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Fundamentos Gerais da educação Básica Fundamentos Gerais da educação Básica F u n d a m e n to s G e r a is d a e d u c a ç ã o B á si c a e l izabete dos santos agnes cordeiro de carvalho aldemara Pereira de melo elisabeth sanfelice Jairo marçal elizabete dos santos agnes cordeiro de carvalho aldemara Pereira de melo elisabeth sanfelice Jairo marçal Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-3612-7 Fundamentos Gerais da Educação Básica Elizabete dos Santos Agnes Cordeiro de Carvalho Aldemara Pereira de Melo Elisabeth Sanfelice Jairo Marçal IESDE BRASIL S/A Curitiba 2013 2.ª edição Edição revisada © 2005– IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE BRASIL S/A Imagem da capa: Shutterstock IESDE BRASIL S/A Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________________________ F977 2. ed. Fundamentos gerais da educação básica / Elizabete dos Santos... [et al.]. - 2. ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE BRASIL, 2013. 232 p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3612-7 1. Professores de ensino médio - Formação. 2. Educação de base - Brasil. I. Título. 13-1065. CDD: 370.71 CDU: 37.02 19.02.13 21.02.13 042899 ________________________________________________________________________________ Sumário Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio ..................................................9 Educação e sociedade – análise introdutória ..........................................................................................9 Uma leitura crítica dos fundamentos filosóficos – Política da Igualdade ...............................................11 Ética da Identidade ...............................................................................................................21 Estética da Sensibilidade ........................................................................................................................26 Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização .............................................................33 Autonomia ..............................................................................................................................................33 Identidade ...............................................................................................................................................36 Diversidade .............................................................................................................................................38 Buscando respostas para a ação pedagógica ........................................................................43 Interdisciplinaridade – um diálogo necessário .......................................................................................43 Organização curricular: a quem serve a escola? ..................................................................55 As competências, as habilidades e as tecnologias ..................................................................................55 Linguagens e suas representações ........................................................................................61 Plurissignificação das linguagens ...........................................................................................................61 A condição humana como objeto de reflexão ......................................................................67 Diversidade de representações humanas ................................................................................................67 Sociologia ...............................................................................................................................................73 Natureza em transformação .................................................................................................79 O conhecimento científico: do ver ao generalizar ..................................................................................79 Construir conhecimentos sobre a natureza ..........................................................................89 Buscando respostas e investigando conceitos .........................................................................................89 Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta ...............................99 Linguagens e suas representações II ....................................................................................103 Língua Portuguesa ..................................................................................................................................103 Língua Estrangeira Moderna ................................................................................................107 Arte ......................................................................................................................................111 Educação Física ...................................................................................................................115 Caminhos da linguagem I ....................................................................................................119 Língua Portuguesa ..................................................................................................................................119 Língua Estrangeira ...............................................................................................................123 Caminhos da linguagem II ...................................................................................................125 Arte .........................................................................................................................................................125 Educação Física II ................................................................................................................131 Avaliação: um exercício de autonomia ................................................................................135 A condição humana como objeto de reflexão II ...................................................................143 A compreensão do ser humano na sua relação com o mundo ................................................................143 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares .....................................151 A questão metodológica I .......................................................................................................................151 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II ..................................163 A questão metodológica II ......................................................................................................................163 Avaliação – processo dialético de superação .......................................................................187 Natureza em transformação II ..............................................................................................193 Possibilidade de construção e representação das Ciências .....................................................................193 Matemática e metodologia através do tempo .........................................................................................196 Concepções presentes nos PCN ..............................................................................................................198 O jogo como estratégia possível .............................................................................................................200Ciências da Natureza: onde as diferentes abordagens se encontram ...................................203 A questão metodológica ..........................................................................................................................203 Avaliação: ação para a cidadania .........................................................................................219 Das considerações ...................................................................................................................................219 Apresentação Q uando surgiu no cenário nacional a definição de Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, com claros indicadores para a qualidade dessa etapa de ensino, acenando com mudanças profundas que pretendiam restabelecer sua importância e a integração do aluno ao mundo contemporâneo, emergiu também, como consequência, a necessidade premente da instauração de um processo de análise e discussão pelos protagonistas da ação educativa. Aos educadores cabe o papel de interpretação e elucidação crítica dos princípios norteadores da nova proposta, a difícil tarefa de revelar as implicações, a complexidade, os limites e as possibilidades de sua real efetivação e ações que promovam a contextualização da proposta, a articulação entre o seu ideal e a realidade educacional, tecendo os fios que possibilitarão sua viabilidade orgânica. A maior virtude desse processo de reflexão é que ele traz à tona contradições de ordens filo- sófica, política, cultural, pedagógica, entre outras, que, uma vez investidas de um amplo e profundo debate, podem oferecer a possibilidade de enfrentamento e resolução dos problemas. Porém, cabe alertar que a leitura ingênua, irrefletida ou dogmática, pode levar ao escamoteamento da proposta com o consequente desestímulo associado à ideia de inviabilidade, o que só viria a contribuir para a reafirmação de posições conservadoras. Somente com um processo de interação consciente, de reflexão crítica, por parte de todos os envolvidos na ação educativa, com clara definição de papéis, atribuições e responsabilidades será possível a construção de um novo Ensino Médio. O presente trabalho está organizado em duas apostilas e dividido em quatro módulos. O primei- ro módulo apresenta uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio, presentes nas novas diretrizes curriculares. Esse módulo está organizado em seis unidades: as duas primeiras versam sobre os fundamentos filosóficos – Política da Igualdade, Ética da Identidade e Es- tética da Sensibilidade; a terceira unidade busca estabelecer uma base conceitual para os princípios da Autonomia, Identidade e Diversidade; a quarta unidade aponta para a discussão de temas mais conhecidos da esfera pedagógica, interdisciplinaridade e contextualização, vinculados à questão do trabalho e da cidadania; na quinta unidade está presente a preocupação de se buscar um debate sobre as competências e tecnologias; e, para finalizar esse módulo, a sexta unidade propõe uma análise so- bre os avanços e os limites dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Os outros três módulos apresentam as três áreas dos conhecimentos: linguagens e suas repre- sentações; a condição humana como objeto de reflexão; natureza em transformação, e estão organiza- dos (cada módulo) nas seguintes unidades: a primeira apresenta uma definição de cada área e discorre sobre as suas disciplinas; a segunda unidade discute as competências das áreas; a terceira e a quarta unidade abordam alternativas metodológicas nas áreas e a quinta unidade trata do processo de avalia- ção em cada área do conhecimento. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio Educação e sociedade – análise introdutória O homem vive em sociedade e em função dessa relação social desenvolve características específicas, que lhe são peculiares e que possibilitam sua singularidade enquanto espécie. A maturação do ser humano é decorrente de um processo de sociabilidade e pode-se, por exemplo, citar a linguagem como construção necessária a essa sociabilidade. É possível afirmar que, em função do estabelecimento da relação em sociedade, o homem se humanizou. Essa humaniza- ção permite a cada nova geração o conhecimento, adaptação e absorção daquilo que a humanidade construiu, possibilitando também a transformação e a reconstrução dessa geração e, consequentemente, dessa sociedade. A educação deve possibilitar ao homem o conhecimento e os instrumentos ne- cessários para interpretar e decifrar a realidade, realizar escolhas e agir sobre o seu destino. Na ação educativa, o que deve estar implícito é o aperfeiçoamento do próprio homem, questão esta já formulada por Kant: “as relações de educação, no seu sentido mais amplo, têm que ter em mente o estado futuro da humanidade. O homem deve fazer a si mesmo melhor do que já é”. Florestan Fernandes, estudioso da sociedade, apresenta em seus escritos sobre as funções das ciências sociais no mundo moderno, de forma muito pertinente, uma concepção de educação na qual afirma que as gerações novas recebem uma herança social das gerações mais velhas, herança essa que seria a solução dos problemas do passado. Entretanto, recebem também como herança novos problemas sociais a se- rem enfrentados, situações de vida ainda não resolvidas. A ação educativa consiste em oferecer ao homem condições de discernimento e superação desses problemas, a fim de estabelecer escolhas a partir dos próprios interesses, valores e ideais. A escola se configura como um espaço definido para o desenvolvimento do ensino, ou seja, como um espaço organizado, planejado e instituído para promover a apreensão do conhecimento sistematizado e universalizado. Mas, ainda é importante considerar que a escola possibilita também, em função de uma condição histórico- -cultural, o desenvolvimento implícito e/ou explícito da ação educativa numa aborda- gem mais ampla. Como esclarece Antonio Candido (1985, p. 11), “existe um sistema de relações, de papéis, de valores, determinados no ensino e pelo ensino manifestan- do-se principalmente na escola, concebida não apenas como agência de instrução, mas como um grupo social complexo, num dado contexto social”. Princípios norteadores da educação, como Política da Igualdade, Ética da Iden- tidade, Estética da Sensibilidade, Autonomia e Diversidade, uma vez instituídos atra- vés de uma proposta oficial, devem se fazer presentes na escola pela reflexão dos sujeitos envolvidos na ação educativa. Aos professores cabe a consciência de sua ação – a reflexão sobre a causa, a finalidade e os efeitos – a compreensão de que Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 10 sua prática não pode estar limitada à transmissão de um saber sistematizado, sendo necessário que essa ação esteja contextualizada à realidade e constantemente em processo de análise crítica. E aos alunos, a compreensão de que se constituem como sujeitos ativos no processo educacional. Sujeitos ativos, porque é na ação e na decisão consciente do aluno que se dá a relação ensino-aprendizagem. A escola, compreendida como uma unidade social responsável pela educação, define atitudes, comportamentos, posições, papéis. Possui uma dinâmica própria e, sem desconsiderar as relações estabelecidas pela sociedade, de onde recebe valores, normas e obrigações, não pode ser entendida apenas como reflexo dessa socieda- de, devendo ter consciência da sua responsabilidade singular de reflexão e criação. Assim, a escola se revela também como um espaço onde os protagonistas da ação educativa, inspirados por princípios fundamentais para o desenvolvimento e o aper- feiçoamento humano, podem sobrepujar as mazelas e contradições presentes nessa mesma sociedade. Por isso Japiassu defende uma pedagogia da inteligência que é o outro ângulo de visão da pe- dagogia da incerteza. Com efeito, investir na inteligência é exorcizar o dogmatismo da certeza. Neste sentido, a educação é o aprendizado do pensare a superação do repensar e se identi- fica com a própria dimensão reflexiva da filosofia, enquanto dimensão da consciência que a própria sociedade tem de si mesma. Autenticamente liberal e libertadora seria a sociedade que assegurasse a todos os seus membros a “oportunidade de uma educação, não somente em função de um grupo particular, mas da própria inteligência dos que pensam o destino da humanidade. Uma sociedade que perde essa consciência que a cultura toma de si mesma está fadada a perder a consciência de si”. Assim, um ensino filosoficamente fundado permitiria que os educandos aprendessem “a cri- ticar, quer dizer, examinar e passar ao crivo as opiniões recebidas ou impostas, as ideias e tradições transmitidas e os ensinamentos aparentemente inquestionáveis” e tornaria possível “o ultrapassamento do conformismo e do inconformismo em vista de uma coerência sempre maior entre o pensamento e a ação”. (SEVERINO, 1997, p. 233-234) Entretanto, a educação, longe de assumir seu papel inovador dentro da socieda- de, tem historicamente deixado prevalecer um lado conservador e disciplinador. Foi, por exemplo, com Durkheim, que a escola passou a representar para a sociedade [...] um poderoso instrumento para controlar as paixões humanas, assim “educar é inscrever na subjetividade da criança os três elementos da moralidade: o espírito da disciplina (graças ao qual a criança adquire o gosto da vida regular, repetitiva e o gosto da obediência à auto- ridade); o espírito da abnegação (adquirindo o gosto de sacrificar-se aos ideais coletivos) e a autonomia da vontade (sinônimo de submissão esclarecida)”. Estabeleceu-se assim, através da educação, a construção do sujeito normal, [...] sinônimo dessa chateza de traçado, dessa timidez das aspirações, desse esmagamento ou de- saparecimento do desejo [...] Quem sabe possa ser aquele que a polícia nos acostumou a chamar de cidadão de bem para diferenciar do marginal; esse que “jamais” derrubaria o Império mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de morrer pela República. (FERNANDES, 1997, p. 67) Ao desencanto da constatação de que na ação educativa ainda se perpetuam princípios e práticas de submissão e controle é vital que se contraponha o desejo por uma escola livre, criativa, autônoma, crítica, sustentado na consciência de que para Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 11 sua realização é preciso que se proceda a redescoberta dos verdadeiros significados da Política, da Ética e da Estética. Aceitar o desafio de conceber uma nova proposta para a educação é abrir mão das supostas facilidades presentes na cultura dos jargões, que, por mais que possam re- presentar um ideal de educação democrática, encontram-se cristalizados e deslocados do espaço e do tempo vividos pela escola e, distantes assim das demandas educacio- nais, pouco contribuem para o seu entendimento e significação. Trata-se de recuperar os sentidos dos fundamentos filosóficos e reconstruí-los a partir de um esforço coletivo que contemple as aspirações de cada unidade escolar. Uma leitura crítica dos fundamentos filosóficos – Política da Igualdade A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais deve ser entendida dentro de um processo histórico e ressalta-se a importância de assegurar na sua interpreta- ção e aplicação os avanços conquistados, tais como: os princípios da universalização e democratização do conhecimento, a preparação para o mundo do trabalho, a neces- sidade de uma sólida formação no núcleo comum e a articulação do conhecimento com a realidade do aluno já contemplados na Proposta de Ensino de 2.º Grau ante- riormente vigente. É importante assinalar como inovador nas novas diretrizes o fato de que elas trazem à luz da discussão alguns elementos que podem vir a estimular o trabalho, alimentar o debate, reorientar al- guns conceitos, aprofundar algumas ideias e prin- cípios que consequentemente terão reflexos na ação educativa. Os fundamentos filosóficos que devem nor- tear a proposta pedagógica para o Ensino Médio trazem em si valores universais imprescindíveis e provocam a necessidade de serem investidos de uma significação própria em cada unidade escolar. Entretanto, uma vez estabelecido esse caráter inovador e instigante, presente na formulação das di- retrizes, cabe também alertar para o risco que pode vir a representar a formulação de interpretações mais apres- sadas devendo ser considerado como uma sombra que poderá en- cobrir a luminosidade dessas ideias. Os parâmetros curriculares se apresentam permeados por con- ceitos clássicos, porém abstratos, e que se prestam, por sua natureza, Imagem 1 – A Vítima da Glo- balização – Paulo Caruso. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 12 a interpretações ambíguas e contraditórias, que podem comprometer os objetivos da proposta, chegando até mesmo à consecução de uma ação educativa em sentido contrário. A apropriação e a manipulação desses conceitos, podem, sob uma nova roupagem, reafirmar e manter modelos conservadores e excludentes. Como nos aler- ta o filósofo Paulo Eduardo Arantes na conferência “O pensamento único tem cura?”, tem sido ideia corrente em setores da política e na mídia internacional que a partir da década de 1990, após a queda do muro de Berlim, os antagonismos ideológicos teriam sido superados, dando espaço a um pensamento único (consensual). Pros- segue afirmando que é comum se observar hoje, no discurso político de partidos liberais, o conceituário outrora exclusivo dos partidos de esquerda. No entanto, isso não significa que as contradições foram superadas, mas, sim, que a ação política foi reduzida a um perigoso economicismo que passa a estabelecer todas as regras para o funcionamento da sociedade. O mercado econômico passa a ser apresentado como depositário de todas as esperanças de uma sociedade mais justa. No pensamento único não há espaço para o debate ou divergência, logo, “somos todos iguais”. Nessa condição, pensar criticamente é opor-se à redução da vida humana à esfera restrita dos interesses econômicos. Pensar é sempre pensar revolucionariamente. A incompatibilidade entre os discursos oficiais e as estatísticas sociais, alar- mantes em todo o mundo, somada à ausência de um amplo debate envolvendo todos os protagonistas acerca dos possíveis caminhos para essa sociedade, compele-nos à reflexão. Com a preocupação de assegurar profundidade e melhor compreensão do objeto investigado, nos reportamos ao pensamento clássico com o intuito de proceder ao resgate da origem e significado dos conceitos de Política e Igualdade. Em que pese o fato de a Grécia Antiga não ser um modelo de comunidade po- lítica perfeita, foi em Atenas que a democracia encontrou sua melhor representação. Dela destacamos, para início desta reflexão, os conceitos de esfera pública e esfera privada, fundamentais na organização do mundo grego. É ideia recorrente hoje que o homem é um ser social e que a vida em socieda- de equivale à vida organizada politicamente. Porém, a concepção do zoon politikon (animal político) de Aristóteles persiste e fragiliza o argumento de que o homem é apenas um animal social. A vida em sociedade não é atributo exclusivo dos seres humanos, pelo contrário, é essa condição social que nos aproxima dos animais. A humanidade se caracteriza pelo estabelecimento de objetivos comuns e a partir das relações que o homem estabelece com a pólis (cidade-estado), tais como: justiça, igualdade e felicidade para todos. Reside nessa concepção a importância que os gre- gos atribuíam à vida pública e à política, entendida como a mais importante das artes gregas ou de todos os conhecimentos por eles produzidos. Na esfera pública, o homem desenvolvia seu bios-politikos por meio do exercício de atividades consideradas políticas, como a ação (práxis) e o discurso (léxis). Essas atividades, na experiência da pólis, foram se tornando independentes e o discurso pas- sou a ter grande importância para identificar o homemcomo ser político – aquele que decidia acerca da vida na pólis através do uso da palavra e da persuasão. No enten- dimento dos gregos, o uso da força ou da violência eram considerados métodos pré- -políticos, pertencentes ao espaço privado, ou seja, desenvolvidos no lar e na família. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 13 A necessidade social estava localizada na Antiguidade, na casa (oikia) e na família – pertencentes à esfera privada, na qual os homens satisfaziam suas necessi- dades biológicas de sobrevivência e manutenção da espécie, estando assim condicio- nados a essas necessidades. Era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar [...] A esfera da pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade e, se havia uma relação entre essas duas esferas, era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na pólis. (ARENDT, 1987, p. 40) No exercício da vida pública, em meio aos seus iguais, através do discurso e da ação, o homem grego se apresentava na sua individualidade: [...] era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivel- mente eram. Em benefício dessa possibilidade e por amor a um corpo político que propiciava a todos, cada um deles estava mais ou menos disposto a compartilhar do ônus da jurisdição, da defesa e da administração dos negócios públicos. (ARENDT, 1987, p. 51) A partir da Modernidade, as diferenças entre as esferas social e política vêm se diluindo. Com a promoção artificial do social à esfera pública, acontece um fal- seamento do verdadeiro sentido do exercício da política, que reduz a condição de cidadão à condição de indivíduo. A ação política, que dava a verdadeira identidade ao cidadão, foi se transformando na simples manutenção da vida e da espécie, o que distanciou o homem da condição de humanidade e o aproximou da condição de ani- malidade. Portanto, os homens foram se distanciando do verdadeiro sentido da co- munidade política e perdendo a capacidade de discursar e agir a partir de um objetivo comum. A construção da comunidade política que pressupunha o envolvimento de todos os cidadãos passa a ser imposta por instâncias externas à própria sociedade. A sociedade definida como “um conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituir o fac-símile de uma única família sobre-humana e sua forma po- lítica de organização denominada nação,”(ARENDT, 1987, p. 38) é uma construção presente na Modernidade na qual a política passa a ser entendida apenas como uma função dessa sociedade e na qual a ação, o discurso e o pensamento são decorrentes do interesse social de uma parcela dessa sociedade – as elites dominantes. Neste particular, pouco importa se uma nação se compõe de homens iguais ou desiguais, pois a sociedade exige sempre que seus membros ajam como se fossem membros de uma enorme família dotada apenas de uma opinião e de um único interesse. (ARENDT, 1987, p. 49) Um fato decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los “comportarem-se”, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada. (ARENDT, 1987, p. 50) Contrapondo-se ao funcionamento das sociedades heterônomas (aquelas que rece- bem as normas, as regras, as leis, de fora, de outro), surge a noção de privatividade, ou seja, aquilo que é de fórum íntimo. Porém, esse caráter privativo possui uma certa ambiguida- de, da mesma forma que assegura o espaço privado da intimidade, pode também represen- tar o espaço da privação – privado da ação na esfera pública – provocando um isolamento radical do sujeito, o que em nada contribui para o desenvolvimento de sua autonomia. Para Rousseau, como reação às normatizações impostas pela sociedade, o homem deve se manter fiel à “intimidade do coração”. A intimidade surge como uma “alternativa” às “exigências niveladoras do social”, ao conformismo presente nessas sociedades. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 14 Após o declínio de sua vasta e gloriosa esfera pública, os franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre “pequenas coisas”, dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a cadeira, entre o cão, o gato e o vaso de flores, dedicando a estas coisas um cuidado e uma ternura que, num mundo em que a rápida industrialização destrói constantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje, pode até parecer o último recanto puramente humano do mundo. (ARENDT, 1987, p. 61) O equívoco no entendimento daquilo que hoje se insiste em chamar de esfera pública se agravou com o surgimento da sociedade de massa – entendida como a junção de vários grupos sociais formando uma única sociedade. Abrangendo todos os membros de uma determinada comunidade, a sociedade de massas passa então a controlá-los e normatizá-los. Estabelece-se um deturpamento do Princípio da Igual- dade – ser igual é obedecer às mesmas normas. Não existe entre os membros dessa sociedade um projeto coletivo, um bem comum. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens. A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar na sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las. A estranheza de tal situação lembra uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas, mas tampouco teriam qualquer relação tangível entre si. (ARENDT, 1987, p. 62) Imagem 2 – Estudantes de Curitiba participam de manifestação pelo passe escolar, 1993 – Jairo Marçal. O Estado de Direito garante a todos os cidadãos a igualdade perante as leis, po- rém sabemos que historicamente em nosso país há um descompasso entre o que a lei propõe e a realidade vivida pela sociedade. A partir dessa análise, constatamos que a Política da Igualdade, mais que uma garantia, deve ser uma construção permeada de Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 15 contradições e obstáculos de várias naturezas. O filósofo francês, Jacques Rancière, seguramente um dos mais originais pensadores políticos dos nossos dias, defende a tese de que a democracia, longe de ser um espaço de harmonia a priori, encontra sua melhor definição na palavra dissenso e explica que desde o seu surgimento a democra- cia se configura como a luta daqueles que têm suas pretensões ao poder asseguradas, seja pelo nascimento ou pelo poder econômico, contra aqueles destituídos de qualquer parcela de poder. A possibilidade única dos “sem parcela” lutarem pelo poder que lhes cabe é a palavra. Não é por acaso que a palavra tem sido na história do mundo ocidental objeto de duras disputas. Historicamente tem sido uma estratégia de manutenção do poder, a subtração dos plebeus da racionalidade de seu discurso, tornando-o suposta- mente sem significado ou sentido. Essa estratégia justifica o fato de que o discurso da plebe, bem como suas pretensões ao poder, têm sido tratadas como um escândalo. O filósofo britânico Bertrand Russel, prêmio Nobel de Litera- tura, foi preso em 1961, aos 89 anos, devido à suacampanha pelo desarmamento nuclear. Imagem 3. Para precisar essa especificação do dissenso fundador da política proponho examinar um outro enunciado fundador e aparentemente sem problema da filosofia política. Por exemplo, na passagem do livro I da Política em que Aristóteles estabe- lece o signo da destinação naturalmente política do homem: de todos os animais, o homem é o único que tem capacidade do logos, da palavra. A voz (phone) é comum ao homem e aos outros animais que, como ele, exprimem por meio dela prazer ou sofrimento. Mas somente o homem tem a palavra, que permite manifestar o útil e o prejudicial e, em consequência disso, o justo e o injusto. Tudo parece, portanto, claro: quando se está diante de um animal que discursa, sabe-se que é um animal humano, portanto político. Mas, na prática, uma coisa é muito menos clara: como se reconhece Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 16 exatamente como um discurso aquele ruído que o animal diante de nós faz com sua boca? Esse reconhecimento não é, justamente, natural. Ele próprio supõe uma sub- versão da ordem normal das coisas. Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas o ruído no que ele diz. É o que nos mostra um pensador francês do século XIX, Ballanche, ao rees- crever à sua maneira o relato de uma das grandes narrativas fundadoras da querela política, a narrativa da secessão dos plebeus romanos no monte Aventino. No relato de Tito Lívio, os plebeus em revolta eram reconduzidos à ordem pelo discurso de um patrício, Menêmio Agripa, que lhes explicava, por meio de uma fábula, a ordem social. Ele lhes explicava que a cidade era um grande corpo cujas partes eram todas solidárias. Nesse corpo, os braços plebeus e o centro vital patrício eram igualmente necessários, mas não evidentemente de igual dignidade. Eis aí uma perfeita fábula policial: uma fábula da boa distribuição de cada um em seu lugar e em sua função. A originalidade de Ballanche é mudar o argumento da narrativa e seu sentido. Ele a transforma numa querela em que a questão é justamente saber se os plebeus falam ou não. Os plebeus, em seu relato, exigem um acordo com os patrícios. Os patrícios intran- sigentes respondem que isso é impossível, por uma razão muito simples. Um acordo liga duas partes que comprometem sua palavra. Mas, para comprometer sua palavra, é preciso tê-la. Ora, os plebeus não falam. É verdade que houve um emissário que foi ao local e assegura tê-los ouvido falar. Mas seus colegas lhe provam que é uma ilusão de seus sentidos, já que eles não podem falar. Sua pretensa fala não é mais que um som fugaz, uma espécie de mugido que é o signo da necessidade e não a manifestação da inteligência. (RANCIÈRE, 1996) É atributo da escola o uso da palavra e o direito ao significado do discurso e somente a consciência dessa condição, pela comunidade escolar, poderá possibilitar a construção da Política da Igualdade. Expressões inspiradoras e inconformistas da nossa história oportunamente podem se fazer presentes, a fim de iluminar e contri- buir com essa tese acerca do direito à palavra. O silêncio da maioria Paulo Leminski A voz da maioria silenciosa é silêncio cúmplice o silêncio de quem compactua com o silêncio de Hitler e deixa prosseguir o silêncio de Graciliano o silêncio comodista dos que dançam conforme a música o silêncio dos que fingem que não sabem o silêncio dos que fazem de conta que não têm nada com isso o silêncio comprado com a boa vida o silêncio dos que dizem Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 17 viva e deixe viver um toque de silêncio um minuto de silêncio antes da iluminação. 1. Com base no texto “Educação e sociedade”, apresente uma concepção de escola. 2. Apresente as diferenças entre as esferas pública e privada na Antiguidade, e comente a contri- buição desses conceitos para a construção de uma Política da Igualdade. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 18 3. A partir das concepções de Paulo Arantes em “Pensamento único”, e Jacques Rancière em “O dissenso”, analise a questão “dos direitos” na democracia brasileira. 4. Dos elementos que compõem o conceito de Política da Igualdade, quais estão presentes e quais não estão incorporados no cotidiano da sua escola? Como construir os possíveis caminhos para o seu desenvolvimento? Antonio Candido – professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP; crítico e historiador de literatura. Publicou, entre outros: Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos (1959). Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 19 Antônio Joaquim Severino – professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP. Publicou, entre outros, os seguintes trabalhos: Metodologia do Trabalho Científico (1990); Métodos de Estudo para o 2.° Grau (1990); A Filosofia no Brasil (1990); Filosofia – Coleção Ma- gistério 2.° Grau (1994). Émile Durkheim (1858-1917) – pensador francês, considerado o pai da Sociologia. Publicou: As Regras do Método Sociológico (1895); Da Divisão Social do Trabalho; Educação e Sociologia; O Suicídio, entre outras. Florestan Fernandes (1920-1995) – sociólogo paulista. Publicou, entre outros: A Organização Social dos Tupinambás (1963); A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1978); Da Guerrilha ao Socialis- mo: a Revolução Cubana (1979); A Revolução Burguesa no Brasil – Ensaio de Interpretação Sociológi- ca (1981); A Ditadura em Questão (1982); Pensamento e Ação – o PT e os rumos do socialismo (1989). Hannah Arendt (1906-1975) – filósofa e pensadora social alemã de origem judia, publicou, entre outros: As Origens do Totalitarismo (1951); A Condição Humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963); The Life of the Mind (1978). Heloísa Rodrigues Fernandes – professora de Sociologia na USP. Publicou: Sintoma Social Dominan- te e Moralização Infantil, (1994); “Infância e modernidade: doença do olhar” (In: Infância, Escola e Modernidade – 1997), entre outras. Hilton Japiassu – professor e pesquisador nas áreas de Epistemologia e Filosofia das Ciências, atua na UFRJ. Publicou, entre outros: Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (1976); O Mito da Neutralidade Científica (1975); A Pedagogia da Incerteza (1983); A Crise da Razão e do Sa- ber Científico (1996). lmmanuel Kant (1724-1804) – filósofo alemão. Principais obras: Crítica da Razão Pura (1781); Pro- legômenos a qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência (1783); Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1785); Crítica da Razão Prática (1788). Jacques Rancière – professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Publicou: A Noite dos Proletários (1988); Os Nomes da História (1994); O Desentendimento – política e filosofia (1996); O Dissenso (1996). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) – filósofo suíço. Publicou: Discurso Sobre as Ciências e as Ar- tes (1748); Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755); Emílio ou da Educação (1757); O Contrato Social (1757); Devaneios de um Caminhante Solitário (1776), entre outros. Paulo Eduardo Arantes – ex-professor do Departamento de Filosofia da USP, tem se dedicado ao estudo das ideias filosóficas no Brasil. Publicou, entre outros: Hegel: a ordem do tempo (1981); Um Departamento Francês de Ultramar (1994); Dicionário de Bolso – do almanaque philosophico zero à esquerda (1997). Paulo Leminski (1944-1989) – poeta, romancista, ensaísta e compositor curitibano. Publicou, en- tre outros: Catatau (1975); Polonaises (1982); Trotski (1986); Distraídos Venceremos (1987); Guerra Dentro da Gente (1988). Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 20 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. CANDIDO, Antonio. Tendências no desenvolvimento da sociologia na educação. In: PEREIRA, Luís; FORACCHI, Marialice M. (Orgs.).Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1985. FERNANDES, Heloísa Rodrigues. Infância e modernidade: doença do olhar. In: GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo (Org.). Infância, Escola e Modernidade. São Paulo: Cortez; Curitiba: UFPR, 1997. HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis, 1983. MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. NOVAES, Adauto (Org.). A Crise da Razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996. RANCIÈRE, Jacques. Odissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A Crise da Razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996. SEVERINO, Antonio Joaquim. A Filosofia Contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação. Petrópolis: Vozes, 1997. Ética da Identidade O homem nasce livre e em toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Rousseau O estudo da Ética não tem a finalidade de inculcar regras, de educar para a obediência tácita, mas, sim, de possibilitar o acesso às diversas concepções de moral e, consequentemente, à análise crítica, ao debate e à compreensão de que as regras e as leis são criações humanas e, por não terem origem natural ou divina, são passíveis de transformações e mudanças. Nesse sentido, podemos afir- mar que a Ética é o estudo da liberdade. Moral (Dicionário Aurélio): conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada. Ética (Dicionário Aurélio): estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana, suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto (universal). Ética (Marilena Chauí): estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão; finalidades e valores da ação mo- ral; ideias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação etc. A Moral é definida por Marilena Chauí como uma criação histórico-cultural contrapondo- se às tendências que tentam apresentar os valores morais (ideias constituídas sobre o bem, o mal, a justiça, a injustiça, a liberdade, a responsabilida- de, a felicidade) como sendo naturais. Entende-se por cultura tudo o que o homem cria ou aquilo que altera na natureza; a maneira como os homens in- terpretam a si mesmos e suas relações com a natu- reza dando-lhes novos significados. A concepção naturalizadora da moral é um artifício criado pela humanidade para determinar, garantir e manter os padrões e os valores através dos tempos e das ge- rações. As sociedades historicamente não cultivam o exercício da Ética – a reflexão crítica dos valores morais – pelo contrário, impõem os valores de for- ma arbitrária e unilateral, identificando a origem destes ora na natureza, ora como criação divina, Imagem 4. Ética da Identidade 22 portanto, como sendo absolutos, dogmáticos e imutáveis. A coibição da reflexão acer- ca dos valores instituídos ou da possibilidade da criação dos seus próprios valores reduz os seres humanos a coisas (sujeitos em objetos), o que se caracteriza por um ato de vio- lência moral. Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tra- tados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente que nos transformem em coisas usadas e manipuladas por outros. (CHAUÍ, 1994, p. 337) A proposição de uma Ética da Identidade, como um dos fundamentos do En- sino Médio, pode, se compreendida na sua profundidade e encaminhada de acordo com a sua verdadeira finalidade, inaugurar uma fase de profundas reflexões e de transformações significativas na práxis educacional brasileira. Entendemos que Ética e Política são indissociáveis, porque, como já afirmamos anteriormente, uma comu- nidade, ao se organizar politicamente, deve fazê-lo em função de finalidades éticas – a busca dos valores de bem, justiça, igualdade e felicidade para todos. Nesse sentido, é fundamental que todas as instâncias envolvidas nesse processo, da mantenedora aos protagonistas da ação educativa na unidade escolar, tenham consciência da im- portância, da dimensão e da dificuldade dessa tarefa, principalmente se considerar- mos o conservadorismo histórico presente nas mais diversas instituições brasileiras – família, igreja, escola, governo, representação política, entre outros. Considerando que os homens vivem em sociedade na busca de um bem co- mum – viver melhor para viver feliz –, podemos dizer que a base da relação política de uma sociedade são os valores morais. A ética é sobretudo uma discussão acerca dos valores morais. Propor a Ética da Identidade como fundamento de uma escola é propor a reflexão sobre os valores estabelecidos e instituídos e a construção de novos valores. A pensadora social, Hannah Arendt, desenvolveu a categoria de vita activa a partir de três conceitos: o labor – expresso pelo próprio metabolismo; o trabalho – al- terações promovidas pelo homem na natureza; e a ação – representada pelas relações exclusivamente humanas, o homem com os seus semelhantes. Essa ação se funda- menta no discurso. Hannah Arendt ressalta que a ação é um atributo exclusivamente humano e a apresenta como um segundo nascimento do homem, o seu nascimento para a vida humana. A Identidade só pode ser construída a partir da ação. Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir movimento a alguma coisa. Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores, em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativa, são impelidos a agir. [...] O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição hu- mana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais. (ARENDT, 1987, p. 190-191) Nessa linha de abordagem, o pensamento de Gerd Bornheim amplia o nosso Ética da Identidade 23 entendimento do grau de complexidade existente na organização da sociedade entre o estabelecimento de normas e a singularidade humana. Entre o sujeito e a norma existe uma relação eminentemente tensa e conflituosa, uma vez que todo estabelecimento de uma norma implica cerceamento da liberdade “e, que compete à tessitura das forças sociais convencionar entre ambos alguma forma de equilíbrio; ou então, por vezes, reconhecer que o equilíbrio se faz difícil e mesmo impossível”. (BORNHEIM, 1997, p. 247) Imagem 5. Consciência moral é a capacidade de o sujeito conhecer os valores morais, avaliá-los segundo sua razão, sua vontade, seu desejo e, a partir disso, decidir pelo seu acatamento ou sua transgressão. Esse exercício de liberdade e autonomia implica um ato de responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. De todos os filósofos que refletiram sobre a Moral, F. Nietzsche foi, sem dú- vidas, o mais radical. A originalidade do seu pensamento decorre do grau de ques- tionamento acerca dos valores morais vigentes na sociedade do seu tempo. Aética nietzscheana é intransigente quanto ao direito de questionamento dos valores esta- belecidos, e mais, exige também o direito de que cada ser humano possa ser o cons- trutor/senhor dos seus próprios valores. Nietzsche se refere a uma superação radical do papel de submissão imposta pelas normas de conduta e valores reacionários aos indivíduos. Sua filosofia é um convite a uma transvaloração dos valores. Trata-se de perguntar em que consistem, como são instituídos, como se acham fundamentados os valores morais. Trata-se, ainda, de reinventá-los. A atitude de negação, questionamento e mesmo de transgressão das normas e valores vigentes perpassa toda a obra de Nietzsche e se apresenta de forma contun- dente na Genealogia da Moral, na qual o pensador utiliza estudos históricos dos fun- damentos da moral judaico-cristã, a fim de provar que os valores morais, sobretudo os de bem e mal, não se constituem por princípios metafísicos/religiosos e atempo- rais, mas que têm origem histórica, são criações humanas, demasiadamente humanas e diferem de sociedade para sociedade através dos tempos. Ética da Identidade 24 O único imperativo moral aceito por Nietzsche é o valor da vida traduzido por ele como vontade de potência. É dessa vontade de potência, para realização da vida, que devem nascer os valores morais. Negar a vontade de potência significa para Nietzsche reprimir a própria vida. Portanto, a moral conser- vadora, que desrespeita esse princípio, é autoritária e violenta, devendo ser transgredida. O seu método genealó- gico de investigação leva-o à descoberta de uma origem dis- torcida e até mesmo de uma in- versão dos valores de bem e mal e das virtudes como compai- xão, renúncia, abnegação, pie- dade e altruísmo, entre outras, tão propagadas e defendidas pela moral da nossa sociedade. “Necessitamos uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o valor desses valores, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condi- ções e os meios ambientes em que nasceram, em que se de- senvolveram e deformaram”. (NIETZSCHE, 1976, p. 13) Nietzsche argumenta que existe uma moral de senhores e uma moral de escravos, uma moral de fortes e uma moral de fracos e que, muitas vezes, essas morais coexistem numa mesma pessoa. A origem dos valores de bem e de mal é diferente para senhores e para escravos. Uma vez que o primeiro (valor do senhor) surge de uma autoafirmação e o último (valor do escravo) de uma negação e oposição, eles não podem ser equivalentes. [...] O valor “bom” de uma moral corresponde exatamente ao valor “mau” da outra. Enquanto os fortes afirmam: nós nobres, nós bons, nós belos, nós felizes; os fracos dizem: se eles são maus então nós so- mos bons. Portanto, “mau” no sentido da moral do ressentimento é precisamente o nobre, o corajoso, o mais forte; é o “bom” da moral dos senhores. (MARTON, 1993, p. 54) Pode-se concluir que a origem dos valores da moral dos fracos consiste numa inversão, numa mera reação. Não sendo capazes de criar seus próprios valores, os Imagem 6. Ética da Identidade 25 fracos (ressentidos) precisam negar os fortes para só então estabelecerem as bases da sua moral. Por não poderem admitir essa fragilidade e incapacidade de criar seus próprios valores, os fracos deslocam a origem dos valores tirando-a do domínio hu- mano e transferindo-a para um plano metafísico. Criados desde sempre, sobrehuma- nos e divinos, os valores devem ser apenas obedecidos. Trata-se de tentar impor aos fortes a culpa pela sua ação criadora de valores, transformando-a em desobediência às leis divinas e, com esse artifício, garantir a manutenção dos seus valores fracos, deturpados e invertidos. O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza teme- rosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paci- ência, o não poder vingar-se e não querer vingar-se e até perdoar, própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina so- bre os ímpios. (MARTON, 1993 p. 54) O projeto nietzscheano da transva- loração dos valores traduz-se numa bus- ca sem tréguas pela superação da moral niilista – desprovida de qualquer sentido. É, sobretudo, a busca da liberdade, da condição fundamental para a construção da verdadeira identidade humana. Na contramão dessas ideias de liberdade trazidas para o debate por meio das diversas leituras possíveis dos fundamentos filosóficos da nova proposta do Ensino Médio, anunciam-se espasmos de uma moral reacionária. Valendo-se da complexi- dade do aprendizado da vivência democrática, que é por sua natureza geradora de conflitos, sobretudo, quando envolvidas questões de poder, de valores, de estabeleci- mento de regras no espaço coletivo – a escola –, essas tendências conservadoras têm divulgado apelos, que embora estranhos e avessos à dinâmica do diálogo, se prestam a impor valores já superados. Publicações recentes, apoiadas por setores da mídia, anunciam um suposto fracasso do processo de construção de Autonomia, Identidade e Diversidade. Tais publicações: Condenam Confundem Brincos na orelha, bonés, roupas “esfarrapadas”. Questionamento com falta de respeito. Determinam Trocam Meninas de um lado e meninos de outro, O diálogo pela punição. A volta da fila. A discussão sobre as consequências do vício pela proibição de fumar. A hierarquia dos papéis. O diretor que não fala com alunos fora de sua sala. A reflexão sore os valores morais pelo cultivo das “boas maneiras”. A volta do castigo físico. A volta dos uniformes de gravatinha, terninho e saia plissada. Imagem 7 – Diferenças. Ética da Identidade 26 Estética da Sensibilidade Para Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida- de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados. Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sen- tido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587) Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valores presen- tes são construções histórico-sociais. Nessa traje- tória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a huma- nidade, se evidencia como negativa a concepção de que a razão seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen- volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so- ciedades com instrumentos e ob- jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe- riência de transformação da socie- dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie- dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão. Na supremacia da razão so- bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sen- sibilidade foi se caracterizando como um adorno, um enfeite, um componente não Imagem 8 – Paris, 1968. Imagem 9 – Largo da Ordem – Curitiba (PR). Imagem 10 – Grafite em Curitiba – Jairo Marçal. Ética da Identidade 27 essencial para o conheci- mento e para a existênciahumana. A sociedade capi- talista pautada na produção e no consumo restringe de forma impositiva a vida hu- mana às regras do mercado econômico e põe em cena uma derivação menor da condição humana – o ho- mem unidimensional, aque- le voltado exclusivamente para o trabalho, para a rea- lização de suas necessida- des biológicas e para a ma- nutenção da espécie, o homem cada vez menos humano. Uma sociedade que vem sufocando o princípio do prazer em nome de um questionável princípio de realidade. As perdas decorrentes dessa unidimensionalização do homem são muito mais significativas do que um olhar apressado poderia revelar, elas atingem a essência do homem, sua inventividade, sua criatividade, sua imaginação, sua singularidade – a subjetividade humana. Uma sociedade de homens desprovidos desses atributos é uma sociedade sombria, autômata, padronizada, totalitária e, apesar de todas as imitações produzidas com o intuito de forjar uma beleza inexistente ou ilegítima, tudo o que essa sociedade consegue revelar é o seu oposto – a sua incapacidade de ser Estética. Uma sociedade jamais será Estética se não incorporar em sua dinâmica a Po- lítica e a Ética. A desconsideração dessas dimensões pode reduzir a Estética à mera maquiagem. Pensar a Estética da Sensibilidade é abrir caminho para a criatividade, a imaginação, a singularidade e a curiosidade pelo inusitado. A exemplo de tantos problemas psicológicos, as pesquisas sobre a imaginação são dificulta- das pela falsa luz da etimologia. Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percep- ção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória fami- liar, hábito das cores e formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: “A imaginação não é um estado, é a própria existência humana.” (BACHELARD, 1990, p. 1) Estética da Sensibilidade Para Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida- de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados. Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sen- tido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587) Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valores presen- tes são construções histórico-sociais. Nessa traje- tória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a huma- nidade, se evidencia como negativa a concepção de que a razão seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen- volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so- ciedades com instrumentos e ob- jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe- riência de transformação da socie- dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie- dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão. Na supremacia da razão so- bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sen- sibilidade foi se caracterizando como um adorno, um enfeite, um componente não Imagem 8 – Paris, 1968. Imagem 9 – Largo da Ordem – Curitiba (PR). Imagem 10 – Grafite em Curitiba – Jairo Marçal. Ética da Identidade 28 Imagem 12 – O Violeiro – José Ferraz de Almeira Júnior.Imagem 11 – Colin Cooper – Jairo Marçal. Imagem 13 – O Beijo – Augusto Rodin. A obra de arte, em sua particularidade e singulari- dade única oferece algo universal – a beleza – sem necessidade de demonstrações, provas, inferên- cias e conceitos. Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um quadro posso dizer que são belos, ou que ali está a beleza, embora esteja diante de algo único e incomparável. O juízo de gosto teria, assim, a peculiaridade de emitir um julgamento universal, referindo-se, porém, a algo singular e particular. (CHAUÍ, 1994, p. 321) A sensibilidade estética transfor- ma em expressão artística a interpreta- ção que o homem faz do mundo e da sua existência. A arte é, entre as instâncias do conhecimento humano, a que oferece as maiores possibilidades de desenvolvi- mento da sensibilidade, tanto para quem produz – o artista – como para quem frui – o público. A escola pode se constituir como um espaço de fruição das obras de arte, originais ou reproduzidas, bem como de iniciação às diversas formas de expressão artística. Trata-se da democratização do acesso à arte, que às vésperas do século XXI, em que pese o fato de se dispor de avançados meios de comunicação, ainda é privilégio de poucos, com o agravante de que a indústria cultural, dirigida pelos interesses do mercado, impõe às camadas destituídas de poder uma estética do mau gosto. A democratização do acesso às diversas linguagens da arte deve perpas- Ética da Identidade 29 sar todas as áreas do conhecimento, não devendo ser compreendida como atributo exclusivo de algumas disciplinas ou áreas. Contra a concepção de natureza como objeto disponível e manipulável para a exploração, os frankfurtianos propõem a gratuidade da fruição estética e da arte. Na dimensão estética deli- neiam-se as potencialidades liberadoras da imaginação produtora e criadora, os poderes de Eros contra a civilização repressiva, porque a arte transcende a determinações espaço-tem- porais, vence a morte. A arte é testemunha de um outro princípio de realidade que não o da submissão à produtividade; ao desempenho do mundo competitivo do trabalho e da renúncia ao prazer. Trata-se de um princípio que reconcilia o homem com a natureza exterior, interior e com a história. Para os frankfurtianos Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamim, a arte é o antídoto contra a barbárie. Os meios de comunicação de massa são o opos- to da obra de pensamento que é a obra cultural – ela leva a pensar, a ver, a refletir. As imagens publicitárias, televisivas e outras, em seu acú- mulo acrítico, nos impedem de imaginar. Elas tudo convertem em entretenimento: guerras, genocídios, greves, cerimônias religiosas, ca- tástrofes naturais e das cidades, obras de arte, obras de pensamento. A cultura, ao contrário, é para o frankfurtianos a quintessência dos di- reitos humanos. Em um mundo anti-intelectual, antiteórico e inimigo do pensamento autônomo, a razão ocupa lugar central. Cultura é pensa- mento e reflexão. Pensar é o contrário de obe- decer. (MATOS, 1993, p. 71-72) Apresentar como fundamento filosóficodo Ensino Médio a Estética da Sensibilida- de, pouco, ou até mesmo nunca abordada em qualquer proposta anterior, sem dúvida, abre um caminho importante para a inserção, com grande diversidade de alternativas, do mun- do sensível na construção do conhecimento. Entretanto, não devemos ingenuamente supor que tal inserção se fará por meio de uma “mágica de implantação de propostas”. Não basta proferir o discurso do incentivo, do “fazer acontecer.” Numa escola inspirada na Estética da Sensibilidade, o espaço e o tempo são planejados para acolher e expressar a diversidade dos alunos e oportunizar trocas de significados. Nessa esco- la, a descontinuidade, a dispersão caótica, a padronização, o ruído, cederão lugar à continui- dade, à diversidade expressiva, ao ordenamento e à permanente estimulação pelas palavras, imagens, sons, gestos e expressões de pessoas que buscam incansavelmente superar a frag- mentação dos significados e o isolamento que ela provoca. (PCN, 1999) É fundamental assegurar, como consequência de um intenso processo de dis- cussão e reflexão, o compromisso político e ético de todos os agentes envolvidos e indispensáveis na consecução da proposta. É necessário criar condições organi- zacionais, institucionais, estruturais e profissionais para que o desenvolvimento do sensível, a expressão artística, encontre no espaço e no tempo escolar alternativas de realização. Imagem 14 – Cinco Moças de Guaratinguetá – Di Cavalcanti. Ética da Identidade 30 1. Considerando as relações conflituosas existentes entre o sujeito e a norma, discorra sobre o sentido da transvaloração dos valores de Nietzsche. 2. A partir das ideias apresentadas acerca do significado de ética, elabore a sua própria concepção de uma Ética da Identidade no espaço da sua escola. 3. Quais os novos elementos trazidos pela Estética da Sensibilidade para o contexto escolar e de que forma eles podem colaborar qualitativamente com a Educação Básica? 4. Apresente alternativas para a construção de uma Estética da Sensibilidade dentro da escola. Ética da Identidade 31 Friedrich Nietzsche (1844-1900) – filósofo alemão. Principais obras: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1871); Humano, Demasiado Humano (1878); Assim Falou Zaratustra (1884); Para Além de Bem e Mal (1886); Para a Genealogia da Moral (1887). Gaston Bachelard (1884-1962) – filósofo francês. Principais obras: O Novo Espírito Científico (1934); A Psicanálise do Fogo (1938); A Filosofia do Não (1940); A Poética do Espaço (1957); O Ar e os So- nhos – ensaio sobre a imaginação do movimento (1943). Gerd Bornheim – professor de Filosofia na UFRJ. Publicou: Dialética: teoria e práxis (1983); O Idiota e o Espírito Objetivo; O sujeito e a norma (In: Ética, São Paulo, Cia das Letras, 1992); Crise da ideia de crise (In: A Crise da Razão, 1960); O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sen- sível (In: Libertinos Libertários, 1996) entre outros. Karl Heinrich Marx (1818-1883) – filósofo, historiador e jornalista alemão. Principais obras: Manus- critos Econômicos-Filosóficos (1844); Teses Contra Feuerbach (1845); A Miséria da Filosofia (1847); Manifesto Comunista (1848); O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852); Para a Crítica da Economia Política (1859); O Capital (1867/1894). Marilena de Souza Chauí – professora de História da Filosofia e Filosofia Política na USP. É autora de: Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas (1986); O que é Ideologia (1981); Repres- são Sexual, essa nossa Desconhecida (1984); Convite à Filosofia (1994); Público, Privado e Despotismo (In: Ética, 1992); A Nervura do Real: liberdade e imanência em Espinosa (1999), entre outros. Olgária Chain Feres Matos – professora de Filosofia Política na USP. Publicou: Rousseau: uma arque- ologia da desigualdade; 1968: as barricadas do desejo; O Iluminismo Visionário: Walter Benjamin, leitor de Descartes e Kant; A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. Scarlet Marton – professora de Filosofia Moderna e Contemporânea na USP. Publicou, entre outros: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (1990); Nietzsche: uma filosofia a marteladas (1982); Foucault: leitor de Nietzsche (1985); Nietzsche: a transvaloração dos valores (1993). Ética da Identidade 32 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. BACHELLARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Le- tras, 1992. BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. BULCÃO, Marli. O Racionalismo da Ciência Contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de Janeiro: Antares, 1981. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores). MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. MARTON, Scarlet. Nietzsche e a Transvaloração dos Valores. São Paulo: Moderna, 1993. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros Textos Escolhidos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores). MATOS, Olgária C.F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. NIETZSCHE, Friederich. A Genealogia da Moral. Lisboa: Guimarães & Companhia de Editores, 1976. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992. O Livro da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. RAMOS, Célia M. A. Grafite, Pichação e Cia. São Paulo: Annablume, 1994. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização O estudo dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio, incluindo o Pa-recer 15/98, embora não revele discordância com relação ao significado imediato do trinômio Autonomia, Diversidade e Identidade, denuncia o distanciamento entre aqueles que idealizaram a proposta e aqueles que efetivamente deverão colocá-la em prática. A forma excessivamente econômica na apresentação dos conceitos quanto à sua extensão e profundidade, juntamente com o compromisso e a responsabilidade atribuída aos protagonistas da ação educativa nas unidades escolares, provocam pre- ocupação e inquietação. Ao se remeter aos princípios norteadores, sejam eles a Polí- tica da Igualdade, Ética da Identidade, Estética da Sensibilidade, ou aos que estamos tratando nesta unidade: Autonomia, Diversidade e Identidade, a proposta estabelece com muito rigor os pontos de partida e de chegada, nesse último caso, anunciando inclusive os instrumentos avaliativos para mensuração dos resultados. Defende “me- canismos de prestação de contas que facilitem a responsabilização dos envolvidos”, entretanto, pouco investimento é destinado ao processo de elucidação da complexi- dade semântica e filosófica dessas ideias, bem como da sua execução pedagógica e administrativa. Talvez esse seja um bom começo para colocar em discussão o con- ceito de Autonomia. Autonomia Autonomia: auto-nomos (dar a si mesmo suas leis). Heteronomia: normas, regras e leis estabelecidas por outros. Anomia: ausência de leis. A criação pelos gregos da política e da filosofia é a primeira emergência histórica do projeto de autonomia coletiva e individual. Se quisermos ser livres devemos fazer nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém pode dizer-nos o que devemos pensar. [...] Autonomia, Identidade e Diversidade– a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 34 A autonomia surge, como germe, assim que a interrogação explícita e ilimitada se manifesta, incidindo não sobre “fatos” mas sobre as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível. Momento de criação, que inaugura não só outro tipo de sociedade; mas também outro tipo de indivíduo. Eu falo exatamente de germe, pois a autonomia, tanto social como in- dividual, é um projeto.[...] o que se pergunta é, no plano social: nossas leis são boas? Elas são justas? Que leis devemos fazer? E no plano individual: o que eu penso é certo? Posso saber se é certo e como? [...] O momento do nascimento da democracia e da política, não é o reinado da lei ou do direito, nem o dos “direitos do homem”, nem mesmo a igualdade dos cidadãos como tal: mas o surgimento, no fazer efetivo da coletividade, da discussão da lei. Que leis devemos fazer? Nesse momento nasce a política; em outras palavras nasce a liberdade como social-historicamente efetiva. (CASTORIADIS, 1992, p. 139-140) Propor no espaço escolar a discussão da Autonomia implica o difícil rompi- mento com um modelo heterônomo de funcionamento da escola, que se estende por toda a sociedade. Tal rompimento deve se dar sob duas perspectivas: internamente, envolvendo todos os sujeitos que compõem as unidades educacionais na elaboração de um projeto coletivo, numa ação reflexiva e deliberante estabelecendo de forma participativa todas as regras, normas e leis necessárias àquele contexto social; a ou- tra, na relação que as instituições que compõem o sistema de ensino estabelecem entre si, evitando, assim, esbarramentos em entraves burocráticos instituídos e limi- tações de cunho político-econômicas. Posso dizer que estabeleço a minha lei – quando vivo necessariamente sob a lei da sociedade? Sim num caso: se puder dizer reflexiva e lucidamente, que essa é também a minha lei. Para que possa dizer, não é necessário que a aprove: basta que eu tenha a possibilidade efetiva de participar ativamente da formação e do funcionamento da lei. A possibilidade de participar: se eu aceitar a ideia de autonomia como tal, o que evidentemente nenhuma “demonstração” pode me obrigar a fazer, nem tampouco pode me obrigar a colocar de acordo minhas palavras com meus atos, a pluralidade indefinida de indivíduos pertencendo à sociedade leva imedia- tamente à democracia como possibilidade efetiva de igual participação de todos, tanto nas atividades instituintes como no poder explícito. Pois o “poder” fundamental numa sociedade, o poder primeiro do qual dependem todos os outros, o que chamei mais acima de infra- poder, é o poder instituinte. [...] este poder não é localizável, nem formalizável pois está na dependência do imaginário instituinte. A língua, a “família”, os costumes, as “ideias”, uma quantidade inumerável de outras coisas e sua evolução quanto ao essencial, escapam da legislação. Além disso, na medida em que esse poder é participável, todos participam dele. Todos são “autores” da evolução da lín- gua, da família, dos costumes etc. (CASTO- RIADIS, 1992, p. 143-144) No processo de operacionaliza- ção da proposta, atribuir à instituição mantenedora, no caso da escola pública, a proposição de ações que assegurem reais condições para o desenvolvimen- to de um projeto autônomo em cada Imagem 15 – Frostispício da partitura de “A internacio- nal”, hino do movimento operário, composto em 1870 por Eugenio Pottier. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 35 unidade de ensino é condição essencial para que a Autonomia não se torne apenas mais uma apropriação indébita de um discurso emancipador, visando isentar o Estado de suas responsabilidades. Entre essas ações podemos citar o orçamento participativo; a corresponsabilidade na elaboração, desenvolvimento e resultados dos projetos; a de- finição conjunta de programas de qualificação profissional; o estabelecimento de um canal de diálogo permanente; a superação de imposições economicistas resgatando o verdadeiro papel do Estado e suas obrigações constitucionais. Nesse sentido, é preocu- pante para todos os envolvidos na ação educativa, a insistência com que o Estado vem sugerindo às escolas públicas que busquem “articulações e parcerias com instituições públicas ou privadas” ou ainda, as “fabulosas” campanhas publicitárias com “estórias sobre os amigos da escola”, num claro “disfarce” para encobrir sua isenção em mais uma forma de exclusão. (PCN, 1999. Adaptado.) Os movimentos emancipadores modernos, sobretudo o movimento operário, mas também o movimento das mulheres, colocaram a questão: pode haver democracia, ou pode haver, para todos que assim quiserem, igual possibilidade efetiva de participar do poder, numa sociedade onde existe e se reconstitui constantemente formidável desigualdade do poder econômico, imediatamente traduzível em poder político? Ou então, pode haver democracia, numa socie- dade que tendo concedido há algumas décadas, os “direitos políticos” às mulheres, continua de fato a tratá-las como “cidadãos passivos”? As leis da propriedade (privada, ou “do Esta- do”) caíram do céu? Em que Sinai foram recolhidas? (CASTORIADIS, 1992, p. 144-145) Toda e qualquer instituição – a escola, a mantenedora, o Estado – é feita pelos indivíduos que a ela pertencem, logo, é essencial a participação dessa coletividade no questionamento irrestrito do funcionamento da instituição. Castoriadis (1992, p. 142) pergunta – “Como compor uma sociedade livre a não ser a partir de indivíduos livres? E onde encontrar esses indivíduos se eles não puderam ser criados na liber- dade?”. Tais questões nos remetem à necessidade de pensarmos sobre a constituição da Autonomia Individual. O que pressupõe o conhecimento da subjetividade humana, da sua psique, da existência de um inconsciente pulsional, da configuração de signifi- cações próprias que atribuem um sentido singular à existência – elementos essenciais para a sua lucidez, para a capacidade de reflexão e de relação com o seu presente e com a história. A autoalteração que se origina a partir da reflexão sobre a sua própria subjetividade, das suas relações com o mundo exterior e da sua capacidade de deli- beração lúcida, liberta o sujeito da condição de produto da sua psique, da história e da instituição que o constituiu. Castoriadis (1992, p. 141) diz que “a formação de uma instância reflexiva e deliberante, da verdadeira subjetividade, libera a imaginação radical do ser humano singular, como fonte de criação e alteração. [...] a instância reflexiva desempenha um papel ativo e não predeterminado.” Ao se chamar a atenção para a importância do desenvolvimento da autonomia individual provoca-se, automaticamente, a discussão sobre a Identidade, não por aca- so, o próximo ponto do trinômio a ser apresentado. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 36 Identidade Imagem 16 – Encontro (litogravura) – Escher. A construção de uma Identidade1 Pessoal pressupõe um processo subjetivo. Em tempos globalitários – economia globalizada e a consequente ameaça de totalita- rismo – essa subjetividade aparece ameaçada por uma verdadeira onda homogenei- zadora destruidora de todos os vestígios traçados e marcas singulares que constituem os referenciais identitários. Em sua volta, cada um sente perfeitamente que o álibi da modernidade serve para dobrar tudo sob o implacável nível de uma estéril uniformidade. Um estilo de vida semelhante se impõe de um extremo ao outro do planeta, divulgado pela mídia e prescrito pela intoxicação da cultura de massa de La Paz a Ouagadougou, de Kyoto a São Petersburgo, de Oram a Amsterdam, mesmos filmes, mesmas séries de televisão, mesmas informações, mesmas canções, mesmos slogans publicitários, mesmos objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo,
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