voltada para a razão. Um de seus principiais divulgadores foi Auguste Comte. O Positivismo é muito importante para entendermos não somente a literatura, mas também o posicionamento político de vários países. O lema de nossa bandeira, por exemplo, surge a partir de uma perspectiva positivista: “Ordem e progresso”. Nem todos os escritores realistas apoiaram essa filosofia. Machado de Assis chega a zombar dessa visão objetiva na composição da personagem Quincas Borba e sua filosofia “humanistismo”. Esse personagem aparece inicialmente em Memórias póstumas de Brás Cubas e depois em seu livro homônimo. Saiba mais Para saber mais sobre filosofia, Augusto Comte e o Positivismo, indicamos o site: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/comte.htm>. Acesso em: 22 maio 2012. Darwinismo ou evolucionismo: Charles Darwin publica em 1859 A origem das espécies, composto por teorias que colocam em jogo crenças religiosas. Na natureza, somente quem consegue se adaptar ao meio, consegue sobreviver, é a lei da seleção natural. As teorias de Darwin até hoje são discutidas, aceitas ou refutadas. Em Portugal, um país em que a Igreja Católica e seus valores sempre se sobressaíram, tais ideias trouxeram um considerável impacto. 45 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Saiba mais Para maiores informações sobre o evolucionismo, acesse o seguinte site: <http://www.infopedia.pt/$evolucionismo>. Acesso em: 22 maio 2012. Socialismo utópico: Proudhon constrói as bases do pensamento socialista com suas publicações nos jornais e a obra Filosofia do progresso, em 1835. Determinismo: Hipólito Taine (1823-1893) foi um dos principais teóricos do Realismo e Naturalismo. Segundo ele, a obra de arte deveria demonstrar que o homem é determinado pela herança, pelo meio e pelo ambiente em que vive, ou seja, um produto desses fatores, sem qualquer livre-arbítrio. Veja a seguir um fragmento sobre Taine, tirado do site da Universidade Técnica de Lisboa. Taine, Hippolyte Adolphe (1823-1893) Raça, meio, momento Fundador do naturalismo, em nome da trilogia race, milieu, moment (raça, meio, momento). Porque há um conjunto de caracteres biológicos transmitidos hereditariamente porque as tradições, as crenças, os hábitos mentais e as instituições modelam os indivíduos; porque há sempre um conjunto de circunstâncias que desencadeiam a acção. (...) Entende por raça, o conjunto das características hereditárias imprimidas pela família às gerações seguintes. Neste sentido distingue raças superiores e inferiores. Nas primeiras, a raça ariana, o espírito inteiro, tomado pelo belo e pelo sublime que concebe um modelo ideal capaz, por sua nobreza e sua harmonia, de conquistar para si a ternura e o entusiasmo do género humano. Já nas inferiores coloca os semitas, onde falta a metafísica, porque o espírito é muito tenso e inteiro… o homem reduz-se ao entusiasmo lírico, à paixão irrefreável, à acção fanática e limitada Fonte: <http://www.iscsp.utl.pt/~cepp/autores/franceses/1823._taine.htm>. Acesso em: 11 jul. 2011. Vale ressaltar que Taine não influenciou somente a literatura. Sua distinção entre raças superiores e inferiores foi utilizada em diversas políticas antissemitas, contra os judeus, como o nazismo, por exemplo. Economicamente, destacamos o acirramento da Revolução Industrial, o que muda não somente o painel econômico, mas também o social da Europa e de suas colônias. Como já dissemos, com os novos modos de produção, surge uma grande massa de operários explorados e marginalizados. 46 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Os artistas dessa época passaram a adotar uma visão mais objetiva da realidade, por meio do uso da razão, e pautada na sociedade. Em Portugal, a crise é no setor agrário. Camponeses, soldados e a pequena burguesia se revoltam. Houve uma rebelião de soldados em 1847 conhecida como Patuleia (algo como pata ao léu, tudo de pernas para o ar) que só pode ser reprimida com intervenção dos espanhóis e ingleses, o que demonstra a total dependência do país, assim como uma monarquia enfraquecida. Em 1851, por meio de um golpe político, o marechal Saldanha institui a monarquia parlamentarista (nos moldes ingleses) e se inicia o período de Regeneração (1851-1910), no qual, como o nome designa, propunha-se a “regeneração de Portugal.” Os partidos no poder eram constantemente mudados, principalmente em momentos de crise, cabendo-lhes a culpa dos problemas, e não do El-rei que ficava salvaguardado. Havia uma política econômica desenvolvimentista que beneficiava a concentração de renda nas mãos dos proprietários da terra. Nesse período, Portugal teve cinco reis (D. Fernando II, D. Pedro V, D. Luís I, D. Carlos I e D. Manuel II) até se instituir a República, em 5 de outubro de 1910. 3.2 A produção literária O Realismo é de origem francesa, inicialmente nas artes plásticas com as obras realistas de Gustave Courbet que chocaram os românticos. Em 1857, Gustave Flaubert publica Madame Bovary. Dez anos depois, Émile Zola publica Thérèse Raquin que dá origem ao extremismo realista, o Naturalismo, mas sua obra-prima é o livro Germinal de 1885. Antes de falarmos do Realismo na Literatura Portuguesa, é necessário falar um pouco mais desses dois grandes romancistas franceses que influenciaram a literatura universal. Observação Gustave Courbet foi um famoso pintor realista francês que se preocupou em retratar cenas do cotidiano,buscando ser fiel a realidade que o cercava. Retratou em suas telas as cenas do cotidiano dos trabalhadores das classes pobres da sociedade, destacando-se pelos traços fortes e detalhistas das figuras. 47 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Figura 10 - Gustave Courbet - La Falaise d’après l’Etrerat orage, 1869. Museu d’ Orsay- Paris Saiba mais Veja a apresentação em slides sobre a obra de Gustave Courbet. Disponível em: <http://www.slideshare.net/hcaslides/gustave-courbet-1498235>. Acesso em: 5 jul. 2011. Gustave Flaubert e Madame Bovary Figura 11 - Gustave Flaubert Flaubert foi um dos autores mais importantes do Realismo, influenciado pelas teorias científicas, pela Revolução Industrial e pela linha filosófica de Augusto Comte, o Positivismo. Ele levou à perfeição o ideal do romance realista de harmonizar a arte e a realidade. Sua obra se caracteriza pelo cuidado minucioso com a linguagem e pela estrutura do enredo. Influenciou toda uma geração de escritores, inclusive Eça de Queirós. Seu romance de estreia foi Madame Bovary, um retrato crítico da hipocrisia da sociedade burguesa e romântica. A obra foi resultado de cinco anos de um trabalho minucioso. Em linhas gerais, o enredo gira em torno da história de Emma, uma moça sonhadora que se casa com um médico provinciano, Charles 48 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Bovary. Sua vida é sem graça, ociosa, muito diferente de seus ideais. O marido é um simplório. Emma sente-se muito infeliz, repugna seu marido e, para fugir de sua vida medíocre, entrega-se ao adultério. Materialista e inconsequente, gasta o que não possui e envolve-se em dívidas absurdas. Observação Atualmente o termo “bovarismo” é utilizado para demonstrar a incapacidade de se lidar com o mundo real. Veja a seguir um trecho do texto do professor Antônio Apolinário Lourenço a respeito dos 150 anos da publicação de Madame Bovary e sua influência na obra de Eça de Queirós: Concretizaram-se, no ano há pouco terminado, cento e cinquenta anos sobre a publicação em livro de Madame Bovary, o genial romance de Flaubert. Estranhamente, a efeméride passou entre nós praticamente despercebida, apesar da enorme influência que essa obra e o seu autor exerceram sobre a literatura portuguesa, a partir do final do século XIX. Para Eça de Queirós, em particular, Gustave Flaubert foi permanentemente um mestre e um modelo. Logo em 1871, quando o futuro autor d’Os Maias apresentou no Casino Lisbonense a sua conferência sobre o realismo na arte, com um discurso demasiado colado ao do livro de Proudhon intitulado Du principe de l’art et de sa destination sociale, os parágrafos mais originais foram justamente aqueles que dedicou a Madame Bovary. A conferência, como se sabe, é apenas conhecida pelos relatos da imprensa da época (neste caso, o Diário Popular de 15/06/1871). Para exemplificar a doutrina do realismo, citou o Sr. Eça de Queirós Madame Bovary, o célebre livro de Gustave Flaubert, no qual o adultério tantas vezes cantado pelos românticos como um infortúnio poético que comove perniciosamente a susceptibilidade das almas cândidas, aparece-nos pela primeira vez debaixo da sua forma anatômica, nu, retalhado e descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente e terrível. Constatamos, assim, que foi a leitura de Madame Bovary que fez Eça compreender a superioridade civilizacional e ética do Realismo sobre o Romantismo. Outros autores, como os irmãos Goncourt e Émile Zola, em França, sentiram, perante Madame Bovary, um deslumbramento idêntico ao de Eça. E enquanto Edmond et Jules de Goncourt criavam, com Germinie Lacerteux, uma espécie de Bovary das classes baixas, Zola procuraria, igualmente a partir do romance de Flaubert, desenhar o modelo técnico-narrativo do romance naturalista. Fonte: LOURENÇO, Antônio Apolitário. “Os 150 anos de Madame Bovary”, in Jornal de Letras, 12 de Março de 2008. Fluc-Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: 2008. 49 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Observe que o tema do adultério já aparecia no Romantismo, mas como um infortúnio, um azar do destino. Já no Realismo, ele aparece de forma crua, direta. Saiba mais Há três versões do filme Madame Bovary: dos diretores Jean Renoir [1933], Vincente Minelli [1949] e o mais recente, de 1991, com direção de Claude Chabrol. Veja um trecho do filme de Chabrol no vídeo: <http://www.imdb.com/video/screenplay/vi3198616345/>. Acesso em: 29 maio 2012. Veja um trecho do filme de 1949, Disponível em: <http://vimeo. com/24030702>. Acesso em: 29 maio de 2012. Leia um trecho do romance em que Charles Bovary atende a um doente que machucara a perna, o pai de Emma. É a primeira vez que vê sua futura esposa: Uma jovem, com um vestido de merino azul enfeitado com três folhos, apareceu à porta da casa, para receber mo o Sr. Bovary, e o fez entrar na cozinha, onde ardia um bom fogo. O almoço dos criados fervia ao redor em pequenas panelas de diferentes tamanhos. Algumas roupas úmidas secavam na lareira. A pá, as pinças e os foles, todos de proporções colossais, brilhavam como aço polido enquanto, ao logo dos muros, estendia-se uma abundante bateria de cozinha, onde se refletiam, de forma desigual, a chama clara do fogão juntamente com os primeiros raios do sol que entravam pelas vidraças. (...) Charles surpreendeu-se com a brancura de suas unhas. Eram brilhantes, com extremidades finas mais limpas do que os marfins de Dieppe* e amendoadas. Suas mãos, contudo, não eram bonitas, não eram suficientemente pálidas, talvez, e um pouco secas nas falanges; eram demasiado longas também e sem suavidade nos contornos. O que tinha de belo eram os olhos: embora fossem castanhos, pareciam pretos, por causa dos cílios, e seu olhar atingia o interlocutor com franqueza e com uma cândida ousadia. (FLAUBERT, 2010, p. 27-28.) *Dieppe: cidade francesa Notamos aqui algumas características realistas que veremos a seguir, como a descrição detalhada e a não idealização da mulher, como faziam os românticos. Emma parece uma pessoa comum, não uma deusa. Suas mãos não são bonitas, mas seus olhos possuem um certo mistério. 50 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Observação Quando Charles conhece Emma, ainda é um homem casado, mas esse fato não aparece na versão para o cinema. Émile Zola e Germinal Figura 12 - Emile Zola Émile Zola foi o fundador e o principal representante do movimento literário naturalista. Inspirado na filosofia positivista e na medicina da época, Zola acreditava que a conduta humana é determinada pela herança genética, pela fisiologia das paixões e pelo ambiente, conforme vimos, trata-se do Determinismo de Taine. Zola afirmou no ensaio “O romance experimental” (1880), que o desenvolvimento dos personagens e das situações deve ser determinado de acordo com critérios científicos similares aos empregados nas experiências de laboratório. Para ele, a realidade deveria ser descrita de maneira objetiva, por mais sórdidos que pudessem parecer alguns aspectos. A história de Germinal é baseada em fatos verídicos e retrata a primeira greve de mineiros no norte da França no final do século XIX. Zola viveu dois meses nessas minas de carvão para poder descrever fielmente o que acontecia. É a época da criação da I Internacional Operária, fundada com a participação de Karl Marx em Londres – momento de ebulição política, crise econômica, falências, miséria e fome na Europa.Veja um trecho retirado do primeiro capítulo, quando Etienne chega às minas para procurar emprego: 51 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Como continuar assim pelos caminhos, sem destino, não sabendo sequer onde abrigar-se do vento frio? Sim, era de fato uma mina, os raros lampiões iluminavam o pátio, uma porta subitamente aberta permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das caldeiras das máquinas envoltas numa claridade viva. Encontrava explicação até para o escapamento da bomba, essa respiração grossa e ampla, resfolegando sem descanso, e que era como a respiração obstruída do monstro. O encarregado da descarga dos vagonetes, de costas curvadas, nem mesmo levantara os olhos para Etienne. No momento em que este ia apanhar seu pequeno embrulho que estava no chão, um acesso de tosse anunciou-lhe a volta do carroceiro. Lentamente ele surgiu do escuro, seguido pelo cavalo baio que puxava outros seis vagonetes cheios. — Há fábricas em Montsou? — perguntou o rapaz. O velho escarrou preto antes de responder em meio à ventania: — Fábricas é o que não faltam. Você precisava ver há três ou quatro anos: tudo produzindo, faltava mão de obra, nunca se ganhou tanto. E, de repente, começa-se a apertar o cinto. Uma verdadeira desgraça cai sobre a região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a fechar uma após outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele de ir lutar na América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de cólera, como as pessoas. (ZOLA, 2006 p. 4-5.) Observamos o descritivismo, já existente no Realismo, mas de uma forma mais contundente. Aspectos escatológicos, como o homem cuspir, são comuns nessa estética. Saiba mais Para contextualizar a época do Naturalismo, assista: GERMINAL. Dir. Claude Berri. França, 158 minutos, 1993. 3.3 Questão Coimbrã Em Portugal, o Realismo se inicia com a famosa Questão Coimbrã, que consistia em uma crise acadêmica em que diversos textos ofensivos foram trocados, de um lado os românticos, veteranos e mestres na academia, como o professor Antônio Feliciano de Castilho, de outro os rebeldes estudantes da Sociedade do Raio, fundada por Antero de Quental. 52 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Vale lembrar que o Realismo português foi bastante organizado, repleto de conferências e estudos sobre a estética. Nunca a literatura portuguesa conseguiu alcançar tal feito. Havia as Conferências do Casino Lisbonense, repletas de discussões filosóficas. Participaram dessas conferências o poeta, folclorista e futuro presidente de Portugal, Teófilo Braga, e o famoso romancista Eça de Queirós, do qual trataremos nesta unidade. A Questão Coimbrã se inicia a partir da publicação de uma carta de Antero de Quental, intitulada “Bom senso e bom gosto”, em 1865 em resposta ao professor Antônio Feliciano de Castilho. Castilho havia escrito uma carta elogiando a obra de Pinheiro Chagas, O poema da mocidade, e criticando os jovens escritores. Tal carta foi utilizada como posfácio da primeira edição desse livro. Veja um trecho: Muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços... Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal...” (CASTILHO,1865 apud MOISÉS, 2008, p. 220-221. Destaques nossos). Observemos que Castilho considera a nova tendência uma enfermidade, com uma poesia que nega a verdade e simplicidade, aspectos que, podemos concluir, são inerentes à poesia romântica. Cita nominalmente Teófilo Braga e Antero de Quental que, como líder da Sociedade do Raio, responde ao professor. Veja alguns trechos de Bom senso e bom gosto: Não é traduzindo os velhos poetas sensualistas da Grécia e de Roma; requentando fábulas insossas diluídas em milhares de versos sem sabores; não é com idílios grotescos sem expressão nem originalidade, com alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós; com frases e sentimentos postiços de acadêmico com visualidades infantis e puerilidades vãs; com prosas imitadas das algaravias místicas de frades estonteados; com banalidades; com ninharias; não é, sobretudo, lisonjeando o mau gosto e as péssimas ideias das maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as ideias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa para se reformar como uma fogueira a que a lenha vai faltando (QUENTAL, 1865, p. 15). São claras as referências à poesia romântica, considerando seus versos sem sabor, seus sentimentos postiços, falsos, pueris, infantis e vãos. Quental estava inspirado! Ao terminar sua carta, demonstra toda sua irreverência, dirigindo-se diretamente à figura de Castilho: 53 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Concluo daqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a madureza das ideias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as verduras de v. ex.a convencido valerem pelo menos os seus sessenta. Posso, pois, falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos brancos de v. ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sabem d’ele, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão. E por estes motivos todos que lamento do fundo d’alma não me poder confessar, como desejava, de V.ex.a. Coimbra 2 de novembro de 1865. Nem admirador nem respeitador (QUENTAL, 1865, p. 15-16). Veja que Quental não poupa críticas ao professor, chamando-o de infantil e fútil, negando-lhe a admiração e o respeito. Observação A partir dessa carta, muitas outras foram escritas por diversos intelectuais da época, uns se posicionaram ao lado dos românticos e outros ao lado dos realistas. Saiba mais As diversas cartas dessa polêmica podem ser encontradas no Google books: <http://books.google.com>. Procurar: Bom senso e bom gosto: carta ao [excellentissimo] senhor Antonio Feliciano por Antero de Quental. 3.4 Características gerais do Realismo • Os artistas realistas assume uma postura mais engajada. Há o compromisso entre a arte e a realidade social. Contudo, a arte ainda assume um viés burguês, com os protagonistas advindos dessa classe. • As obras possuem um embasamento teórico: determinismo, positivismo, evolucionismo e socialismo. 54 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 • Há uma crítica constante à educação romântica, como alienante e responsável por todos os problemas culturais da sociedade. • A crítica ao conservadorismo da Igreja é uma temática constante, podemos encontrá-la na obra de Flaubert, Zola e Eça de Queirós. • Em oposição ao Romantismo, os artistas realistas optam por uma visão objetiva da realidade. • Os realistas preferem a representação da vida cotidiana à evasão romântica. • Prevalece o uso da razão, não mais da emoção. Como podemos observar,o Realismo é essencialmente antirromantismo. Faça uma tabela em uma folha avulsa, de um lado as características do Romantismo, do outro as características do Realismo. Isso facilita na hora dos estudos. Identificar uma obra romântica e uma obra realista não é tão simples assim. Há autores românticos que já apresentam características realistas, muitos escrevem obras de transição e perpassam por várias manifestações. Assim, não tente encaixar uma obra “à força” em alguma estética, analise-a como um todo, contexto e linguagem. O que é mesmo o Realismo? Definir nem sempre é fácil, vejamos uma boa definição de Realismo, dada pelo escritor Eça de Queirós: O Realismo é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta (QUEIRÓS, Eça apud MOISÉS, 2008, p. 231). 3.4.1 O romance realista e o romance naturalista Didaticamente, consideramos, como vimos, que Gustave Flaubert inicia o Realismo e Émile Zola o Naturalismo. Contudo, a distinção entre essas duas tendências não é tão simples assim. Veremos as características dos romances dessa época de forma generalizada, para depois apresentar algumas especificidades. Lembrete Madame Bovary, de Gustave Flaubert marca o início do Realismo na França em 1857. Dez anos mais tarde, Thérese Raquin, de Émile Zola, marca o início do Naturalismo. 55 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Citando o professor Massaud Moisés: O romance passa a ser no Realismo obra de combate, arma de ação transformadora da sociedade burguesa dos fins do século XIX. Torna-se instrumento de ataque e demolição, por um lado, e de defesa de ideais filosóficos e científicos, por outro (MOISÉS, 2008, p. 189). Como podemos observar, os romancistas não se preocupam mais em enaltecer os valores burgueses, ou mesmo idealizar uma realidade como os românticos faziam, mas, ao contrário, criticam tudo que era subjetivo e pretendiam descrever a realidade como ela era. O romance passa a ser um espaço de experimentação das novas teorias científicas, é o que chamamos de Romance de Tese, ou seja, o artista procura aplicar os novos conceitos na construção de suas personagens, como se fossem cobaias em um laboratório. Há entre os romances realistas e naturalistas muitos pontos de contato. Vale dizer que o Realismo surgiu antes, o Naturalismo depois. Assim, o Naturalismo é uma nova versão, bem semelhante, mas extremamente exagerada. Para o Naturalismo, o homem é um ser natural, e como tal é guiado por seus instintos, principalmente nas questões sexuais. No livro Théresè Raquin, que é tido como o marco do Naturalismo francês, vemos personagens movidas por seus desejos, instintivamente, sem qualquer reflexão. A relação amorosa entre Thérese e Laurent, os protagonistas da história, chega a ser doentia: Leia um trecho do prefácio: Em Thérèse Raquin, eu quis estudar temperamentos e não caracteres. Aí está todo o livro. Escolhi personagens soberanamente dominados pelos nervos e pelo sangue, desprovidos de livre arbítrio, arrastados em cada ato de suas vidas pelas fatalidades da própria carne. Thérèse e Laurent são animais humanos, nada mais. Procurei acompanhar nesses animais o trabalho surdo das paixões, as violências do instinto, os desequilíbrios cerebrais ocorridos na sequência de uma crise nervosa. (…) A alma está absolutamente ausente, concordo perfeitamente, uma vez que eu quis assim (ZOLA, 2001, p. 10. Destaques nossos). Em destaque, nas palavras do próprio Zola, os protagonistas são tratados como animais humanos, sem alma, somente guiados pelo instinto. É um livro que, pessoalmente, causou-me angústia devido aos aspectos repugnantes. Podemos dizer que nos romances realistas, o autor mostra a ferida, as mazelas da sociedade, já o autor naturalista disseca essa ferida. As cenas de adultério são mostradas sutilmente pelo realista, como se fechasse as cortinas do quarto dos amantes. O naturalista abre as cortinas e descreve a cena em 56 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 pormenores. Os aspectos científicos são levados ao extremo, os vícios das personagens são analisados como casos patológicos, doentios. Observação No Brasil, há uma distinção mais nítida entre essas duas estéticas. Podemos dizer que Machado de Assis não seguiu a estética naturalista, sendo um realista. Já Aluísio de Azevedo, em O Cortiço, segue o Naturalismo. Saiba mais Leia o artigo “O Realismo e o Naturalismo: uma questão de terminologia”, de Patrícia Alves Carvalho Correa, do XIV Congresso Nacional de Linguística e Filologia, Tomo IV, p. 3042 a 3045, disponível no site <http://www.filologia. org.br/xiv_cnlf/tomo_4.html>. Acesso em: 23 maio 2012. As características a seguir podem ser encontradas nas duas vertentes, tanto Realista como Naturalista: • A linguagem utilizada é objetiva, culta e direta. • As descrições são detalhadas e a adjetivação objetiva com o intuito de captar o real. • A mulher não é idealizada, diferenciado-se da heroína romântica. • O amor é subordinado aos interesses sociais. Não há amor verdadeiro. O casamento é um contrato de interesses e conveniências, ocorrendo, portanto, vários casos de adultério. • O herói e a heroína são fracos, cheio de manias e incertezas. • A narrativa costuma ser lenta. • As personagens são trabalhadas psicologicamente. Contudo, com maior frequência nas obras realistas. Lembrete Lembre-se, nem sempre é tão fácil distinguir uma obra romântica de uma obra realista. Quanto ao fato de uma obra ser realista e naturalista, as distinções são mais tênues. 57 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA 3.5 Eça de Queirós Figura 13 – Eça de Queirós José Maria Eça de Queirós (1845-1900) nasceu na Póvoa de Varzim e faleceu em Paris. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, tornando-se amigo de Antero de Quental, entre outros. Participou nas Conferências do Casino e é um dos artistas da Geração de 70. Foi nomeado cônsul, tendo viajado pelo Egito, Cuba, Londres e Paris. Das suas obras, destacam-se Uma campanha alegre (1871), O crime do padre Amaro (1875-1876), O primo Basílio (1878), A relíquia (1887), Os Maias (1888), A ilustre casa de Ramires (1900), A correspondência de Fradique Mendes (1900), A cidade e as serras (1901-postumamente), Contos (1902) e Prosas Bárbaras (1903). Traduziu o romance de Rider Haggard, As minas de Salomão. É considerado um dos maiores romancistas portugueses do século XIX. Seu estilo é marcado pela crítica e pela ironia. Fonte: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/queiros.htm>. Acesso em: 23 maio 2012. Saiba mais Para saber mais sobre Eça de Queirós e suas obras, acesse os seguintes sites: Vidas lusófonas: <http://www.vidaslusofonas.pt/eca_de_queiros.htm>. E Fundação Eça de Queirós: <http://www.feq.pt/eca_de_queiroz.html>. Acesso em: 29 maio de 2012. Eça de Queirós foi um êxito no Brasil, mesmo em vida, lido pelos brasileiros enquanto romancista e também cronista pela ampla colaboração feita a jornais brasileiros, em especial para a Gazeta de Notícias nodo Rio de Janeiro. Escritores brasileiros ilustres como Manuel Bandeira, Machado de Assis, José Lins do Rego, Olavo Bilac e Graciliano Ramos foram leitores de Eça. O autor tem sido lido, relido e estudado durante mais de 100 anos, sinal da atualidade e dimensão artística da obra queirosiana. 58 UnidadeII Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 No século XIX, os intelectuais migravam entre a literatura e o jornalismo, sendo a imprensa um espaço de experimentação e uma vitrine para grandes escritores: Eça de Queirós construiu no Brasil, através de suas colaborações jornalísticas e de sua obra de ficção, a imagem do iconoclasta que demolia monumentos e instituições passadiças - uma ação reformadora (...) feita através de palavras e argumentos. (...) Para seus leitores brasileiros, firmou-se cada vez mais a convicção de que sua obra mostrava uma realidade também brasileira e o caráter de intervenção do programa literário de Eça seria extensível ao país (ABDALA JR., 2008, p. 97). O professor ainda diz que as influências de Eça podem ser sentidas nos romances dos anos 30, como nas obras de Graciliano Ramos: A influência da obra de Eça em nossa literatura não foi grande nem sensível, como vejo tanta gente afirmar. Sobre o público, sim, foi imensa. O povo recebia cada romance do grande ironista avidissimamente, e compreendia e amava. Os literatos, porém, eram todos do tipo de Afrânio Peixoto, criaturas impermeáveis, que não sentiam Eça por deficiência deles mesmos, não do romancista. Os leitores de A ilustre casa de Ramires eram o povo e os que com ele se comunicavam diretamente, os jornalistas. Eça melhorou o pensamento do povo, da imprensa, as ideias correntes. O seu estilo influiu principalmente no jornal. As elites não o perceberam quase. Eram os moços que compreendiam a sua obra e a sua imensa significação (ABDALA JR., 2008, p. 254). Segundo Benjamin Abdala Júnior, a obra de Eça e Queirós pode ser dividida em 3 fases: 1ª fase: Neorromântica, composta de algumas notas marginais. 2ª fase: Realista-naturalista, em que se destacam O crime do padre Amaro, O primo Basílio e Os Maias. 3ª fase: Afastamento do Naturalismo, com destaque para A ilustre casa de Ramires e A cidades e as serras. Interessante notar que o romancista insere uma certa “fantasia”, como fica evidente nessa sua última obra, em que Jacinto dispõe de excêntricas modernidades. Quanto a essa última face, Abdala Júnior completa: Não temos mais o ceticismo irônico dos romances naturalistas, nem mesmo a insatisfação melancólica das narrativas da primeira fase. Ao invés do pessimismo problemático, afirma-se o otimismo fácil, que deixaria satisfeito qualquer político da monarquia constitucional portuguesa, que o escritor anteriormente tanto criticara (ABDALA JR., 1985, p. 114). 59 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Ao comentar a última fase de Eça de Queiros, o professor Abdala Jr. faz uma breve síntese de três momentos tão importantes na produção desse grande escritor. Eça passa de uma melancolia, para o pessimismo até alcançar o otimismo. Há quem conteste que seja realmente um otimismo, mas mais uma esperança, ou mesmo um vislumbre ao final da vida. Vejamos a seguir um breve resumo das principais obras. Lembrete Os exercícios e as questões das provas serão em sua maioria sobre O primo Basílio, uma vez que essa tem sido a obra mais lida pelos alunos do Ensino Médio e você, como futuro professor, provavelmente irá trabalhá-la. Contudo, não deixe de ler as outras obras desse grande escritor. 3.5.1 O crime do Padre Amaro Figura 14 – Eça de Queirós. GUERREIRO, Inês. Publicado na revista “Atlântico”, 3º série, nº 2 Esse romance, cuja primeira versão data de 1875 causou um grande escândalo, pois se coloca contra o clero. Passa-se em Leiria, onde o padre Amaro Vieira, ingênuo e facilmente influenciável, assume sua paróquia. Envolveu-se sexualmente com Amélia, uma moça simples que catequizava as crianças da redondeza. Amaro conhece, então, o cinismo de seus colegas, que em nada estranham sua relação com a jovem. Havia outros padres que também tinham suas amantes. Grávida, Amélia morre no parto e Amaro entrega a criança a uma “tecedeira de anjos”. A criança também morre e Amaro, agora um cínico descarado, prossegue com sua carreira. Eça escreveu mais duas versões dessa obra, procurando tirar os episódios mais agressivos, principalmente após a crítica de Machado de Assis, que aparece na íntegra ao final desta unidade. 60 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Saiba mais Há um filme mexicano bastante interessante, que apresenta uma versão atualizada e original. O crime do padre Amaro. Dir.: Carlos Carrera. México, 118 minutos, 2002. Veja o trailer do filme em: <http://www.imdb.com/title/tt0313196/>. Acesso em: 29 maio 2012. 3.5.2 Os Maias Esse livro tem como subtítulo “Episódios da Vida Romântica” e narra a saga da família dos Maias, na qual ocorrem traições, incesto e suicídio. É considerado por muitos como a obra-prima de Eça de Queirós. Em seu enredo, o jovem Carlos da Maia se apaixona por sua irmã Maria Eduarda sem saber, pois haviam sido separados desde a infância. Há uma crítica incisiva sobre a sociedade portuguesa, principalmente a aristocracia decadente, à qual tinha como patriarca Afonso da Maia, avô de Carlos. Lembrete Houve uma adaptação em forma de minissérie para televisão. Contudo, vale lembrar que a minissérie é uma adaptação, diferindo da obra original, apresentando, inclusive, trechos de outras obras, como A relíquia. 3.5.3 A cidade e as serras Veja o contraste das imagens a seguir. A primeira representa “A cidade” do título, no caso Paris no final do século XIX. A segunda, apesar de ser uma fotografia atual, representa “As serras”, a região de Tormes em que o protagonista Jacinto passa a viver em uma vida bucólica, em contraste com a vida moderna de homem “civilizado” na grande Paris. Esse contraste entre campo e cidade é bastante comum na literatura. Temas como fugere urbem (fuga da cidade) ou mesmo locus amoenus viraram clichês árcades. Contudo, as questões suscitadas nessa obra vão além dessa comparação simplista. As buscas pela harmonia e por certa convivência pacífica dão o tom ao enredo. 61 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Figura 15 – Paris, século XIX. Foto tirada em Monmatre - Paris Figura 16 - A Fundação Eça de Queirós fica na cidade de Tormes- Portugal Esse romance foi publicado após a morte de Eça de Queirós. Seu foco narrativo é interessante, o narrador em primeira pessoa não é o protagonista, é o que chamamos de narrador-testemunha. O narrador José Fernandes conta as peripécias e atribulações de Jacinto de Tormes, fidalgo português nascido em Paris: Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos, neste velho Paris... Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha iniciação: 62 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 — Oh Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis? Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os sublimava. — Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as penas velhas; o outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas... (QUEIRÓS, 2009, p. 28). Observe que a narração é em primeira pessoa, mas o protagonista da história é Jacinto, um milionário e um homem culto, que se cercava de luxo e de inúmeros amigos influentes e superficiais. No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate e aindaem chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pelo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal, (por causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do século XIX necessita para não desfeiar o conjunto sumptuário da Civilização e manter nela o seu tipo (QUEIRÓS, 2009, p. 33). Mas sua vida era entediante, sem graça. Nada lhe dava prazer. Certo dia, precisou viajar para Portugal para reformar o cemitério de seus antepassados na propriedade rural de Tormes. Em um primeiro momento, Jacinto sente-se perturbado a ter que viver no campo e abandonar os confortos da civilização. Contudo, aos poucos, apaixona-se pela vida no interior, casa-se e se torna um homem feliz, sem abandonar alguns privilégios da civilização. É uma clara defesa do retorno de Portugal às origens rurais. Eça faz as pazes com sua terra natal. Veja esse trecho do último capítulo: Em fila começamos a subir para a serra. A tarde adoçava o seu esplendor de estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de casas amáveis, flamejavam com um fulgor de ouro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, por entre a verdura, flutuava no ar a bandeira branca, que o Jacintinho não largava, de dentro do seu cesto, com a haste bem segura na mão. 63 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Era a bandeira do Castelo, afirmara ele. E na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa – o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu –, tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, com a alma (QUEIRÓS, 2009, p. 283. Destaques nossos). Observe como a serra é descrita em toda sua beleza e plenitude. O Príncipe, Jacinto, está mais moreno, casado com Joaninha, feliz passeando com seu filho. As “amarguradas ilusões e falsas delícias” são uma referência à vida que Jacinto tinha junto à Civilização. Saiba mais Veja o documentário sobre A cidade e as serras, Disponível em: <http:// videos.sapo.pt/jCKgLUeNNi3pN6lS0ahC>. Acesso em: 29 maio 2012. Entre também no site da Fundação Eça de Queiroz: <http://www.feq.pt/>. 3.5.4 O primo Basílio Veja a seguir um retrato da cidade de Lisboa no século XIX, prédios baixos, ruas sem asfalto, animais passeando entre os homens. Se compararmos com a pintura de Paris nessa época, podemos considerar que os contrastes entre os dois países era bastante significativo. Pois é nessa Lisboa provinciana que se desenvolve o enredo de O primo Basílio. Figura 16 - Lisboa, vista panorâmica da Baixa-finais do séc. XIX - princípio do séc. XX Vista da Praça de D. Pedro IV tirada do elevador de Santa Justa. Fotografia, José Artur Leitão Bárcia 64 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 A obra de Eça de Queirós é extensa e seus livros são verdadeiras obras-primas. Falaremos mais longamente de O primo Basílio, já que é um dos livros mais conhecidos no Brasil, cobrado em vestibulares e estudado pelos alunos do Ensino Médio. Faremos alguns comentários sobre essa obra e suas principais características realistas-naturalistas. Lembrete Você pode assistir ao filme O primo Basílio, contudo, o filme não substitui a leitura do livro já que se trata de uma adaptação bem modificada e não corresponde fielmente à obra de Eça de Queirós. Nessa obra, como em outras, percebe-se a crítica social como principal característica. O alvo principal da crítica, nessa obra, é a família lisboeta como “produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem”. Ela foi inspirada em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Há várias semelhanças no enredo, contudo, as obras se diferenciam principalmente pelo tom irônico de Eça, pela maneira caricatural e debochada que constrói as personagens. Além do que, O primo Basílio apresenta também características naturalistas. Eça de Queirós compõe um pequeno quadro doméstico e familiar, típico da pequena burguesia de Lisboa da época: Luísa, uma jovem senhora sentimental, de educação romântica, de temperamento exaltado, fruto da ociosidade e da falta de disciplina moral; seu primo Basílio, um amante baixo e imoral, sedento de aventuras e amores frívolos; Juliana, uma criada revoltada com a sua situação, sedenta de vingança. Jorge, o marido medíocre, pouco romântico. Saiba mais Conheça a minissérie O primo Basílio, de 1988. Disponível em: <http:// memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-235957,00. html>. Acesso em: 29 maio 2012. Para os realistas, o casamento é uma mera conveniência. Jorge casa-se “no ar” como diz seu amigo Sebastião. Não há paixão, há apenas comodidade. Veja que interessante trecho, logo no primeiro capítulo: Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos: — Casou no ar! Casou um bocado no ar! 65 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como uma passarinha amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério. — É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda de basso. Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela! (QUEIRÓS, 2002, p. 17). Observe o tom irônico de Eça de Queirós. Sabemos que Luísa trairá seu marido, assim, quando o autor a chama de “serzinho louro e meigo” chega a ser cômico. Para Jorge, o casamento e o jaquetão de flanela equiparam-se e lhe dão o mesmo conforto, ou seja, o casamento não passa de uma conveniência. Como tese, o autor quer nos demonstrar que Luísa trai seu marido devido à sua formação romântica, às suas leituras açucaradas, à sua formação sem moral, sem disciplina. Luísa lia Dama das camélias, romance romântico de Alexandre Dumas Filho. Nesta obra são mostrados somente os aspectos prazerosos da traição, a luxúria e paixão, e não suas consequências ou condenações morais e religiosas. Como se fosse “chique” ter uma amante. O romance e a peça Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho passa ser leitura frequente entre a burguesia. Margarida Gautier tornou-se um símbolo do amor romântico. Cortesã, mulher de muitos amantes, ao se apaixonar se purifica e acaba por morrer diante da impossibilidade de seu amor. O livro Lucíola de José de Alencar baseia-se nessa obra. Vejamos um trecho em que Luísa lê Dama das camélias:Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobiliados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heroicas... (QUEIRÓS, 2002, p. 20). Observe como Luísa é sonhadora. Dizemos que se Luísa tivesse lido Madame Bovary ao invés de Dama das camélias, provavelmente não teria traído seu marido. 66 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Na construção de Luísa, podemos observar a teoria de Taine sendo colocada em prática: o Determinismo. Luísa, assim como Juliana, é um produto do meio em que vive, ela não tem escapatória. Vejamos o trecho que comprova as características deterministas da obra. No capítulo III, encontramos uma composição gloriosa do caráter de Juliana: Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de chapelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então adoecido; com o horror do hospital fora tratar-se para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! (QUEIRÓS, 2002, p. 61). Vocabulário Fazer despejos: esvaziar os penicos dos patrões, jogando os dejetos em uma fossa. Lembrete Determinismo: o homem é determinado pela raça, meio e momento. Muitos críticos consideram Juliana como a personagem mais complexa e bem construída por Eça de Queirós. Sentindo-se humilhada por toda uma vida, ao ter as cartas de Luísa e Basílio em mãos (provas do adultério), aproveita a oportunidade para se vingar de todas suas patroas. Cuidado, não podemos dizer que há luta de classes ou que o socialismo é defendido por Eça. Juliana não lutava pelo direito das empregadas domésticas ou pela igualdade, o que ela queria mesmo era tornar-se uma pequena burguesa, uma patroa como Luísa. O Positivismo de Comte também pode ser verificado. Eça nos mostra um país atrasado, cheio de crendices, longe do progresso, assim, resvalando na lama. Tudo isso representado por suas personagens. Lembrete Positivismo: só a ciência leva ao progresso. 67 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA O detalhismo é outra característica do estilo queirosiano. O autor é bastante detalhista, suas descrições são longas e pormenorizadas. Sua intenção ao descrever uma sala, por exemplo, é construir a personalidade das pessoas que ali se apresentam. Veja esse trecho em que Luísa ruma ao encontro de seu amante Basílio e é abordada pelo Conselheiro Acácio. Os dois ficam conversando em frente a uma confeitaria: Estavam parados ao pé da Confeitaria. Na vidraça, por trás deles emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro, tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmeladas esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam as suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos, medonha e bojuda, com o ventre amarelo asqueroso, o dorso malhado de arabescos de açúcar, a boca escancarada... (QUEIRÓS, 2002, p. 101). Vocabulário Lampreia: parasita, assemelha-se a uma lesma. Malvasia: bebida. Queques: doces. Note a descrição detalhada, repleta de pormenores. Eça, ao descrever a confeitaria, de forma grotesca e exagerada, até naturalista, antecipa-nos o próximo episódio em que Luísa cometerá adultério. Neste outro trecho, temos um bom exemplo de crítica social: Sebastião, interpelado,corou, declarou que não entendia nada de política; havia todavia fatos que o afligiam: parecia-lhe que os operários eram mal pagos; a miséria crescia; os cigarreiros, por exemplo, tinham apenas de nove a onze vinténs por dia, e, com família, era triste... — É uma infâmia! — disse Julião encolhendo os ombros. — E há poucas escolas... — observou timidamente Sebastião. — É uma torpeza! — insistiu Julião. (...) Mas o Conselheiro interrompeu-o: — Meus bons amigos, falemos de outra coisa. É mais digno de portugueses e de súditos fiéis (QUEIRÓS, 2002, p. 245). 68 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Nesse diálogo, podemos observar a sociedade portuguesa da época. Havia problemas sérios, pessoas vivendo na miséria. Mas, hipocritamente, o Conselheiro Acácio, que se diz tão bom e patriota, recusa-se a falar sobre o assunto. Esse é um bom exemplo da crítica social feita por Eça de Queirós. Além da crítica, podemos observar como característica de Eça de Queirós a ironia. As personagens são caricaturas, por vezes grotescas e engraçadas. Duas personagens exemplares são D. Felicidade, amiga da família e apaixonadíssima pelo Conselheiro Acácio, e Ernestinho, o primo de Jorge: Dona Felicidade: Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinquenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabelos levemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor, luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns pelos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena muito fina. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos (QUEIRÓS, 2002, p. 33). Observe a descrição caricatural. As idealizações românticas são deixadas de lado, vemos uma mulher gorda, com bigodes, sofrendo de azia e gases. D. Felicidade se diz religiosa e devota, mas vive de falsidades. Quando Juliana fica doente, D. Felicidade aconselha Luísa a mandá-la embora, para que não morra na casa. Como diria Eça, “como era generosa D. Felicidade!”. Ernestinho: Era primo de Jorge. Pequenino, linfático, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto débil de colegial; o buço, delgado, empastado em cera mostacha, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma atrizita do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado, o ar tísico – e escrevia para o teatro. Tinha traduções, dos originais num ato, uma comédia... (QUEIRÓS, 2002, p. 37-38). 69 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F abio - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA Vocabulário Mostacha: cera para bigodes, brilhantina. Riçado: arrepiado, crespo. Ernestinho é descrito com um ser ridículo. Alegoricamente, Eça concretiza nessa personagem o próprio Romantismo. Assim, como bom realista que era, Eça de Queirós é antirromântico, chegando ao extremo de considerar que todo o atraso em Portugal devia-se às idealizações românticas. Teríamos muito mais para falar desse grande romancista português e suas obras. Eça de Queirós soube compor como ninguém um quadro bastante completo da sociedade portuguesa do século XIX. Com uma crítica voraz, repleta de ironia e deboche, o autor aponta as mazelas de uma sociedade em crise, ludibriada pelos encantos do fim de século e vislumbrando um novo século, o século XX. Veja a seguir uma caricatura sobre o livro, publicada na revista O Besouro, 1878. Uma outra madame, cujo nome não aparece, apresenta para o marido, um comendador, seu primo Quincas. O comendador faz cara de desconfiado e balbucia “hummm... hummm”. Interessante como a obra criou polêmica e até virou mote para o humor. Figura 17 - Caricatura de O Primo Basílio. Gravura, R. Bordalo Pinheiro in O Besouro, v. 1, nº 2, 1878, p. 9 3.6 A crítica de Machado de Assis Quanto às polêmicas criadas, podemos citar o texto publicado por Machado de Assis na revista O Cruzeiro em 1878, no qual faz duras críticas a O crime do Padre Amaro e a O primo Basílio, de Eça de Queirós. Há muito de verdade nessa crítica, contudo, Machado era contemporâneo de Eça e as novidades do Realismo e do Naturalismo, de certa forma, assustaram o escritor brasileiro. O exagero, o tom naturalista que Eça diversas vezes utiliza, é condenado, considerado por Machado como um traço grosso, rude e descabido: 70 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio (ASSIS, M. 1878). Não estamos aqui para julgar o grande escritor Machado de Assis, contudo ele é um homem de seu tempo, com seus conceitos e preconceitos. Machado também não compreende a tese de Eça. Considera que Luísa não tem consistência, o que é uma verdade, e que tese nenhuma é defendida, um erro, já que sabemos que Eça quer justificar o comportamento de Luísa por sua formação romântica, carente de moral. Ele propositalmente a faz de marionete nas mãos de Basílio e Juliana. Observe a ironia machadiana ao considerar que não há tese no romance: Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: A boa escolha dos fâmulos (criados) é uma condição de paz no adultério. A um escritor esclarecido e de boa fé, como o Sr. Eça de Queirós, não seria lícito contestar que, por mais singular que pareça a conclusão, não há outra no seu livro (ASSIS, M., 1878). Observação É importante ressaltar que quando escreve essa crítica, Machado de Assis ainda está em sua fase romântica, pois consideramos, didaticamente, que o Realismo no Brasil se inicia com Memórias de Brás Cubas, em 1878. Essa obra, como Quincas Borba, de 1891, e Dom Casmurro, de 1899 já são realistas, colocando também, entre suas temáticas, o adultério. Machado tece duras críticas ao Realismo praticado por Eça de Queirós, no caso o Naturalismo: condena veementemente essa faceta do escritor, considerando-o abominável, repleto de “perversões físicas”: Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante caracterizado com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele que apresentava a “gravidez bestial”. Bestial1 por quê? (ASSIS, M., 1878). Ao final do texto, Machado defende o Romantismo, “a arte pura”, e condena severamente o Naturalismo, com seu “traço forte”. Todas as obras citadas pertencem ao Romantismo: 1 Bestial: grotesco, da besta. Atualmente, bestial quer dizer ótimo, fantástico (adjetivação positiva). 71 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA A arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias do Monge de Cister2, do Arco de Sant’Ana3 e d’O Guarani4 . A atual literatura portuguesa é assaz rica de força e talento para podermos afiançar que este resultado será certo, e que a herança de Garrett5 se transmitirá intacta às mãos da geração vindoura (ASSIS, M., 1878). Eça de Queirós não respondeu diretamente a essa crítica, mas realizou uma terceira versão de O crime do padre Amaro e passou a dar maior atenção à construção psicológica de suas personagens. Ao final desta unidade, você encontrará a crítica de Machado de Assis. Leia-a com atenção, assim como O primo Basílio, e faça suas próprias reflexões. Destacamos os pontos mais importantes, sobre os possíveis plágios, o enredo sem verossimilhança, a construção pobre da personagem Luísa, o questionamento sobre a tese do romance, a condenação do Naturalismo e por último a valorização do Romantismo e seus autores. Será O primo Basílio uma mera cópia de Madame Bovary? Lembre-se da ironia, do tom caricatural e do naturalismo de Eça, que não estão presentes na obra de Gustave Flaubert. Eça foi responsável pelo fortalecimento do romance português, gênero que praticamente não existia em Portugal. Seus modelos foram franceses, ele mesmo nos revela isso, mas são essencialmente portugueses, no trabalho com a linguagem, no uso da ironia, da caricatura e o quadro amplo da sociedade portuguesa, seu clero, sua aristocracia, sua pequena e alta burguesia. 4 APÓS O REALISMO-NATURALISMO A geração dos realistas portugueses é conhecida como a Geração de 70, incluindo prosadores e poetas portugueses. Como ocorreu com as várias estéticas literárias, o Realismo e o Naturalismo também acabaram por se desgastar. No final do século XIX e primeiras décadas do século XX, surgem então alguns movimentos, ou simples manifestações artísticas, que anteciparão o Modernismo. Não as estudaremos nessa disciplina, pois seus grandes artistas destacam-se mais na poesia. Isso não significa que não surgiram romances de relevância e de qualidade literária após o Realismo, contudo, a prosa portuguesa, após Eça de Queirós, torna a se revitalizar somente nos anos de 1940 com o Neorrealismo que estudaremos na próxima unidade. Para que você possa se localizar cronologicamente, podemos destacar que, após o Realismo/ Naturalismo, temos os seguintes movimentos, denominados didaticamente. 2 Monge de Cister - Obra de Alexandre Herculano. 3 Arco de Sant’Ana - Obra de Almeida Garrett. 4 Guarani - Obra de Gonçalves Dias. 5 Almeida Garrett - poeta ultrarromântico. 72 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Inicialmente temos o Simbolismo/Decadentismo (1890-1915). Destacam-se os grandes poetas Eugênio de Castro, António Nobre e Camilo Pessanha, sendo que este último influenciou significativamente a obra de Fernando Pessoa. Simultaneamente, temos o Saudosismo (1910-1915), que não se constitui necessariamente em uma estética, mas sim em uma manifestação artística e um posicionamento intelectual. Destacam-se escritores como Teixeira Pascoaes e Mário Beirão. No início de sua carreira, Fernando Pessoa sentiu-se atraído pelo Saudosismo, publicando alguns de seus poemasna revista A Águia, representante desse período. Em 1915, com a publicação da Revista Orpheu, com a participação efetiva de Mário de Sá Carneiro e nosso memorável Fernando Pessoa, temos o início do Modernismo em Portugal, que didaticamente é dividido em três fases, conforme nos apresenta o professor Massaud Moisés: • Orfismo (1915-1927) • Presencismo (1927-1940) • Neorrealismo (1940-1974) Continuaremos a próxima unidade a partir do Presencismo, sendo que os estudos sobre Orfismo, assim como do Simbolismo, serão tratados em Literatura Portuguesa: Poesia. O Primo Basílio de Eça de Queirós Crítica de Machado de Assis Publicada na revista O Cruzeiro, 16 de abril de 1878. Figura 18 - Machado de Assis Um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa, o Sr. Eça de Queirós, acaba de publicar o seu segundo romance, O Primo Basílio. O primeiro, O crime do padre Amaro, não foi decerto a sua estreia literária. De ambos os lados do Atlântico, 73 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA apreciávamos há muito o estilo vigoroso e brilhante do colaborador do Sr. Ramalho Ortigão, naquelas agudas Farpas, em que, aliás, os dois notáveis escritores formaram um só. Foi a estreia no romance, e tão ruidosa estreia, que a crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome do autor na primeira galeria dos contemporâneos. Estava obrigado a prosseguir na carreira encetada6; digamos melhor, a colher a palma do triunfo. Que é, e completo e incontestável. Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho real do autor? O crime do padre Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir7. Se fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso, já da obra em si, já das doutrinas e práticas, cujo iniciador é, na pátria de Alexandre Herculano e no idioma de Gonçalves Dias. Que o sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l’Abbé Mouret8. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título. (...) Certo da vitória, o Sr. Eça de Queirós reincidiu no gênero, e trouxe-nos O Primo Basílio, cujo êxito é evidentemente maior que o do primeiro romance, sem que, aliás, a ação seja mais intensa, mais interessante ou vivaz, nem mais perfeito o estilo. (...) Vejamos o que é O Primo Basílio e comecemos por uma palavra que há nele. Um dos personagens, Sebastião, conta a outro o caso de Basílio, que, tendo namorado Luísa em solteira, estivera para casar com ela; mas falindo o pai, veio para o Brasil, donde escreveu desfazendo o casamento. — Mas é a Eugênia Grandet! exclama o outro. O Sr. Eça de Queirós incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção. Disse talvez consigo: — Balzac separa os dois primos, depois de um beijo (aliás, o mais casto dos beijos). Carlos vai para a América; a outra fica, e fica solteira. Se a casássemos com outro, qual seria o resultado do encontro dos dois na Europa? — se tal foi a reflexão do autor, devo dizer, desde já, que de nenhum modo plagiou os personagens de Balzac. A Eugênia deste, a provinciana singela e boa, cujo corpo, aliás robusto, encerra uma alma apaixonada e sublime, nada tem com a Luísa do Sr. Eça de Queirós. 6 Encetar: começar, iniciar. 7 Peça de Emile Zola 8 Obra de Zola que inspirou O crime do Padre Amaro. 74 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Na Eugênia, há uma personalidade acentuada, uma figura moral, que por isso mesmo nos interessa e prende; a Luísa — força é dizê-lo — a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere9 do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência. Casada com Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo, ficando ela sozinha em Lisboa; aparece-lhe o primo Basílio, que a amou em solteira. Ela já o não ama; quando leu a notícia da chegada dele, doze dias antes, ficou muito “admirada”; depois foi cuidar dos coletes do marido. Agora, que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca de Jerusalém, do papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de outro tempo; diz-lhe que estimara ter vindo justamente na ocasião de estar o marido ausente. Era uma injúria: Luísa fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe até a entender que o espera no dia seguinte. Ele sai; Luísa sente-se “afogueada, cansada”, vai despir-se diante de um espelho, “olhando-se muito, gostando de se ver branca”. A tarde e a noite gasta-as a pensar ora no primo, ora no marido. Tal é o introito10, de uma queda, que nenhuma razão moral explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes paixões criminosas: rebolca-se11 simplesmente. Assim, essa ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do livro com essas duas criaturas sem ocupação nem sentimentos? Positivamente nada. E aqui chegamos ao defeito capital da concepção do Sr. Eça de Queirós. A situação tende a acabar, porque o marido está prestes a voltar do Alentejo, e Basílio começa a enfastiar-se, e, já por isso, já porque o instiga um companheiro seu, não tardará a trasladar-se a Paris. Interveio, neste ponto, uma criada. Juliana, o caráter mais completo e verdadeiro do livro; Juliana está enfadada de servir; espreita um meio de enriquecer depressa; logra apoderar-se de quatro cartas; é o triunfo, é a opulência. Um dia em que a ama lhe ralha com aspereza, Juliana denuncia as armas que possui. Luísa resolve fugir com o primo; prepara um saco de viagem, mete dentro alguns objetos, entre eles um retrato do marido. Ignoro inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de ternura conjugal: deve haver alguma; em todo caso, não é aparente. Não se efetua a fuga, porque o primo rejeita essa complicação; limita-se a oferecer o dinheiro para reaver as cartas, dinheiro que a prima recusa, despede-se e retira-se de Lisboa. Daí em diante o cordel que move a alma inerte de Luísa passa das mãos de Basílio para as da criada. Juliana, com a ameaça nas mãos, obtém de Luísa tudo, que lhe dê roupa, que lhe troque a alcova, que lha forre de palhinha, que a dispense de trabalhar. Faz mais: obriga-a a varrer, a engomar, 9 Títere: marionete. 10 Introito: começo. 11 Rebolcar-se: lançar-se. 75 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA a desempenhar outros misteres12 imundos. Um dia Luísa não se contém; confia tudo a um amigo de casa, que ameaça a criada com a polícia e a prisão, e obtém assim as fatais letras, Juliana sucumbe a um aneurisma; Luísa, que já padecia com a longa ameaça e perpétuahumilhação, expira alguns dias depois. Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós, e a inanidade do caráter da heroína. Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não havia semelhante fâmula13 em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida exterior. Para obviar a esse inconveniente, o autor inventou a criada e o episódio das cartas, as ameaças, as humilhações, as angústias e logo a doença, e a morte da heroína. Como é que um espírito tão esclarecido, como o do autor, não viu que semelhante concepção era a coisa menos congruente e interessante do mundo? Que temos nós com essa luta intestina entre a ama e a criada, e em que nos pode interessar a doença de uma e a morte de ambas? Cá fora, uma senhora que sucumbisse às hostilidades de pessoa de seu serviço, em consequência de cartas extraviadas, despertaria certamente grande interesse, e imensa curiosidade; e, ou a condenássemos, ou lhe perdoássemos, era sempre um caso digno de lástima. No livro é outra coisa. Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! Dê-me a sua pessoa moral. Gastar o aço da paciência a fazer tapar a boca de uma cobiça subalterna, a substituí-la nos misteres ínfimos, a defendê-la dos ralhos do marido, é cortar todo o vínculo moral entre ela e nós. Já nenhum há, quando Luísa adoece e morre. Por quê? Porque sabemos que a catástrofe é o resultado de uma circunstância fortuita, e nada mais; e consequentemente por esta razão capital: Luísa não tem remorsos, tem medo. Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: a boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério. A um escritor esclarecido e de boa fé, como o Sr. Eça de Queirós, não seria lícito contestar que, por mais singular que pareça a conclusão, não há outra no seu livro. Mas o autor poderia retorquir: — Não, não quis formular nenhuma lição social ou moral; quis somente escrever uma hipótese; adoto o Realismo, porque é a verdadeira forma da arte e a única própria do nosso tempo e adiantamento mental; mas não me proponho a lecionar ou curar; exerço a patologia, não a terapêutica. A isso responderia eu com vantagem: 12 Mister: ofício. 13 Fâmula: criada. 76 Unidade II Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 — Se escreveis uma hipótese dai-me a hipótese lógica, humana, verdadeira. Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo de uma grande dor física; e, não obstante, é máxima corrente em arte, que semelhante espetáculo, no teatro, não comove a ninguém; ali vale somente a dor moral. Ora bem; aplicai esta máxima ao vosso realismo, e, sobretudo, proporcionai o efeito à causa, e não exijais a minha comoção a troco de um equívoco. E passemos agora ao mais grave, ao gravíssimo. Parece que o Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína um produto da educação frívola e da vida ociosa; não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós, ou, noutros termos, do seu Realismo sem condescendência: é a sensação física. Os exemplos acumulam-se de página a página; apontá-los, seria reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru. Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante caracterizado com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele que apresentava a “gravidez bestial”. Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo avoluma o substantivo e o autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um fenômeno animal, nada mais. Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue ao extremo de correr o reposteiro conjugal; que nos talhe as suas mulheres pelos aspectos e trejeitos da concupiscência; que escreva reminiscências e alusões de um erotismo, que Proudhon chamaria onissexual e onímodo; que no meio das tribulações que assaltam a heroína, não lhe infunda no coração, em relação ao esposo, as esperanças de um sentimento superior, mas somente os cálculos da sensualidade e os “ímpetos de concubina”; que nos dê as cenas repugnantes do Paraíso; que não esqueça sequer os desenhos torpes de um corredor de teatro. Não admira; é fatal; tão fatal como a outra preocupação correlativa. Ruim moléstia é o catarro; mas por que hão de padecer dela os personagens do Sr. Eça de Queirós? N’O Crime do Padre Amaro há bastantes afetados de tal achaque; n’O Primo Basílio fala-se apenas de um caso: um indivíduo que morreu de catarro na bexiga. Em compensação há infinitos “jactos escuros de saliva”. Quanto à preocupação constante do acessório, bastará citar as confidências de Sebastião a Juliana, feitas casualmente à porta e dentro de uma confeitaria, para termos ocasião de ver reproduzidos o mostrador e as suas pirâmides de doces, os bancos, as mesas, um sujeito que lê um jornal e cospe a miúdo, o choque das bolas de bilhar, uma rixa interior, e outro sujeito que sai a vociferar contra o parceiro; bastará citar o longo jantar do conselheiro Acácio (transcrição do personagem de Henri Monier); finalmente, o capítulo do Teatro de S. Carlos, quase no fim do livro. Quando todo o interesse se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de reaver as cartas subtraídas pela 77 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 LITERATURA PORTUGUESA: PROSA criada, descreve-nos o autor uma noite inteira de espetáculos, a plateia, os camarotes, a cena, uma altercação de espectadores. Que os três quadros estão acabados com muita arte, sobretudo o primeiro, é coisa que a crítica imparcial deve reconhecer; mas, por que avolumar tais acessórios até o ponto de abafar o principal? Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio. Dado, porém, que a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de quem li, há pouco, e não sem pasmo, que o perigo do movimento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato. Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros livros como O primo Basílio. Se tal suceder; o Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável (Porque o há; quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias do Monge de Cister, do Arco de Sant’Ana e do Guarani. A atual literatura portuguesa é assaz rica de força e talento
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