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8 PARA UMA FILOSOFIA POLÍTICA BRASILEIRA DE LIBERTAÇÃO I: SOBRE A EDUCAÇÃO E A PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA 1ª Edição para livro eletrônico Distribuição gratuita http://hamatos.wordpress.com hugo.allan@gmail.com 9 Autorizo reprodução desde que citada a fonte e autor. Obrigado. “... Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário...” (Lenin) Este trabalho é dirigido e dedicado a todas as pessoas que são comprometidas ou querem comprometer-se com uma educação pública, gratuita, democrática e de qualidade e com a transformação do mundo para um mundo mais justo e solidário, até a dissolução das classes sociais e garantia de respeito às alteridades. In Memória: Danilo Di Manno de Almeida 10 Nos intervalos entre o jantar e o café da manhã, dividindo meus momentos de lazer ou tempo ocioso, privando-me da convivência com amigos, familiares e sobretudo esposa. Como seria bom ter um tempo para escrever, engana-se quem o pensa. O tempo é o que temos e quando o relógio não nos diz que temos que fazer algo ou estar em algum lugar. É naquele momento, que podemos fugir de nossa condenação cotidiana, burocratização da vida em tarefas e trabalhos e nos darmos o luxo de escrever. Receio que por criticar a hegemonia, esteja condenado à marginalidade, pois já sinto fortemente resquícios de tal condenação. Contudo, basta-me saber que fui fiel a mim mesmo e minha origem. O lugar para onde sempre posso voltar e repousar e onde a vida, apesar de mais sofrida é menos dolorida, pois não é simulada. Aonde não há espaço para simulação e por isso estas linhas escritas talvez pareçam duras demais a algumas pessoas, mas é minha visão, mediada pela forma que percebo a realidade. Para além das circunstâncias, por que, afinal me encontro na condição de docente-pequisador? Gostaria de arriscar e des-tacar um motivo mais profundo: é para agir no mundo por meio das palavras e deixar o mundo (marginalizado) agir nas palavras. De outro lado, para semear nestas paragens sementes de coisas que não encontrei quando me alimentei de seus produtos. (Danilo Di Manno de Almeida) 11 APRESENTAÇÃO: Esta edição para livro eletrônico trata-se do primeiro volume que pretendo produzir. Aborda uma conjuntura conceitual da educação e aponta caminhos para uma possível práxis revolucionária cultural. A seguir, virá a tese de doutoramento com uma leitura conjuntural e evidenciação de possibilidades para uma Política revolucionária. E se tiver fôlego e ainda houver a necessidade, um terceiro volume sobre economia. Ambas em perspectiva de libertação, a partir do Brasil. Perceba-se que são temas inseparáveis, complementares, tal como estas três revoluções – Cultural, Política e Econômica -, necessárias para um processo revolucionário completo. Esta primeira edição do primeiro volume é a divulgação da dissertação de mestrado entitulada: Opressões da corporalidade na pedagógica brasileira e possibilidade de libertação a partir das culturas populares revolucionárias na qual, em linguagem filosófica, penso a educação não para além, mas talvez, anterior de aonde ela é pensada comumente. Antes das teorias educacionais, das discussões e “dialeticidades” de ora focar o ensino, ora a aprendizagem, mostro a urgência e possibilidade – apesar da complexidade evidenciada - de pensar a realidade concreta da escola pública. Focar as relações de construção de conhecimento é nosso objetivo aqui. Mas para isso, urge primeiro perceber a assimetria existente entre educador (a) – educando (a). Ainda é necessário que o (a) educador (a) saiba quem é, tenha uma reflexão antropológica que lhe permita saber seu lugar nesta relação e o lugar da (o) educanda (o). E o lugar de ambas (os) no mundo. A indissociabilidade entre educação, cultura e filosofia compõe o conceito de pedagógica. Pensar a pedagógica a partir da realidade concreta exige uma linguagem que a exprima em forma e conteúdo, quanto mais próxima for do que se pode conceber como real. As culturas populares revolucionárias, por terem consciência crítica de aonde se localizam e destacarem-se por sua linguagem apropriada por grande parte das (os) educandas (os) dos mais diversos lugares deste país, podem fazer esta ponte, reduzindo a assimetria e estabelecendo relações mais aproximadas, portanto. Ficou como exemplo o grupo de rap facção central. Além disso, trata-se de mostrar limites históricos e conceituais a serem superados, apontando um caminho para a realização de uma revolução cultural (e educacional, portanto). Mas como o título desta edição delimita, começar com “Para uma...” é justamente o reconhecimento da possibilidade de falhas, é a demarcação de um início de conversa, que 12 clama um diálogo, pede complementos, com os quais conto para uma possível segunda edição dialogada entre um grupo que queira pensar a revolução cultural e sua relação com o sistema educacional e com as relações de construção de conhecimento. Apesar da fragilidade apontada, penso que a retomada de Dussel neste campo da filosofia da educação e cultura e o acompanhamento na ética e na política da libertação, permitem ampliar os horizontes construir teorias revolucionárias brasileiras, a exemplo do que se faz hoje em Venezuela, Bolívia, Equador e Uruguai. A história julgará e mostrará o caminho que seguirão. Penso, contudo, que não podemos esperar a história, mas devemos construí-la. Não me são aceitáveis as posições de uma esquerda dogmática que espera – há séculos – o momento histórico da revolução e por isso conformam-se com o mundo como está, colocando-se numa posição confortável de crítica a tudo e todos. Tampouco penso ser aceitável o pragmatismo político que se instalou em nosso país, qual aprece assumir o fatalismo burguês, como se natural fosse, e participa de sua estrutura, negociando com empresas privadas uma governabilidade frágil, garantindo a manutenção do status-quo em troca de migalhas para programas sociais que criaram uma nova classe média, devedora, que tem seus dias contados. Assim, a intenção é iniciar uma linha de pesquisa, convidar pessoas que tenham interesse na temática e estejam dispostas a dialogar teoricamente na construção de teorias que possam apontar caminhos para a práxis revolucionaria de nosso tempo. Coloco-me, portanto, à disposição, expondo-me, talvez em demasia, mas colocando à prova meu ponto de vista, que não apresenta grandes novidades, mas busca resgatar este debate tão esquecido e muitas vezes, injustiçado que é o da revolução cultural (e educacional). 13 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 14 2 O CONCEITO DE PEDAGÓGICA 18 2.1 UM A-PEDAGOGISMO 18 2.1.1 Cientificismo Ideológico 21 2.2 PEDAGÓGICA SIMBÓLICA 23 2.3 PEDAGÓGICA MODERNA COMO TOTALIDADE 25 3 CULTURA 34 3.1 O QUE É CULTURA? 35 3.2 A QUESTÃO CULTURAL LATINO-AMERICANA 40 3.2.1 Limites culturais a serem superados 45 3.2.2 Outra história cultural latino-americana e brasileira 51 3.2.3 Cultura Burguesa x Cultura do Trabalhador 59 3.3 CULTURA POPULAR REVOLUCIONÁRIA 69 4 NEGAÇÕES DA CORPORALIDADE NA PEDAGÓGICA BRASILEIRA 73 4.1 CORPORALIDADE: PRINCÍPIO ÉTICO DE LIBERTAÇÃO 75 4.2 FACÇÃO CENTRAL 764.3 NEGAÇÕES DA CORPORALIDADE NA PEDAGÓGICA BRASILEIRA 77 4.4 CONSIDERAÇÕES 91 14 1 INTRODUÇÃO Meses angustiantes (mais de 24) perpassaram este trabalho. É assim que quero iniciar, participando você deste processo. Isso porque tenho certeza que muitas das dificuldades que passei ao realizá-lo são as mesmas que você passa, passou ou passará como educadora. A primeira angústia foi em relação ao método, caminho a ser seguido. Como abordar a questão de gênero, a abstração de escrever no plural, a linguagem hermética que é comum a certo tipo de filosofia e teorias sobre educação, o academicismo... Algumas destas e outras questões surgentes e comentadas ao longo do trabalho ainda não foram possíveis de serem superadas, por não fazerem parte da linguagem acadêmica. Entretanto, a inversão de gênero (a) e (o), algumas vezes a utilização da primeira pessoa do singular e o esforço do uso de uma linguagem mais próxima à coloquial, foram opções em respeito a você. Bem como a tradução das citações em espanhol. A angústia maior, que está em todos os capítulos, é a da dificuldade para o recorte teórico. Em tempo tão favorável à multidisciplinariedade, o fácil acesso à informação e conteúdo, a emergência de tratar diversos temas... dificultaram em demasia um recorte específico que atendesse aos tantos clamores que percebo na realidade. A negação da corporalidade na pedagógica brasileira é uma provocação danilesca 1 que aceitei e a partir desta, caminhei prevendo possibilidades de libertação a partir das culturas populares revolucionárias. Mas no decorrer do caminho foi ficando cada vez mais claro que partir das 2 culturas populares para analisar o fenômeno educativo, é pensar a educação em outra perspectiva, é fundamentar outro conceito de educação. Outro conceito de educação diverso de muitos que temos vigentes em nossa pedagógica brasileira. Foi necessário então, explicitarmos o conceito de pedagógica, colocando-o como uma posição a-pedagogista 3 , contra qualquer cientificismo ideológico. Explicitando a pedagógica simbólica e a constituição da pedagógica moderna, que é a vigente, hegemônica, como totalidade ontológica. Mostrarei ainda no primeiro capítulo a necessidade da superação da pedagógica moderna ontológica justamente por esta ser opressora e negadora da corporalidade. 1 Menção a meu primeiro orientador deste trabalho: Danilo Di Manno de Almeida, que nos deixou na metade do caminho, falecendo inesperadamente e contribuindo assim, como sempre fez parte de sua práxis pedagógica, para esta angústia, inquietude e espanto frente à realidade e ao conhecimento a cerca dela. 2 Leia-se com, junto a, conforme veremos no decorrer deste trabalho. 3 E conforme esclareci várias vezes no trabalho, não contra todo tipo de pedagogia, mas contra um pedagogismo que reina em nosso tempo, qual expliquei no primeiro capítulo. 15 A segunda questão teórica a ser abordada foi a do conceito de Cultura. Contextualizar algumas implicações de se fazer filosofia da cultura na América Latina, apontando limites histórico-conceituais, abordando a necessidade de uma filosofia da cultura latino-americana com pretensão transcultural foi uma tarefa que complementa e não se separa da primeira, pois a pedagógica é filosofia da educação e da cultura, ou em termos mais apropriados, a filosofia latino-americana só pode ser pedagógica e como tal, deve pensar a educação e a cultura, além das outras realidades já abordadas por esta filosofia, como a política, a estética, a ontologia, a antropologia, etc... Um terceiro objetivo foi o de mostrar que as culturas populares guardam propriedade de exterioridade da pedagógica hegemônica que possibilitam autenticidade. Ou seja, quando estas culturas populares se tornam revolucionárias a partir da consciência ético-crítica 4 que se afirma como alteridade, surge a possibilidade de autenticidade pedagógica. Desta forma, a cultura hip-hop, aqui representada por apenas um de seus elementos, a saber: o rap, enquanto cultura popular revolucionária tem muito a contribuir para outra abordagem educativa que parta das vítimas da pedagógica vigente. Considerar que as culturas populares revolucionárias podem contribuir com outra perspectiva educativa é abolir a ideia de que as teorias sobre educação devem partir da academia para a sociedade. É uma inversão deste processo. É partir dos problemas educativos nas relações de construção de conhecimento atuais, denunciados pelas culturas populares revolucionárias trazendo-os a serem pensados também na academia e pretender auxiliar estas culturas a pensarem – juntos, academia e cultura popular revolucionária, o mais simetricamente possível - possibilidades de resoluções destes problemas. Esta novidade é academicamente e metodologicamente possível a partir da filosofia da libertação de Enrique Dussel. Neste trabalho, ainda estamos em uma primeira tarefa – do ideal para o concreto -, que é anterior: mostrar a necessidade de novas abordagens educativas que partam das culturas populares. Ao mostrar esta necessidade, superando assim as falácias de que a educação restringe-se à escola e de que a pedagogia, tal como está hoje, em geral, é a formação da educadora e educador, por excelência, pretendemos também superar o erro vindo desta abordagem cientificista pedagógica de separar a educação da cultura. Dada a indissociabilidade entre educação, cultura e filosofia, mostrando a necessidade da ênfase nas relações educativas e não no ensino ou na aprendizagem, uma segunda tarefa – o concreto é teorizado e volta para a realidade – que apenas iniciaremos neste trabalho. É 4 Apontada sobretudo, por Paulo Freire, Milton Santos e Enrique Dussel, dentre outros. 16 através da analética, método de Enrique Dussel, que partimos de narrativas destas culturas populares revolucionárias conseguindo vislumbrar opressões e negações da corporalidade da pedagógica brasileira e então, poder fazer o caminho de analisar e pensar estas opressões, tal como apontamos anteriormente, vislumbrando caminhos para superá-las. Pensar isso não é tarefa fácil, pois ainda pairam na academia certa negação de tudo que se relaciona com o popular. Além, é claro, da baixa autoestima intelectual latino- americana e brasileira, qual conscientemente ou inconscientemente corroboram a ideia de que “latino-americanos não têm asas metafísicas5” e, portanto, não podem produzir pensamento. Possibilitar um referencial teórico que permita práticas pedagógicas efetivas na construção de conhecimento a partir de nosso lugar, pensando nossos problemas e não como se tornou comum: silenciar-nos para que o pensamento hegemônico fale por nós. A educadora, o educador, não pode eximir-se de pensar sua prática desde o seu lugar. O que nos move à docência? O que nos leva a, apesar de todas as adversidades, sermos educadoras e educadores? Se não for para agir no mundo e deixar o mundo (marginalizado) agir nas palavras, como nos disse Danilo, ou ainda, se o que nos move não é a esperança de que nossa prática pode interferir no mundo a fim de buscarmos um mundo mais justo, penso que seja primaz o questionamento: Vale à pena? Se você já não acredita que a educação pode auxiliar 6 na transformação da realidade, vale à pena continuar? Não só a reflexão proposta neste trabalho, mas qualquer reflexão aprofundada sobre o fazer pedagógico é complexa. Assim, conto com sua paciência, de acompanhar-me na construção dos conceitos, que vão ganhando uma complexidade em mesmo tempo que facilmentepodem associar-se com exemplos de nossa realidade concreta. Para quem acredita e é movida/movido pela esperança desta verdade, de que vale à pena lutar pela educação pública, gratuita, democrática e de qualidade, penso que estas páginas podem auxiliar na reflexão sobre nossa prática. E espero que sirvam de incentivo para que possamos, junto às culturas populares, vislumbrarmos novas práticas educativas (escolares e não escolares) que efetivamente transformem a realidade. Não posso perder a oportunidade de agradecer à Universidade Metodista de São Paulo, por ter possibilitado que eu fizesse esse mestrado que, por convenção trabalhista, é integralmente pago pela instituição. Além disso, agradecer à professora Roseli Fischmann que 5 Afirmação comum na teoria de um Hegel por exemplo, dentre tantos outros teóricos modernos (eurocêntricos) que fundamentam a pedagógica moderna hegemonicamente vigente. 6 E não sou ingênuo de pensar que é a educação institucionalizada que fará sozinha as revoluções. Mas ajudará a fazê-las. 17 permitiu que eu escrevesse essa dissertação com total liberdade, de acordo com o que tinha projetado com Danilo. Em apoio a este texto, criei um blog apenas sobre este assunto, que ajuda a compreender o que aqui está, mas pretende continuar as reflexões. O endereço é http://dissertacaohugo.wordpress.com/, contribuições serão muito bem vindas. 18 2 O CONCEITO DE PEDAGÓGICA Apesar de já ter trabalhado este conceito de pedagógica em outras oportunidades 7 e de ter conhecimento de outros trabalhos 8 a respeito da pedagógica dusseliana até em perspectiva muito próxima a que compreendo é necessário dizer que nossa tarefa aqui, será a de mostrar minha visão sobre a fundamentação da pedagógica dusseliana, permitindo a partir dela, postergarmos um ensaio de uma pedagógica que parta de culturas populares revolucionárias brasileiras. Não obstante, nossa preocupação principal será a de evidenciar a necessidade de termos em mente toda a complexidade que envolve este conceito. Isso é necessário, porque a urgência a que a pedagógica clama ser considerada é em grande parte porque abordagens realizadas em âmbito pedagógico deixaram de considerar esta complexidade das relações da educação na realidade brasileira 9 . Vejamos um pouco sobre o porquê algumas abordagens da pedagogia moderna se revelam como insuficientes na formação de educadoras e, portanto, urge a necessidade da pedagógica ocupar seu lugar, no que respeita à ênfase nas relações de construção de conhecimento e não mais no ensino e/ou na aprendizagem, como faz a pedagogia reinante. 2.1 UM A-PEDAGOGISMO Na obra referência para este conceito, logo na introdução, Dussel nos alerta de uma característica central e dá o significado de pedagógica: La pedagógica no debe confundirsela con la pedagogia. Esta última es la ciência de la enseñanza o aprendizaje. La pedagógica, en cambio, es la parte de la filosofia que piensa la relación cara-a-cara del padre-hijo, maestro- discipulo, médico psicólogo-enfermo, filósofo-no filósofo, político- ciudadano, etc. (DUSSEL, 1980, p.11) 10 . 7 Em PANSARELLI, Daniel. MATOS, Hugo A, 2010. ANEXO I. 8 PAZELLO, 2011. 9 Para analisar a educação pública brasileira, por exemplo, recorre-se a teorias norte-americanas. Para não dizermos que isso necessariamente é alienação ou ideologia, dissemos que não considera a complexidade necessária... 10 Tradução Livre, doravante denominada T.L.: A pedagógica não deve ser confundida com a pedagogia. Esta última é a ciência do ensino-aprendizagem. A pedagógica, ao contrário, é a parte da filosofia que pensa a relação cara a cara do pai/mãe-filho, mestre-discípulo, médico, psicólogo-enfermo, filósofo-não filósofo, político- cidadão, etc. 19 Aqui temos uma primeira definição de pedagógica. Mas antes, é necessário que nos atenhamos à recomendação: “A pedagógica não deve ser confundida com a pedagogia”. Esta recomendação não é por acaso. Vejamos algumas de suas implicações. Devido a influências de correntes de pensamentos eurocêntricos, quais não abordarei 11 aqui, existe a ideia, em grande parte das educadoras brasileiras de que mudando o método de ensino, consequentemente altera-se a qualidade do aprendizado. Esta afirmação é incoerente, pois deixa de considerar outras variáveis na construção do conhecimento, contudo, muitas persistem em continuar acreditando. E desta crença decorrem experiências das mais diversificadas possíveis e inimagináveis 12 , que normalmente resultam em fracassos. Como o atual mito de que se incluir lousas digitais, tablets, etc... nas escolas a qualidade da educação mudará qualitativamente. A ideia de que a educação pública está ruim, é falsa. Como veremos no decorrer deste trabalho, ela cumpre seu papel social, que agora será transformado não para dar uma melhor educação para as crianças, mas para adequar a formação dada na escola com as novas necessidades do mercado de trabalho. Quando Dussel adota esta postura, de um a-pedagogismo, e faz questão de alertar que não está tratando da pedagogia, faz termos em horizonte a ideia de que em sua concepção a pedagogia não dê conta da formação das educadoras. Ideia esta que se legitima quando lemos que a pedagogia é a ciência do ensino e aprendizagem. É extremamente importante ressaltarmos esta posição de um a-pedagogismo para que possamos prosseguir para o conceito de pedagógica. Em: Filosofía de la Liberación 13 , está muito claro o porquê desta posição. Nesta obra, Dussel reflete dentre outras coisas, o método científico. Aponta claramente a diferença entre as ciências das coisas e as ciências que tratam do ser humano e da sociedade. Fiquemos com este parágrafo, que de certa forma, sintetiza a discussão: ...Por ello, el modelo de las ciências humanas, y aún más las sociales, tiene como componente próprio uma opción ético-política. Cuando se identifican sin más las ciências fácticas y las humanas quiere decir que se há tomado como único horizonte de estúdio el horizonte de la totalidad vigente. El funcionalismo es um claro ejemplo de identificación. Al eliminarse los momentos dialéctico y analéctico la ciência humana, com pretensión de 11 Cito o positivismo como a principal. 12 Como em uma instituição de ensino onde atuei na qual o dono leu algo afirmando que estudar ouvindo música clássica melhora o aprendizado. Ele colocou caixa de som em todas as salas de aula de seu grande colégio e as educadoras e educadores ficavam competindo atenção com a música. Experiência que durou pouco, claro. 13 DUSSEL, 1996. 20 cientificidad, há caído em el cientificismo ideológico (DUSSEL, 1996, p.194). 14 Dussel vai direto ao assunto, quando diz que é próprio das ciências humanas e das ciências sociais uma opção ético-política. Esta afirmação traz consequências fundamentais para nossos dias. Ao pensarmos que a pedagogia necessariamente faz esta opção, me parece coerente nos questionarmos sobre qual a opção que os cursos de pedagogia no Brasil fazem ao reproduzirem métodos de ensino-aprendizagem importados e que quase não têm aplicabilidade em nossas realidades brasileiras. Muitos defensores da pedagogia respondem diante desta questão fundamental que: pedagogia é pedagogia 15 . E Podemos continuar lendo este parágrafo de Dussel, para entender tal tautologia: “... Quandose identificam apenas como ciências fáticas e humanas, quer dizer que tomou como único horizonte de estudo o horizonte da totalidade vigente...”. Ou seja, quando se afirma apenas como pedagogia, assume para si – conscientemente ou não –, o horizonte da totalidade vigente, ou ainda, do status quo, da pedagogia hegemônica, dominante. E urge, então, uma segunda questão fundamental: qual é ou quais são as pedagogias hegemônicas no Brasil de hoje? É a esta segunda questão fundamental que grande parte deste trabalho busca dar um caminho de resposta. Se a pedagógica é o campo da filosofia que estuda as relações concretas, cara a cara, de construção de conhecimento, analisar estas relações nos fenômenos educativos é essencial. Sem nenhuma pretensão de encerrar a questão, muito do contrário, pretendo abrir um caminho de discussão, partindo da hipótese de que a pedagogia – assim como outras ciências ditas humanas ou sociais – com a pretensão de cientificidade caiu no cientificismo ideológico. Desta forma, é necessário reformulá-la e ir além dela na formação de educadores. Penso que é necessário explicitar este conceito de cientificismo ideológico, condição qual acredito ter se submetido a pedagogia. 14 T.L. Por isso, o modelo das ciências humanas, e ainda mais das sociais, tem como componente próprio uma opção ético-política. Quando se identificam apenas como ciências fáticas e humanas, quer dizer que tomou como único horizonte de estudo o horizonte da totalidade vigente. O funcionalismo é um claro exemplo de identificação. Ao eliminar-se os momentos dialético e analético as ciências humanas, com pretensão de cientificidade, caiu no cientificismo ideológico. 15 Assim como outros respondem: Filosofia é Filosofia, etc. 21 2.1.1 Cientificismo Ideológico Há algum tempo que afirmações como “no Brasil não é possível produzir conhecimento” são aceitas. A cultura eurocêntrica imposta e/ou que foi assumida por muitas brasileiras fez com que se legitimasse como senso comum. Assim, geralmente, o conhecimento produzido aqui, ainda é tido como algo que está entre a ciência e a ideologia, mas não chega a ser conhecimento legítimo. A principal justificativa deste juízo de valor parece ser porque se tornou também legitimada a afirmação de que onde há ciência não pode haver ideologia e tudo o que se refere criticamente ao centro é considerado como ideologia. Contudo, esta justificativa é ideológica. Todo ato humano pode ser ideológico 16 . Toda mediación significante, semiótica, es ideológica cuando oculta, y por ello justifica, la dominación práctica que el hombre ejerce sobre el hombre (em el nível político, erótico, pedagógico o fetichista). Es decir, toda teoría o significante teórico, toda práctica o significante práctico, toda poíesis o significante poiético en función de encubrimiento de la dominación es ideológica. Por ello, puede ser ideológica la ciencia, la práxis, la tecnologia, el arte, el diseño, etc. Necesitamos entonces neologismos: cientificismo, tecnologismo, esteticismo, politicismo, eroticismo, pedagogismo, etc., expresan la posición ideológica de diversos métodos...(DUSSEL, 1996, p.195) 17 Lembremos que não estamos falando de uma a-pedagogia, ou seja, de uma negação da pedagogia. É importante que educadoras conheçam os métodos e teorias de ensino- aprendizagem, as teorias sobre a educação e as didáticas. Mas estamos nos opondo à pedagogia como pedagogismo, que na pretensão de cientificidade, quer se bastar como formação de educadoras, subtendendo que a mudança de métodos e teorias muda a qualidade da relação ensino-aprendizagem. Há uma complexidade nesta relação que vai muito além da pedagogia assim compreendida. E é sobre esta complexidade da relação da construção de conhecimento que estamos tratando neste capítulo. A pedagógica, como ramo da filosofia que trata das relações de construção de conhecimento que são assimétricas é o estudo da relação concreta entre pai ou mãe com seu filho ou filha; da médica com o enfermo; da educadora com o educando; é o estudo da relação 16 Cf. Ibid.,p. 194. 17 T.L. Toda mediação significante, semiótica, é ideologia quando oculta, e por isso, justifica, a dominação prática que o ser humano exerce sobre outro ser humano (no nível político, erótico, pedagógico ou fetichista). Ou seja, toda teoria ou significante teórico, toda prática ou significante prático, toda poiesis 17 ou significante poiético em função do encobrimento da dominação é ideológico. Por isso, a ciência, a práxis, a tecnologia, a arte, o desenho, etc. podem ser ideológicos. Necessitamos então de neologismos: cientificismo, tecnologismo, esteticismo, politicismo, eroticismo, pedagogismo, etc., expressam a posição ideológica de diversos métodos. 22 da mídia com o telespectador; da empresa com funcionário, de todo tipo de disciplina – o que se recebe de outro – e se constitui como construção de conhecimento... Em vários níveis estas relações pessoais e institucionais formam redes de relações de construção de conhecimento e precisam ser conhecidas e estudadas enquanto tal. Outra particularidade da pedagógica que podemos conhecer agora, é que ela é o ponto de convergência da erótica à política. Ou seja, a criança é recebida e educada em uma família - da relação de seus responsáveis, erótica, que normalmente é machista, de dominação. Terá ali sua alteridade negada ou respeitada. E depois, exercerá seu papel na política, assumirá papéis sociais, e se relacionará com as instituições como adulta. A pedagógica é justamente o estudo das relações de construção de conhecimento que esta criança teve desde sua concepção – antes do nascimento – até sua saída para a vida pública, como adulta. Bem sabemos que estas relações de construção permanecem até a morte, mas quando adultos exercemos a política e a erótica, como veremos no esquema abaixo. As fases que chamamos de infância e adolescência, aonde a criança recebe a educação e capital cultural 18 necessários para situar-se no mundo e assumir papéis políticos e na erótica. É complexa esta característica da pedagógica, mas extremamente importante. Portanto, reproduzimos este esquema que ilustra bem este ponto de convergência: ...Os filhos nascidos nas famílias (1) são educados para ser um dia pais / mães (2) e ao mesmo tempo cidadãos adultos (4). As crianças nas instituições político-pedagógicas (3) são disciplinadas para ser um dia, responsáveis pela cidade (4) ou adultas em nível erótico (2) 1920 . A tarefa de abrir 21 esta discussão e apontar caminhos, é, como apontamos também nosso objetivo aqui. O conceito de pedagógica ainda pode ser muito explorado e apontar 18 Para usar um termo de Bordieu. 19 DUSSEL, 1980, p.12, esquema 1. 20 A explicação é uma tradução minha da que Dussel faz do esquema. 21 Ou somar-me, apesar de que não conheço nenhum estudo específico sobre estas relações por instrumental teórico semelhante, no Brasil. 23 caminhos de práticas educacionais não vislumbrados, que dentre outros, chama à atenção estas relações abandonadas – e escondidas – pela ideologia cientificista do pedagogismo. 2.2 PEDAGÓGICA SIMBÓLICA Atualmente, em nossa América Latina, tal como Dussel aponta ao escrever sobre o assunto, a criança nasce e passa por um filicídio. Ou seja, o pai e a mãe, o Estado e a cultura, matam as novas gerações, tanto fisicamente, quanto querendo prolongar-se. Fisicamenteobrigando-as a alistarem-se para as linhas de frente das guerras, deixando-lhes faltar o básico necessário para viver... Prolongar-se: negando a alteridade das crianças, escolhendo suas profissões, gostos culturais, etc... Matam com morte física, simbólica e/ou ideológica. E, se matam pedagogicamente, matam politicamente e eroticamente. A criança que tem sua alteridade negada desde a erótica e na pedagógica, provavelmente a terá na política e as negará nestas três dimensões da vida. Dussel expressa isso como os três aspectos da morte de Deus. A criança porta, em si, a contradição da imagem de Estado virtuoso, soberano, dominador – pai – com a cultura submissa, dominada, violentada – mãe –. Ela não quer ser de uma cultura miscigenada, brasileira, ou latino-americana, menos ainda indígena ou portuguesa. Sabe abstratamente que é um ser humano. Começa em si mesmo, não é descendente de nada, de ninguém. Isso porque não pode aceitar naturalmente a dominação do pai à mãe. Daqui o ódio edípico pelo pai. Pondere-se ainda, a complexidade de que nasce em terra democrática- burguesa, onde a subjetividade moderna impera. “A criança é educada na cultura, na totalidade simbólica de um povo, no domínio de seus instintos - como no caso do incesto – e da natureza”. (DUSSEL, 1980, p.17). Antes, inclusive desde os relatos que temos de educação pré-invasão europeia, a educação era primordial para a família. Agora, mestiça da mãe indígena estuprada pelo pai colonizador português. Negando sua cultura, as que não se submetem à dominação, de geração em geração, vão criando uma nova cultura. Mas esta nova cultura é ignorada, esquecida, não descoberta. Desde os jesuítas, as culturas latino-americanas, carregam em si uma tríplice contradição interna: presença da cultura do centro (eurocentro), da cultura da oligarquia ilustrada e da cultura popular 22 . 22 Cf. ibid.p. 20. 24 As culturas populares brasileiras se constituem, sobretudo, de símbolos. Assim como nos países vizinhos a imagem da virgem de Guadalupe simboliza a nova cultura, pura, imaculada, em contraposição à cultura estuprada. Nossa senhora aparecida, desatadora de nós e outras mitologias e símbolos são muito presentes, marcantes e determinantes. Em 1910 a revolução mexicana, desperta na América Latina uma tomada de consciência que se acentua a partir da crise de 1929, com o surgimento de nacionalismos populares. E agora, no século XXI, as revoluções populares antiliberais, afirmam novamente a predominância da cultura ao Estado imposto, da mãe que era dominada, ao pai dominador. Mas, estas revoluções, sofrem uma violência pedagógica provocada pela opulência e vontade de uma classe que quer continuar dominando e sempre que saímos às ruas para protestar e exigir nossa soberania, somos oprimidos e violentados das mais diversas formas. Sobretudo nas lutas contra as companhias multinacionais, contra o consumismo... Alli va nuestra juventude, nuestra cultura, “gente de las afueras, moradores de los subúrbios de la historia; los latinoamericanos somos los comensales no invitados que se han colocado por la puerta trasera de Occidente, los intrusos que se han llegado a la funcion de la modernidad cuando las luces están a punto de apagarse – llegamos tarde a todas las partes, nacimos cuando ya era tarde em la historia, tampoco tenemos um pasado o, si lo tenemos, hemos escupido sobre sus restos, nuestros pueblos se echaron a dormir durante um siglo y mientras dormían los robaron y ahora andan em andrajos, no logramos conservar ni siquera lo que los españoles dejaron al irse, nos hemos apuñalado entre nosostros [...]”23. El gamín bogotano es el símbolo de nuestra cultura: “El Gamín es el niño de la calle. Que no tiene padres o quien responda por el. Que anda harapiento, sucio, hambriento y que a veces pide ayuda para subsistir. Que roba y comete toda clase de ilícitos. Que vive em padilla temidas por las personas de bien [...]”24. Gamín, huerfanito, hijo dominado de la pedagógica opresora. Ese es nuestro tema. (DUSSEL, 1980, p.24) 25 Dussel refaz sua afirmação de territorialidade e opção ético-política, qual anteriormente deixou claro que é obrigatória nas ciências humanas e sociais. Fala a partir do 23 PAZ, Octavio, 1973, p.40 citado por DUSSEL, 1980, p.24. 24 VILLAMIL, A., 1973, p. 12 citado por DUSSEL, 1980, p.24. 25 T.L. Ali vai nossa juventude, nossa cultura, “gente de fora, moradores dos subúrbios da historia; os latino- americanos somos os comensais não convidados que entraram pela porta dos fundos do ocidente, os intrusos, quando as luzes estão a ponto de apagar-se, chegamos tarde a todas as partes, nascemos quando já era tarde na história, tampouco temos um passado na história, se o temos, cuspimos em seus restos, nossos povos ficaram dormindo durante um século, e mesmo dormindo, os roubaram e agora andam em farrapos, não conseguimos conservar nem o que os espanhóis nos deixaram ao irem, ficamos nos apunhalando uns aos outros. O Gamin é o menino de rua. Que não tem pai ou quem responda por ele. Que anda esfarrapado, sujo, faminto e que às vezes pede ajuda para sobreviver. Que rouba e comete toda a classe de atos ilícitos. Que vive em Padilla, temido pelas pessoas de bem. Gamín, orfãozinho, filho dominado da pedagógica opressora. Esse é nosso tema. 25 horizonte das vítimas do sistema vigente. Da exterioridade. É extremamente necessário que compreendamos esta opção metodológica. A simbólica, propriamente dita, tal como Dussel a concebe, não apliquei agora, como mereceria. O próprio conceito de simbólica 26 aqui ficou enfraquecido. Isso porque Dussel, a partir de obras literárias do período e sobre a invasão espanhola, mostra como a estética 27 pode nos ajudar a sentirmos o ser da época. Como da invasão portuguesa temos apenas 3 relatos 28 e ambos, dos portugueses, preferi não abordá-los, apesar de que ali, podemos também, saber qual a concepção que tiveram a cerca dos indígenas e como lhes trataram 29 . É este mesmo conceito de simbólica, que permitirá, neste trabalho, sugerir que partindo de obras das culturas populares revolucionárias podemos identificar opressões contra o corpo cometidas pela pedagógica. Veremos agora, a forma que a pedagógica moderna foi construída, percebendo a importância e predominância desta totalidade ainda hoje, em nossas relações educativas. 2.3 PEDAGÓGICA MODERNA COMO TOTALIDADE Aqui faremos o mesmo caminho percorrido por Dussel em nossa obra referência 30 . Ele nos mostra como que foi constituída a pedagógica moderna e de que forma ela influenciou e influencia a pedagógica latino-americana. Apontando a necessidade de recorrermos à cultura do centro para entendermos a constituição de nossa pedagógica 31 , Dussel evidencia o ser do mecanismo de dominação cultural que predomina em nossa América Latina ainda hoje. Começa o assunto citando 32 a Paidéia, obra fundamental de Werner Jaeger que expõe e analisa o ideal de educação grega, que influencia até hoje a pedagógica ocidental. Dentre 26 Tal como Dussel o concebe a partir de Paul Ricoeur. 27 Sobre o conceito de estética em Dussel, escrevi um pequeno texto: MATOS, 2009. 28 Jangada Brasil, 2000. 29 Para um estudo aprofundado de como os portugueses viam os indígenas brasileiros, numa perspectiva de alteridade e corporalidade: RUIVO, Ana, 2010. 30 DUSSEL, 1980, pp.25 ss. 31 Ibid, p.25, tradução da nota 48: Para uma pedagógica do "centro" nada melhor que avisão histórica que nos da Theodor Ballauf-Klaus Schaller, Pädagogik, tomo I: Von der Antike bis zum Humanismus (1969), tomo II: Vom 16. bis zum 19. Jahrhundert (1970), tomo III: 19./20. Jahrhundert (1972), Karl Alber, Freiburg, que em 2514 páginas não só nos dá uma antologia como uma interpretação "europeia". 32 Ibid, p.25, nota 50. 26 outras coisas Dussel aponta com várias citações de obras clássicas de Platão 33 que para ele – Platão – e possivelmente para Sócrates aprender é recordar (anamnésis) o mesmo (tò autó) que já ocorreu para os deuses gregos. E só é possível alcançar o aprendizado pela dialética- ontológica, pois esta é a via de acesso ao mesmo, que é divino, como na cultura grega. É por isso que Sócrates, através da maiêutica, faz seus interlocutores acreditarem que as ideias gregas são divinas, Dussel concebe isso como uma grande dominação pedagógica! E muitos de nossos educadores têm a maiêutica socrática como exemplo dialógico... Na cultura grega o pedagogo que não é pai do filho, toma o lugar do pai, tomando o discípulo sob sua responsabilidade. O mesmo ocorre com Emílio já na filosofia moderna de Rousseau. O discípulo é um órfão ante o magistral despótico que ensina à criança apenas a recordar sua cultura, que é a do mestre. O esquecimento do ser heideggeriano, também repete a mesma dominação. Como o discípulo poderá dar-se conta de que é novo se sempre tem que recordar- se de quem são “os seus” e padronizar-se à sua cultura? Este é um grande problema para a pedagógica da libertação. Apesar de citar a Paideia, faremos uma análise da pedagógica moderna que se opõe às disciplinas medievais, sobretudo à disciplina latino-germânica e à autoridade heterônoma como a chamou Emmanuel Kant, escondendo um novo projeto que logo se manifestou. Dussel cita Freud em sua carta ao amigo Fliess 34 , dizendo que enquanto o velho mundo estava regido pela autoridade, o novo mundo, é regido pelo dinheiro. E esta é a principal característica que marca a passagem da pedagógica medieval da autoridade, para a pedagógica moderna da liberdade, do dinheiro. É essencial percebermos o movimento metodológico que Dussel realiza para evidenciar a pedagógica de determinadas culturas. Vejamos como o faz sobre a pedagógica medieval: Durante siglos "la comunidad de la cristiandad, en tanto que organizó en su seno una estructura político-burocrática (especialmente la Santa Sede, sus derechos monárquicos y sus prácticas ultracentralistas)" 35 , pondrá en pie un sistema educativo de alto rendimiento y eficacia. (...) lo fundamental es que la censura (en su sentido político y psicológico) es introyectada hasta el interior de la subjetividad culpable. "He aquí entonces un tema nuevo de 33 Menón 81 a-82; Fedón 72e – 73a; Fedro 249b-c; República 476a, 507b; Teeteto 191-195 e Filebo 34. 34 Ibid., p.25 cita S. Freud, Briefe, 1873-1939, 1960, p. 244. 35 É necessário que traduzamos a nota de número 52, da página 26 da obra supracitada, pois além de uma referência para o tema, traz a distinção entre cristandade e cristianismo, que é essencial aqui: Pierre Legendre, L’amour du censeur. Essai sur l’ordre dogmatique, 1974, p. 26. Esta sugestiva obra, que parte da erótica para realizar uma hermenêutica sócio-política do direito medieval, nos permite passar do texto canônico ao texto psicanalítico e político. Não se confunda, na exposição que segue, a cristandade (uma cultura que trataremos) com o cristianismo (uma religião da qual não nos ocuparemos aqui). 27 investigación, gracias al cual, según mi hipótesis, es posible que tengamos posibilidad de establecer la correspondencia que existe entre dos planos: el del Super ego que trata de desenmascarar el discurso analítico, y el Super ego de la cultura que se ejerce efectivamente en un texto designado con el término de canónigo". (1980, p. 25) 36 Em toda sua produção filosófica Dussel cita e referencia muitos autores para fundamentar suas teses. Aqui percebemos uma forte influência da teoria Freudiana enquanto crítica. Mas, o que é essencial a meu ver, é a questão da introjeção da censura política e psicológica no interior de uma subjetividade culpável. Isso nos recorda de fenômenos bem atuais na história de nosso país, aos quais não podemos deixar de nos remeter. Quando a marcha da família com Deus pela liberdade vai às ruas contra o plano de reforma de bases do então presidente João Goulart, com forte influencia de igrejas cristãs, o que leva estas famílias se oporem ao presidente e ao comunismo, ao qual sua imagem foi vinculada? Ou ainda, em manifestações recentes, como nas eleições presidenciais de 2010, quando o que, parece ter decidido ou teve um peso muito grande na decisão da população foi a questão do aborto. Não há em nossa cultura, ainda hoje, uma subjetividade culpável, que sofre censuras e manipulações frequentemente? Sigamos com o que Dussel nos diz sobre a atual pedagógica medieval: La censura, obligatoriedad que se impone casi inevitablemente ante el temor sagrado, ante la falta que abruma angustiosamente al posible culpable, ante el castigo tremendo merecido, dicha censura es posible porque ha asumido todo el poder de los padres y el Estado en la figura sacerdotal. Habiendo primacía de las "leyes divinas y naturales" sobre las "leyes humanas", el "pontífice romano" sobre el "emperador” y "los clérigos" sobre los "laicos", se produce así una estructura pedagógica canóniga en la que el educando queda como anonadado ante la auctoritas sacra, la que, es necesario no olvidarlo, ha cobrado la forma de una cultura particular, sirviendo frecuentemente a grupos concretos, a pueblos determinados, a intereses históricos. Se trata del equívoco de la "cristiandad" delatado por Kierkegaard. (DUSSEL, 1980,p.27) 37 36 T.L. Durante séculos “a comunidade da cristandade organizou em seu seio uma estrutura político-burocrática (especialmente a santa-sé, seus direitos monárquicos e suas práticas ultracentralistas)”, que construiu um sistema educativo de alto rendimento e eficácia. (...) o fundamental é que a censura (política e psicológica) é introjetada ao interior da subjetividade culpável. “Temos aqui, então, um novo tema de investigação, graças ao qual, segundo minha hipótese, é possível que tenhamos possibilidade de estabelecer a correspondência que existe entre dois planos: o do super ego que trata de desmascarar o discurso analítico, e o super ego da cultura que se exerce efetivamente em um texto designado com o termo de canônico”36. 37 T.L. A censura, obrigatoriedade que se impõe quase inevitavelmente frente ao temor sagrado, frente à falta que oprime angustiosamente o possível culpável, frente ao castigo tremendo merecido, esta censura é possível porque assumiu todo o poder dos pais e do Estado na figura sacerdotal. Havendo primazia das “leis divinas e naturais” sobre as “leis humanas”, o “pontífice romano” sobre o “imperador” e “os cléricos” sobre os “leigos”, se produz assim uma estrutura pedagógica canônica na qual o educando fica como que chocado frente a auctoritas sacra, a que, é necessário não esquecê-lo, tomou a forma de uma cultura particular, servindo frequentemente a 28 Compreende o porquê é importante que saibamos da pedagógica medieval? Quanto dela ainda está presente em nossos dias?! O quanto esta culpa frente a uma auctoritas sacra não molda a vida de milhões de pessoas ainda hoje? As teses que Dussel nos traz de que a figura do sacerdote assume em si todo o poder dos pais e do Estado, de que as leis naturais e as divinas sesobrepõem às leis humanas ainda hoje se confundem com a pedagógica moderna. Há que se trazer a figura de muitos líderes religiosos: os heróis do povo, que ainda manipulam esta subjetividade culpável. Vejamos agora, em partes, como se constituiu este importante instrumento de dominação: Ante el ego pontifical o paterno feudal y rural de las instituciones de la autoridad censora medieval, que algo masoquistamente es querida por el censurado obediente, se levanta una nueva pedagógica que niega su antecedente como su enemigo. El nuevo sujeto educante es la autoconciencia constitutiva de la burguesía en ascenso, en expansión. El habitante de la ciudad (Burg en antiguo alemán) se abre camino desde su ego laboro en la fundación misma de las primeras aldeas medievales desde el siglo VIII y IX d. JC. Ante el hombre feudal y de iglesia, el burgalés (habitante de las ciudades) instaura un nuevo mundo, fruto de su trabajo, sin antecedentes, sin herencias. (DUSSEL,1980,p.27) 38 Além da negação da descrita autoridade feudal-rural, há o projeto de substituí-la pela afirmação da nova cultura burguesa urbana e imperial conquistadora. Deixo de citar aqui aspectos importantes como a participação de um Montaigne nesta formação do que conhecemos hoje como individualismo. Mas é importante percebermos que a pedagógica moderna tem dois momentos. O primeiro é um ceticismo ao mundo medieval, que não é apenas uma negação da pedagógica medieval, mas do modelo de sociedade também. Como bem sabemos, esta negação traz consigo uma afirmação do projeto burguês ascendente. É importante citar que a filosofia latino-americana (de libertação) ainda hoje, pratica um ceticismo relacionado à modernidade. Duvidamos da validade universal da filosofia do centro. O que nos move não é a afirmação de uma nova compreensão dominadora da natureza. Mas um projeto histórico de libertação. Sobre isso Dussel diz: grupos concretos, a povos determinados, a interesses históricos. Trata-se do equívoco da “cristandade” delatado por Kierkegaard. 38 T.L. Frente ao ego pontifical ou paterno feudal e rural das instituições da autoridade censora medieval, que é masoquistamente querida pelo censurado obediente, se levanta uma nova pedagógica que nega sua antecedente como inimiga. O novo sujeito educante é a autoconsciência constitutiva da burguesia em ascensão e expansão. O habitante da cidade (Burg em alemão antigo) abre caminho desde seu ser trabalhador na fundação das primeiras aldeias medievais desde o século VIII e IX d.c. Frente ao homem feudal e da igreja, o burguês (habitante das cidades) instaura um novo mundo, fruto de seu trabalho, sem antecedentes. 29 ...filósofos latino-americanos somos los escépticos de la filosofía del "centro", dudamos de su validez universal, pero no pretenderemos como los escépticos humanistas y renacentistas (comienzo autoformulado del individualismo burgués como puede verse en los estudios de Burckhardt y Sombart) que nuestro horizonte de comprensión es la naturaleza, sino que es un pro-yecto histórico de liberación. (DUSSEL, 1980, p.29) 39 Infelizmente, não podemos entrar em detalhes, uma vez que não é esta a intenção aqui 40 . Vamos ao segundo momento da pedagógica moderna que é a afirmação de seu projeto. O já citado Emílio é um bom exemplo desta etapa onde a criança se transforma em um órfão submetido ao ego magistral constituinte que lhe impõe a lembrança do mesmo que lhe prepara para ser cidadão da sociedade burguesa, imperial e burocrática. Afirmam uma liberdade de duvidar, de escolha, de crítica... E sobretudo, de que as crianças devem ser órfãs! Como lhes impõe o pai (Estado burguês) devem negar sua mãe (cultura popular - auctoritas medieval). Sobre isso, vejamos o que Dussel nos diz: ...debe cortar toda relación con su madre-cultura para poder: ser educado por el padre-Estado (el de la Revolución francesa, la revolución burguesa que así lo entendió al tomar a Rousseau como su filósofo preferido). La cuestión es clara y el socio-psicoanálisis puede ayudarnos en la hermenéutica de la confesión rousseauniana: "No importa que tenga padre y madre. Encargado de sus deberes me hago cargo [como preceptor] en el ejercicio de sus derechos. El honrará a sus padres, pero sólo me obedecerá exclusivamente a mí. Es la primera, o mejor, la única condición" 41 . En este punto el contrato erótico y el contrato social o político se han hecho contrato pedagógico. El Estado, el Leviathan de Hobbes, delante del cual el ciudadano no tiene derechos porque los ha renunciado en la voluntad general, ese Estado burgués se arroga ahora la educación del hijo, ante el cual la familia y la cultura popular nada tendrán que decir ni enseñar...(DUSSEL, 1980, p.33) 42 Como a passagem da erótica à pedagógica e de ambas à política ocorre aqui? Existe uma violência implícita, um complexo edípico que para superar, a criança – povo deve negar 39 T.L. ...filósofos latino-americanos somos os céticos da filosofia do “centro”, duvidamos de sua validez universal, mas não pretenderemos como os céticos humanistas e renascentistas (começo auto-formulado do individualismo burguês como se pode ver nos estudos de Burckhardt e Sombart) que nosso horizonte de compreensão não é a natureza, mas é um projeto histórico de libertação. 40 Para melhor compreender o que é este projeto histórico de libertação, indico a tradução que já mencionei: MATOS, 2008. 41 Na nota 83, Dussel cita Rousseau. Emille, p. 28-29. 42 T.L. Deve cortar toda relação com sua mãe-cultura para poder: ser educado pelo pai-Estado (o da Revolução francesa, a revolução burguesa que assim o entendeu, ao tomar Rousseau como seu filósofo preferido). A questão é clara e a sócio-psicoanálise pode ajudar-nos na hermenêutica da confissão rousseneana: “Não importa que tenha pai e mãe. Encarrega-me de seus deveres (como preceptor) no exercício de seus direitos. Ele honrará a seus pais, mas só me obedecerá, exclusivamente a mim. É a primeira, ou melhor, a única condição”. Neste ponto o contrato erótico e o contrato social ou político se fizeram pedagógico. O Estado, o Leviatan de Hobbes, diante do qual o cidadão não tem direitos, porque os renunciou em prol da vontade geral, esse Estado burguês, assume para si a educação do filho, para o qual a família e cultura popular nada têm a ensinar. 30 sua mãe-cultura, para reconciliar-se e dispor-se a seu pai-Estado. E este, por sua vez, identifica sua verborragia – falocracia, como chama Dussel – com a natureza eterna e universal. Além desta pretensão de universalidade e eternidade, a principal característica desta verborragia da pedagógica moderna é a da natureza exploratória como fonte de riqueza. Desta forma é interessante percebemos já aqui que a pedagógica moderna pratica o filicídio ao não permitir que a criança seja ela mesma – tenha sua alteridade respeitada – fazendo-a realizar o projeto de sociedade da burguesia, através de seu preceptor, que ocupa o lugar do pai. E ainda, na dimensão política, pratica o povocídio, ou morte do povo, identificando como natureza a burocracia burguesa que causa esta morte das crianças. Vejamos um pouco mais de como o filósofo percebe a contribuição de Rousseau – tão recorrido ainda hoje nos trabalhos de conclusão de cursos de pedagogia e pós-graduações em educação e filosofia – para a constituição desta pedagógica moderna: Rousseau indaga el fundamento ontológico de su pedagógica, el horizonteque justificará todo su discurso: el ser de la pedagógica o la com-prensión pedagógica del ser. Su fundamento lo enuncia al comienzo de la obra: "Todo es bueno saliendo de las manos del Autor de las cosas; todo degenera en manos del hombre" 43 . (1980, p.30). 44 Percebamos a noção antropológica que está por trás desta afirmação: “tudo degenera nas mãos do homem”. Este é o fundamento de toda a antropológica45 moderna. Sigamos com a explicação de Dussel: El preceptor (enmascaramiento del padre-Estado por intermedio de la burocracia magistral) tiene en su poder "para siempre" al hijo-pueblo. El preceptor, el maestro ocupa así el lugar de los padres, porque "la naturaleza lo prevé todo por la presencia del padre y madre; pero esa presencia puede comportar excesos, defectos, abusos" 46 , y por ello el preceptor viene a suplir sus debilidades. Así nace la "institución pedagógica" moderna, la escuela del Estado burgués primero, imperial después, neocolonial simultáneamente, que niega lo anterior (la cultura feudal) y oprime lo popular (la cultura 43 Na nota 64, Dussel cita Rousseau, Emille I, p. 5. 44 T.L. Rousseau indaga o fundamento ontológico de sua pedagógica, o horizonte que justificará todo seu discurso: o ser da pedagógica ou a compreensão pedagógica do ser. Seu fundamento o enuncia no começo da obra: “Tudo é bom saindo das mãos do Autor das coisas; tudo degenera nas mãos do homem”. 45 A antropológica é a noção de ser humano que existe por trás da filosofia de determinado autor. Dussel trabalha este conceito incansavelmente em sua filosofia, não o deixando subtendido ou escondido como é o caso de grande parte da filosofia moderna. 46 Na nota 84 Dussel cita Rousseal, Emille, 11, p. 69. 31 popular en la "periferia": nuestra cultura dis-tinta y en parte autóctona). (DUSSEL, 1980, p. 33). 47 É por este motivo que o preceptor deve educar. Pois o pai e mãe e a cultura popular estragam as filhas/filhos. Enfatize-se aqui a negação desta cultura popular, que é o conhecimento particular, próprio do lugar, autóctone. Lembrando que o Emille tem como preferencia camponeses, imaginemos o impacto que isso tem. Como estamos vendo esta é a pedagógica moderna. Quanto ela não está presente hoje? A negação das culturas populares e afirmações da cultura de massa não podem ser vistas como desdobramentos desta pedagógica moderna? Fica claro que Rousseau não faz só pedagógica, como faz ontologia. Esta ontologia pedagógica, como chama Dussel, encobre a realidade com categorias interpretativas ideológicas. Vejamos em um esquema 48 que o filósofo nomeia como ontologia pedagógica ego magistral e ente orfanal a síntese desta. Perceba-se que o projeto de ser burguês fundamenta a totalidade pedagógica que é aplicada (b) pelo Ego magistral – no caso de Rousseau pelo preceptor, para nós: professores – ao objeto educável, o ente órfão, educanda. Este não pode sofrer influencias (a) do Não-ser, do bárbaro, no caso de Rousseau, da família e culturas populares, em geral. Ao contrário este 47 T.L. O preceptor (mascaramento do pai-Estado por intermédio da burocracia magistral) tem em seu poder “para sempre” o filho-povo. O preceptor, o mestre ocupa assim o lugar dos pais, porque “a natureza o prevê tudo pela presença do pai e mãe; mas essa presença pode comportar excessos, defeitos, abusos”. 48 DUSSEL, 1980, esquema 2 da pg. 34. 32 ente educável, deve ser preparado para dominar (c) esta alteridade pedagógica, reproduzindo o aprendido: cultura burguesa, cultura de massa. Estas categorias foram usadas por quase todas as pedagogas e pedagogos da civilização europeu-russo-americana. Dussel cita três: Johan Pestalozzi (1746-1827), John Dewey (1859-1952) e Maria Montessori (1870-1952). Ambos seguem esta mesma ontologia dominadora, sem expressá-la, em nome do projeto de mundo burguês. É essencial que deixemos claro aqui que o principal instrumento de dominação apontado por Dussel é a identificação da sociedade política e cultural com natureza, democracia e liberdade. O fazem, sobretudo, ao superar o individualismo “fechado” e assumem explicitamente a realidade sócio-industrial da burguesia. Por este motivo que a função da pedagogia é estudar “o caminho (way) pelo qual um grupo social dirige seus membros imaturos (immature) a sua forma social própria.” 49É preciso lembrar que para Dewey esta forma social adequada é a de seu país, de sua cultura: a anglo-norte-americana. Vale ressaltar ainda, o papel que a cultura imperial ilustrada tem nesta dominação, Dussel nos aponta citando a obra freudiana O mal estar na cultura. Apesar de tratarmos com maior dedicação deste tema no próximo capítulo, é primaz que já percebamos a contradição gerada nas colônias onde a elite ilustrada fica alienada culturalmente e entra em oposição com uma cultura popular que geralmente não aceita esta pedagógica ontológica. Outra questão que Dussel nos chama à atenção, é que esta ontologia pedagógica burguesa-imperial não ensina só pelas escolas e universidades, mas sutil e ideologicamente pela comunicação massiva. Contudo, se é sabido que os meios de comunicação educam tanto quanto a escola/universidade, por que a pedagogia, geralmente, não tem esta preocupação? 50 Será por corroborar este mecanismo? Assim, pensar em quem é este órfão ao qual dirige-se esta pedagógica, é emergente. O da elite ilustrada ou a criança da periferia... que introjeta “gato (cultura imperial) por lebre (natureza humana)”. (DUSSEL, 1980, p.39) Não queremos terminar este capítulo de forma pessimista ou fatalista, assim, permita- nos questionar: há possibilidade de libertação? Acreditamos que sim, e por motivos bem explícitos diante do que trabalhamos até aqui. Dussel nos dá elementos suficientes para acreditarmos que há esta possibilidade, ao dizer: 49 DUSSEL, 1980, p. 36 cita John Dewey, Democracy and education. An introduction to the philosophy of education. 1925. p. 12. 50 Se tivesse, não teria nos cursos de pedagogia disciplina específica para estudar a relação entre educação e mídia, por exemplo? 33 El adolescente, la juventud (de veinticinco o treinta años para abajo), no logra superar la segunda crisis del edipo, ya que el padre-Estado (o autoridad social) no se le presenta como un "ideal del yo", sino como un adulto en crisis, como un Estado corrompido y corruptor (sea el imperial o el neocolonial, ya que lee en los diarios que la CIA usa ocho millones de dólares para corromper un gobierno latinoamericano, que Ford atemoriza a los árabes con la posibilidad de una guerra si aumentan el precio del petróleo, o que nuestros gobiernos no tienen mejor manera de continuar que asesinando o torturando a sus contrarios). El niño a los cuatro o cinco años puede admirar a su padre (al menos por su tamaño y fuerza física), y se identifica con él "superando" el edipo. En la adolescencia y juventud no puede ya identificarse de ninguna manera con él: no le queda sino la rebelión contra un padre y una sociedad que no le da más confianza. Además, su vida en el próximo futuro es incierta en cuanto a la posibilidad de trabajo. Se ha producido una proletarización del estudiante universitario y por ello la juventud en los países del Tercer Mundo es una privilegiada conciencia liberadora (...) El fenómeno de la nueva izquierda es esencialmente pedagógico (y por ello erótico-político), y en América latina todavía no se ha vislumbrado su originalidad, quepoco tiene que ver con el mismo fenómeno en los países del "centro". 5152 Esta hipótese ganha força hoje, sobretudo em México com o movimento denominado yosoy132 53 , qual Enrique Dussel ajuda a construir pessoalmente. Conseguiram utilizar-se das eleições presidenciais para um grande debate sobre a democracia legítima, apoiando ao candidato de esquerda, mas deixando claro que o movimento é além da eleição. Poderíamos ainda citar o movimento Indignados, ou anonymous, bem como a primavera árabe, que independentemente das forçar que ali agem, quais precisam ser melhor estudadas 54 , são promovidas pela juventude. 51 DUSSEL, 1980, p. 39 cita: Alejandro Nieto, La ideología revolucionaria de los estudiantes europeos, 1971. bibliografía en pp. 267-277 52 T.L. O adolescente, a juventude (de vinte e cinco ou trinta anos para baixo) não deseja superar a segunda crise de Édipo, já que o pai-Estado (ou autoridade social) não se apresenta a ele como um ideal do eu, mas sim como um adulto em crise, como um Estado corrompido e corruptor (seja ele imperial ou neocolonial já que lê nos jornais que a CIA usa oito milhões de dólares para corromper um governo latino-americano, que Ford aterroriza os árabes com a possibilidade de uma guerra se aumentarem o preço do petróleo, ou que nossos governos não têm melhor maneira de continuar que assassinando ou torturando a seus opositores). A criança de quatro ou cinco anos pode admirar a seu pai (ao menos por seu tamanho e força física), e se identifica com ele “superando” o Édipo. Na adolescência e juventude não pode identificar-se de maneira alguma com ele: não lhe resta se não a rebelião contra um pai e uma sociedade que não lhe dá mais confiança. No mais, sua vida no futuro próximo é incerta enquanto a possibilidade de trabalho. Se produziu uma proletarização do estudante universitário e por isso, a juventude nos países do Terceiro Mundo é uma privilegiada consciência libertadora (...) O fenômeno da nova esquerda é essencialmente pedagógico (e por isso, erótico-político), e na América Latina, ainda não se vislumbrou sua originalidade, que pouco tem a ver com o mesmo fenômeno nos países do “centro”. 53 Endereço virtual do movimento: http://www.yosoy132media.org/ 54 Para melhor aprofundamento sugiro a obra escrita por vários autores:Los Movimientos Sociales del siglo XXI: diálogos sobre el poder. Caracas: el perro y la rana, 2008. E de Dussel, Carta a los indignados. México: La Jornada, 2011. 34 3 CULTURA No capítulo anterior refletimos sobre o conceito de pedagógica e algumas de suas implicações. Ficou explícito que o foco da educação não pode ser no ensino ou na aprendizagem, mas deve ser nas relações de construção de conhecimento, pois são estas relações que moldam e determinam, fundamentalmente, a qualidade do fenômeno educativo. E estas relações historicamente foram constituídas como instrumento de opressão de nossas culturas populares latino-americanas em prol de um projeto de sociedade burguesa, imperialista, que legitima a dominação do centro sob as periferias e, na modernidade, dominação do capitalismo eurocêntrico. Agora, abordaremos uma contextualização da cultura latino-americana. Como se constitui a cultura, alguns de seus principais elementos, como esta interfere na constituição de hábitos, valores e, portanto, do comportamento, modo de ser de cada povo e pessoa. Além disso, veremos a importância das culturas populares revolucionárias e de que forma elas podem resistir às opressões da cultura de massa 55 , produzida pela indústria cultural e possibilitar novidades históricas que não sejam populistas ou dogmáticas. Para isso, nossa obra base será Filosofía de la Cultura y la Liberación que é uma coleção de ensaios publicada pela Universidade Autônoma da Cidade do México no ano de 2006. Dussel nos apresenta esta obra dizendo que a primeira parte dela tem a influência muito forte de Paul Ricoeur. E a segunda parte explicitamente ele diz que é “...a interpretação levinasiana 56 desde América Latina...”(2006, p.11). Podemos vislumbrar os estágios históricos, teórico-interpretativos que o filósofo utilizou-se em sua práxis filosófica para interpretar o fenômeno da cultura em geral e da cultura latino-americana, e cultura argentina em particular. É importante ressaltarmos que o cuidado no referencial teórico não é mero “jogo de dados”. Cada pensador, cada teoria é escolhida metodologicamente, ética e politicamente na filosofia da libertação. Nesta obra dá para percebermos o caminho da concepção sobre a pedagógica em geral, sobretudo em sua interpretação do conceito filosófico de cultura. Aqui, não faremos este mesmo caminho, apesar de citarmos alguns acontecimentos e conceitos 55 Termo muitas vezes controverso, mas é uma categoria essencial à filosofia da educação e cultura latino- americana, pensado a partir da Escola de Frankfurt. 56 Alusão ao filósofo Emmanuel Lévinas, “o filósofo da alteridade”, que a partir de sua experiência de 5 anos em Auschwitz e de suas aulas com Husserl, escreve sua filosofia. Sua principal obra foi Totalidade e Infinito. 35 fundamentais abordados. Faremos uma contextualização da questão hoje, partindo do primeiro artigo da supracitada, que Dussel denomina de: Transmodernidade y Interculturalidad (interpretacion desde la Filosofia de la Liberación). 3.1 O QUE É CULTURA? Cultura é a totalidade de características constitutivas de um povo que deve estar presente em todas as formações sociais históricas e todo modo de produção (DUSSEL, 2006, p. 269). Mas a aparente simplicidade deste conceito universal, tal como exposto aqui, exige certo aprofundamento. Abordemos algumas características fundamentais da cultura. O trabalho é a primeira destas características. Dussel diz que é determinação essencial da cultura (ibid.). O ser humano constrói em torno de si um mundo cultural, simbólico, espiritual a ponto de nas escavações atuais quando encontrado um fóssil, sabe-se que é humano quando encontrado objetos culturais juntos a seus restos mortais. A cultura não é apenas o fruto do trabalho humano, como muitos pensam, mas é o próprio trabalho atualizado. O ser humano, ao trabalhar, atualiza-se a si mesmo e à sua cultura, produzindo vida, como nos diz Dussel: El trabajo mismo es la sustância de la cultura, su esencia ultima, su determinación fundamental, en el sentido de que su ser como atualización del hombre (que está trabajando ahora) por el trabajo és un modo de producir la vida humana, de autoproducirla, de crearla (DUSSEL, 2006, p. 270). 57 É evidente que este conceito Dussel parte de Marx, como podemos ler em: Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao 57 T.L. O trabalho é a substância da cultura, sua essência última, sua determinação fundamental, no sentido de que seu ser como atualização do homem (que está trabalhando agora) pelo trabalho é um modo de produzir a vida humana, de autoproduzi-la, de criá-la. 36 modificá-la,ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 1996, p. 297). Cabe aqui notificarmos um insistente debate na história da filosofia: o da essência humana. Se o ser humano ao modificar a natureza pelo trabalho modifica a si mesmo, as essências, o ser, da natureza, do trabalho e do próprio ser humano são históricas, culturais. Entretanto, há a busca frequente da afirmação de valores que sejam eternos, como o da vida, da alteridade, ou corporalidade. Dizer isso é dizer que a própria noção que temos sobre quem somos e nosso papel no mundo, muda de acordo com a história. Esta questão é essencial- se me permite aqui, o trocadilho -, uma vez que nós educadores e educadoras não deveríamos entrar em sala de aula, ou gerir qualquer instancia da educação formal ou não formal, sem termos bem claro o que pensamos ser o ser humano ao qual servimos no fenômeno educativo. Desta forma, a importância do trabalho como determinador da cultura, é essencial. E percebemos isso hoje no modo de produção capitalista, que é uma forma de trabalho, o quanto o modo que trabalhamos influencia na vida em geral. Trabalhamos para suprirmos nossas necessidades. Contudo, nossas necessidades não são as mesmas dos outros animais, não se restringem às necessidades biológico-animais. São necessidades transcendentais isto é, metafísicas 58 . Estão abertas à criação. Criamos para suprir nossas necessidades e para criarmos, transcendemos nossa realidade biológica-animal, física. Assim, a criatividade do trabalho está diretamente relacionada às necessidades que devemos suprir. Este é o círculo essencial da cultura, como nos diz Dussel: La necesidad humana, por ser humana, es transcendental de la mera necessidad biológico-animal; está aberta a la creatividad. Por ello, la creatividad productiva dice relación a la creatividad consuntiva: “trabajo- necesidad” es el círculo essencial de la cultura o la productualidad. (Dussel, 2006, p. 270). 59 Assim, podemos resumir a cultura como o modo de trabalho para a satisfação de necessidades. Ou ainda, o ato de produzir para a satisfação das necessidades. Como podemos perceber, é um conceito complexo, que muitas vezes, cai na banalização e por isso, serve 58 Existe uma tendência atual na filosofia de querer banir qualquer reflexão à cerca da metafisica. A própria filosofia moderna, muitas vezes é interpretada como se quisesse isso. Alguns ditos pós-modernos também. Contudo, a meu ver, não é possível. Pois a transcendência é inerente à condição humana. 59 T.L. A necessidade humana, por ser humana, é transcendental da mera necessidade biológico-animal; está aberta à criatividade: Por isso, a criatividade produtiva refere-se à criatividade consumidora: "trabalho- necessidade" é o círculo essencial da cultura ou da produtualidade. 37 como instrumento de dominação. Mais a frente, veremos as implicações da má-interpretação do conceito de cultura, para as culturas populares. Mas para que não fique dúvidas aqui: Las culturas no son los objetos que reposan en los museos (como los cadáveres em las morgues). La cultura es un acto de la vida humana: es producción-consuntiva y consumo-productivo. Los objetos o símbolos de cultura son tales en acto mismo de estarlos “usando” o “creando”. En el momento de estar integrados al acto de trabajo mismo. Hasta la fiesta o la recreación cultural, y por ello el arte, es incomprensible sin la referencia, en última instancia, al acto del trabalho cotidiano: del campesino en el campo, del obrero en la fábrica, de los responsables del hogar en la casa, etcétera. (DUSSEL, 2006, p.271) 60 Mas, como trabalhamos? O que é necessário para trabalharmos? Para criarmos a fim de satisfazermos nossas necessidades? Como vimos, cultura é criação para a satisfação de nossas necessidades. Estas necessidades têm duas dimensões: material e simbólica. Ou seja, as necessidades naturais, de subsistência, que são sanadas com produtos materiais, mas há como o próprio Marx nos recorda, as necessidades simbólicas, ou “... A natureza destas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera em nada a coisa.”(MARX, 1996, p. 165) para citar suas palavras 6162 . Assim, a criação de produtos para a satisfação das necessidades materiais, não pode confundir-se com o conceito de cultura. A poiética material – conceituada como civilização para alguns, como Paul Ricoeur, ou simplesmente poiética para Aristóteles – é o hábito de produzir. É o modo de produzir algo. O marceneiro antes de produzir o móvel, pensa em como o fará e este como, não advém apenas da subjetividade do marceneiro, mas também é cultural, social. É o modo de produzir, technè, - incluindo a tecnologia e o artesanato -. A cultura material é formada pela totalidade dos instrumentos de produção e instrumentos de consumo. Ou seja, o trabalho acumulado na história. É este trabalho acumulado que permite o trabalho atual, por sabermos como já foi feito, podemos utilizar-nos de técnicas já usadas e 60 T.L. As culturas não são objetos que repousam nos museus (como os cadáveres nos túmulos). A cultura é um ato da vida humana: é produção-consumidora e consumo-produtivo. Os objetos ou símbolos de cultura se dão no próprio ato de os estarmos "usando" ou "criando", no momento de estarem integrados ao ato do trabalho. Até a festa ou a recriação cultural, e por isso a arte, é incompreensível sem a referência, em última instância, ao ato do trabalho cotidiano: do camponês no campo, do operário na fábrica, dos responsáveis pelo lar, etc. 61 Caberia aqui uma análise das necessidades, tal como fez Epicuro em sua época. Talvez a partir de uma análise da Indústria Cultural, seja possível. Pois bem sabemos que as necessidades são criadas no capitalismo para uma maior circulação do Capital, ou seja, inverteu-se o processo. Ao invés de trabalharmos para satisfazermos nossas necessidades, trabalhamos para satisfazer as necessidades do Capital. Infelizmente, aqui não cabe esta reflexão. Fica para uma próxima. 62 Para um aprofundamento desta questão poiética: DUSSEl, 1996I, p. 151 ss. E sobretudo, DUSSEL, 1984. 38 inventar novas a partir delas, para produzir. O progresso da humanidade vem justamente dessa sistematicidade e historicidade da cultura. Desta forma, a cultura material, ou materialismo histórico é condição de possibilidade da realidade humana e do método de compreensão desta realidade. (DUSSEL, 2006, p. 272). Contudo, a materialidade não dá conta de todas as necessidades humanas. Há que se produzir símbolos, ou uma poiética simbólica, ou semiótica. A semiótica está intimamente ligada à criatividade espiritual do ser humano, na poiesis material, no sentido de que não há como produzir algo, sem a ideia do que vai produzir. Assim, Dussel diz que mesmo a poiesis material é ato humano-espiritual (DUSSEL, 2006, p. 273). Da mesma forma a produção intencional de um símbolo, está sempre ligada a necessidades humanas. Não existe um ato puramente material humano. Existem atos culturais e portanto, material-simbólicos. Até o ato erótico, ou reprodutivo obedece ou se referencia nos símbolos da época. A produção simbólica 63 que faz a língua, a música, a religião, o design, a arte em geral, é também, instrumento de produção da vida humana, inseparável da poiesis material e é também produto de consumo da vida, como conteúdo que satisfaz as necessidades espirituais, como beleza, bondade, verdade, etc... Conceber assim esta questão é superar a dualidade antropológica 64 grega de corpo-
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