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ELAINE CRISTINA DAMBINSKAS RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA E A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL ESCOLA PAULISTA DE DIREITO Especialização em Direito Civil e Processual Civil São Paulo 2015 ELAINE CRISTINA DAMBINSKAS RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA E A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL Monografia apresentada ao Curso de Pós Graduação Lato Sensu, Especialização em Direito Civil e Processual Civil, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Orientação: Coordenação do Curso de Especialização em Direito Processual Civil São Paulo 2015 ELAINE CRISTINA DAMBINSKAS RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA E A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL Monografia apresentada à Escola Paulista de Direito (EPD), como parte dos requisitos para obtenção do título de Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Aprovada com média _____________ São Paulo, _____ de _________de 2015. Banca Examinadora: Orientação: Coordenação do Curso de Especialização em Direito Processual Civil Prof. Orientador: ............................................................................................................ Prof. Orientador:............................................................................................................. O direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança. (IHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito) AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus pelo dom da vida, pela capacidade intelectual que me foi dada nesta existência para que eu pudesse me dedicar aos estudos, minha grande paixão. Obrigada Senhor por mais esta conquista, obrigada por me carregar em seus braços nos momentos mais difíceis da minha vida. Sua presença constante só fortalece ainda mais a minha fé. A minha família por todo apoio dado em mais esta empreitada. Em especial á Elisabeth, exemplo de mãe e mulher guerreira. Obrigada mãe por todo o amor que sempre me dedicou, pelos sacrifícios que fez e ainda faz por mim, por seu apoio incondicional, pelas palavras de incentivo, por acreditar na minha capacidade quando eu mesma, por vezes a coloquei em xeque. Seu amor é meu porto seguro. A minha avó Vitoria (in memoria) exemplo de mulher, mãe e avó, seu maior legado foi o amor incondicional dedicado a mim, sua honestidade e retidão de caráter que sempre fez questão de me transmitir. Mesmo em planos distintos, seu amor é ainda presente, seus conselhos me acompanham, pois os laços de amor são eternos. Essa conquista também é sua. Aos professores da Escola Paulista de Direito (EPD) meus agradecimentos por todo o conhecimento que me fora transmitido, experiência da qual jamais esquecerei. Em especial, meu agradecimento à Professora Doutora Mônica Bonetti Couto por gentilmente ceder parte de seu tempo para selecionar alguns dos materiais de pesquisa utilizados neste trabalho. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo a análise do instituto da coisa julgada e a possibilidade de sua flexibilização em casos específicos, bem como o posicionamento atual da jurisprudência diante desta possibilidade. No primeiro capítulo será analisada a coisa julgada do ponto de vista conceitual, sua natureza jurídica, limites objetivos e subjetivos, bem como sua evolução histórica. No segundo capítulo será tratada a inserção da coisa julgada no ordenamento jurídico, tanto na lei ordinária como na Constituição da República; assim como os princípios constitucionais aplicados à coisa julgada e o confronto entre os princípios da justiça e da segurança jurídica. No terceiro capítulo, adentrar-se-á propriamente na discussão acerca da coisa julgada inconstitucional e sua proposta de relativização diante da inconstitucionalidade da decisão judicial proferida. Já no quarto capítulo, o presente trabalho discorrerá acerca dos instrumentos processuais para a desconstituição da coisa julgada (ação rescisória, querela nulitatis insanabilis e arguição de descumprimento de preceito fundamental). Finalmente no quinto capítulo será abordado o tratamento jurisprudencial dado ao tema da relativização da coisa julgada, ou seja, como as cortes superiores vêm tratando o tema. Assim, com este trabalho pretende-se discutir a possibilidade de relativizar a coisa julgada em casos de decisões proferidas eivadas por inconstitucionalidade, bem como apresentar instrumentos processuais hábeis a desconstituir a coisa julgada a fim de harmonizar os julgados e propiciar a segurança jurídica das decisões. Palavras-chave: Coisa julgada. Relativização. Coisa julgada inconstitucional. ABSTRACT This study aims to analyze the institute of res judicata and the possibility of its flexibility in specific cases as well as the current positioning of the case law on this possibility. In the first chapter analyzes the res judicata from the conceptual point of view, their legal nature, subjective and objective limits, and its historical evolution. In the second chapter will be treated the insertion of res judicata in the legal system, both in ordinary law and the Constitution of the Republic; as well as the constitutional principles applied to res judicata and the confrontation between the principles of justice and legal certainty. In the third chapter, enter will be exactly the discussion of res judicata unconstitutional and its proposal of relativity on the unconstitutionality of the given court decision. In the chapter fourth this paper will talk about the procedural tools for deconstitution of res judicata (rescission action nulitatis insanabilis quarrel and fundamental precept of complaint). Finally in the fifth chapter will address the judicial treatment of the theme of the relativity of res judicata, ie, as the higher courts are dealing with the subject. Thus, this work intends to discuss the possibility to relativize the res judicata in cases of judgments given tainted by unconstitutional and present skillful procedural tools to deconstruct the res judicata in order to harmonize the tried and provide the legal certainty of decisions. Keywords: Res judicata. Relativization. Unconstitutionality. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................10 CAPÍTULO I – COISA JULGADA: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA, LIMITES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA ........................................................................................121.1 – Conceito e natureza jurídica...........................................................................12 1.2 – Limites da coisa julgada................................................................................17 1.3 – Evolução histórica.........................................................................................21 CAPÍTUO II – A COISA JULGADA INSERIDA NO ORDENAMENTO JURÍDICO.................................................................................................................25 2.1 – Coisa julgada na Constituição........................................................................25 2.2 – Princípios constitucionais aplicáveis à coisa julgada...................................26 2.2.1 – Princípio da Segurança Jurídica................................................................27 2.2.2 – Princípio da Constitucionalidade................................................................29 2.2.3 – Princípio da Razoabilidade.........................................................................30 2.2.4 – Princípio da Isonomia.................................................................................32 2.3 - Justiça versus Segurança Jurídica................................................................32 CAPÍTULO III – DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL................................36 3.1 – A relativização da coisa julgada....................................................................36 3.2 – Do cabimento da relativização da coisa julgada diante da inconstitucionalidade da decisão...............................................................................................................43 CAPÍTULO IV – DOS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS PARA DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA...........................................................51 4.1 – Ação Rescisória.............................................................................................51 4.2 – Querela Nullitatis Insanabilis............................................................................53 4.3 – Parágrafo Único do artigo 741 e Artigo 475-L, parágrafo primeiro do Código de Processo Civil.........................................................................................................54 CAPÍTULO V – DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DADO AO TEMA..................................56 CONCLUSÃO...........................................................................................................63 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................65 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo delinear, sem a pretensão de fazer um tratado, acerca da possibilidade de se relativizar o instituto da coisa julgada. Tal discussão é de relevante importância uma vez que o instituto da coisa julgada tem como objetivo, em princípio, a imutabilidade das decisões judiciais proferidas, que após o trânsito em julgado não podem ser mais alteradas em observância ao princípio da segurança jurídica e em nome da paz social. Contudo, por vezes, decisões são proferidas ao arrepio de preceitos constitucionais ou mesmo em violação expressa às leis ordinárias, sendo nestes casos inadmissível que tais decisões sejam recobertas pelo manto da coisa julgada tornando-se indiscutíveis. Insta destacar que durante muito tempo a coisa julgada foi tida como absolutamente intocável o que culminou no surgimento da expressão latina “res iudicata nigrum albium facit”, ou seja, “a coisa julgada faz do negro, branco”. Ocorre que com o passar do tempo e o avanço das relações jurídicas entabuladas entre os indivíduos que a cada dia se tornam mais complexas, o olhar do Direito para a questão da perpetuação da coisa jugada tem se modificado, uma vez que é cada vez mais comum se deparar com doutrinadores e operadores do Direito que são favoráveis à relativização da coisa julgada em nosso ordenamento jurídico. A importância do tema reside, contudo, no fato de que embora haja aqueles que ergam suas bandeiras em favor da relativização da coisa julgada quando a decisão preferida é eivada de inconstitucionalidade, tal entendimento ainda não é uníssono, de forma que há ainda quem defenda que, para o bem da segurança jurídica, harmonia dos julgados e acima de tudo, em nome da paz social, a coisa julgada é imutável e definitiva. 11 Há que se atentar ao fato de que muito embora o instituto da coisa julgada exista para colocar fim na discussão trazida ao Judiciário pelas partes litigantes, - do contrário as lides não teriam fim, podendo ser discutidas e rediscutidas ad eterno -, algumas questões trazidas para a apreciação do Poder Judiciário, por vezes pode culminar em decisões proferidas em dissonância com princípios basilares para a aplicação da lei de forma isonômica e o que é pior, tais decisões podem vir a contribuir para que a injustiça prevaleça e com isso ameaçar gravemente a paz social. Diante de questões práticas onde situações trazidas ao Judiciário conduzem para decisões eivadas de inconstitucionalidade, este trabalho tem o objetivo de trazer à baila a discussão acerca da relativização da coisa julgada quando esta decisão é capaz de trazer prejuízos não somente ás partes litigantes, mas à sociedade como um todo. A principal reflexão aqui levantada é em relação ao binômio segurança jurídica das decisões x justiça das decisões. Assim, para um melhor entendimento, do ponto de vista acadêmico, é de salutar importância discorrermos ainda que de forma despretensiosa, acerca da coisa julgada, seu conceito, natureza jurídica e evolução histórica; discorrer sobre os princípios constitucionais que nela estão inseridos e então, adentrarmos propriamente ao tema: a relativização da coisa julgada diante da inconstitucionalidade da decisão proferida, bem como dos instrumentos hábeis para sua desconstituição. 12 CAPÍTULO I – COISA JULGADA: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA, LIMITES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA 1.1 – Conceito e Natureza Jurídica da Coisa Julgada Embora o Código de Processo Civil em seu artigo 4671 conceitue coisa julgada, é certo que a definição do instituto vai muito além do que dispõe a letra a lei. Na lição de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR 2 : A res iudicata, por sua vez, apresenta-se com uma qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença mas a qualidade dela representada pela “imutabilidade” do julgado e de seus efeitos, depois que não seja mais possível impugná-los por meio de recurso. (...) Com a publicação, a sentença se torna irretratável para o julgador que a proferiu (art. 463). (...) Para todo recurso a lei estipula prazo certo e preclusivo, de sorte que, vencido o termo legal, sem manifestação do vencido, ou depois de decididos todos os recursos interpostos, sem a possibilidade de novas impugnações, a sentença torna-se definitiva e imutável. Assim, grande parte da doutrina entende que a coisa julgada nada mais é do que uma qualidade dos efeitos da decisão proferida (sentença ou acórdão) que se torna imutável quando não é mais possível a interposição de recurso para refutá-la (entendimento consolidado por Liebman). A imutabilidade das decisões judiciais constitui o pilar da segurança jurídica, e nas palavras de DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES 3: 1 Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutívela sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. 2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I Teoria Geral do Processual Civil e Processo de Conhecimento. 54ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013, p. 566. 3 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 5ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Método, 2013, p. 537. 13 “A imutabilidade gerada pela coisa julgada material impede que a mesma causa seja novamente enfrentada judicialmente em novo processo.” Insta destacar, contudo, que a coisa julgada como já definido é uma qualidade dos efeitos da decisão proferida e não propriamente um efeito da decisão. Entende- se como efeito da sentença ou acórdão a condenação, a declaração e a constituição, que são as consequências daí decorrentes, qual seja da imutabilidade. A importância do instituto da coisa julgada é tal que nosso ordenamento jurídico atribuiu a ela proteção constitucional e infraconstitucional. Isto porque a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso XXXVI estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Muitos doutrinadores entendem que o tratamento dado à coisa julgada pela Constituição da República se traduz na vontade do legislador em atribuir limite ao disposto no artigo supracitado, com o intuito de impedir que a lei de alguma forma venha a prejudicar a coisa julgada. Para concluir, temos que a coisa julgada é fenômeno único conforme dispõe MARCUS VINICIUS RIOS GONÇALVES 4: (...) Ela é fenômeno único ao qual correspondem dois aspectos, um de cunho meramente processual, que se opera no mesmo processo no qual a sentença é proferida, e outro que se projeta para fora, tornando definitivos os efeitos da decisão. Isso impede que a mesma pretensão seja rediscutida em juízo, em qualquer outro processo. Ao primeiro aspecto dá-se o nome de coisa julgada formal. (...). O segundo aspecto é denominado coisa julgada material, que recai apenas sobre as sentenças de mérito, impedindo que a mesma pretensão venha a ser rediscutida posteriormente em outro processo. Portanto, pode-se afirmar que a coisa julgada representa um conceito jurídico que tem por fito qualificar uma decisão judicial (sentença ou acórdão), de forma a lhe atribuir eficácia e autoridade, ou seja, a força que emana da lei. 4 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Volume 2. 5ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 23-24. 14 Dessa forma, a coisa julgada pode ainda ser distinguida em coisa julgada formal e coisa julgada material. Por coisa julgada formal entende-se um fenômeno intraprocessual que consiste a imutabilidade da decisão (sentença ou acórdão), contra a qual não caiba mais recurso no bojo do processo em que fora proferida. Ou seja, enquanto houver a possibilidade de interposição de recurso contra a decisão, esta não se tornará definitiva, já que a decisão é passível de reforma pela instância superior. Assim, quando não houver mais a possibilidade de interposição de recurso ou, este já tenha sido julgado pelo órgão superior, ocorre a preclusão máxima, ou seja, o trânsito em julgado. Daí decorre a coisa julgada formal. CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO 5 assim, resumidamente definem a coisa julgada formal: (...) Configura-se a coisa julgada formal, pela qual a sentença, como ato daquele processo, não poderá ser reexaminada. É sua imutabilidade como ato processual, provindo da preclusão das impugnações e dos recursos. A coisa julgada formal representa a preclusão máxima, ou seja, a extinção do direito ao processo (àquele processo, o qual se extingue). O Estado realizou o serviço jurisdicional que se lhe requereu (julgando o mérito), ou ao menos desenvolveu as atividades necessárias para declarar inadmissível o julgamento do mérito (sentença terminativa – infra, n. 214). No tocante à coisa julgada material, esta é inerente aos julgamentos de mérito e trata-se da imutabilidade não da decisão (sentença ou acórdão), mas sim de seus efeito, uma vez que projeta-se para fora do processo em que fora proferida, impedindo que a pretensão deduzida em juízo seja novamente apreciada pelo Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de um efeito erga omnes, ou seja, oponível a todos. 5 CINTRA, Antonio Carlos de Araujo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 340. 15 Superada a definição da coisa julgada, bem como sua disposição legal e proteção disposta na Carta Magna, de rigor tecer algumas considerações quanto à natureza jurídica do instituto, senão vejamos. Quanto à natureza jurídica da coisa julgada, pode-se afirmar que esta consiste basicamente na segurança atribuída ás decisões proferidas, uma vez que estas decisões poderiam ser comprometidas caso houvesse a possibilidade de se rediscutir questões já julgadas e sedimentadas pela doutrina e jurisprudência. Contudo vale destacar a definição apresentada por CELSO NEVES 6: A coisa julgada é, pois, um fenômeno de natureza processual, com eficácia restrita, portanto, no plano processual, sem elementos de natureza material na sua configuração, teologicamente destinada à eliminação da incerteza subjetiva que a pretensão resistida opera na relação jurídica sobre que versa o conflito de interesses. Como dado pré-processual de caráter subjetivo, essa incerteza não afeta a essência da relação jurídica, de caráter objetivo. A ela, simplesmente, se relaciona, porque nela está o objeto do juízo das partes. Assim também a coisa julgada que apenas se relaciona à res in iudicium deducta por constituir esta o objeto do juízo estatal. Outrossim, importante mencionar que existem três teorias acerca da natureza jurídica da coisa julgada, que vale a pena destacar dada a sua importante contribuição para o estudo do instituto da coisa julgada. A primeira teoria, defendida por alguns doutrinadores, entre eles Chiovenda e Pontes de Miranda, sustenta em suma que a coisa julgada é um efeito da sentença, restringindo-a ao elemento declaratório da decisão, ou seja, é imutável e indiscutível, atribuindo força vinculante à declaração. A segunda teoria, defendida por Liebman, Dinamarco, Grecco Filho entre outros e a mais difundida entre os doutrinadores brasileiros, afirma a coisa julgada como uma qualidade aderente à sentença. 6 NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971, p. 442. 16 Segundo esta teoria, não há como confundir os efeitos da sentença com a autoridade da coisa julgada, uma vez que esta não seria um efeito da sentença, mas sim o modo pelo qual se manifesta todos os seus efeitos. Por fim, a terceira corrente que encontra adeptos nas pessoas de Barbosa Moreira, Fredie Didier, Freitas Câmara, entre outros, tem a coisa julgada como uma situação jurídica, entendendo que os efeitos da decisão não seriam imutáveis, mas sim, modificáveis, devendo ser encarada como imutabilidade do conteúdo da decisão proferida, ou seja, da parte dispositiva da sentença, não havendo o que se falar em imutabilidade de seus efeitos. ARTUR DIEGO AMORIM VIEIRA 7 complementa: Em determinado instante, a sentença experimenta notável modificação em sua condição jurídica: de mutável que era, faz-se imutável – e porque imutável, faz-se indiscutível, já que não teria sentido permitir-senova discussão daquilo que não se pode mudar. A imutabilidade da sentença não lhe é “co-natural” sendo possível a existência de sentenças que não se tornem imutáveis e indiscutíveis, na medida em que estas características são oriundas de certa opção de política legislativa no sentido de privilegiar a segurança jurídica. A natureza jurídica da coisa julgada é alicerçada na qualidade (eficácia) e não no efeito que é o reflexo do ato judicial, haja vista que a doutrina já tem sustentado que a coisa julgada tem função dúplice, ou seja, há uma função positiva e outra negativa. A coisa julgada pode ser instrumento para duas situações distintas: a) impedir que uma mesma demanda seja repetida, ou seja, que demandas idênticas e já decididas sejam levadas novamente ao Poder Judiciário e com isso gere decisões 7 VIEIRA, Artur Diego Amorim. O processo justo e a coisa julgada: breve análise quanto à inviabilidade de sua desconsideração. In Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Ano 7. Volume XI. Periódico Semestral da Pós Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. Rio de Janeiro, Janeiro a Junho de 2013, p. 15. 17 conflitantes; b) com o fito de vincular o juízo que apreciará a questão a decidir de forma já pronunciada anteriormente. SÉRGIO GILBERTO PORTO 8 de maneira sucinta assim define as funções da coisa julgada, senão vejamos: “A função negativa se caracteriza como um impedimento, verdadeira proibição, de que se volte a suscitar no futuro a questão já decida. A função positiva, de sua parte, vinculada a decisão pretendida a outra já proferida.” Em suma, pode-se afirmar que a principal característica da coisa julgada inerente a sua natureza jurídica é a intangibilidade das situações jurídicas declaradas, sendo que tais efeitos não podem ser modificados de forma indiscriminada, uma vez que estão protegidos pelo manto da coisa julgada e eventual rediscussão pode vir a acarretar a temida insegurança jurídica. 1.2 – Limites da Coisa Julgada Tem-se que a legitimidade conferida pela coisa julgada está situada nos objetivos do sistema processual, que não poderiam ser atingidos caso as decisões judiciais pudessem ser sempre reexaminadas. Importante destacar que os limites da coisa julgada, bem como seu grau de imutabilidade vai depender fundamentalmente, da natureza do direito discutido e da situação leva à análise do judiciário; ou seja, os limites da coisa julgada devem ser considerados quanto ao seu reflexo na esfera social: se atingirá apenas as partes envolvidas no processo ou seus efeitos se estenderão também a titulares indeterminados.9 Como isso, faremos uma análise acerca de dois dados que compõem o regime jurídico da coisa julgada: a) os limites subjetivos, que se destina a examinar 8 PORTO. Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 72. 9 BEDAQUE. José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do direito material sobre o processo. 6ª edição revista e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 135. 18 quem se submete aos efeitos da coisa julgada; b) os limites objetivos, que trata da descoberta de o que se submete aos efeitos deste instituto. Passa-se primeiramente à análise dos limites objetivos da coisa julgada a fim de se investigar o que se submete a ela. Como cediço, a decisão proferida, seja ela uma sentença ou um acórdão, é o ato jurídico pelo qual se insere a norma jurídica individualizada e que resta estabelecida no dispositivo da decisão, refletindo o comando legal a ser obedecido pelas partes litigantes de acordo com a análise da situação trazida ao conhecimento do magistrado. Nos termos do disposto no artigo 468 do Código de Processo Civil, somente o dispositivo da decisão faz coisa julgada material, uma vez que nesta parte é que contém o comando emanado pelo juiz no exercício de sua função jurisdicional, sendo que os fatos e fundamentos de direito não são atingidos pelo manto da coisa julgada, podendo inclusive, serem rediscutidos em nova demanda judicial. E ainda de acordo com o artigo supramencionado, verifica-se que a sentença tem força de lei nos limites da lide julgada e das questões ali decididas. Porém, o estabelecimento dos limites objetivos da coisa julgada foi alvo de muitas polêmicas no meio processual. Isto porque, ao ser redigido o artigo 287 do Código de Processo Civil de 1939, o legislador inspirou-se no Projeto de Carnelutti, porém, ao fazer a tradução deformou o ideal do artigo 290 do referido projeto, o que ocasionou dificuldades na interpretação e correta aplicação do comando legal. Tal dificuldade de aplicação fez com que muitos doutrinadores defendessem a extensão da autoridade da coisa julgada às questões prejudiciais. 10 Contudo, na elaboração do Código de Processo Civil de 1973, o legislador procurou corrigir a falha, quando finalmente reproduziu a regra estabelecida por 10 DIDIER JÚNIOR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Volume 2. Salvador: Edições Jus Podivm, 2007, p. 487. 19 Carnelutti no artigo 468, conferindo força de lei à coisa julgada nos limites da lide decidida. Dessa forma, a autoridade da coisa julgada somente recai sobre a parte da sentença que julga o pedido. 11 LIEBMAN 12 define os limites objetivos da coisa julgada como o “comando pronunciado pelo juiz que se torna imutável, não a atividade lógica exercida pelo juiz para preparar e justificar a decisão”. E para arrematar a questão, o entendimento de DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES13: (...) o art. 470 do CPC confirma a regra de que somente o dispositivo faz coisa julgada material ao prever que a resolução da questão prejudicial faz coisa julgada quando for objeto de ação declaratória incidental. (...) a partir do momento em que há no processo uma ação, de maneira que a sua solução, além de fazer parte da fundamentação da ação originária, também fará parte do dispositivo da decisão que resolver a ação declaratória incidental. Ou seja, somente o dispositivo da sentença produz coisa julgada material, nunca a fundamentação, por mais relevante que se apresente no caso concreto. Como se vê, de acordo com a regra estabelecida por Carnelutti no Direito Italiano, o limite objetivo da coisa julgada diz respeito aos efeitos da decisão proferida em relação unicamente das partes envolvidas no processo, ou seja, os efeitos da coisa julgada se operam inter partes. No tocante aos limites subjetivos, estes dizem respeito sobre quem está submetido à coisa julgada, sendo que seus efeitos podem operar-se inter partes, ultra partes ou erga omnes. 14 11 DIDIER JÚNIOR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Op.cit., p. 487. 12 LIEBMAN, Tullio Enrico. Eficácia e Autoridade da Sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4ª edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 52. 13 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., 541. 14 DIDIER JÚNIOR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Op.cit., p. 488. 20 A regra contida em nosso ordenamento jurídico e contida no artigo 472 do Código de Processo Civil dispõe que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Isto porque, conforme preconiza o direito processual pátrio, ninguém poderá ser atingido pelos efeitos de uma decisão transitada em julgado, sem quelhe seja exercer seu direito de ampla defesa e contraditório.15 No entanto, há exceção para esta regra em nosso direito processual pátrio. São os casos em que os efeitos da sentença pode atingir terceiros, beneficiando-os ou mesmo prejudicando-os. Trata-se da coisa julgada ultra partes que atinge não apenas as partes litigantes, mas também vincula aqueles que não participaram da lide. Há quem sustente na doutrina que os terceiros afetados pela decisão podem ainda que de modo indireto influenciar o teor dessas decisões. Assim ensina FLÁVIO RENATO CORREIA DE ALMEIDA e EDUARDO TALAMINI16: Desde sempre os sistemas jurídicos engendram fórmulas para que esta regra seja absoluta, ou seja, para que terceiros não sejam atingidos pela coisa julgada e nem sejam prejudicados por processos que não lhes dizem respeito (art. 472, primeira parte). Todavia, com as relações jurídicas, no plano do direito material, acontecem muito frequentemente de modo interligado, é muito comum que terceiros acabem sofrendo efeitos decorrentes de decisão proferida em processos de que não fizeram parte. É importante salientar, todavia, que não se trata de efeitos da coisa julgada. (...) a lei engendra expedientes de que se podem valer esses terceiros para intervir no processo, que deve produzir decisão que os atingirá inexoravelmente de modo indireto, de molde a poderem influir no teor dessas decisões. Ainda acerca dos limites subjetivos LIEBMAN17 nos ensina que a imutabilidade vale somente entre as partes litigantes, uma vez que somente elas 15 DIDIER JÚNIOR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Op.cit., p. 488. 16 ALMEIDA. Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Volume 1. 7ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. 17 LIEBMAN, Tullio Enrico. Op. Cit., p. 52. 21 podem, com efeito, fazer valer suas razões no processo no qual houve o julgamento e, essa possibilidade justifica a necessidade de se conformar com o resultado alcançado sem poder modifica-lo, salvo nos casos excepcionais que abram caminho para a revogação da sentença. Nas palavras de BEDAQUE18: “A coisa julgada erga omnes, portanto, nos processos cujo objeto seja um interesse difuso ou coletivo, decorre de circunstância inerente à própria natureza do direito, isto é, sua indivisibilidade”. Conclui-se, portanto, todos os sujeitos (partes litigantes, terceiros interessados e terceiros desinteressados) acabam por suportar os efeitos da decisão proferida, no entanto, a coisa julgada os atinge cada qual de forma distinta. Isto porque as partes litigantes estão diretamente vinculadas à coisa julgada; já os terceiros interessados sofrem os efeitos jurídicos da decisão proferida; enquanto que os terceiros desinteressados acabam por sofrerem os efeitos naturais da sentença, haja vista que em via de regra, os terceiros não são diretamente atingidos pela coisa julgada material.19 1.3 – Evolução Histórica Ao que se sabe, o instituto da coisa julgada remonta desde o Direito Romano, relações jurídicas envolvendo o bem da vida. Cumpre asseverar que no Direito Romano o principal objetivo do processo era a satisfação da vontade da lei em relação ao bem da vida que estava sub judice, uma vez que o Direito Romano desenvolveu-se muito mais pela prática do que pela teoria, ou seja, principalmente durante o período clássico, o direito não era escrito, mas sim oral o que não deixava de conferir legitimidade e segurança em relação às decisões proferidas. 18 BEDAQUE. José Roberto dos Santos. Op.cit. p. 137. 19 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op.cit. 543. 22 Todo processo romano girava em torno da prolação da sententia tida como ato final do processo e, portanto, exteriorização da vontade do Estado que fazia cumprir a lei. Daí a importância do instituto da res iudicata no Direito Romano, uma vez que sua utilidade era pública em função da necessidade de se estabelecer um convívio social harmônico, com a certeza de que o resultado de um julgamento era definitivo e poria fim à lide levada a julgamento. Com o passar do tempo, na época medieval a atividade legislativa desapareceu no Ocidente e o próprio poder judicial acabou passando das mãos do rei para de seus vassalos. Neste período, o Direito Romano foi sendo esquecido e as normas antes aplicáveis foram sendo deixadas de lado para a aplicação de normas consuetudinárias, ou seja, nada mais era registrado (escrito), nem mesmo a decisão dos juízes eram reduzidas a termo, sendo que o direito que passou a vigorar era o costume do feudo. 20 No direito medieval a coisa julgada não mais representava uma exigência de certeza e segurança, mas como uma verdade declarada pelo juiz.21 Dessa forma, com fundamento em textos produzidos por Ulpiano, a autoridade da coisa julgada era identificada na presunção de verdade contida na sentença proferida. Para os juristas da Idade Média, a finalidade do processo era a busca pela verdade, mesmo cientes de que nem sempre a sentença refletia a verdade buscada. Contudo, mesmo não espelhando a verdade, a sentença não deixava de se revestir da autoridade da coisa julgada, o que acabava por demonstrar a presunção de veracidade (res iudicata pro veritate habetur), o fundamento jurídico basilar para sustentar a autoridade da coisa julgada. 22 20 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano. 2ª edição revista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 102. 21 BERALDO, Leonardo de Faria. A Flexibilização da Coisa Julgada que viola a Constituição In Coisa Julgada Inconstitucional. Coord. Carlos Valder do Nascimento. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2005, p. 157. 22 PORTO, Sérgio Gilberto. Op.cit., p. 53. 23 Ainda na Idade Média, Santo Agostinho foi pioneiro ao introduzir no Direito Romano um conceito subjetivista de justiça, onde somente seria justa a lei que se conformasse com a Lei Divina, uma vez que a verdadeira justiça vem de Deus. Com isso, o Direito Canônico passou a vigorar em conjunto com o Direito Romano e sua grande influência se deu principalmente pelo fato de ser um direito escrito, bem como por instituir tribunais eclesiásticos com competência exclusiva para julgar, tanto penal como civilmente numerosos assuntos da vida privada da sociedade. 23 Com a introdução do Direito Germânico, foi instituído o principio da validade formal da sentença, cuja eficácia além de ser erga omnes, não era admissível a interposição de qualquer recurso para reexaminar ou mesmo questionar o julgado, o que fazia da sentença algo definitivo e imutável. Diante da fusão entre o Direito Germânico e o Direito Romano ocorrida a partir do século XI, fazendo surgir uma nova visão que mesclou a ideia do Direito Germânico no sentido de atribuir à sentença a validade formal e erga omnes, com a introdução da querela de nulidade (querela nulitatis) com a finalidade de corrigir injustiças cometidas em decorrência de erros processuais, possibilitando a quebra do absolutismo da sentença. Este avanço trazido pela fusão do Direito Germânico com o Direito Romano colaborou de forma significativa para a criação de mecanismos de quebra da imutabilidade da sentença. Mais precisamente com a criação da ação rescisória e sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 1843, é que foi possível arguir a nulidade da sentença, com prazo prescricional de trinta anos, facultando o desfazimento do julgado por qualquer violação do direito expresso, ainda quea questão tivesse sido amplamente debatida e decidida em todas as instâncias processuais. 24 23 ROLIM, Luiz Antonio. Op.cit., p. 109. 24GRECO, Leonardo. Eficácia da Declaração Erga Omnes de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em relação à Coisa Julgada Anterior. Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 28 de janeiro de 2003. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 29 de abril de 2014. 24 Contudo, em que pese todo o avanço trazido, é salutar esclarecer que o instituto da coisa julgada no Brasil sempre foi e continua sendo muito frágil. Isto porque, além das razões históricas, há ainda as razões políticas e culturais que contribuem para essa fragilidade. LEONARDO GRECO assim preleciona 25: De inicio, a tradição romana, de julgamentos privados, que levava o legislador a simplesmente ignorar a força do julgado nulo, considerando inexistente, que sempre podia ser atacado por uma ação subsequente, como a infitiatio judicati ou a restituitio in integrum. Em verdade, conforme demonstrou CALAMANDREI no seu incomparável estudo sobre a Cassação Civil, foi o Direito Germânico que instituiu o princípio da validade formal da sentença, com eficácia erga omnes e não sujeita nem mesmo a qualquer impugnação recursal, como consequência do costume dos julgadores em assembleias populares e, num segundo momento, em escabinados igualmente de composição popular. A fragilidade da coisa julgada tem ainda outras causas, inclusive políticas, haja vista que o juiz, representando o Estado na aplicação e cumprimento da lei, ainda se mostra como soberano, que pode conceder a qualquer cidadão a reparação da injustiça mesmo quando cometida por outros juízes.26 Conclui-se, portanto, que ao longo da história a coisa julgada desempenhou e permanece desempenhando importante papel tanto no ordenamento jurídico quanto na sociedade como um todo. Isto porque, dada sua importância como instrumento de segurança jurídica e pacificação das relações sociais, a coisa julgada esta inserida no ordenamento jurídico e ganhou status de direito fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988. No próximo capítulo é possível verificar como o instituto da coisa julgada foi inserido no ordenamento jurídico pátrio, bem como quais são os princípios constitucionais a ela aplicados e, ainda, o confronto entre os princípios da justiça versus segurança jurídica. 25 GRECO, Leonardo. Op. Cit. 26 GRECO, Leonardo. Op.cit. 25 CAPÍTULO II – A COISA JULGADA INSERIDA NO ORDENAMENTO JURÍDICO 2.1 – Coisa Julgada na Constituição Antes de adentrar ao mérito da inserção da coisa julgada no ordenamento jurídico pátrio, é de salutar importância tecer alguns breves comentários acerca de um fenômeno que há muito tempo vem sendo assinalado pela doutrina e hoje já é uma realidade na jurisprudência brasileira: a constitucionalização do direito processual civil. Sobre o tema comenta CASSIO SCARPINELLA BUENO27: (...) certo, é que no processo civil, como, de resto, todos os outros chamados “ramos” do direito, está inserido em um contexto bem mais amplo, que é o da Constituição Federal. Não há como tratar de direito, qualquer “direito” sem voltar os olhos também para a Constituição. (...) A Constituição Federal é o necessário ponto de partida para qualquer reflexão sobre o direito processual civil. É constatar, na Constituição Federal, qual é (ou, mais propriamente, qual deve ser) o modo de ser (dever ser) do processo civil. É extrair, da Constituição Federal, o “modelo constitucional do processo” e, a partir dele, verificar em que medida as disposições legais anteriores à sua entrada em vigência foram por ela recepcionadas e em que medida as disposições normativas baixadas desde então estão em plena consonância com aqueles valores ou, escrito de forma mais precisa, bem realizam os desideratos que a Constituição quer sejam realizados pelo processo ou que concretizam o modelo constitucional do processo. (...) o processo civil constitucionalizou-se. Neste diapasão, tem-se, portanto, que o instituto da coisa julgada ganhou, na Constituição Federal, status de garantia constitucional-processual quando inserida no bojo do texto constitucional (artigo 5º, XXXVI). Isto porque, aquele que se socorre do sistema jurídico brasileiro para solucionar suas contendas, está amparado por certas garantias conferidas pelo 27 BUENO. Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 75-76. 26 Estado, ou seja, as garantias constitucional–processuais. Assim, sendo a Constituição fonte originária e máxima do direito, toda e qualquer decisão proferida deve a ela estar submetida, sob pena de resultar em inconstitucionalidade, o vício maior do ordenamento jurídico.28 Assim como vários outros institutos, a coisa julgada encontra assento no texto constitucional que lhe confere a hierarquia e a garantia oferecida pelo Estado a todos que litigam e tem proferida uma decisão de mérito que põe termo à questão levada à análise do judiciário, tornando dessa forma, estável a relação jurídica que recebeu o pronunciamento judicial. Eis que o desrespeito à coisa julgada muito mais que uma violação processual, representa no ordenamento uma afronta a garantia constitucional, sendo passível de impugnação, tal qual a desobediência de qualquer outra garantia constitucional.29 Nesta seara, verifica-se que a garantia da coisa julgada pressupõe uma blindagem à decisão judicial proferida, imunizando-a contra qualquer alteração legislativa, já que a própria Constituição Federal, lei máxima do Estado, estabelece que a lei não prejudicará a coisa julgada, o que confere a este instituto a proteção necessária para que a segurança jurídica e a paz social sejam preservadas no ordenamento jurídico.30 2.2 – Princípios Constitucionais Aplicáveis à Coisa Julgada São inúmeros os princípios constitucionais que possuem relação direta com a coisa julgada, dentre esses, destacaremos o princípio da segurança jurídica; princípio da constitucionalidade; princípio da razoabilidade e princípio da isonomia. Assim, o princípio da segurança jurídica será o primeiro a ser analisado, senão vejamos. 28 PORTO. Sérgio Gilberto. Op. Cit., p. 62. 29 PORTO. Sérgio Gilberto. Op. Cit., p. 63-64. 30 PORTO. Sérgio Gilberto. Op. Cit., p. 64. 27 2.2.1 – Princípio da Segurança Jurídica Como já asseverado, a coisa julgada é inerente ao Estado Constitucional, uma vez que reflete a autoridade que o Estado emana sobre as decisões judiciais proferidas. Insta destacar, mesmo que a coisa julgada não houvesse sido resguardada de forma expressa pela Constituição Federal, ainda sim tal instituto merece guarida, haja vista que deriva do Estado de Direito, encontrando base nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.31 O Estado de Direito é considerado um sobreprincípio, que se correlaciona com outros tantos princípios, que, por serem reveladores do seu conteúdo, constituem seus fundamentos. Entre esses princípios, temos o da segurança jurídica, indispensável à concretização do Estado de Direito.32 Nas palavras de LEONARDO GRECO33: A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observare com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes. (...) A coisa julgada é, assim, uma garantia essencial do direito fundamental à segurança jurídica. A segurança jurídica pode ser analisada quanto a dois aspectos: objetivo e subjetivo. Do ponto de vista objetivo, tem-se que a segurança jurídica diz respeito a ordem jurídica, com a consequente irretroatividade dos atos estatais, bem como o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, conforme dispõe o artigo 31 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa Julgada Inconstitucional. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 63-64. 32 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 65. 33 GRECO, Leonardo. Op.cit. 28 5º, XXXVI da Constituição Federal. Já na perspectiva subjetiva, a segurança jurídica é aquela do ponto de vista dos cidadãos em relação ao Poder Público, onde se verifica o surgimento de uma espécie de subprincípio, o da proteção da confiança, como garantia de que os atos estatais devem transparecer confiança aos cidadãos, ou seja, os cidadãos devem se sentir protegidos e confiantes dos atos praticados pelo Estado.34 Observa-se que enquanto instituto jurídico, a coisa julgada tutela o princípio da segurança jurídica em seu viés objetivo, já que as decisões judiciais proferidas são definitivas e imutáveis; bem como é importante frisar que a coisa julgada representa a necessidade de estabilização das decisões judiciais; daí advém o princípio da segurança jurídica na qual a coisa julgada se insere.35 Já ao garantir a aplicação do princípio da proteção da confiança, resta claro que se trata da coisa julgada garantindo aos litigantes e a toda sociedade que nenhum ato praticado pelo ente estatal poderá modificar aqui que jaz decidido. Nos ensinamentos de MARINONI36: “A coisa julgada, portanto, serve à realização do princípio da segurança jurídica, tutelando a ordem jurídica estatal e, ao mesmo tempo, a confiança dos cidadãos nas decisões judiciais”. Conclui-se assim, que o princípio da segurança jurídica é um dos pilares que sustentam a coisa julgada, haja vista que sem a certeza de que as decisões judiciais que já foram acobertadas pelo manto da coisa julgada, se tornaram imutáveis tanto pela ação do Poder Público, quanto pela ação do próprio Poder Judiciário; não podemos dizer que sem essa certeza de imutabilidade, temos de fato um Estado de Direito. 34 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 66. 35 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 67. 36 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 68. 29 2.2.2 – Princípio da Constitucionalidade Outro princípio aplicado à coisa julgada com grande importância e que merece ser igualmente destacado é o princípio da constitucionalidade que se alicerça na legitimidade da Constituição, norma rígida que traduz a vontade do povo de que todos os poderes e atos praticados estejam vinculados ao texto constitucional, assegurando a toda sociedade a garantia de livre atuação da jurisdição constitucional.37 BERALDO38 citando o constitucionalista português JORGE MIRANDA: O princípio da constitucionalidade funciona como a ratio legis da garantia jurisdicional da Constituição. Entende-se por ratio legis como sendo o espírito da lei, ou seja, o fim social ao qual ela se destina. E acrescenta dizendo que “Como isso não vimos contestar que uma norma de garantia não jurisdicional tenha por ratio legis a constitucionalidade. Contestamos, simplesmente, que a sua ratio legis possa ser erguida o princípio geral de Direito constitucional, como pensamos poder erguer a ratio legis da norma de garantia jurisdicional. Com isso, estabelece-se, portanto, que toda a atividade jurisdicional está, de uma forma ou de outra, ainda que indiretamente, subordinada ao princípio da constitucionalidade, uma vez que seus atos somente podem ser validados de acordo com o que preconiza a Carta Magna. Dada a inquestionável relevância deste princípio, já que é através da Constituição de um Estado que as regras básicas são ditadas, ou seja, Estado é formado, sua sistematização de direitos e garantias fundamentais é estabelecido; temos que obrigatoriamente, que todas as normas e atos emanados do Poder Pública estão condicionadas ao crivo da adequação constitucional para sua validação. 37 BERALDO. Leonardo de Faria. Op. Cit., 173. 38 BERALDO. Leonardo de Faria. Op. Cit., 174 apud MIRANDA. Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. [Reimpressão]. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 17. 30 Para os doutrinadores HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JULIANA CORDEIRO DE FARIA39, o princípio da constitucionalidade: “é consequência direta da força normativa e vinculativa da Constituição enquanto Lei Fundamental da ordem jurídica e pode ser enunciado a partir do contraposto da inconstitucionalidade, nos termos seguintes”. Conclui-se assim, que o princípio da constitucionalidade quando aplicado ao instituto da coisa julgada se revela de suma importância, isto porque, a aplicabilidade dada ao princípio permite que não somente as decisões judiciais, mas também os atos praticados pelos Poderes Públicos para se validarem e se tornarem eficazes, devem obrigatoriamente se submeterem a Lei Maior. 2.2.3 – Princípio da Razoabilidade O princípio da razoabilidade ou proporcionalidade como também pode ser denominado, é aplicado nas situações onde se verifica um conflito aparente de normas constitucionais. Mesmo não estando expresso no texto constitucional, este princípio é, coordenado com os demais princípios, aplicado com o fito de coibir os excessos, solucionando os conflitos de acordo com os valores constitucionais.40 Trazendo a aplicabilidade do princípio para o instituto da coisa julgada, insta asseverar que não se pode supervalorizar e enaltecer a coisa julgada em nome da garantia de segurança jurídica e com isso acabar por suprimir todos os demais princípios.41 39 THEODORO JÚNIOR. Humberto.; FARIA. Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: Coisa Julgada Inconstitucional. NASCIMENTO. Carlos Valder do. (coord.). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 130. 40LONGHINOTI. Cristian Bazanella. Da Relativização da Coisa Julgada: Princípios norteadores e formas de relativização. Artigo publicado na Academia Brasileira de Direito Processual Civil (www.abdpc.org.br). Disponível na Internet: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/CRISTIAN%20LONGHINOTI2%20-%20Versão%20Final.pdf. Acesso em 27 de dezembro de 2014. 41 LONGHINOTI. Cristian Bazanella. Op. Cit. 31 A coisa julgada deve ser posta em consonância com o princípio da razoabilidade a fim de que não ofenda as normas constitucionais e a ordem pública, já que nenhum princípio pode ser tido como absoluto a ponto de afrontar a Carta Magna, deturbando outros valores e contribuindo para a instauração de insegurança jurídica. Tal princípio quando aplicado à coisa julgada vai mais além. Isto porque, como cedido a coisa julgada é instituto infraconstitucional advindo do regramento processual, e quando em confronto com norma dotada de valor constitucional, não poderá preponderar, devendo pois ser relativizada, pois sendo a norma constitucional de maior valor e superior hierarquia, deve prevalecer em detrimento da coisa julgada.42 Em sua obra PEDRO LENZA43 assim define o princípio em tela: (...) o princípio da proporcionalidadeou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; procede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico. Diante do exposto é possível concluir que o princípio da razoabilidade acaba por estabelecer uma escala hierárquica dos valores constitucionais, onde prevalecem os de maior relevância, criando-se assim, um juízo de ponderação com relação aos meios utilizados e os valores que se perseguem, evitando com isso lesão à ordem constitucional. 42 Idem. 43 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 174. 32 2.2.4 – Princípio da Isonomia O princípio da isonomia, consagrado no caput do artigo 5º da Constituição Federal é, sem dúvida, um dos mais basilares princípios fundamentais do ordenamento jurídico pátrio, uma vez que seu comando expressa o dever do Estado em tratar igualmente os iguais e os desiguais na medida da sua desigualdade, ou seja, o princípio da isonomia consagra a justa distribuição.44 Em termos de coisa julgada, podemos exemplificar como justa a sentença que tenha sido objeto de cognição ampla e profunda, onde às partes litigantes fora oportunizado o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, antes que a sentença tenha transitado em julgado.45 Desse modo, verificada a desigualdade dos julgados sobre uma mesma matéria, a fim de dispensar aos litigantes das demandas tratamento isonômico, uma vez que a matéria trazida à apreciação do judiciário é idêntica, se faz necessária a relativização da coisa julgada com a aplicação do princípio da isonomia a fim de corrigir a injustiça da decisão discrepante e tolher a afronta ao dispositivo constitucional. Convém ainda assinalar, que o princípio da isonomia não é apenas um princípio de Estado de Direito, mais do que isso, é um princípio de ordem social e que tem plena eficácia no ordenamento jurídico, já que a isonomia se fundamenta como pilar de sustentabilidade de toda ordem constitucional. 2.3 – Justiça versus Segurança Jurídica A ideia de justiça é algo que sempre rodeou o pensamento do homem enquanto ser social, uma vez que o ideal de justiça traduz, entre outras coisas, a sensação de pacificação e ordem social. 44 LONGHINOTI. Cristian Bazanella. Op. Cit. 45 Idem. 33 Desde as civilizações mais remotas, mesmo com sistemas jurídicos ainda rudimentares, o homem sempre buscou aperfeiçoar o conceito de justiça a fim de aplicá-lo na sociedade em que vivia e com isso estabelecer a harmonia das relações entre indivíduos e o poder estatal. ARISTÓTELES46 trata o ideal de justo como sendo aquilo que respeita a lei e é probo. Assim, a justiça é a maior das virtudes, é a virtude completa na plenitude de seu sentido. Se a justiça é uma virtude, por outro lado a injustiça é um vício e, da mesma forma que a justiça é uma virtude completa, a injustiça por sua vez, é um vício também completo; bem como a justiça também revela um ideal de equidade e proporcionalidade. Assim, na concepção aristotélica, a justiça pode ser distributiva ou corretiva. A justiça distributiva é aquela que se manifesta na distribuição pelo Estado, de bens, honrarias, cargos, bem como responsabilidades e deveres. Neste caso, o justo é proporcional, ou seja, aquilo que é atribuído de forma igualitária entre os iguais, sendo que o injusto seria a distribuição igualitária entre os desiguais. Nos dizeres do filósofo: Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter participação desigual ou igual à de outra pessoa. 47 No tocante à justiça corretiva, esta consiste na justa repartição levando em conta os méritos de cada um; ou seja, a justiça corretiva consiste na intermediação entre a perda e o ganho, já que cada um recebe o que lhe é devido proporcionalmente ao seu mérito, uma vez que é desempenhada em relação às pessoas, e sua aplicação fica a cargo do juiz que é o aplicador da lei: 46 ARISTÓTELES. Ética à Nicômacos. Livro V. Os Pensadores. Volume II. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borhein. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 47 ARISTÓTELES. Op. Cit. 34 “(...) a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada. (...) o justo, pois é, um meio-termo, já que o juiz o é. (...) Ora, o juiz restabelece a igualdade (...)”48 Com estes conceitos de Aristóteles sobre o que é justiça, do que é justo e quem aplica esta justiça, tem-se a base para compreender a importância do binômio que aqui se pretende discutir: justiça versus segurança jurídica. No subitem 2.2.1 deste capítulo anterior foi abordado um dos princípios constitucionais aplicáveis à coisa julgada, a segurança jurídica, que diz respeito á ordem jurídica e compreende em síntese, na irretroatividade dos atos estatais, ou seja, uma decisão judicial proferida anteriormente não pode ser modificada quando já transitada em julgado; bem como novas leis inseridas no ordenamento jurídico não podem modificar os atos anteriormente praticados pelo Estado. Contudo, sendo o processo um instrumento que permite o acesso á justiça, não como conceber a ideia de justiça sem segurança jurídica, daí surge a possibilidade de conflito entre a justiça e o princípio da segurança jurídica, uma vez que são princípios de mesma ordem, não havendo hierarquia entre eles, o que acaba por dificultar a interpretação do que deve de fato prevalecer. Para se alcançar o objetivo almejado, qual seja a pacificação social com justiça e o pleno acesso à ordem jurídica justa, de rigor que se busque o equilíbrio entre justiça e segurança jurídica. Dessa forma, uma vez que o processo é instrumento de tutela do direito justo, tem-se que a interpretação a ser dada aos princípios que regem deve ser realizada de acordo com essa perspectiva; já que é necessário que o valor atribuído à segurança jurídica conviva harmoniosamente como o valor da justiça das decisões proferidas. Daí a importância da aplicação dos princípios constitucionais pelo julgador, haja vista que este não pode não pode se limitar de forma exclusiva ao texto da lei, 48 Idem. 35 mas deve também se utilizar dos princípios constitucionais para dar uma solução para ao caso concreto sub judice. Diante disso, verifica-se que a justiça das decisões proferidas depende da correta análise do magistrado quanto ao caso concreto, bem como da aplicação de princípios norteadores a fim de conferir a segurança que a decisão judicial deve conter, uma vez que passada em julgado, tornar-se-á definitiva e imutável desde que não haja grave vício constitucional que a macule, impedindo-a de se perpetuar. E é em nome dessa segurança jurídica que as decisões devem ser estruturadas tanto na lei quanto em princípios constitucionais que assegurem a justiça das decisões e, consequentemente a paz e ordem social que se almeja. Por fim,cumpre asseverar que sem a segurança jurídica a busca pela justiça na aplicação do Direito torna-se inócua, uma vez que o Estado necessita transmitir aos cidadãos a confiança de que as decisões proferidas o foram de acordo com a legislação vigente no ordenamento, bem como suas fundamentações se embasaram também na aplicação de preceitos constitucionais. Assim, a correta aplicação da justiça, leia-se, da justa decisão ao caso concreto analisado, juntamente com a segurança jurídica como pressuposto da coisa julgada, permite que o Estado aplique o Direito e alcance a pacificação social por meio da estabilização e imutabilidade dos conflitos que lhes é submetido. Com vistas ao interesse de estabilização das decisões judiciais justas, tem-se que a coisa julgada necessariamente não deve conter vícios de ordem constitucional capazes de macular o julgado, causando injustiças e insegurança nas relações sociais. Assim, será tratado no próximo capítulo a perturbadora questão da coisa julgada inconstitucional e a necessidade de se relativizá-la diante da afronta aos princípios constitucionais. 36 CAPÍTULO III – DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL 3.1 – A relativização da coisa julgada A tese da relativização da coisa julgada surgiu no Superior Tribunal de Justiça defendida pelo então ministro José Augusto Delgado e, dada sua polêmica, embora defendida por parte da doutrina e jurisprudência ainda é alvo de críticas, pois os que a repudiam entendem que a relativização seria na realidade, a extirpação da coisa julgada do ordenamento jurídico, abrindo precedentes para uma espécie de caos jurídico. CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO49discorrem acerca da tese: A relativização da coisa julgada material é uma tese extremamente polêmica que nasceu no seio do Superior Tribunal de Justiça (Min. José Delgado) e que, mesmo entre os que a aceitam, só é defendida para os casos realmente extraordinários. Essa tese parte da premissa de que nenhum valor constitucional é absoluto, devendo todos eles ser sistematicamente interpretados de modo harmonioso e, consequentemente, aplicando-se à coisa julgada o princípio da proporcionalidade, utilizado para o caso de colisão entre princípios constitucionais. Esse princípio significa que em caso de conflito entre dois ou mais valores tutelados pela Constituição, deve-se dar prevalência àquele que no caso concreto se mostre mais intimamente associado à índole do sistema constitucional. Embora o instituto da coisa julgada tenha como principal finalidade promover a estabilidade das relações jurídicas conferindo-lhes a segurança da imutabilidade da decisão já proferida, certo que não se trata de regra absoluta, haja vista que os julgados maculados com vício de transgressão de garantias ou direitos constitucionais, ou ainda que transgrida valores éticos e jurídicos que firam o ordenamento jurídico, não podem ser imunizados.50 49 CINTRA. Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER. Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op.cit., p. 341. 50 GONÇALVES. Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 35. 37 A relativização da coisa julgada deve ser aplicada em situações pontuais e extraordinárias, pois caso houvesse a temida banalização do instituto, a estabilidade das relações jurídicas, a harmonia social e a segurança jurídica estariam em risco. Importante pontuar que nem sempre que uma decisão conter error in judicando a coisa julgada deve ser relativizada, mas tão somente em situações extraordinárias onde o erro resultar em situações de flagrante afronta ao texto constitucional.51 Como assevera SÉRGIO GILBERTO PORTO52: A ideia da possibilidade jurídica de mitigação de garantias constitucionais ou de que inexistem garantias constitucionais absolutas e que, portanto, todas são mitigáveis, no Brasil, goza de largo prestígio e obteve trânsito fácil, inclusive ensejando a possibilidade de que leis infraconstitucionais “arranhem”, sem pejo, as garantias de assento constitucional. São exemplos destas hipóteses, embora por motivos compreensíveis, as liminares inaldita altera pars, em face da garantia do contraditório, em que este, diz-se, é postecipado; os prazos processuais beneficiados da Fazenda Pública, frente a garantia da isonomia; a decisão arbitral com força de coisa julgada material, frente a garantia da inafastabilidade; o depósito prévio da ação rescisória, frente a garantia do acesso à justiça e outras que tais. Evidentemente, a garantia constitucional da autoridade da coisa julgada, frente a esta tendência, não poderia resultar indene e, por certo, o vírus da relativização lhe alcançaria, como efetivamente, alcançou. Em que pese os argumentos de que a coisa julgada deve refletir o princípio da segurança jurídica ao passo que a decisão proferida transitada em julgado é imutável, é correto afirmar que a decisão judicial deve exprimir confiança na prática da boa-fé e exercício da moralidade. Assim, a decisão proferida como expressão maior da atuação do Poder Judiciário, deve ser compatível com a realidade dos fatos sub judice em consonância com os princípios constitucionais. Nesta toada, nenhuma decisão judicial que se choque com o sistema constitucional merece se manter hígida.53 51 GONÇALVES. Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 35. 52 PORTO. Sérgio Gilberto. Op. Cit.; p. 137-138. 53 DELGADO. José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: Coisa julgada inconstitucional. Carlos Valder do Nascimento (Coord.). Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2002, p. 80. 38 Para DELGADO54 um dos mais ferrenhos defensores da tese de relativização da coisa julgada, a decisão não pode ter carga de vontade da pessoa que a proferiu, mas sim, deve representar a finalidade determinada pela lei. Defende ainda, que a moralidade está incutida em cada regra posta na Constituição Federal, uma vez que ela representa o comando de maior força e de cunho imperativo. É importante que a análise da tese de relativização da coisa julgada seja realizada sobre a ponderação do alcance do instituto em relação ao atrito com os princípios constitucionais. A parcela da doutrina que defende a relativização da coisa julgada aponta para a existência de duas formas atípicas de relativização: coisa julgada inconstitucional e coisa julgada injusta inconstitucional. A coisa julgada inconstitucional tem por objetivo afastar a imutabilidade de sentenças de mérito transitadas em julgado que tenham sido fundamentadas em normas declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.55 Para LENZA56 a coisa julgada inconstitucional consiste na colisão entre a segurança jurídica e a autoridade do Poder Judiciário, com a força normativa da Constituição; o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e como o princípio da isonomia quando a aplicação assimétrica viola um referencial normativo que dá sustentação a todo sistema. Nesta forma atípica de relativização, destaca-se a aplicação do artigo 741, parágrafo único e do artigo 475-L, parágrafo primeiro, ambos do Código de Processo Civil, - uns dos instrumentos para desconstituição da coisa julgada e que serão tratados de forma mais detalhada no próximo capítulo -, que tratam da previsão de matérias de defesa que podem ser alegadas pelo executado e que têm o condão de afastar a imutabilidade da coisa julgada material da sentença que é objeto da 54 DELGADO. José Augusto. Op. Cit., p. 81 e 83. 55 NEVES. Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., p. 548. 56 LENZA. Pedro. Op. Cit., p. 394. 39execução e que fora proferida alicerçada em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. 57 No entanto, há aqueles que defendem a inconstitucionalidade dos artigos supramencionados, sob o argumento de que a coisa julgada como garantia de segurança jurídica, se for relativizada em razão de posterior inconstitucionalidade declarada pela Suprema Corte, criaria instabilidade em todo ordenamento jurídico. Embora haja ação declaratória de inconstitucionalidade contra o artigo 741, parágrafo único do Código de Processo Civil ainda pendente de julgamento58, acredita-se que dificilmente o Supremo Tribunal Federal a considerará inconstitucional. No que diz respeito à coisa julgada injusta inconstitucional, o afastamento da imutabilidade da coisa julgada se dá quando a sentença fustigada produz extremada injustiça em afronta clara aos valores constitucionais que são essenciais para a harmonia do Estado democrático de direito. Na definição apresentada por DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES59, a coisa julgada injusta inconstitucional: “(...) trata-se da possibilidade de sentença de mérito transitada em julgado causar extrema injustiça, com ofensa clara e direta a preceitos e valores constitucionais fundamentais”. A doutrina que defende a relativização da coisa julgada entende que sendo um instituto processual responsável pela tutela da segurança jurídica, a coisa julgada não pode ser um valor absoluto em detrimento de valores e princípios de ordem constitucional. O que os simpatizantes da tese propõem é que seja feita uma ponderação entre a manutenção da segurança jurídica e a manutenção da ofensa aos preceitos 57 Idem. 58 STF, Tribunal Pleno, ADI 2418-3, Rel. Ministro Teoria Zavascki. Até a conclusão deste trabalho, os autos se encontravam conclusos com o relator desde 24/09/2014. 59 NEVES. Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., p. 551. 40 constitucionais. Neste juízo de valores, tem-se que o afastamento da imutabilidade da decisão seria legítimo, quando no caso concreto se verificar que é mais benéfico não somente para as partes envolvidas, mas também para o ordenamento jurídico, a manutenção dos princípios e garantias estabelecidos na Constituição Federal em detrimento à proteção da coisa julgada.60 A corrente que defende essa forma de relativização se divide em dois grupos, que apesar de sustentarem fundamentações distintas chegam a mesma conclusão, conforme aponta DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES ao citar BARBOSA MOREIRA61: (a) os que defendem a inexistência da coisa julgada material em determinadas hipóteses de extrema injustiça inconstitucional da sentença, de forma que o afastamento da decisão nem mesmo poderia ser tratado com uma espécie de relativização; (b) os que concordam que mesmo diante dessa extrema injustiça existe coisa julgada material, mas que seu afastamento é necessário e justificável em razão da proteção de outros valores constitucionais. Entre os doutrinadores que defendem a inexistência de coisa julgada nessas hipóteses, estão os que enquadram o vício gerado pela sentença injusta no plano da eficácia, validade e existência jurídica.62 Os que situam o vício no plano da eficácia, afirmam que as sentenças que padecem de vícios tão extremos não geram efeitos. Dessa forma, as sentenças impossíveis de gerar efeitos são as contrariam os valores essenciais do sistema, entre os quais a razoabilidade e proporcionalidade; a moralidade; os direitos fundamentais, entre outros princípios constitucionais.63 60 Idem. 61 NEVES. Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., p. 551-552, Apud BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. 2. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2006, p. 201. 62 NEVES. Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., p. 552. 63 Idem. 41 Assim, para estes doutrinadores, a incapacidade que estas decisões têm de produzir efeitos dado aos vícios extremos que contem, é o suficiente para não haver coisa julgada nestes casos. Para outros doutrinadores, o vício causado pelas injustiças inconstitucionais atinge o plano da validade, uma vez que as decisões que padecem de vícios são nulas e não se sujeitam a prazos prescricionais ou decadenciais, o que retrataria uma nulidade absoluta.64 Há ainda os que analisam os vícios sob o plano da existência, afirmando que a sentença nestes casos é inexistente, não havendo coisa julgada material, pois estas são proferidas em processos em que falta condição da ação, ou seja, não o exercício do direito de ação, e sim mero direito de petição e, com isso, a sentença é considerada juridicamente inexistente.6566 Contudo, a discussão que remanesce sobre o tema é, se a sentença inconstitucional é inexistente ou nula. Como sentença inexistente entende-se aquela que, por exemplo, é proferida por pessoa que não é revestida de jurisdição. É preciso frisar, no entanto, que a sentença proferida contendo comandos impossíveis, não consistirá em ato jurídico inexistente, mas sim, seus efeitos não surtirão a eficácia pretendida.67 Dessa forma, uma decisão jurídica inconstitucional conduz para a nulidade da sentença e não para sua inexistência, já que somente se pode reputar inexistente a sentença que apresenta impossibilidade cognoscitiva, lógica ou jurídica. Outra discussão levantada é quanto ao efeito da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma sentença, ou seja, o efeito é ex tunc ou ex nunc? O efeito ex tunc é encontrado comumente nas sentenças de natureza condenatória e 64 Idem. 65 NEVES. Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit., p. 553. 66 BERALDO. Leonardo de Faria. Op. Cit., p. 195. 67 BERALDO. Leonardo de Faria. Op. Cit., p. 195-196. 42 constitutiva. De outra feita, as sentenças declaratórias têm efeito ex nunc, surtindo efeitos a partir do trânsito em julgado.68 Contudo, mesmo diante de possível impasse acerca do efeito a ser atribuído, não resta qualquer dúvida de que a sentença neste caso é declaratória, pois efetivamente declara a inconstitucionalidade da sentença anterior. Isto porque, neste caso, cumpre fazer analogia com as normas de controle constitucional realizada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI, ADC e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), onde seus efeitos são, via de regra, ex tunc. Assim, entende-se que em termos de efeito, a melhor aplicação nestes casos é a mesma dada às ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade e que possuem efeito ex tunc, sendo que por maioria de dois terços dos ministros do STF, a decisão poderá restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado, ou de outro momento que venha a ser fixado, conforme determinam os artigos 27 da Lei nº 9.868/99 (Lei que regula a ADI e ADC) e Art. 11 da Lei nº 9.882/99 (que trata da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).69 Comunga ainda do mesmo entendimento LENZA ao prelecionar70: “Pode ser afirmado, então, por regra, que a lei inconstitucional nunca produziu efeitos, até porque a sentença declaratória restitui os fatos ao status quo ante”. No entanto, em que pese os argumentos lançados por aqueles que defendem a relativização da coisa julgada em razão da injustiça inconstitucional, há muitas 68 BERALDO. Leonardo de Faria. Op. Cit.,
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