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A AMÉRICA LATINA NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO CONE SUL Paulo Roberto de Almeida RESUMO: Ensaio de caráter histórico e também analítico-prospectivo sobre os processos de desenvolvimento econômico e de inserção econômica internacional dos países latino-americanos do Cone Sul, com destaque para os ensaios de integração comercial, em escala sub-regional, ou plurilateral. Evidencia-se o relativo isolamento da região dos mercados e dos intercâmbios mais dinâmicos da economia mundial contemporânea, ao terem os países da América Latina privilegiado processos nacionais de desenvolvimento econômico e social, com pouca abertura aos fluxos e cadeias produtivas e comerciais englobando outras regiões, ainda que alguns países – a Aliança do Pacífico, por exemplo, formada por México, Colômbia, Peru e Chile – tenham buscado inserir-se nos novos exercícios de abertura econômica, de liberalização comercial e de integração produtiva, que se deslocam paulatinamente do Atlântico norte para a bacia do Pacífico. PALAVRAS-CHAVE: Economia mundial; integração econômica; comércio internacional; Cone Sul da América Latina. ABSTRACT: Historical and analytical essay on the economic development and the world economic integration of the Southern Cone Latin-American countries, with emphasis on the attempts at commercial integration, at sub-regional level, or in the plurilateral context. There is a clear pattern of a relative insulation of those countries from the most dynamic flows and markets of the world economy, as Latin American Southern Cone relayed mostly on national developmental processes, with very few opening towards those flows and value chains that encompasses other regions, albeit some countries – those of the Pacific Alliance, that is Mexico, Colombia, Peru and Chile – have endorsed those new exercises of economic opening and trade liberalization, moving preferentially from the north Atlantic toward the Pacific basin. KEYWORDS: World economy; economic integration; international trade; Latin American Southern Cone. Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 343 1. A SUCESSÃO DE PREEMINÊNCIAS NA ECONOMIA MUNDIAL E A AMÉRICA LATINA Existem duas maneiras de analisar a questão da sucessão de hegemonias políticas e econômicas no sistema internacional e a posição da América Latina nesse contexto: uma pelo lado histórico ou sistêmico, ou seja, pelas tendências estruturais de longo prazo, a outra pelos dados da conjuntura, que são naturalmente caracterizadas por flutuações na economia mundial e por dinamismos diferenciados entre as principais economias planetárias. A América Latina, a despeito de estar situada numa posição relativamente excêntrica em relação às grandes disputas hegemônicas mundiais, sempre sofreu a influência ou o impacto dos grandes conflitos internacionais, ainda que sua condição de região periférica estivesse sempre vinculada aos poderes do Atlântico norte e Europa ocidental, desde cinco séculos, e aos Estados Unidos da América, desde o final do século XIX e, com maior ênfase, a partir da Segunda Guerra Mundial. Na primeira vertente, a do contexto histórico, podemos falar de uma lenta sucessão de hegemonias econômicas e militares – e o lado estratégico sempre depende da dinâmica econômica dos países ou impérios – e de uma acomodação sucessiva entre centros mais dinâmicos e outros em declínio relativo. Por vezes, existem choques globais, como os ocorridos com as grandes guerras nacionais do período napoleônico, ou com os dois grandes conflitos globais do século XX que, de certa forma, já sinalizaram para o fim da grande dominação europeia sobre o mundo, depois de cinco séculos, aproximadamente, de predominância absoluta sobre vários continentes. Esses grandes conflitos são relativamente raros e, de toda forma, a emergência da arma atômica ao final do último grande conflito global já sinaliza para sua inviabilidade prática. Resta, portanto, analisar os dados relativos às tendências latentes à substituição de hegemonias pelo lento acumular de mudanças econômicas, geralmente tecnológicas, e também comerciais e financeiras. Foi assim que, desde a era dos grandes descobrimentos, nos séculos XV e XVI, tivemos vários protagonistas na vanguarda do comércio e das ocupações territoriais pela via militar: primeiro os dois reinos ibéricos, que partiram à conquista do mundo e de certa forma o dividiram entre si, no Tratado de Tordesilhas, em 1494; depois tivemos a A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 344 emergência da Holanda, como império marítimo e comercial-financeiro, nos séculos XVII e XVIII, com a introdução de novas tecnologias comerciais e financeiras, como os mercados de futuros, por exemplo, extremamente comuns em Amsterdã e Antuérpia, e as tecnologias bancárias, que fizeram da Holanda o país mais rico do mundo até o século XVIII; a Inglaterra veio em seguida, tendo aprendido com a Holanda várias dessas novas técnicas, que ela aperfeiçoou tremendamente, tornando-se senhora dos mares durante os dois séculos seguintes, inclusive liderando a revolução industrial que transformou o mundo a partir de novas tecnologias de produção em massa, pela introdução de novas formas de energia, não apenas a caldeira a vapor, mas, igualmente, a partir da segunda revolução industrial, motores elétricos e a diesel. Não podemos esquecer que até essa época, a China era a maior economia planetária, respondendo sozinha por cerca de um terço do PIB mundial, ainda que essencialmente voltada para si própria e isolada das grandes transformações que estavam alterando a relação de forças no mundo. Ao se eximir de participar do comércio internacional e ao não absorver as novas técnicas que estavam surgindo no Ocidente, a China se atrasou relativa e absolutamente, terminando por ser suplantada, dominada e até humilhada pelas potências ocidentais, que antes buscavam apenas comerciar com o Império do Meio. A China atravessou uma longa decadência de aproximadamente dois séculos, e aprofundou ainda seu retrocesso econômico e industrial com a dominação esquizofrênica do maoísmo delirante: no auge desse regime catastrófico, com milhões de mortos acumulados, o PIB da China não passava de 5% do PIB global. Hoje, depois da recuperação da China, na era Deng Xiaoping, ela já ultrapassou as duas segundas maiores economias, Japão e Alemanha, e caminha para aproximar-se do PIB dos Estados Unidos (mas evidentemente não o per capita). Como consequência de uma lenta evolução econômica desde o final da guerra civil, os EUA já tinham se consolidado como uma nova potência econômica, industrial e financeira ao final do século, o que foi imediatamente confirmado ao final da Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos financiaram os principais contendores aliados naquele conflito, inclusive a própria Alemanha, após sua humilhação e a imposição de reparações, no curso dos anos 1920. Ainda que, ao final da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética tenha emergido como a outra grande potência militar, Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 345 inclusive com a paridade atômica alcançada poucos anos depois, a hegemonia americana permaneceu praticamente indisputada pelo restante do século, condição confirmada pela grande ruptura nas relaçõesinternacionais ocorrida em suas duas décadas finais. O que ocorreu, no último terço do século XX, foi que o socialismo implodiu por força não da competição com o Ocidente, mas de suas próprias contradições internas: o mundo passou a viver, de novo, sob a hegemonia ocidental, doravante mais marcadamente americana. Há, portanto, uma evolução natural, por vezes acidental, no panorama das economias dominantes, e na hegemonia político-militar, sempre vinculada a fatores de dinamismo ou de declínio econômico relativo. No cenário mundial atual, de ausência de grandes conflitos globais no terreno militar, observa-se o crescimento da interdependência econômica e, sobre esta, poderíamos fazer uma paráfrase da famosa ironia de George Orwell na sua fábula Animal Farm (A Revolução dos Bichos, na edição brasileira): “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Pois bem, na interdependência ocorre algo similar: todos os países são interdependentes, mas alguns são mais interdependentes do que outros. Aqui podemos deixar o terreno histórico, para entrar na conjuntura e, dentro desta, analisar os efeitos da crise econômica americana, primeiro imobiliária, depois bancária e financeira, sobre o resto do mundo. A interdependência – e ela é evidente no terreno financeiro, ainda mais que no domínio industrial ou tecnológico –propaga mais facilmente choques adversos e os chamados efeitos-dominó. A crise financeira americana contaminou parceiros na Europa e em outros continentes, porque os mercados financeiros trabalham interligados, e muitos bancos ao redor do mundo, e mesmo certos fundos soberanos, haviam adquirido uma quantidade exagerada de derivativos financeiros americanos – as chamadas hipotecas subprime, transformadas em investimentos em carteira classificados como triple A. O mundo passou, então, a vivenciar os aftershocks da primeira crise de 2008. Mas, cabe registrar igualmente que várias das crises na Europa – Irlanda e Islândia, Grécia, Portugal, Espanha – não tiveram muito a ver com os derivativos ou movimentos especulativos de Wall Street, que certamente existiram, mas sim com o endividamento excessivo e gastos exagerados de vários governos de países cuja dinâmica econômica já não era, digamos assim, a mais dinâmica possível. Tais crises A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 346 europeias – bastante diferentes entre si – são típicas crises fiscais e de alto endividamento externo, muito conhecidas na América Latina em décadas passadas. Pois bem, que fenômenos diversos – como a inserção da China nas cadeias produtivas globais e a incorporação de enormes massas de trabalhadores nos circuitos da divisão internacional do trabalho, com seu deslocamento das zonas rurais ou do sistema socialista para a moderna economia de mercado – estejam alterando, novamente, a relação de forças no mundo, nisso não há nenhuma novidade. Que os EUA declinem, relativamente, em face de países com taxas elevadas de crescimento como a China e alguns outros, isso é absolutamente normal e esperado. Mas, cabe retornar novamente à história e registrar que, diferentemente dos velhos impérios do passado, que baseavam o seu poderio na dominação puramente militar, no controle de territórios e na extração de recursos, o império ocidental, ou americano, atual não está baseado nesses processos de força bruta e sim no império do livre comércio, dos investimentos, da inovação tecnológica e, sobretudo, da inteligência. Se impérios militares podem ser vencidos por uma coalizão de oponentes, ou por algum adversário mais poderoso, um império baseado na inteligência e na interdependência é relativamente indestrutível, podendo-se, então, prever um declínio muito relativo para os EUA, e para a própria Europa, na atual configuração da economia mundial. Eles são o império da sociedade do conhecimento, e por mais avanços industriais que possam ocorrer em outras regiões, eles sempre estarão na vanguarda das descobertas científicas e das inovações tecnológicas. Quanto à China, o que ela fez, nos últimos vinte ou trinta anos, é absolutamente extraordinário e insuscetível de ser reproduzido por qualquer outro país nos próximos séculos. Nunca houve, e se supõe que nunca haverá, nenhum país no mundo, que tenha crescido, continuamente, à razão de 8, 9, 10% ao ano, ou mais, durante mais de vinte anos. Isso nunca ocorreu na história da humanidade, e provavelmente não ocorrerá nunca mais. A razão desse crescimento extraordinário está em que, por um lado, a China tinha decaído muito, enormemente, sob o socialismo e sob as loucuras do maoísmo delirante e, portanto, tinha uma carga represada de não-crescimento que só podia manifestar-se em taxas aceleradas de crescimento uma vez que a sociedade fosse liberada de todo o peso de uma burocracia paralisante, com políticas totalmente esquizofrênicas. A outra razão é que Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 347 a China partiu de muito baixo, de uma renda per capita inferior a 1.00 dólar e, portanto, tinha muito espaço para crescer rapidamente durante algum tempo. Mas o que a China fez foi extraordinário: ela praticamente dobrou a renda per capita em menos de 20 anos e isso pelo menos duas vezes, ou seja, saiu de meros 800 dólares nos anos 1970, para cerca de 8 ou 9 mil dólares atualmente. Se ela continuasse crescendo no ritmo anterior, ela ultrapassaria o Brasil em 5 a 10 anos e chegaria à renda atual da OCDE em mais ou menos 20 a 25 anos. Ora, um ritmo desses é fisicamente (pelos recursos naturais e energia) e economicamente insustentável; então, é normal que sua taxa se reduza atualmente, mas registre-se que isso se dá no quadro da crise atual e dos modelos atuais de localização industrial e com as políticas econômicas e sociais da China, situação que pode não se confirmar indefinidamente. Então, é normal esperar que a China venha a arrefecer seu ritmo de crescimento, o que tem consequências para a América Latina e para o Brasil, obviamente, em termos de demanda e de preços de matérias primas, o que já se manifestou de maneira concreta nos anos recentes. Vários dos países da região já exibem a China como seu primeiro parceiro comercial – o Brasil desde 2009 –, ainda que não tecnológico ou financeiro, depois de mais de um século de preeminência econômica dos Estados Unidos. 2. O MEGABLOCO EM NEGOCIAÇÃO PELOS EUA E PELA EUROPA E SEUS POSSÍVEIS EFEITOS Em face da conclusão de um grande acordo comercial no âmbito do Pacífico, Estados Unidos e União Europeia ensaiam igualmente algo do gênero, o que não deixa de ter consequências para a América Latina igualmente, região na qual alguns países – em especial os da Aliança do Pacífico – já se preparam para essa nova conformação das relações econômicas planetárias. O Cone Sul, relativamente inerme nos últimos anos, pode voltar-se agora a uma aspiração antiga, a da conclusão de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Trata-se, contudo, de um acordo de certa forma irrelevante, em face da retomada, e eventual finalização, de negociações para a assinatura de um acordo de livre comércio entre as duas maiores economias do planeta, a União Europeia, de um lado, e os Estados Unidos, de outro. Cada um tem, aproximadamente, cerca de 17 trilhões de dólares de PIB global, o que daria a esse novo bloco, tomado A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone SulRevista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 348 conjuntamente, a metade da riqueza mundial e praticamente igual proporção dos fluxos comerciais, das trocas de tecnologia e possivelmente de fluxos financeiros. Seria uma super-zona de livre comércio, com o potencial, inclusive, de “arrastar” o Canadá e o México, já sócios dos EUA no Nafta, e, do outro lado, possivelmente, outros países associados, por diferentes tipos de acordos, à UE ou aos próprios Estados Unidos. Se realmente levada a termo, essa antiga ideia de promotores da liberalização comercial dos dois lados do Atlântico tem o potencial de produzir uma pequena revolução na economia mundial. Sua importância, na verdade, é bem maior do que a própria dimensão dos fluxos comerciais que seriam criados a partir desse acordo, de escopo reconhecidamente limitado, uma vez que as duas grandes economias já desfrutam de amplo grau de abertura e de imbricação recíprocas, independentemente da conclusão bem sucedida – isto é, sem muitas exceções setoriais – de um acordo desse tipo. Afinal de contas, ambas economias regionais já estão vinculadas entre si por laços históricos de comércio, investimentos, licenciamentos tecnológicos, joint-ventures industriais, seja no âmbito bilateral, seja no contexto da OCDE, além da intensa troca de capital humano que se estabelece continuamente nas mais diferentes esferas da cooperação científica e educacional. Não é preciso falar, obviamente, das barreiras notoriamente limitadas que existem para os mais diversos intercâmbios que existem, desde mais de três séculos, entre as duas regiões, tanto sob a forma de poucos obstáculos substantivos às trocas privadas e oficiais, como na modalidade tarifária, com alíquotas bastante reduzidas praticadas na maior parte dos casos. Esses dois grandes “animais hegemônicos” pertencem ao mesmo arco civilizatório e se completam amplamente em termos de economias de mercado e de valores democráticos e de direitos humanos. Em outros termos, existem poucos entraves ao intenso fluxo de bens, de serviços, de capitais, de tecnologia, e de pessoas entre essas duas grandes regiões econômicas do mundo, a da UE e a da América do Norte, inclusive porque a segunda foi construída, historicamente, pela primeira, até que o dinamismo da segunda, expressa em suas maiores taxas de crescimento da produtividade, veio a colocar em segundo plano o peso da primeira, a fonte original da ordem econômica global, tal como a conhecemos nos últimos cinco séculos. Mas, se o impacto econômico efetivo desse tipo de acordo é pequeno, por que destacar com tanta ênfase o que não parece deixar de ser, até aqui, uma Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 349 mera possibilidade teórica, tantas vezes anunciada e tantas vezes frustrada em sua implementação prática? Existem muitas razões, e elas têm a ver com diferentes aspectos que são discutidos pelos especialistas e que podemos agora analisar seletivamente para tentar visualizar o possível mundo do futuro de médio ou de longo prazo. A importância de um acordo entre dois gigantes do comércio internacional – os quais, justamente, estão no centro do fenômeno da regionalização, um pelo lado do livre comércio, o outro pela integração profunda – situa-se precisamente no fato concreto de que ambos mobilizarão proporção relevante, atualmente determinante, do PIB global e do comércio internacional, mesmo se o acordo, em si, não agregará muito aos fluxos que já vem sendo efetivados “naturalmente” entre os dois lados do Atlântico. Se e quando efetivado tal acordo – e as apostas contrárias também são poderosas –, ele terá um impacto profundo em termos institucionais (ou seja, sobre o sistema internacional de comércio e suas rodadas de negociação) e em relação a terceiros mercados, para dentro e para fora dos dois blocos eventualmente unidos pelo livre comércio. Mais ainda, um acordo desse tipo parece sintetizar todos os bons efeitos e todos os defeitos, todos os méritos e muitos vícios do “minilateralismo” comercial. Cabe destacar, em primeiro lugar, que o que se discute entre a União Europeia e os Estados Unidos não é nenhuma forma mais elaborada de integração, e sim um acordo de livre comércio, pura e simplesmente, embora bem mais abrangente e complexo do que aqueles usualmente registrados na OMC, provavelmente concebido, aos olhos e na concepção dos americanos, no estilo e no formato do Nafta (cujos principais vetores se encontram igualmente no acordo da zona do Pacífico). A retomada dessas negociações, depois de muitos anos de torpor burocrático, apresenta evidências de novos elementos, de caráter político, que não estavam presentes quando se cogitou, originalmente, de um tipo qualquer de desarme tarifário entre os mesmos personagens (a UE contando, então, com um número bem mais reduzido de membros). A resposta está, provavelmente, no fator China, mas convém, antes de qualquer outra consideração, ressaltar o impacto positivo de um real arranjo de liberalização que se faça entre a UE e os Estados Unidos. De fato, a primeira consequência mais geral de um novo acordo desse tipo é, essencialmente, um efeito demonstração, ou seja, o exemplo positivo dado pelo engajamento de dois grandes parceiros, na verdade os maiores, do sistema multilateral de A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 350 comércio, no sentido de confirmar a vocação liberalizadora que esteve presente no momento de criação do Gatt e que se manteve mais ou menos constante nas primeiras cinco ou seis rodadas de negociações comerciais multilaterais. Infelizmente, esse impulso começou a se perder a partir dos anos 1970, quando, tanto em função do menor peso das tarifas nos processos de liberalização – já que elas tinham sido consideravelmente reduzidas desde o final dos anos 1940, adquirindo maior importância, então, os temas sistêmicos, ou de caráter regulatório – quanto em virtude da perda de competitividade de velhas indústrias labor-intensive dos países desenvolvidos em face dos chamados “novos países industrializados”, alguns periféricos da Ásia e da América Latina (Coreia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Brasil, México, etc.) que passaram a competir agressivamente em grandes nichos de mercados nos quais possuíam vantagens comparativas (calçados, têxteis, manufaturas leves, etc.). Acresce a isto a crise fiscal e de “estagflação” dos países avançados, mais ou menos coincidente com a primeira e a segunda crise das dívidas externas dos países em desenvolvimento, que redundou no renascimento de instintos protecionistas no seio mesmo do sistema, entre aqueles que tinham garantido, até então, o sucesso das rodadas de liberalização de comércio. O mundo atravessou, desde essa época, fases de maior ou menor fechamento comercial, ao mesmo tempo em que ensaiava a revitalização dos velhos princípios multilateralistas que haviam guiado os negociadores em Bretton Woods, e que tinham resultado na criação de uma primeira organização mundial de comércio, inscrita na Carta de Havana (março de 1948), mas que infelizmente não foi implementada na prática. Em todo caso, o processo foi retomado na segunda fase da rodada Uruguai (entre 1991 e 1992), quando se decidiu relançar a ideia de uma organização de pleno direito – uma vez que o Gatt era um simples acordo entre partes contratantes, dotado de um secretariado mínimo, esquema que tinha permanecido “provisoriamente” em vigordurante meio século – o que foi concretizado em Marrakesh (1993), com a assinatura da Ata Final da Rodada Uruguai, da qual emergiu a OMC (1995). Mas a institucionalização da OMC também foi contemporânea da maior expansão já vista dos acordos regionais preferenciais, um pouco em todos os continentes. O minilateralismo parecia querer ganhar preeminência sobre o multilateralismo e, de fato, nas estratégias comerciais das grandes, como nas das pequenas e médias potências da Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 351 economia mundial, ganhava força a ideia de que a solução para os problemas de acesso a mercados e de compatibilização de regras não tarifárias não estava mais no âmbito do Gatt, ou da OMC (dependendo do tipo de acordo), mas na constituição de blocos restritos, ditos de regionalismo aberto, mas potencialmente discriminatórios. O anúncio, portanto, de que Estados Unidos e UE voltam a discutir a criação de uma vasta zona de livre comércio recíproco – a maior do mundo, talvez só superável quando os países membros da Asean e todos os demais parceiros da bacia da Ásia Pacífico, incluindo a China, fizerem a sua, em algum momento da próxima década – é auspiciosa, no sentido em que essa iniciativa pode representar um novo impulso a uma nova fase de negociações comerciais multilaterais. Supõe-se que, uma vez concretizada a nova superaliança comercial, seus dispositivos liberalizadores representem inclusive um avanço sobre o estado atual das negociações comerciais, em termos de desmantelamento de barreiras e do estabelecimento de regras uniformes para o mútuo reconhecimento de padrões industriais e de diversas outras normas que podem atuar (deliberadamente, segundo os casos) como medidas protecionistas disfarçadas. As respectivas barreiras tarifárias, em si, são pouco relevantes, representando uma média de 3% para os produtos manufaturados, mas como o comércio inter, intraindustrial e também intrafirmas, entre os dois lados, é especialmente intenso, mesmo uma pequena diminuição dos custos pode significar, no plano microeconômico, um incremento significativo para as empresas engajadas no intercâmbio, estimulando inclusive novos investimentos diretos estrangeiros, das duas regiões e de terceiras partes. Subsistem zonas de protecionismo setorial, sobretudo na agricultura – e aqui é provável que ambos lados conservem não apenas entraves protecionistas, como subsídios por vezes abusivos –, bem como políticas de sustentação de setores ditos estratégicos (como aviação civil, por exemplo) que poderiam ser objeto de mais alguma unificação de critérios nas medidas de apoio doméstico ou comunitário. Haveria, do lado americano, bem menos resistências políticas e sociais, no Congresso ou dos sindicatos, a um acordo com os europeus, uma vez que não estariam presentes as mesmas preocupações com um suposto “dumping social” mexicano que quase comprometeram a aprovação do Nafta, exigindo a negociação de acordos paralelos para lograr a superação de paranoias setoriais e a aprovação congressual. Em resumo, A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 352 tanto no plano teórico – como a efetivação de economias de escala e os estímulos ao crescimento econômico, do emprego e da renda – quanto no plano prático – tendo em vista a uniformidade relativa de padrões produtivos e financeiros, já obtida no âmbito da OCDE –, diferentes elementos concorrem para reforçar os traços positivos que esse tipo de integração comercial entre as duas maiores economias planetárias pode representar não apenas para as partes no acordo, mas para outros parceiros externos e, sobretudo, para o sistema multilateral de comércio. Agora, quais seriam os efeitos disso para o Brasil e para a América Latina, de modo geral? Acordos regionais de comércio, como já ressaltado tantas vezes por economistas liberais, são potencialmente discriminatórios contra terceiras partes, e podem reforçar as tendências ao desvio de comércio e de investimentos, mais do que ao crescimento global desses fluxos. No caso da UE e dos Estados Unidos, porém, essas ameaças são relativamente insignificantes, tendo em vista as barreiras tarifárias bastante reduzidas efetivamente existentes – exceto o setor agrícola, como é amplamente conhecido – e o amplo grau de uniformização de práticas comerciais e contábeis já alcançado dentro da OCDE. Mas não resta dúvida de que a retomada de negociações para um eventual acordo entre os dois gigantes se dá numa conjuntura de crise e de recessão dos dois lados do Atlântico, com reações setoriais de cunho protecionista sendo agitadas nos meios sindicais e políticos, em especial como resultado dos temores despertados pela destruição de empregos industriais representada pela competição manufatureira da China. A China, de fato, parece constituir o personagem não revelado dos cálculos respectivos de europeus e americanos quanto à manutenção de certa margem de preferências comerciais recíprocas, em face da concorrência julgada predatória dos produtos de baixo custo de origem asiática. Registre-se, porém, que grande parte da oferta manufatureira chinesa se faz ao abrigo de marcas registradas americanas e europeias, já que representam o resultado da alocação “ótima” de investimentos diretos que fizeram suas multinacionais, visando aproveitar as vantagens comparativas de mão- de-obra e menores exigências ambientais ou outras que representa uma produção a partir das plataformas de exportação da China. É bem provável, contudo, que os dirigentes econômicos e políticos dos dois lados tenham sido estimulados por essa reação defensiva Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 353 contra novas “invasões chinesas” ao considerarem a decisão de retomar negociações para um acordo de livre comércio. Tendo em vista, por outro lado, o amplo rol de acordos bilaterais, plurilaterais ou simplesmente minilateralistas que cada uma das duas grandes economias mantém com parceiros selecionados de suas respectivas preferências políticas, é possível que o viés discriminatório contra terceiros seja reforçado, caso esse super-acordo venha a ser concluído num futuro próximo. A UE é, de longe, o bloco que mais acordos de associação mantém com suas áreas de influência: países do Mediterrâneo, antigas colônias europeias, antigos países socialistas em transição para a economia de mercado, com destaque para os já candidatos à adesão ao bloco comunitário (entre eles, mas não exclusivamente, a Turquia). Não há dúvida, assim, que países dispondo de acordos de livre comércio com os Estados Unidos ou de associação com a UE são potenciais beneficiários da formação da mais vasta zona de livre comércio que poderia passar a existir dos dois lados do Atlântico norte. Não é improvável, num cenário como esse, que os países da orla do Pacífico, e até do Índico e da Oceania, acelerem, em consequência, suas próprias negociações – algumas, no seguimento do TPP, já em curso, como aquelas envolvendo a Asean e as grandes nações industriais da Ásia Pacífico: China, Japão, Coreia do Sul e Taiwan – com o objetivo de também estabelecer uma vasta área de preferências tarifárias, podendo evoluir, em médio prazo, para um acordo de livre comércio, talvez menos ambicioso do que o de europeus e americanos (pela amplitude setorial), mas provavelmente tão importante quanto, em termos de fluxos totaisde comércio, investimentos e integração tecnológica e produtiva. Não foi por outra razão que alguns países latino-americanos – Chile, Peru, Colômbia e México – decidiram consolidar antigos laços de liberalização comercial parcial (no âmbito da Aladi) nesse novo esquema que leva o significativo nome de “Aliança do Pacífico”, provavelmente menos visando reforçar o comércio recíproco (que é limitado), mas sobretudo com o objetivo de constituir uma frente comum para aproveitar as melhores oportunidades que possam surgir do lado dos vários esquemas existentes na bacia do Pacífico (TPP, Apec, Asean e diversos outros de geometria e de escopo bastante variáveis). A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 354 Existiriam aí motivos de preocupação para países visivelmente excluídos desses processos de liberalização comercial, que podem levar a acordos de integração regional, entre eles, em especial, os do Mercosul, bloco que parece experimentar uma fase de retrocessos econômicos e de certa recaída na retórica integracionista de cunho político com efeitos totalmente inócuos para a integração real de suas economias. Não se pode, entretanto, culpar aqueles protagonistas principais da bacia do Pacífico e da franja do Atlântico norte de discriminação deliberada contra os latino-americanos que ficaram à margem das principais iniciativas liberalizadoras e integracionistas: a culpa recai sobre eles mesmos. Com efeito, foram os líderes da Argentina, do Brasil e da Venezuela que decidiram sabotar deliberadamente as negociações do projeto americano da Alca, terminando por implodi-la em 2005, a Venezuela por motivações claramente políticas contra o neoliberalismo e contra o princípio de livres mercados. Os dois grandes do Mercosul apenas mantinham a ilusão de que a UE desejava efetivamente um acordo de associação bi-regional, à margem e independentemente da “ameaça” da Alca para seus interesses econômicos junto ao bloco do Mercosul: uma vez afastada essa possibilidade, as negociações passaram a se arrastar penosamente, sem perspectivas de reais compromissos de liberalização setorial (na área agrícola, para os europeus, em setores industriais, no caso dos países do Mercosul). Não se pode, assim, afirmar que europeus, americanos ou asiáticos estejam discriminando deliberadamente contra africanos ou latino-americanos (neste caso, bem mais “contra” os membros do Mercosul e os “bolivarianos”), uma vez que suas atuais iniciativas de esquemas de liberalização comercial e, possivelmente, de integração, não excluem outros acordos de livre comércio que esses “blocos”, ou certos países individualmente, possam contrair com quaisquer outros parceiros em outras regiões. Neste caso, são as próprias políticas comerciais introvertidas e suas políticas industriais protecionistas que contribuem para auto-excluir alguns dos latino-americanos do vasto movimento liberalizador em curso em outras regiões: afinal de contas, não é por causa do aparente fracasso da Rodada Doha que Brasil e Argentina decidiram retroceder no caminho da integração com o mundo, e sim por decisão de suas próprias lideranças políticas – muitas vezes por pressão de industriais acostumados à proteção estatal – que Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 355 esses países adotam medidas comerciais que os remetem aos cenários de intervencionismo e de protecionismo típicos dos anos de substituição de importações. 3. A SITUAÇÃO DO MERCOSUL E O FUTURO ECONÔMICO E POLÍTICO DO CONE SUL A base de todo e qualquer empreendimento integracionista é a existência de uma vontade comum aos participantes, o mais convergente possível, no sentido de adotar as medidas necessárias, no plano interno, de maneira a viabilizar os requerimentos do processo de desmantelamento de barreiras à formação de um espaço econômico comum. Esse foi, por exemplo, o quadro político que presidiu à primeira fase da integração europeia, a partir da proposta de uma comunidade setorial afetando a produção e comércio do carvão e do aço (1950-1951), assim como propósitos semelhantes, embora simplesmente livre-cambistas, estiveram em atuação na América do Norte, desde os primeiros ensaios de liberalização comercial entre os Estados Unidos e Canadá (1965 e 1988) até a aprovação do Nafta, no início dos anos 1990. Se, em algum momento, essa comunhão de propósitos existiu entre os membros do Mercosul – e ela foi bem mais evidente na dramática conjuntura de saída dos regimes autoritários militares, em meados dos anos 1980 – e se manifestou nos impulsos sucessivos que levaram do PICE (1986), ao Tratado de Integração Bilateral Brasil- Argentina (1988), logo depois à Ata de Buenos Aires (1990, que decidiu acelerar o processo) e finalmente ao tratado quadrilateral de Assunção (TA-1991), que criou o Mercosul em sua forma atual, essa vontade há muito parece ter deixado de existir. Não é difícil de se chegar a esta conclusão ao se constatar, no decurso da segunda década do bloco, a adoção progressivamente crescente, por parte dos dois membros mais importantes, de medidas unilaterais de caráter exclusivamente nacional que passaram a afetar o quadro regional no que ele tinha de mais relevante: sua conformação jurídica enquanto personalidade de direito internacional sob a forma de uma união aduaneira. Não é difícil de imaginar que o ingresso da Venezuela no bloco, em condições particularmente bizarras, venha a contribuir para esse quadro errático no processo decisório e de ambiguidades na implementação das medidas institucionais e de funcionamento do Mercosul. Na prática, finalmente, a Venezuela nunca ingressou no Mercosul: incapaz de A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 356 cumprir com suas simples regras de liberalização, o país petrolífero encontra-se afundando em sua própria crise econômica, integralmente fabricada internamente. Em qualquer hipótese, não é dispensável lembrar que desde o seu início bilateral, o Mercosul pretendeu seguir um modelo mais sofisticado do que os então existentes na região – limitados a simples acordos preferenciais ou esquemas de livre comércio – para aproximar-se de um padrão europeu de integração, adotando, desde o início, o objetivo final de um mercado comum. Este era o objetivo declarado, aliás estabelecido formalmente no TA, devendo ser alcançado, otimistamente, em 1/01/1995. Não é inútil recordar, tampouco, que a partir dessa data, o Mercosul foi declarado “personalidade de direito internacional”, querendo isso presumivelmente significar que o bloco estava pronto a negociar, em seu próprio nome, acordos comerciais com terceiras partes e outros compromissos no plano multilateral. De fato, o Mercosul engajou-se em negociações coletivas – tanto no plano regional, com os demais membros da Aladi, como no plano hemisférico, em especial no contexto do projeto americano da Alca; mas também no inter-regional, entre o Mercosul e a UE; e, mais importante, no contexto da rodada de negociações comerciais multilaterais da OMC. Em todas essas ocasiões, com muito poucas exceções, a coordenação interna ao Mercosul parece ter sido mais complicada do que as negociações com os demais parceiros, stricto sensu. Isso se deveu – e se deve, ainda agora, e talvez continue a se dar, no futuro – a que os interesses nacionais,e as posições negociadoras dos membros do Mercosul, são muito diferenciadas entre si, em função de posicionamentos distintos quanto às opções de políticas econômicas de cada um deles, o que apenas reflete tipos de inserção e de orientação em políticas macroeconômicas e setoriais (especialmente comerciais e industriais) também muito diversos entre si. Dentre as explicações levantadas para tratar desta questão, as “assimetrias estruturais” têm sido aventadas como a causa principal dessa diferenciação de objetivos, o que não parece constituir hipótese razoável para a origem das dificuldades do bloco, como se explicitará mais adiante. A disparidade de políticas econômicas nacionais parece ser o elemento central que explica o precário estabelecimento dos pilares essenciais do empreendimento integracionista em sua segunda década de existência. É ela que fundamenta a dúvida de Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 357 saber se, no futuro de médio prazo, o Mercosul conseguirá, ou não, cumprir os requisitos básicos de seu projeto constitutivo: o acabamento de sua união aduaneira, com vistas a avançar para o prometido mercado comum. A incapacidade dos países em completar o próprio programa estabelecido na origem, para o Mercosul, constitui, atualmente, o elemento central de seu desenvolvimento no futuro de curto e médio prazo, ou seja, a partir da terceira década de sua existência. Como seria possível interpretar, assim, as vias prováveis de evolução futura do Mercosul, em face dos problemas remanescentes e das tendências sistêmicas que se observam atualmente no bloco, em especial, no que respeita o comportamento dos seus protagonistas mais importantes? Duas linhas de explicações são aqui seguidas: quanto aos procedimentos, e quanto à substância do processo de integração. No que respeita, em primeiro lugar, aos procedimentos, e admitindo-se a premissa estabelecida ao início – que condiciona a evolução do bloco às orientações políticas dos seus maiores sócios, processo aliás vinculado ao alto grau de personalização do processo decisório, típico do presidencialismo altamente instável que vige na região – pode-se vincular o futuro do Mercosul ao que determinarem os presidentes e os mais altos responsáveis econômicos do Brasil, da Argentina e, doravante, da Venezuela. No que tange, em segundo lugar, à substância do processo, cabe enfatizar que, a despeito de toda a retórica política em torno do Mercosul e das iniciativas adotadas pelos governos dos Estados partes no terreno político (e em suas derivações sociais, culturais, educacionais e outras), a essência do processo só pode ser econômica e comercial: enquanto não se avançar nesse terreno, é propriamente um engodo falar-se do reforço ou da ampliação da integração. Se estas linhas explicativas guardam consistência com a realidade registrada em sua segunda década de existência, cabe reconhecer que o Mercosul desviou-se significativamente de seus objetivos originais, a ponto de raramente a agenda de reuniões na fase recente ocupar-se do cumprimento das metas estabelecidas no artigo 1 o . do TA. O que deveria ser o ponto de partida da integração – o livre comércio pleno e o correto funcionamento da união aduaneira – parecer ter se convertido num objetivo distante, quase ausente dos discursos políticos da atualidade. A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 358 Resta saber, portanto, se o futuro imediato (e o mediato também) confirmará a tendência ao esvaziamento do processo econômico real – e sua conversão em um simples foro de questões gerais lidando com a integração superficial de países contíguos –, ou se o Mercosul conseguirá retornar, a partir de sua terceira década, a seu projeto original. Para isso cabe considerar o que ele foi, até aqui, e quais são os problemas e desafios que deveriam fazer parte de uma agenda real de integração: um exercício retrospectivo, focando as políticas desenvolvidas nos últimos anos, pode ajudar a antecipar o que pode – e o que deveria – vir pela frente. Não é difícil identificar as grandes fases de desenvolvimento do Mercosul: todos reconhecem que, a despeito dos avanços realizados nos primeiros dez anos, os impulsos do Mercosul em direção de uma maior liberalização comercial e para a constituição de um espaço econômico unificado no Cone Sul foram paralisados a partir de 1999, e até retrocederam nos anos seguintes. A união aduaneira sequer consolidou-se sob uma autoridade comum, dotada de aplicação uniforme de suas regras, havendo a coexistência de enorme volume de exclusões à Tarifa Externa Comum. As causas principais foram a instabilidade econômica e as políticas econômicas divergentes, mas também um reduzido compromisso político com a realização das reformas necessárias ao alinhamento da agenda de trabalho do Mercosul com os objetivos do TA. O quadro analítico seguinte tenta racionalizar esse processo complexo, objeto dos argumentos nos parágrafos seguintes. Mercosul: desenvolvimentos registrados nas diferentes fases 1986-1989 1990-1994 1995-1999 1999-2002 2003-2015 Início do processo Brasil-Argentina: gradual, flexível, com protocolos setoriais, sob expressa e direta administração de ambos governos; mercado comum no longo prazo; Aceleração do processo por meio do livre comércio e ampla abertura, como bases do mercado comum; criação de comércio; maior inserção mundial; Crises econômicas externas acentuam dificuldades internas; reversão parcial na liberalização comercial e na abertura econômica; Crise argentina: reversão da abertura ao mundo e da liberalização recíproca; abandono prático da consolidação aduaneira; paralisia institucional; Pouco ou nenhum avanço comercial; fim da antiga ênfase econômica; novo ativismo político e social; maior extensão do esquema a novos membros, de tipo superficial. Concepção e elaboração: Paulo Roberto de Almeida (2016) A consequência mais evidente derivada da ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina – no caso, os já mencionados Lula e Kirchner – foi representada Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 359 pelo nítido afastamento desses países (e, no mesmo movimento, do Mercosul) dos objetivos econômicos basilares do TA, em especial a liberalização comercial recíproca e a continuidade da abertura econômica no plano global. Em seu lugar, reingressaram na agenda velhas receitas substitutivas e industrializantes, sob forte dirigismo estatal e protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não apenas um desvio em relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas igualmente um retorno de quase meio século na história econômica desses países. Esse movimento regressista foi bem mais forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no Brasil, que não atravessou uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo país platino no início do novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade das novas lideranças do Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida liderança política no continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro formal do Mercosul – o que se observou foi uma espécie de fuga para a frente, em direção de objetivos sociais e políticos não concebidos originalmentecomo partes essenciais do processo de integração: tratou-se nitidamente de um efeito substituição. Os governos dos países membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul. Readaptando velhas receitas de extração keynesiana, numa versão trabalhada outrora pela Cepal, os países membros começaram a adotar, em diferentes medidas, prescrições macroeconômicas fortemente embasadas nos modelos de industrialização à la List; a ênfase tornou-se essencialmente nacional, ou até introvertida, continuando a adesão retórica a esquemas integracionistas mas num formato o mais superficial possível. A despeito de críticas acadêmicas quanto às insuficiências institucionais ou a um alegado déficit democrático no Mercosul – ou talvez, por isso mesmo –, não ocorreu nenhum esforço para caminhar-se na direção de um tipo “comunitário” de integração, modelado segundo a experiência europeia; o sistema intergovenamental, portanto, continuou como A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 360 antes, mesmo se novas “instituições”, de caráter puramente acessório, foram sendo criadas para dar a impressão de “progressos” na integração. No plano dos movimentos hemisféricos e regionais, algumas tendências se revelaram ou se desenvolveram no novo período: o Chile interrompeu seu movimento de aproximação econômica ao Mercosul e deu início às negociações para o estabelecimento de um acordo de livre comércio com EUA, no que foi seguido por outros países andinos, à exceção dos “bolivarianos”; a Venezuela explicitou sua demanda de adesão ao Mercosul, com o apoio de todas as lideranças executivas, mas sob intenso escrutínio dos movimentos de oposição no Brasil e no Paraguai, que questionavam as credenciais democráticas do candidato, quando o relevante, na verdade, seria a incorporação plena de todas as normas de política comercial; o Brasil tomou diferentes iniciativas para afastar os EUA da região, propondo instituições exclusivamente sul-americanas (como a Comunidade Sul-Americana de Nações, oportunamente transformada em União, Unasul, segundo proposta e ativismo do coronel Hugo Chávez). No contexto específico do Mercosul, o governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos órgãos – Instituto Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção social”, etc. – mesmo quando os objetivos primários do TA, que são o livre comércio e a união aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto pelas crescentes restrições adotadas no plano interno, quanto pelo protecionismo ampliado no plano externo. A Argentina foi bem mais enfática, e explícita, nos mecanismos defensivos do seu mercado interno, sob o olhar complacente do governo brasileiro, mesmo contra os interesses de seus exportadores em geral, e dos industriais em particular. A despeito de todas as políticas defensivas da Argentina, e do fato que elas foram e continuam sendo ilegais e abusivas, os fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem ainda o grosso do comércio intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os exportadores do Brasil, cujos superávits com o vizinho permanecem significativos. A acumulação de saldos comerciais e a volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não impediram que a parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul diminuísse em relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial no caso do Brasil. A Argentina se mantém ainda na condição que já foi várias vezes caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça em diminuir, mas Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 361 recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no limite antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva, não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo). Mas é também um fato que a parte do Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em dez pontos percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação do bloco, tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos tenham voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles passaram a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro. Isto significa que o Mercosul continua a ser significativo no plano microeconômico – ou seja, representa um importante mercado para empresas individuais – mas já pode não ser macroeconomicamente relevante para o Brasil. Para assegurar, ainda assim, sua pretensão à liderança dentro do bloco, e na região como um todo, bem como para apoiar projetos específicos ou diminuir reclamações de parceiros e resistências a suas iniciativas políticas, o Brasil começou a desenvolver o que foi chamado de “diplomacia da generosidade”. Esta foi feita de diferentes elementos não recíprocos no relacionamento regional, a começar por um duvidoso programa de “substituição de importações”, que consistiria na importação voluntária, por parte dos empresários brasileiros, de produtos dos países vizinhos, mesmo que eles “fossem mais caros”, mas seria para “ajudar países mais ‘pobres’ do que o Brasil”, segundo os argumentos do presidente Lula. Como os empresários privados não se entusiasmaram muito pela ideia – de fato, inconsistente, no plano da lógica, e economicamente prejudicial a seus interesses de capitalistas – o ministério das Relações Exteriores implementou ele mesmo um programa destinado a ajudar os vizinhos a exportar para o Brasil, numa notável demonstração de “promoção comercial” ao revés. Todavia, a iniciativa mais consistente com a pretensão à liderança regional por parte do governo Lula – e supostamente para sanar diferenças estruturais entre os países membros, que estariam, ao que parece, dificultando a integração – consistiu no desenho e A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 362 implementação de um programa de correção das “assimetrias estruturais” existentes no Mercosul, criado e financiado à razão de 70% de seus montantes pelo próprio Brasil. Justamente por ser grande, extremamente bem dotado de recursos e industrialmente mais avançado, o Brasil passou a ser visto, pelos seus parceiros do bloco, como o “fazedor de normas”, o principal beneficiado e, segundo alguns, o “aproveitador”, de todo o processo do Mercosul. Independentemente do perfil econômico de médio e de longo prazo do Mercosul, e das características políticas e institucionais que ele poderia assumir, em decorrência das ações futuras dos governos dos Estadospartes, um aspecto parece seguro, qualquer que seja seu itinerário no horizonte previsível: o Mercosul não corre o risco de desaparecer pela vontade deliberada de seus membros. Nenhum dos líderes políticos, atuais ou futuros, parece pronto a descartá-lo como projeto, ou estaria disposto a assumir o ônus de decretar seu fracasso e inadequação, apenas por ineficiência relativa de seus mecanismos ou devido ao aumento das irracionalidades econômicas acumuladas nos últimos anos. Uma nova liderança política na Argentina pode, eventualmente, mudar significativamente o curso (atualmente estagnado) do processo de construção de uma verdadeira zona de livre comércio e de união aduaneira mais ou menos completa no Cone Sul, mas tal perspectiva precisa ainda ser confirmada na prática. O fato é que, considerando-se os experimentos de integração respectivos da Ásia e da América Latina em perspectiva comparada, a conclusão a que se poderia chegar, com base unicamente nos volumes envolvidos e na intensidade de comércio registrado, bem como em sua composição, é que os esquemas latino-americanos carecem de densidade e de profundidade, quando confrontados aos asiáticos. Não se trata exatamente de esquemas diferentes em sua estrutura e características – uma vez que em ambas as regiões predominam os acordos puramente preferenciais, com uma ou outra manifestação de livre comércio – mas de disposição efetiva para um real processo de liberalização comercial e de integração com o mundo, ou seja, o fenômeno que já foi chamado de regionalismo aberto. Na América Latina, em geral, e na América do Sul em especial, as únicas manifestações de regionalismo aberto são representadas por aqueles acordos que unem os países, individualmente, de um lado, e os Estados Unidos, de outro, e cujas disposições, Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 363 até por exigência dos EUA, cobrem uma vasta gama de áreas (incluindo serviços, investimentos e propriedade intelectual) e tendem a admitir menor número de exceções. Nos casos exclusivamente latino-americanos, as preferências são mínimas, muitas vezes fixas, as exceções são muitas, e a abrangência desses acordos costuma limitar-se ao comércio de bens. Em consequência, o comércio global dos países asiáticos tende a se expandir exponencialmente – inclusive roubando parcelas dos intercâmbios globais aos latino- americanos – com ampla cobertura de setores e intensa integração de cadeias produtivas, pela via dos próprios investidores diretos e de suas decisões microeconômicas. A América Latina, em contrapartida, parece se contentar com modestos acordos preferenciais e abertura muito limitada aos investimentos e aos fluxos de livre comércio, que dependem sempre do dirigismo macroeconômico de seus governos. Na região, o único país a libertar-se dessas características introvertidas é o Chile, que possui mais de 90% de seu comércio ao abrigo de acordos de livre comércio, tendo assegurado – por meio da assinatura de dezenas desses acordos com os mais importantes países do mundo – o acesso consolidado aos mercados de países que devem representar cerca de 80% do PIB mundial; o Peru, o México e a Colômbia pretendem seguir os seus passos, mediante negociações trans-Pacíficas. Em contrapartida, Brasil e Argentina são os países da região que menos comércio exibem ao abrigo de acordos preferenciais, com a possível exceção dos EUA (mas neste caso em virtude de seu imenso mercado interno, o que diminui seu coeficiente de abertura externa). Estas evidências – absolutamente claras quanto a suas manifestações concretas, sob a forma de crescimento do PIB e da renda per capita, numa e na outra região – poderiam estimular Brasil e Argentina – ou uma Venezuela “pós-socialista” – a empreenderem novas rodadas de liberalização comercial, tanto recíprocas, quanto no “bloco” da América do Sul e externamente, como ocorreu ao início dos anos 1990, quando da criação do Mercosul. É, no entanto, pouco provável que isto ocorra, tendo em vista as políticas econômicas em curso nos dois países desde o início do milênio e suas reações ao que vem sendo apontado como “concorrência predatória de produtos estrangeiros”, em face do que as respostas tem sido mais protecionismo e tendências à introversão. No final de 2011, se saudou a constituição da Comunidade dos Estados da A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 364 América Latina e do Caribe – Celac – cujos objetivos primordiais parecem ser mais os de realizar reuniões retóricas nas quais se enaltece a capacidade da região de buscar sua união sem “tutelas externas” e de praticar um pouco mais de introversão econômica, do que de abrir-se às “multinacionais do Império” e intensificar os laços econômicos de todos os tipos, em especial os de comércio e investimentos, como se faz na Ásia. Ainda que os países do Mercosul pretendessem fechar-se aos desafios da competição chinesa – que vem conquistando posições cada vez mais preocupantes em toda a região – seria normal esperar que, valorizando como o fazem os “benefícios” do Mercosul, eles decidissem reforçar os laços de abertura recíproca e de liberalização comercial, ou seja: decidissem simplesmente atender aos requisitos mínimos do artigo 1 o . do TA, ainda carente de implementação em seus pontos essenciais. Independentemente de algum novo cronograma que Brasil e Argentina decidissem fixar – a primeira fase de transição era, obviamente, muito curta, de apenas quatro anos –, seria preciso um engajamento credível com os objetivos por eles mesmos fixados no instrumento original. Não parece provável, contudo, que isto ocorra no horizonte visível, tendo em vista as tendências crescentemente “separatistas” em vigor entre os dois mais importantes sócios do bloco. Em última instância, o que está em jogo, em cada um dos países, são os instintos soberanistas de cada um dos parceiros, sentimentos bastante exacerbados nos dois grandes sócios do empreendimento integracionista. O retraimento na defesa dos mercados nacionais e a proteção dos produtores locais ainda são iniciativas mais fortes, e de forte apelo político, do que as dolorosas decisões pela abertura e pelo desmantelamento de barreiras, ainda que apenas e tão somente no bloco, exclusivamente. Compreende-se que a ausência de reformas dificulte a abertura, o que por sua vez reforça a tendência à inércia: reformar a estrutura fiscal, renunciar a tributos, eliminar controles que servem aos instintos burocráticos das corporações estatais, modificar os direitos sindicais que produzem reservas de mercado (e, de fato, desempregos setoriais), alterar a paridade do câmbio ou deixá-lo flutuar sem controles, todas essas medidas são extremamente difíceis de serem tomadas. A probabilidade de que Brasil e Argentina consigam se entender sobre uma plataforma comum de reformas internas e sobre uma agenda partilhada de retomada do processo de integração passou a depender, na presente Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 365 conjuntura, muito mais da Argentina do que do Brasil, enredado numa vasta crise econômica e política cujo desenlace é totalmente imprevisível. Na verdade, os dois países – e outros países na região – não deixam de fazer ajustes, cada vez que circunstâncias inesperadas alteram as condições do jogo econômico num ou noutro país. Mas essas medidas são adotadas de formaad hoc, sem obedecer a uma visão compartilhada de quais medidas são favoráveis, ou não, ao processo de integração, o que afasta ainda mais a perspectiva de uma coordenação de políticas entre os dois grandes parceiros do Mercosul. Uma simples listagem de todas as medidas de política fiscal, tributária, cambial, comercial ou industrial adotadas em cada um dos países permitiria que se chegasse à constatação que sua orientação se deu, não num sentido integracionista, mas objetivamente com propósitos restritivos ou protecionistas: de fato, o grau de proteção efetiva aumentou, não diminui, desde 1995, e não apenas para terceiros países, mas internamente ao Mercosul igualmente. Uma análise realista do “estado da arte” no Mercosul poderia, por exemplo, chegar à conclusão de que o projetado mercado comum, ou sequer a união aduaneira proclamada são factíveis, de fato, cabendo, então, dar lugar a uma discussão sobre os meios e os procedimentos aplicáveis a um processo ordenado de construção de uma simples zona de livre comércio, formato que é, de longe, um dos mais comuns – junto com os simples esquemas de preferências tarifárias – dos experimentos de integração conhecidos no sistema multilateral de comércio. Seria um reconhecimento de que a arquitetura concebida no momento da redemocratização dos países do Cone Sul foi ambiciosa demais para as capacidades organizacionais dos parceiros nesse tipo de empreendimento, cabendo, assim, reconhecer as virtudes mais modestas dos esforços de cooperação focados em metas realistas de liberalização comercial de escopo mais limitado ou de alcance não tão profundo. Se o Mercosul quiser ser bem sucedido ele tem de voltar ao básico, e cumprir o acordado no artigo 1 o . do TA, ou então começar por assumir a responsabilidade de efetuar uma reforma profunda de seus instrumentos constitutivos. A reprodução mimética de um esquema do tipo europeu sempre foi uma quimera do ponto de vista prático, e não existem soluções institucionais indolores que consigam fazer do Mercosul um edifício integracionista para o qual lhe carecem fundações apropriadas. A América Latina na Geopolítica Mundial: Perspectivas Históricas e Situação Contemporânea do Cone Sul Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 366 Um bom começo de um processo de reformas seria um diagnóstico realista dos impedimentos sistêmicos ou contingentes ao acabamento da união aduaneira, a partir do qual se poderia prescrever uma arquitetura institucional com a qual as autoridades políticas dos atuais parceiros poderiam concordar em dar o seu apoio. Nenhuma solução “cooperativa” em torno de um processo de integração elude, porém, a necessidade de reformas internas em cada um dos países participantes. E um compromisso inquebrantável com o respeito à legalidade democrática e aos bons princípios do Estado de Direito seria uma condição essencial para o sucesso de todo e qualquer esquema integracionista que se empreenda na região. 4. CONCLUSÕES: O CONE SUL EM DESCOMPASSO COM TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS? Nas décadas anteriores à crise das dívidas externas dos países latino-americanos, a região conseguiu acompanhar o ritmo do crescimento mundial e consolidar, com algum sucesso, processos nacionais de industrialização baseados em prescrições cepaliana de substituição de importações (ou seja, com muito intervencionismo estatal, proteção comercial explícita e impulsos frustrados de integração regional). A partir de 1982, tem início uma diversificação crescente dos itinerários nacionais de desenvolvimento: alguns países (México, Chile) implementam reformas macroeconômicas e setoriais marcadas por uma clara opção aberturista e globalizante, ao passo que os países do Cone Sul iniciam um processo mais profundo de integração, no Mercosul, mas não conseguem cumprir, de fato, com os requisitos relativamente ambiciosos do novo bloco comercial. Antes da metade de sua vida de um quarto de século, a integração perde suas características econômicas iniciais e se torna, sob administrações neopopulistas na Argentina e no Brasil, um mero foro de retórica política, sem qualquer efeito prático em termos de crescimento do comércio intrarregional ou inserção conjunta na economia mundial. Simultaneamente a essa politização distorcida do Mercosul, quatro países mais abertos à globalização com base em políticas liberais – o México, o Chile, o Peru e a Colômbia – formam a Aliança do Pacífico, não tanto para intensificar a integração e o comércio entre si, e bem mais para participar da construção de um grande espaço de trocas e de integração produtiva na bacia do Pacífico. Paralelamente, os Estados Unidos Paulo Roberto de Almeida Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.342-367. 367 davam impulso a uma grande área de livre comércio na região, o acordo comercial conhecido como Parceria Transpacífico, e empreendiam, com a União Europeia, as negociações para um acordo similar no Atlântico Norte. Tais projetos, se plenamente confirmados e ratificados por todas as partes negociadoras, podem conformar um mundo formado por blocos comerciais superpostos, à margem das regras da Organização Mundial de Comércio, ao qual podem ficar singularmente ausentes os países do Mercosul. Tais perspectivas podem deixar o Cone Sul fora das regiões mais dinâmicas da economia mundial, o que representaria estagnação continuada no horizonte previsível.
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