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Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 Direito e Cinema: a dialética da Ética e da Arte Law and Cinema: the dialectic of Ethics and Art Alexandre Costa Lima1 RESUMO: O ensaio trata do caráter pedagógico do cinema como auxiliar do ensino do Direito. Usa-se o pensamento crítico aplicado à educação jurídica e ilustrado por filmes. Arte e Ética são relacionados. Enfatiza-se a importância do capital cultural para a formação profissional do advogado. PALAVRAS-CHAVE: Direito; Cinema; Ensino do Direito; Capital Cultural. ABSTRACT: This paper approaches the pedagogical aspect of the cinema as an auxiliary to Law teaching. It is used the critical thinking applied to juridical education and illustrated through movies. It is emphasized the importance of cultural capital for the lawyer’s professional formation. KEYWORDS: Law. Cinema. Law Teaching. Cultural Capital. 1. Cinema e pensamento crítico. O aluno de Direito, caso queira fazer as perguntas corretas em relação à sua pretensão de justiça, deve poder enxergar claramente o vínculo entre as relações sociais e as relações jurídicas, não apenas através das aulas teóricas e das diversas práticas previstas no currículo da faculdade, mas também recorrendo a meios literários e artísticos como o cinema e a literatura, por exemplo. Inúmeras experiências ao redor do mundo têm apontado para a vantagem de se associar o cinema à aprendizagem em sala de aula. Cineclubes, debates e seminários com a exibição de filmes são os meios mais comuns de se fazer tal associação. Joaquim Falcão, no prefácio ao livro de Gabriel Lacerda dedicado ao cinema e ao direito, sugere um pluralismo didático, no qual a instituição escolar reconheça que a sala de aula pode se tornar um laboratório de experiências inovadoras com um objetivo central: tornar a aprendizagem mais interessante, 1 Mestre em Filosofia pela Sussex University (Inglaterra). Professor de Filosofia do Direito da ASCES. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 mais sedutora e mais crítica (FALCÃO, 2007, p. 9). Experimentos pluralistas exigem, sem dúvida, a constante inovação por parte do professor e do aluno, educando o olhar jurídico para decodificar as complexas relações éticas, políticas e existenciais do mundo contemporâneo. Utilizar o cinema como auxiliar do pensamento crítico tem sido uma constante no curso de Direito da Associação Caruaruense de Ensino Superior – ASCES há vários anos e a iniciativa tem se mostrado um sucesso. Com o total apoio da direção da instituição e da coordenação do curso, são feitas exibições semanais em sala apropriada, abertas a todos os alunos. Incentiva- se o debate dos temas e pede-se ao aluno que escreva algo sobre a sua experiência. O presente artigo trata do significado didático envolvido na relação cinema/ensino jurídico, utilizando várias fontes filosóficas, sociológicas e políticas. 2. Acumulando capital. Como atividade formativa, o nexo cinema/direito encontra amparo nas teorias de autores como Pierre Bourdieu que, em seu livro A Distinção – Crítica Social do Julgamento, esboça uma teoria do gosto, de inspiração kantiana, mas baseada em pesquisas empíricas para revelar a correspondência entre práticas culturais e classes sociais. Bourdieu mostra que os julgamentos de gosto são um meio de afirmar ou de conformar uma vinculação social e que os bens simbólicos estão inscritos nas estruturas do pensamento. Para ele, os bens culturais têm uma economia com uma lógica específica, revelada não só na sua produção, mas também nas diferentes maneiras de sua apropriação (BOURDIEU, 2008). Ora, os bens culturais não são um dom, mas o produto da educação. Bourdieu vê a instituição escolar como desempenhando a óbvia função de produção de diferenças cognitivas, na medida em que inculca no aluno esquemas de apreciação, percepção e ação no mundo social mediante os sistemas classificatórios dominantes na sociedade. Esse aparente truísmo tem uma importância fundamental para instituições de ensino superior como as Faculdades de Direito, porque estas concedem uma certificação escolar que Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 insere o sujeito portador de diploma numa hierarquia social cuja atribuição estatutária demanda valores e crenças compartilhados. Ser um advogado ou um juiz é muito mais do que desfrutar de uma posição profissional: é participar de um jogo de linguagem que o leva a participar, ao mesmo tempo, de um mundo bastante específico. Para Bourdieu, o peso relativo da educação familiar e da educação propriamente escolar (cuja eficácia e duração dependem estreitamente da origem social) varia segundo o grau de reconhecimento e ensino dispensado às diferentes práticas culturais pelo sistema escolar; além disso, a influência da origem social, no caso em que todas as outras variáveis sejam semelhantes, atinge seu auge em matéria de “cultura livre” ou de cultura de vanguarda (BOURDIEU, 2008, p. 9). Bourdieu tem uma concepção relacional e sistêmica do social, enxergando na estrutura social um sistema hierárquico de poder e de privilégio e para cujo reforço a escola contribui ao reproduzir a dominação e servir de instrumento de legitimação das desigualdades sociais. A escola reproduz a dominação cultural, fornecendo a poucos os códigos culturais que mantêm os distanciamentos distintivos entre classes. O sociólogo francês amplia o significado do termo capital para além dos limites da concepção marxista, entendendo por esse termo não apenas o acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social. Além do capital econômico, constituído por renda, salários e imóveis, ele ainda estabelece a diferença entre capital escolar (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas), capital cultural (predisposição a gostar de determinados produtos da cultura, como livros, filmes ou música) e capital social (relações sociais que podem ser convertidos em recursos de dominação). Segundo Bourdieu, o sujeito desenvolve, desde a primeira infância, no seio da família, um aprendizado precoce e quase imperceptível dos gostos culturais e de suas respectivas competências. Fora do ambiente familiar, ele fará na escola uma aprendizagem tardia, metódica e acelerada, uma forma de aprendizagem voluntária e consciente que irá prepará-lo para um lugar na hierarquia social cuja ocupação demanda inevitavelmente um diploma. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 Fica claro então que a aprendizagem escolar constitui uma continuidade, sob forma diferente, do incessante processo de adaptação do sujeito ao mundo. Ademais, Bourdieu ataca o consenso expresso no lugar-comum “gosto não se discute”, segundo o qual o gosto seria uma questão de foro íntimo. Ao contrário, afirma o grande sociólogo francês, o gosto seria o resultado de imbricadas relações de forças presentes nas instituições sociais transmissoras de cultura, entre elas, a escola. Fica claro o papel formativo cultural da educação escolar, para o bem ou para o mal. A escola propicia um capital escolar e cultural derivado do esforço metódico de assimilação e que pressupõe dinheiro, tempoe um sólido investimento psíquico. Ela apresenta um conjunto de regras que, por um lado, estabelece os cânones de um determinado desempenho profissional e, por outro, pressupõem a posse prévia de códigos de apreciação e de expressão. 3. Fazendo distinções. Desse ponto de vista, pode-se dizer que as desigualdades sociais decorrem tanto das desigualdades econômicas quanto dos entraves causados pelo déficit de capital cultural no acesso a bens simbólicos. Essa é uma questão crucial na nossa época e a democratização daquele acesso não é, de forma alguma, algo cujos custos sejam insuportáveis. Muito pelo contrário, diz Thomas Kesselring, ao comentar a idéia da sustentabilidade: A infra-estrutura da comunicação – telefone, computador, tecnologias de software, internet, etc. – torna possível trabalhar porções de informação exponencialmente crescentes, com cada vez menos dispêndio, enviando-as a distâncias quase ilimitadas. (KESSELRING, 2007, p. 246) Assim, caracteriza-se uma “desmaterialização” do capital cultural, a partir do armazenamento de informações em CDs e DVDs, tornando muito baixos e quase desnecessários o gasto de papel, o transporte de bens simbólicos impressos etc. Embora restrito aos países ricos, esse processo promete, no longo prazo, envolver a humanidade inteira, fazendo de todos partícipes de uma comunidade cosmopolita. Por enquanto, poucos têm acesso Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 a isso. Cabe à escola facilitar esse acesso, na medida em que dispõe não apenas dos recursos materiais adequados (bibliotecas, internet, capital humano), mas também professa um papel emancipador fundamental. Desse ponto de vista, é possível fazer uma interpretação otimista das observações de Bourdieu, caso a escola decida inculcar um capital cultural libertador no espírito de seus alunos. Essa é a proposta pedagógica da ASCES: reconhecer que a fonte do poder econômico desloca-se, cada vez mais, do conceito de propriedade em direção ao conceito de acesso e que facilitar a familiaridade com os bens culturais que formam a linguagem e o mundo de uma determinada profissão é algo essencial. O domínio de uma linguagem profissional pressupõe a posse dos códigos necessários fornecidos pela instituição escolar e, segundo o autor de A Distinção, demanda ainda um esforço de autodidaxia legítima, a aquisição de uma cultura geral cada vez mais exigida, à medida em que alguém se eleva na hierarquia escolar (entre as seções, disciplinas e especialidades, etc, ou entre os níveis) (BOURDIEU, 2008, p. 28). Ou seja, a obtenção de um diploma é o estágio inicial na carreira daquele que deseja a excelência profissional: para além da certificação escolar, os profissionais devem ter familiaridade com os bens culturais simbólicos, pois, a qualquer momento, dentro do círculo profissional que freqüentam, poderão ser intimidados a exibi-la. Sem dúvida, essa familiaridade, resultante do acesso, significa um imenso capital profissional, habilitando o sujeito a interpretar e argumentar segundo regras criativas e inovadoras. Esse é o principal argumento em favor de uma educação escolar fundamentada na técnica, na habilidade, na iniciativa e, principalmente, na ética. E, em que consiste “fazer distinções”? Podemos utilizar os conceitos do construtivismo epistemológico de Humberto Maturana, filósofo e biólogo chileno, o qual recorre, entre outros, a dois conceitos centrais para explicar o ato de distinguir: o observador e a distinção. Segundo Maturana (2001b, p. 83), o observador é qualquer ser humano que, ao operar na linguagem com outros seres humanos, participa com eles na constituição de um domínio de ações coordenadas como um domínio de distinções, e pode, deste modo, gerar descrições e descrições de descrições. Em resumo, eu e todos os leitores deste artigo. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 Maturana afirma que o observador é aquele que faz as distinções necessárias ao seu acoplamento estrutural com o ambiente, medida da eficiência de sua adaptação e da viabilidade de sua sobrevivência. O filósofo chileno entende que o acoplamento estrutural entre o sistema determinado por sua estrutura e o meio é uma condição de existência para todo e qualquer sistema, como é o caso do sistema biológico “homem”. Um observador faz distinções através de operações nas coordenações de coordenações de ações que constituem a linguagem, dividindo um contínuo em um ato que traz à mão tanto a unidade distinguida como o background com relação à qual ela surge. (MATURANA, 2001b, p. 83) Fazer uma distinção é, certamente, o mais básico ato cognitivo, através do qual o homem faz surgir uma realidade que até então permanecia indistinta; em outras palavras, trata-se de fazer aparecer algo onde antes nada havia. Epistemologicamente, o ato de distinguir constrói-se em camadas cuja complexidade varia conforme o olho do observador. Em última análise, Maturana entende que o educar é o processo pelo qual a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, transforma-se, espontaneamente, de maneira que seu modo de viver faz-se progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência. É uma experiência plural, na qual cada um reconhece o outro como igual, a partir do fato de que compartilham um horizonte de sentido. 4. Aprofundando as distinções. Maturana e Bourdieu analisam aspectos complementares da vida humana. O primeiro utiliza a biologia para esclarecer a interação homem/mundo; o segundo usa a sociologia e a filosofia para esclarecer os condicionamentos materiais e simbólicos que agem sobre o homem segundo uma complexa relação de interdependência. Distinguir seria então um ato perceptual e simbólico, pleno de sentido, configurando a sociedade capitalista ocidental como uma sociedade hierarquizada e organizada segundo uma divisão de poderes muito desigual. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 O conhecimento distingue e torna o sujeito distinto no âmbito do efeito alocação, entendido como a atribuição estatutária da instituição escolar: isso significa impor práticas culturais que ela não inculca necessariamente, mas que estão estatutariamente associadas às posições que o indivíduo pode galgar, de posse de seu diploma. Sendo assim, a distinção pode significar privilégio, mas pode igualmente significar ser reconhecido na estrutura social não como mera peça da engrenagem, mas como alguém com atitude crítica e conduta autônoma. É exatamente esse o objetivo da ASCES ao tratar a arte cinematográfica como importante auxiliar na aprendizagem. Lacerda, no seu livro, elenca vários critérios indispensáveis à formação do advogado e que serviram como elementos definidores da seleção dos filmes exibidos para os seus alunos. (cf. LACERDA, 2007, p. 15) Tais critérios estão brevemente comentados abaixo: a) Sensibilizar os alunos para uma atitude diante da realidade, admitindo-se que ser advogado, antes de ser uma profissão, é uma atitude diante da vida; b) Ajudar os alunos a perceber qual o papel social da profissão que estão começando a aprender. Trata-se de fazê-lo compreender o caráter específico e dual da profissão, trabalhando com a razão e o intelecto em busca da persuasão que envolve igualmentea emoção e que lida com questões para as quais não existem respostas exatas; c) Transmitir, compreender e fixar uma certa dose de informação básica sobre temas jurídicos. O cinema pode funcionar como um instrumento de informação, fazendo com que a aprendizagem torne-se mais fácil e agradável. Os recursos da arte cinematográfica predispõem à absorção do conhecimento; d) Exercitar a capacidade de expressão, poder de síntese e habilidade de argumentação. Levantar e mobilizar os conhecimentos jurídicos para captar a realidade exige familiaridade com formas criativas de interpretar e de organizar argumentos, por parte do advogado; e) Pensar. As definições mais tradicionais de conhecimento supõem que é possível representar, ver e conhecer o mundo tal como ele é, como se estivesse ancorado num ponto fixo, imutável e construindo-se, em conseqüência, proposições coercitivas, incondicionadas. Ao invés Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 disso, trata-se de desenvolver uma atitude intelectual adequada ao momento contemporâneo, quando o fundamento tradicional do pensar e do agir perdeu a validade. O padrão de subordinar múltiplos fenômenos e perspectivas a um padrão eterno e universal tentava, de certa forma, reduzir a vida humana a um esquema inteligível. Isso implicava submeter tudo a um critério absoluto. Existe, sim, a necessidade de se distinguir pensamento e verdade, discernindo o sentido que, segundo Hannah Arendt, não está consumado nas próprias coisas. A ontologia contemporânea desistiu de alcançar ou representar a realidade em si mesma e abriu mão, também, da pretensão de univocidade. Pensar, portanto, vem a ser uma tarefa muito mais modesta: para o profissional, não se trata de chegar a uma verdade última, mas apenas perscrutar e manifestar a significação das coisas do mundo humano, entre elas, o papel do advogado, as formas da justiça etc. 5. Ética e Arte juntas. Os hemisférios direito e esquerdo do cérebro humano cumprem funções distintas: o esquerdo rege as funções ligadas à abstração e à lógica, com maior sensibilidade ao visual. A preponderância do analítico e do formal neste hemisfério fundamenta o pensamento linear e racional, voltado para o encadeamento das sequências dedutivas típicas do raciocínio ordenado das ciências positivas. O hemisfério direito, por sua vez, lida com as funções espaciais não-verbais, com maior sensibilidade ao acústico. As dimensões simbólica, espacial, musical e holística encontram abrigo nesse hemisfério, de modo que a apreensão concreta, emocional e global da realidade depende do hemisfério direito. Os membros do grupo de estudos Embolic, da Universidade de Valencia, Espanha, voltado para a investigação das relações cinema/filosofia, escrevem que Leer um libro y contemplar uma película son, desde el punto de vista mental, dos operaciones distintas que ponem em juego áreas cerebrales diferentes. Mientras que la lectura es una operación analítica y doblemente abstrata, que subtiende los análisis gramatical e lógico, el visionado de um film sólo puede llevarse a cabo sumergiéndose em él. Se trata de uma operación sintética que se Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 realiza primariamente de una maneira global. (GROUP EMBOLIC, 2006, p. 13) Assim, o cinema presta-se perfeitamente para uma experiência estética globalizante, pressupondo um mergulho na obra, o que auxilia, momentaneamente, a suspensão do juízo habitual do sujeito, em favor de uma identificação ou rejeição dos personagens e da situação. É uma espécie de epoché2 com características muito próprias: a emoção, o som, as cores, o enquadramento da imagem, a expressão dos atores e, por fim, a trama do filme, formam um horizonte sedutor e convincente. Trata-se de uma arte cujo valor estético é indiscutível e cuja integração de imagens, palavras, música e efeitos sonoros ultrapassa o terreno da mera fruição para assentar-se no terreno da Ética. Conflitos morais, experiências psicológicas profundas, críticas políticas, guerras e outros tipos de problemas humanos podem ser experimentados com uma verossimilhança assombrosa. Já nos primórdios da era romântica da cultura européia, o terceiro conde de Shaftesbury (1671-1713) afirmava a existência de um senso moral intuitivo em si mesmo que poderia ser estendido à estética. Ele fez de um axioma do pensamento clássico – a unidade bondade/beleza – uma tese fundamental de seus estudos estéticos. O prazer estético seria o elo natural entre ambas, indicando a virtude como a conseqüência dessa dialética. Colin Campbell, autor de A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, afirma que Shaftesbury tornou a ética e a estética intercambiáveis, sendo a sensibilidade o termo que abrangia ambas. Segundo Campbell, devido a isso A receptividade à beleza se tornou, assim, uma qualidade moral básica, tanto que qualquer deficiência a esse respeito se tornou um deslize moral, enquanto a virtude correspondente se fazia uma qualidade estética, tanto que, por seu turno, qualquer deslize moral era “mau gosto”. (CAMPBELL, 2001, p. 215) O fato de a ética e a estética terem se tornado valores intercambiáveis enfatizou, sobremaneira, a dimensão de responsabilidade moral da obra de 2 Époche é um termo típico da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), uma abstração eidética que implica a suspensão temporária dos juízos habituais sobre o mundo circundante em favor da renovação da capacidade julgar, na tentativa de observar a essência do objeto (eidos). Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 arte, fazendo do artista não mais um artesão sem compromisso ético, mas o autor de uma obra que deveria atender à nova natureza estético-ética do conceito de gosto. 6. Os eixos da virtude buscada. A instituição de ensino, responsável pela inculcação do capital escolar e, em certa medida, também, pelo capital cultural de seus alunos, deve buscar articular as relações intrínsecas entre o comportamento profissional deles e as mudanças no conteúdo intelectual dos sistemas de pensamento ético (entre eles, o Direito) e estético. A tarefa de familiarizá-los com o cinema, a partir de um ponto de vista crítico, é uma tarefa instigante e recompensadora. Trata-se de satisfazer as preferências educadas das pessoas, facilitar a sua proximidade com a cultura e servir, ao mesmo tempo, como base de um ideal de caráter. Ensinar com a ajuda do cinema implica privilegiar as “formas impuras e periféricas” de pensamento, o antípoda das teses de um positivismo estreito que desprezasse o valor pedagógico da intuição e da emoção. Usar o cinema seria reconhecer o que Gregory Bateson intitulou “ecologia do espírito”, uma disciplina do pensamento que permite compreender que toda significação supõe que se coloque em relação um elemento com o seu contexto. O discurso científico não pode ser compreendido pura e simplesmente a partir do seu interior. Sendo assim, para Berten, podemos compreender então porque não podemos jamais apreender a significação do “todo”: o todo é sem significação porque ele é necessariamente sem contexto. (BERTEN, 2004, p. 100). O uso dos recursos expressivos providos pela arte cinematográfica permite ao espectador/aluno abandonar o pensamento linear e adotaro pensamento complexo. O nosso comportamento e visão de mundo são determinados por nossas percepções e as nossas percepções são determinadas, por sua vez, pela nossa estrutura cognitiva. Abandonar o pensamento linear é deixar de lado a idéia fixa de ter sempre de provar algo, desistindo do ideal de coerência constante, da visão de mundo sem contradições. É necessária a abertura para o aleatório, para o imprevisível, para o mutável. Isso implica o ideal kantiano da mentalidade alargada, com as Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 suas exigências de pensar por si mesmo, de colocar-se no lugar do outro e de ser coerente consigo mesmo. A validade do juízo ético-político decorre da capacidade de o sujeito colocar-se no lugar do outro, de modo a estar apto a olhar o mundo a partir de diferentes perspectivas3. O cinema mostra-se propício para facilitar a experiência de colocar-se no lugar do outro, devido à fusão quase entusiástica de várias artes numa só. O espectador identifica-se com os personagens, num movimento em que imagina outras vidas possíveis, aquelas dos personagens e que podem atrair ou causar forte repulsa, levando-o a refletir de modo diferente do habitual. Essa seria uma espécie de educação moral pelo olhar, porque o leva a experimentar diversas visões de mundo para formar a sua própria, pois a ideia de um conhecimento que venha a ser a exata correspondência com a realidade é uma ilusão. O construtivismo ensina que se compreende o mundo a partir do material que se tem à disposição, ou seja, a compreensão é experimentada a partir do interior. A experiência cinematográfica é também isso: formar a própria opinião não como uma atividade solitária, mas como um encontro genuíno com diferentes opiniões. Debater e alargar a mentalidade são indispensáveis ao bom profissional do Direito, o qual deve ser, antes de tudo, um bom cidadão. 7. Diginidade e igualdade. Quando afirma que a dignidade da pessoa humana demanda a igualdade jurídico-política entre todos os cidadãos, João Maurício Adeoadato propõe uma ética da tolerância: (...) já que todos são juridicamente iguais, já que estão todos em um só espaço publico e que não têm a mesma visão de mundo, é preciso ser tolerante para com aqueles que pensam diferentemente. (ADEODATO, 2009, p. 13) Isso quer dizer que a dignidade da pessoa humana pressupõe a democracia, um regime político cuja natureza admite não apenas o voto e a representatividade, mas também a possibilidade de discutir e de mudar. 3 Arendt transformou o juízo estético kantiano em juízo político, numa sofisticada operação intelectual cuja análise extrapola os limites de abordagem do presente artigo. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 Positivismo jurídico e democracia nasceram juntos e, ao advogado compete zelar para que todos recebam igual consideração e igual respeito por suas preferências. Por sua vez, a Ética pode ser definida como a busca racional da felicidade. Ela é um ponto de vista que julga a ação como boa ou má, tendo como referência a vida como um todo. Para os antigos, a virtude ética era a capacidade de condução da própria vida. Ela integraria os objetivos da vida numa relação adequada entre o desejo e a possibilidade de realizá-lo, aquilo que Aristóteles chamava de “bem praticável”. O Estagirita via a felicidade como uma atividade que seria, em si mesma, o seu próprio objetivo: o sujeito bastar- se a si mesmo. Ora, a intenção de uma vida realizada, concretizando aquilo que é considerado bom, pressupõe, todavia, a articulação dessa intenção nas normas. A vida boa, revelada na relação do si para consigo, existe juntamente com e para os outros, em instituições justas. A universalidade do Direito, submetendo a intenção ao constrangimento da norma, revela ao sujeito a sua mais alta liberdade: a descoberta de que a intenção da justiça é a felicidade comum, isto é, uma intenção comum no horizonte de um pluralismo irresistível. Uma despretensiosa, porém, brilhante observação de Maturana (2001a, p. 72) serve para encerrar o nosso artigo: Nós, na cultura ocidental, fazemos muitas reflexões sobre ética. Falamos de direitos humanos, temos a declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Eu, no meu laboratório, tenho uma cópia dela, e a ela acrescentei dois pontos: o direito de equivocar-se e o direito de mudar de opinião. Referências bibliográficas: ADEODATO, João Maurício: A Retórica Constitucional –Sobre a Tolerância, Direitos Humanos, e Outros Fundamentos Éticos do Direito Positivo, São Paulo: Editora Saraiva, 2009. BERTEN, André: Filosofia Social – A Responsabilidade Social do Filósofo, São Paulo: Paulus, 2004. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces – Vol.42 Nº 1 – Jan - Jun/2010 – ISSN 2178-986X Envio: 27.05.2010 Aceite: 10.08.2010 BOURDIEU, Pierre: A Distinção – Crítica Social do Julgamento, São Paulo: EDUSP, 2008. CAMPBELL, Colin: A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, Rio: Rocco, 2001. FALCÃO, Joaquim: Prefácio, in LACERDA, Gabriel: O Direito no Cinema – Relato de uma Experiência Didática no Campo do Direito, Rio: FGV Editora, 2007. FERRER, Anacleto, GARCÍA-RAFFI, Xavier, HERNÀNDEZ, Francesc e LERMA, Bernardo: Primum Videre, deinde Philosophare – Uma Historia de la Filosofía a través Del cine, Valencia: Institució Alfons El Magnànim, 2006. KESSELRING, Thomas: Ética, Política e Desenvolvimento Humano – a Justiça na Era da Globalização, Caxias do Sul: EDUCS, 2007 LACERDA, Gabriel: O Direito no Cinema – Relato de uma Experiência Didática no Campo do Direito, Rio: FGV Editora, 2007. MATURANA, Humberto: Emoções e Linguagem na Educação e na Política, Belo Horizonte: UFMG, 2001a --------------------------------: Ontologia da Realidade, Belo Horizonte: 2001b RIVERA, Juan Antonio: O que Sócrates diria a Woody Allen – Cinema e Filosofia, São Paulo: Editora Planeta, 2004.
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