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Capitalismo e esquizofrenia aula 06

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 6
Na aula de hoje, daremos início à leitura de O anti-Édipo. Lembremos inicialmente o que significa, no interior da experiência intelectual de Deleuze, esta inflexão da crítica à racionalidade ocidental (colocada em operação em livros como Diferença e repetição e Lógica do sentido) em direção à crítica de uma forma específica de clínica das patologias mentais: a psicanálise, isto a fim de pensar as condições para desbloquear as potencialidades de uma prática política revolucionária. Deleuze e Guattari tem um questão de base: como se aborta uma revolução? De onde vem a adesão dos indivíduos aos mecanismos de sua própria sujeição? Como eles dirão claramente: “Não, as massas não foram enganadas, em certo momento elas desejaram o fascismo e é isto que se trata de explicar, esta perversão do desejo gregário”�.
Desde seu livro sobre Nietzsche, Deleuze insiste que a verdadeira crítica da razão é crítica às formas de vida que visam realizar socialmente categorias normativas capazes de fornecer as condições de possibilidade para a enunciação de julgamentos racionais. Neste sentido, pensemos no caráter determinante de categorias como: autonomia, liberdade, auto-determinação, autenticidade. Todas elas estão vinculadas ao Eu como forma a priori dos processos de síntese e reflexão. Diferença e repetição dedicava várias páginas à crítica ao Eu como fundamento dos modos racionais de estruturação e organização; isto a ponto de definir a tarefa filosófica da contemporaneidade como a exigência de pensar um campo transcendental desprovido de toda egoidade. 
	No entanto, esta crítica ao Eu deve ser desdobrada em um campo empírico. Pois sendo o Eu do discurso filosófico moderno aquilo que, no fundo, é decalcado do eu psicológico (ao menos segundo Deleuze), e sendo o Eu psicológico o resultado de processos de socialização e individuação, então a crítica deve passar à reflexão sobre os processos de socialização hegemônicos nas sociedades capitalistas contemporâneas. Esta é a função de O anti-Édipo.
	Por outro lado, Deleuze sempre teve grande proximidade com certos campos empíricos das ciências humanas, como a psicologia e a psicanálise. Já a escolha de escrever dissertações sobre Hume e Bergson tinha um pano de fundo ligado a epistemologia da psicologia. Hume é um teórico fundamental para o associacionismo (corrente maior da psicologia do início do século XX e bastante criticada pela psiquiatria fenomenológica hegemônica em solo francês nos anos 50). Por sua vez, Bergson era tratado como antípoda de uma perspectiva associada em psicologia à crítica do chamado “mito da vida interior” (Politzer).
	Já sobre a psicanálise, vimos como a relação era muito mais complexa. Guattari vem de um longa frequentação à Escola fundada por Lacan. Deleuze é um leitor atento de Freud e Lacan. Isto é visível desde “Apresentação de Sacher-Masoch”. Há uma recorrência constante à psicanálise em Diferença e repetição e Lógica do sentido, principalmente através da teoria das pulsões e do fantasma com sua noção de objeto do fantasma. No entanto, O anti-Édipo representa uma ruptura brutal em relação a tal perspectiva de aproximação. 
Quais são as causas desta modificação brutal de perspectiva em relação à psicanálise? Duas respostas podem ser dadas: uma externa e outra interna aos textos. A resposta externa concerne o impacto filosófico de maio de 68. O anti-Édipo acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou as aspirações libertárias globais que animaram a revolta de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em larga medida pela recuperação de uma crítica às instituições que se voltou necessariamente contra a maneira com que a psicanálise seria dependente da inscrição do desejo no interior das regras do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas normativas burguesas de socialização que seriam os verdadeiros núcleos de reprodução do capitalismo como forma de vida. Neste sentido, o título do livro já expõe seu projeto “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”. Ou seja, a crítica dos modos de socialização do desejo e de constituição de individualidades baseados no complexo de Édipo forneceria a chave interpretativa para esta relação decisiva de conjunção entre “capitalismo” e “esquizofrenia”.
	 A resposta interna concerne, por sua vez, aos desdobramentos da crítica de Deleuze à dialética hegeliana. Vimos como tal crítica funciona como um norteador da produção de Deleuze, isto ao ponto dele definir Diferença e repetição como um exercício de “anti-hegelianismo” generalizado. Tudo se passa como se Deleuze compreendesse a impossibilidade de desvincular a psicanálise (principalmente em sua vertente lacaniana) com suas noções de desejo como falta, como pura negatividade, de relação de conflito e oposição entre instâncias psíquicas, daquilo que ele havia chamado, em Diferença e repetição, de “hegelianismo pós-kantiano”. Isto lhe obrigaria a um movimento improvável de criticar a psicanálise e os “lacanianos” sem nunca criticar diretamente Lacan (já que havia ainda uma dependência em relação a algumas problemáticas maiores do próprio pensamento deleuzeano).
Capitalismo e esquizofrenia
Retornemos mais uma vez à conjunção estabelecida por Deleuze e Guattari entre capitalismo e esquizofrenia. A título operacional, aceitemos que o capitalismo é fundamentalmente um sistema de trocas econômicas e de produção social do valor baseado na entificação da livre concorrência de agentes individuais no mercado. Sistema que, por privilegiar o mercado como espaço social fundamental de interação, tende a organizar todas as esferas sociais de valores a partir da forma-mercadoria. Uma forma que, por sua vez, está fundamentada em noções como: intercambialidade, abstração e quantificação a partir de um padrão geral de cálculo e unidade. Sendo assim, enquanto modo extensivo de racionalização social, o capitalismo pediria a construção de uma espécie de sistema geral de relações baseado na submissão da diferença à identidade abstrata do equivalente geral. Foi pensando em processos como este que Theodor Adorno podia afirmar: “A identidade é a forma originária da ideologia”.
	No entanto, dirá Deleuze e Guattari, esta racionalidade não é apenas econômica, mas tende a servir de padrão geral de ordenamento das formas de relação a si. Vimos como Deleuze e Guattari tendem a compreender a inteligibilidade de processos sociais exclusivamente a partir de problemas vinculados à socialização do desejo e questões de saúde mental exclusivamente através do impacto das estruturas sociais na vida subjetiva, até porque: “Só há desejo e social, e nada mais”�.
	Lembremos que, para quem insistira que a questão filosófica maior consistia em levar às últimas conseqüências a crítica das ilusões da identidade, nada mais natural do que abordar a crítica social a partir da maneira com que a sociedade capitalista produz identidades sociais, submetendo o desejo ao regime de procura pelo idêntico, não apenas identidade em relação a uma experiência originária de satisfação (como no caso de Freud) mas em relação a uma organização identitária de constituição dos objetos do desejo. Não só: o desejo deseja o mesmo; mas também: o desejo deseja identidades e se afasta de tudo o que é des-idêntico. Se aceitarmos este diagnóstico social, podemos entender melhor a conjunção capitalismo e esquizofrenia. 
Vimos como a esquizofrenia enquanto estrutura nosográfica advinha da antiga demência precoce, compreendida, entre outros, como “imobilização súbita de todas as faculdades”. Foucault chegava a afirmar: “A demência é de todas as doenças do espírito, aquela que permanece a mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura experimentada em tudo o que ela pode ter de negativo, de desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não razão e não verdade”�. Bleuler cunha o termo “esquizofrenia” para insistir no caráter de esquize, de divisão (Spaltung) das faculdades mentais que podem mais se submeter ao poder reguladorda síntese consciente, da instância superior e diretiva da personalidade. A esquizofrenia aparecia para Bleuler como desaparecimento de uma representação-meta capaz de dirigir a estrutura associativa do pensamento lógico: “Nessas condições, o conjunto das operações psicológicas ficava abandonado à ação dos complexos e o sujeito parecia viver quase que permanentemente um estado análogo à associação livre, ao devaneio ou ao sonho, ao desaparecimento voluntário ou fisiológico da ação diretiva do eu e da consciência sobre o funcionamento da psiquê”�. Desta forma, na esquizofrenia o desejo não consegue mais constituir objetos coerentes ou mesmo ser enunciado em uma linguagem articulada, sustentar condutas próprias a uma personalidade, usar a linguagem própria a um psiquismo que saberia se orientar no espaço e no tempo. Ainda hoje, a esquizofrenia está ligada a “disfunções cognitivas e emocionais” que acometem a percepção, o raciocínio, a linguagem, a comunicação, o afeto, a atenção, ou seja, funções e faculdades mentais que não se submetem mais à estrutura diretiva das condutas e da personalidade própria a um Eu.
	Deleuze e Guattari lembram como a esquizofrenia mobiliza três conceitos: a dissociação (Kraepelin), o autismo (Bleuler) e as modificações espaço-temporais (Binswanger). Estes três conceitos reportam o problema da esquizofrenia à distúrbios de síntese do eu: “Dir-se-á que o esquizo não tem mais Eu e que é necessário lhe devolver esta função sagrada de enunciação”�. Mas, no fundo, Deleuze e Guattari querem mostrar que esta dissociação, esta ausência de princípio de unidade na esquizofrenia estaria ligada à manifestação de um corpo libidinal anterior aos processos de alienação e repressão. Ao se deixar pautar pela lógica de organização deste corpo libidinal, o desejo só poderia encontrar inscrição como aquilo que não se inscreve mais no modo de determinação social hegemônico em nossas sociedades capitalistas. Daí porque Deleuze e Guattari podem dizer: “O que reduz o esquizofrênico à sua figura autista, hospitalizada, cortada da realidade? È o processo [próprio ao regime do desejo na esquizofrenia] ou , ao contrário, a interrupção do processo, sua exasperação, sua continuação no vazio? O que força o esquizofrênico a se redobrar sobre seu corpo sem órgãos agora surdo, cego e mudo?”�.
	Neste sentido, a articulação “Capitalismo e esquizofrenia” significaria uma contraposição através da qual o capitalismo encontraria seu limite na exigência de retorno ao fluxo não-identitário do desejo que pulsa na esquizofrenia. No entanto, a articulação significa também uma certa sobreposição. Pois o capitalismo não se contenta em codificar o desejo, ele inicialmente descodifica os fluxos, desterritorializa o socius em uma dinâmica que lembra claramente a esquizofrenia.
Como veremos, estas colocações são fundamentais para compreendermos as estratégias e dificuldades de um projeto de crítica social, crítica da razão e crítica epistemológica ao campo das ciências humanas (através da articulação entre imperativos sociais do capitalismo e saber clínico) como este que O anti-Édipo propõe.
Máquinas desejantes
Mas antes de continuar, devemos esclarecer alguns conceitos centrais que são apresentados pelo livro de Deleuze e Guattari em seu primeiro capítulo. Os dois principais são os conceitos de “máquina desejante” e “corpo sem órgãos”. Eles servem, a sua maneira, de fundamento para a crítica social ao impor-se aquilo que leva sujeitos a sentirem os modos de socialização no interior do capitalismo como causa de sofrimento. Mas o que significa exatamente falar em máquinas desejantes e corpos sem órgãos?
	O conceito de máquina desejante vem de Guattari, em especial de uma texto de 1969 publicado em Psicanálise e transversalidade intitulado “Máquina e estrutura”. Em O anti-Édipo falar em máquina desejante é o que permite falar da ação como processo de produção, e não como representação de cenas anteriores, originárias que deveriam o sentido do que ocorre no presente. Falar de máquina, de automatismo significa anular a dimensão da representação que parece determinar a ação de todo e qualquer sujeito. Falar de máquina significa, ainda, pensar o desejo como uma questão de produção, não uma questão de aquisição. 
É neste sentido que devemos compreender a afirmação de Guattari, para quem a distinção entre máquina e estrutura: “visa esclarecer a localização de posições particulares da subjetividade em sua relação com o acontecimento e à História”�. Pois a estrutura encerraria o sujeito em uma totalidade, fazendo-lhe aparecer como determinado por uma totalidade que articula a temporalidade em um contínuo histórico. Já a máquina apareceria inicialmente como a essência do desenvolvimento do trabalho no capitalismo, na qual o trabalho humano apareceria como: “mero subconjunto residual do trabalho da máquina”�. Neste sentido, falar em “máquina” poderia parecer simplesmente referendar o modo de automatismo da ação produzido pela alienação no mundo capitalista do trabalho. No entanto, Guattari acredita que a máquina se transferiu para o cerne do desejo e enquanto “máquina desejante” ela não funciona mais como o que se submete à funções específicas e compartimentalizadas, repetidas no ritmo de uma repetição automática e industrial. Ela funciona de forma a sempre se desfuncionalizar, a produzir fluxos a partir de encontros contingentes, um pouco como as montagens surrealistas. Daí uma afirmação como: “para além de qualquer modelo mecanicista, a ideia de máquina desejante designa justamente esse processo de fixação retrospectiva do acaso”�. Esta máquina não é a máquina da indústria, mas a máquina da arte de vanguarda, das conexões produzidas pelo que não se submete à funcionalidade do plano. Nos livraremos do maquinismo do capitalismo produzindo máquinas que se quebram a si mesmas e se fixam momentaneamente em novas conexões, sem com isto precisar retornar à temática da consciência que se assenhora de suas ações e representações. Pois se há sujeito aqui, ele não é constituinte, mas constituído pela dimensão maquínica do desejo. Desta forma, o projeto revolucionário, ao menos segundo Guattari, pode ser indissociável do uso da máquina em uma subversão institucional. 
	A própria maneira de descrever o modo de relação entre o desejo e seus objetos a partir do sintagma “máquina desejante” diz muito a respeito das intenções dos autores. Tal como uma máquina, o desejo acopla peças separadas que devem funcionar a partir de uma orientação. Tal acoplagem pode se dar segundo três formas de síntese: síntese conectiva (se...então – constituição de uma série), conjuntiva (e – articulação de duas ou mais séries) disjuntivas (ou - repartição de séries divergentes). A metáfora da máquina para descrever o que é da ordem do comportamento tem uma longa história que remonta a Aristóteles. No estudo dos organismos, ela esteve normalmente vinculada a uma discussão entre perspectivas vitalistas e mecanicistas. No caso de Deleuze e Guattari, trata-se fundamentalmente de insistir que o desejo obedece a um automatismo que desconhece o que é da ordem da decisão de uma consciência dirigista. No entanto, este automatismo não pode ser a entificação de uma orientação naturalizada de conduta. Isto talvez nos explique porque as máquinas de Deleuze e Guatarri estão muito mais próximas das máquinas surrealistas (sem telos e sem finalidade) do que das metáforas da indústria que abundam em O anti-Édipo. Isto talvez nos explique porque Deleuze e Guattarri afirmam: “as máquinas desejantes não cessam de se desmontar (détraquer), só funcionam se desmontando, sempre o produzir se acopla ao produto e as peças da máquina são ao mesmo tempo combustível”�.
	Por fim, notemos como esta ideia de máquina desejante irá fundar uma compreensão do inconsciente distinta da sua versão estruturalista. Ao invés do inconsciente estrutural, que organiza sua produção a partir de relações estruturais definidas em larga medida pelo complexo de Édipo, teríamos o inconsciente maquínico.Um conceito de inconsciente que se apropria de um conceito decisivo da própria psicanálise, a saber, o conceito de objeto parcial. Vale a pena nos determos na compreensão de tal conceito.
Para Freud, o movimento do desejo era coordenado pela repetição alucinatória de experiências primeiras de satisfação. Tais experiências primeiras deixariam imagens mnésicas de satisfação no sistema psíquico. Quando um estado de tensão reaparece, o sistema psíquico atualiza de maneira automática tais imagens sem saber se o objeto correspondente à imagem está ou não efetivamente presente. Através deste processo de repetição, o desejo procura reencontrar um objeto perdido ligado às primeiras experiências de satisfação.
Mas, se analisarmos de maneira mais precisa a natureza destas primeiras experiências de satisfação, veremos que elas se dão através da relação entre o sujeito e aquilo que Karl Abraham indicou como sendo o que hoje conhecemos por objetos parciais�. Neste caso, o adjetivo parcial significa principalmente que, devido a uma insuficiência na capacidade perceptiva do bebê, suas primeiras experiências de satisfação não se dão com representações globais de pessoas, como o pai, a mãe ou mesmo o eu enquanto corpo próprio, mas com partes de tais objetos: seios, voz, olhar, excrementos etc.
O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação também estaria ligado à estrutura originariamente polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que as moções pulsionais apresentam-se inicialmente sob a forma de pulsões parciais cujo alvo consiste na satisfação do prazer específico de órgão. Pensemos no bebê que ainda não tem à sua disposição uma imagem unificada do corpo próprio. Neste caso, cada zona erógena tem tendência em seguir sua própria economia de gozo. Notemos também que tal gozo é auto-erótico porque o investimento libidinal destes objetos parciais ocorre antes do advento da imagem narcísica com sua estrutura de identidades. 
O amor de objeto, no sentido do amor próprio à relação interpessoal com um outro, só seria possível através da operação de transposição das moções pulsionais parciais. Assim, as pulsões parciais seriam integradas em representações globais de pessoas ou sublimadas em representações sociais. Como sabemos, o exemplo freudiano mais célebre é a transformação do desejo feminino de ter um pênis em desejo de ter um homem portador do pênis.
Esta integração de objetos parciais não colocará problemas intransponíveis para Abraham ou para seus continuadores como Melanie Klein e outros representantes da escola inglesa. Pois tais objetos serão partes de um todo que estará disponível a posteriori. O desejo pelo seio resolve-se logicamente no amor pela mãe. O desejo pelo pênis resolve-se logicamente no amor pelo homem portador do pênis. A abertura às relações intersubjetivas pareceria estar assim assegurada�. Aqui, a metonímia do objeto é reconhecimento da pressuposição de sua integração em uma totalidade funcional. 
No entanto, a posição de Lacan sempre foi totalmente diferente e é isto que Deleuze e Guattari querem recuperar. Daí porque eles falarão da “admirável teoria do desejo em Lacan”� cujo um dos polos seria constituído pela noção de objeto a como máquina desejante. Ao apropriar-se do conceito de objeto parcial, Lacan operou uma inversão maior na perspectiva psicanalítica clássica. Inversão que produzirá conseqüências maiores na noção de racionalidade analítica.
Primeiramente, Lacan notou que, se o movimento do desejo consistia em tentar reencontrar um objeto perdido, então deveria tratar-se, na verdade, da relação entre o sujeito e tais objetos parciais�. Devemos sublinhar o termo ‘relação’ porque não se trata simplesmente de reencontrar um objeto no sentido representativo da palavra ‘objeto’, mas de reencontrar uma ‘forma relacional’ encarnada pelo tipo de ligação afetiva do sujeito ao seio, à voz, aos excrementos etc. O que nos explica porque: “um seio, é algo que não é representável”, a não ser “sob estas palavras: ‘a nuvem encantadora de seios”� que nos fornece a forma relacional do sujeito com os objetos nos quais seu desejo aliena-se. O que nos explica também porque o objeto a é presença de um vazio de objeto empírico, como vemos na afirmação de que tal objeto é "presença de um vazio preenchível, nos diz Freud, por qualquer objeto”, já que estaríamos diante de um: “objeto eternamente faltante”�. Pois ele nada mais é do que a derivação de uma forma relacional produzida pelas primeiras experiências de satisfação. 
Aqui, podemos compreender melhor porque Lacan designou o objeto a como objeto causa do desejo. Pois, por exemplo, o que causa o amor por uma mulher particular é a identificação do objeto a no estilo e no corpo desta mulher; da mesma maneira que o amor de Alcebíades por Sócrates, no Banquete, teria sido causado por este objeto que Sócrates guardava dentro de si e que os gregos chamavam de agalma. “Se este objeto os apaixona”, dirá Lacan, “é porque lá dentro, escondido nele, há o objeto do desejo, agalma”�. Como se Sócrates pudesse ser suporte de uma forma relacional que sustentava o desejo de Alcebíades
A princípio, poderia parecer que, devido a esta maneira de pensar a causa do desejo, Lacan estaria seguindo o caminho destes que acreditavam em uma passagem possível do amor parcial de objeto ao amor por representações globais de pessoas. Passagem impulsionada pelo primado genital. Mas, na verdade, seu movimento era inverso: “A noção de objeto parcial nos parece aquilo que a análise descobriu de mais correto, mas ao preço de postular uma totalização ideal deste objeto, através do qual dissipa-se o benefício desta descoberta”�. É isto que Deleuze e Guattari irão radicalizar ao afirmarem: 
A produção desejante é multiplicidade pura, ou seja, afirmação irredutível à unidade. Nós estamos na idade dos objetos parciais, dos tijolos e restos. Não acreditamos mais nestes falsos fragmentos que, tais quais pedaços de estátuas antigas, esperam serem completados e recolados para compor uma unidade que é também unidade de origem�.
Corpos sem órgãos
	No entanto, além do conceito de máquina desejante, o primeiro capítulo de O anti-Édipo visa ainda apresentar a noção central de “corpo sem órgãos”. Se o primeiro conceito é uma produção de Guattari, a noção de corpo sem órgãos está profundamente ancorada nas reflexões de Gilles Deleuze. Ela se associa à conceitos como: campo transcendental pré-pessoal, univocidade do ser e plano de imanência. As máquinas desejantes se dispõem em um plano que deve ser compreendido como uma multiplicidade sem totalidade originária. Elas são processos de produção que se dispõem em um campo improdutivo, de desarticulação contínua da produção. Neste campo de imanência do desejo, neste plano de consistência do desejo, as máquinas tecem entre si relações de diferença, mas uma diferença não-indiferente. Pois a circulação da produção desejante não se totaliza nem se unifica. Ela produz: “comunicações aberrantes entre vasos não comunicantes”�. É para falar sobre tal plano que Deleuze e Guattari constroem o conceito de corpo sem órgãos. Um sintagma que pode nos enganar, já que o corpo sem órgãos não se opõe exatamente aos órgãos, mas à organização dos orgão que normalmente chamamos de “organismo”. O corpo sem órgãos é o modelo de um corpo que não pode ser pensado como um organismo, que deixou de ser um organismo, que se destruiu como organismo. Mas é necessário sublinhar:
Inventa-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi se matar, mas abrir o corpo a conexões que supõem todas um agenciamento, circuitos, conjunções, estratificações e limiares, passagens e distribuição de intensidades, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor�. 
	Vem inicialmente de Antonin Artaud o termo “corpo sem órgãos” em sua peça radiofônica “Para terminar com o julgamento de Deus”, de 1948:
 L'homme est malade parce qu'il est mal construit. Il faut se décider à le mettreà nu pour lui gratter cet animalcule qui le démange mortellement, dieu, et avec dieu ses organes. Car liez-moi si vous voulez, mais il n'y a rien de plus inutile qu'un organe. Lorsque vous lui aurez fait un corps sans organes, alors vous l'aurez délivré de tous ses automatismes et rendu à sa véritable liberté. Alors vous lui réapprendrez à danser à l'envers comme dans le délire des bals musette et cet envers sera son véritable endroit .
 
Nota-se o contexto da enunciação da imagem. O homem deve se liberar de Deus e de seus órgãos. Pois Deus é o horizonte que garante o telos, a teleologia que se exprime neste vínculo aparentemente indissociável entre os órgãos e suas funções. Olho para ver, boca para comer, estômago para digerir. Com tal funcionalização nunca será possível livrar-se de Deus. Ele estará lá, na definição prévia do uso de cada um de nossos órgãos. Assim, um corpo sem órgãos será um corpo liberado do princípio transcendente de um telos. 
No entanto, a verdadeira referência filosófica do conceito fica claro quando Deleuze e Guattari perguntarem : “Finalmente, o grande livro sobre o CsO não seria a ética de Spinoza?”�. Ou seja, o corpo sem órgãos é a maneira deleuzeana de recuperar o conceito spinozista de substância. A relação entre o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes é estruturalmente similiar às relações entre a substância spinozista e seus atributos.
	Mas o debate maior do corpo sem órgãos é, mais uma vez, com a psicanálise. Primeiramente, lembremos como a psicanálise e a filosofia francesa do século XX insistiram na relação constitutiva entre ipseidade e corporeidade. Esta relação está claramente exposta através das temáticas ligadas ao advento da imagem do corpo próprio. São elas que Deleuze e Guattari têm em vista ao fazer esta afirmação maior: “O corpo sem órgãos não é a testemunha de um nada original, muito menos o resto de uma totalidade perdida. Ele não é sobretudo uma projeção; nada a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem”�. 
	A respeito desta crítica à imagem do corpo, lembremos de algumas considerações sobre o estádio do espelho, de Jacques Lacan. Considerações estas que Deleuze e Guattari conheciam bem e que eles visam. O estádio do espelho é um processo que visa demonstrar como a formação do Eu depende fundamentalmente de um processo ligado à constituição da imagem do corpo próprio. Nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada parecido a um Eu com suas funções de individualização e de síntese da experiência. Esta inexistência do Eu como instância de auto-referência seria o resultado de uma prematuração fundamental do bebê advinda, por exemplo, da incompletude anatômica do cérebro com seu sistema piramidal e a conseqüente inexistência de um centro funcional capaz de coordenar tanto a motricidade voluntária quanto as experiências sensoriais. Na verdade, falta ao bebê o esquema mental de unidade do corpo próprio que lhe permita constituir seu corpo como totalidade, assim como operar distinções entre interno e externo, entre individualidade e alteridade. 
	É só entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida que tal esquema mental será desenvolvido. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento de si na imagem especular ou a identificação com a imagem de um outro bebê. Pois ao reconhecer pela primeira vez sua imagem no espelho, a criança tem uma apreensão global e unificada do seu corpo. Desta forma, esta unidade do corpo será primeiramente visual. Uma unidade da imagem que antecipará a descoordenação orgânica e que, por isto, induzirá o desenvolvimento do bebê. 
Lacan encontra uma prova deste caráter indutor da imagem em relação ao comportamento através da apropriação de certas considerações sobre a biologia animal. Pois haveria uma correlação entre comportamento animal e comportamento humano no que diz respeito a relação à imagem. Biólogos como Leonard Harrison Matthews (1901-1986) e Rémy Chauvin (1913- ) demonstraram que, no reino animal, a simples presença de imagens acarreta modificações anatômicas e fisiológicas profundas. Por exemplo, Chauvin, em 1941, provou que a passagem do estágio solitário para o estágio gregário no gafanhoto migratório só poderia ser feita através da percepção da imagem de um gafanhoto adulto, que serve aqui como tipo: representante da espécie para o indivíduo, imagem que tem o valor de ideal. O que demonstraria como uma imagem pode regular o desenvolvimento dos indivíduos através de um processo de formação que é con-formação à espécie. 
No caso humano, a imagem ideal poderia induzir o desenvolvimento por ser modo de entrada em uma trama sócio-simbólica. A imagem do irmão, do pai, da mãe são partes de um drama, contração de toda uma história normalmente ligada à estrutura familiar. Ou seja, seu valor vem dela articular-se a um núcleo social no qual o sujeito procura se inserir. Lembremos, por exemplo, desta descrição de Santo Agostinho, tão utilizada por Lacan, a respeito do ciúme infantil: “Vi e observei”, dirá Agostinho, “uma criança cheia de inveja (invidia), que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o irmãozinho de colo”�. O que mobiliza a inveja em relação à imagem do irmão de colo é a percepção de que ela indica o lugar no qual se encontra o desejo da mãe, lugar que exclui o sujeito, mas cujo reconhecimento o constitui como objeto de amor. 
	Desta forma, a imagem aparece como dispositivo fundamental de socialização e individuação. Mas notemos principalmente como esta teoria da gênese do Eu através da imagem do corpo é, no fundo, a descrição do Eu como lugar privilegiado de alienação. Lacan quer mostrar como a formação do Eu só se daria por identificações: processos através dos quais o bebê introjeta uma imagem que vem de fora e que é oferecida por um Outro. Assim, para orientar-se no pensar e no agir, para aprender a desejar, para ter um lugar na estrutura familiar, o bebê inicialmente precisa raciocinar por analogia, imitar uma imagem na posição de tipo ideal adotando, assim, a perspectiva de um outro. Tais operações de imitação não são importantes apenas para a orientação das funções cognitivas, mas têm valor fundamental na constituição e no desenvolvimento subseqüente do Eu em outros momentos da vida madura. O que levava Lacan a afirmar que “nada separa o eu de suas formas ideais” absorvidas no seio da vida social. Pois: “o eu é um objeto feito como uma cebola, podemos descascá-lo e encontraremos as identificações sucessivas que o constituíram”�. 
	Tudo se passa como se Deleuze e Guattari aceitassem tal esquema, mas apenas para dizer; este corpo constituído a partir da imagem do corpo próprio apenas recalca um outro corpo, um corpo no qual suas partes não se organizam tendo em vista a representação de uma totalidade funcional. O corpo sem órgãos é também radicalmente sem imagens. Daí a importância de uma afirmação como: “O campo de imanência não é interior ao eu, mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes o Fora absoluto que não conhecem mais Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundem”�. 
	
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
� idem, p. 36
� FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 320
� BECHERIE, Os fundamentos da clínica, p. 232
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 30
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 105
� GUATARRI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 309
� Idem, p. 312
� PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, p. 40
� idem, p. 39
� Abraham fala de um estágio de amor parcial no qual : « o objeto dos sentimentos amorosos e ambivalentes é representado por uma de suas partes introjetadas pelo sujeito" (ABRAHAM, 2000, p. 220)
� É neste ponto que se situa, por exemplo, a crítica pertinente de Deleuze e Guatarri : « Desde o nascimento, o berço, o seio, os excrementos são máquinas desejantes em conexão com partes do corpo do bebê. Nos parece contraditório dizer ao mesmo tempo que a criança vive entre objetos parciais e que o que aapreende nestes objetos são pessoas parentais em pedaços":(DELEUZE e GUATARRI, L´anti-Oedipe, p. 53)
� Idem, p. 34
� Neste ponto, ele era fiel à afirmação de Freud : « Quando vemos uma criança satisfeita largar o seio deixando-se cair para trás e dormir, com as bochechas vermelhas e um sorriso, não podemos deixar de dizer que esta imagem contém o protótipo da expressão da satisfação (Befriedigung) sexual na existência ulterior » (FREUD, ;GW vol. V, p.82).
� LACAN, S XIV, sessão do 25/01/67
� LACAN, S XI, p. 168
� LACAN, AE, p. 180
� LACAN, E, p. 676
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 50
� Idem, p. 51
� DELEUZE e GUATTARI, Milles Plateaux, p. 198
� DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 190
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 14
� Agostinho, Confissões (Petrópolis: Vozes, 1993), I. 7
� Jacques Lacan, SI, p. 194
� DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 194

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