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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CARLOS EDUARDO NICOLETTE – 8576870 O CONCEITO DE MEMÓRIA: Análise do artigo “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais” de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses História da Cultura III Prof. Dr. Marcelo Rede São Paulo 2017 1 1. Introdução A memória é um tema caro ao debate historiográfico recente e tem se destacado como conteúdo do processo seletivo para a pós-graduação em História das mais renomadas universidades do Brasil. O historiador Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses é um dos grandes pesquisadores a examinar o campo da memória e apresenta uma série de publicações sobre o assunto1. É um de seus textos, “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”2, que o presente trabalho se propõe a analisar, a fim de compor um quadro que responda o que é memória para o autor. Publicado em 1992, enquanto Meneses era Diretor do Museu Paulista da USP3, o artigo propõe um mapeamento do conceito de memória, que tem por objetivo melhor delimitar sua fronteira com a História, sinalizando “a partir de escolhas numa já vastíssima bibliografia, a possibilidade de superar limites da conceituação corrente de memória e suas funções” (MENESES, 1992, p. 10), e assim argumentou sobre a diversa natureza de História e memória. Para tal projeto, o autor elenca cinco problemas-chave para discutir ao longo de seu texto: (1) a resgatabilidade da memória, (2) o peso do passado, (3) a memória indivisível, (4) a marginalização do esquecimento e (5) estratégias e administração da memória. A partir desses problemas, ele sugere um conceito de memória, o qual o presente trabalho investiga. O texto de Meneses tem 14 páginas e 7 tópicos, ou seja, é bastante recortado e suas subdivisões são bem curtas. Com base nesses tópicos, observou-se 3 (três) grandes movimentos do texto: o estabelecimento inicial de balizas básicas para a discussão do conceito de memória e suas disparidades da História, a abertura de uma discussão acerca das categorias e dos mecanismos da memória e, por último, uma conclusão que reafirma a memória como objeto da História. 1 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 89-104, 1998. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Cultura política e lugares de memória”. In: Cecilia Azevedo; Denise Rollemberg; Maria Fernanda Bicalho; Paulo Knauss; Samantha Viz Quadrat. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. 1 ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009, p. 445-464. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Os paradoxos da memória social”. In: Miranda, Danilo Santos de. (Org.). Memória e cultura: A importância da memória na formação cultural humana. 1a. ed. São Paulo: Edições SESC/SP, 2007, p. 13-33. 2 Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 09-23, 1992. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/70497/73267. Acesso em: 10/12/2016. 3 Posição que também nos ajuda a melhor compreender seu texto, visto os autores por ele selecionados serem, em geral, da cultura material 2 O quadro a seguir foi criado para melhor ilustrar os movimentos do texto de Meneses: Tópicos de Ulpiano Meneses Proposta de agrupamento 1) O impossível resgate da memória. 2) Memória, passado e presente. 3) No presente, é claro. Balizas básicas para a discussão do conceito de memória. 4) Memória individual, coletiva e nacional. 5) Amnésia Social. 6) Gestão da memória. Categorias e mecanismos da memória. 7) Memória/História.4 Conclusão que reafirma a memória como objeto da História. Como visto acima, o lado esquerdo do quadro apresenta as sete divisões propostas por Meneses em seu texto e do lado direito temos uma visão geral dos conteúdos correspondentes. Assim, observou-se no artigo que mais de um tópico corresponde a um conteúdo semelhante. É a partir desse agrupamento que segue a análise. 2. O conceito de memória: desconstrução do senso comum Nos três primeiros tópicos, “O impossível resgate da memória”, “Memória, passado e presente”, “No presente, é claro”, Meneses dá o primeiro passo para debater o conceito de memória, para assim evitar a confusão com sua caracterização mais corrente de “mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimento e experiências” (op.cit., p. 10); assim, a memória aparece no senso comum enraizada no passado, a quem ela deve servir e dele retirar sua função de existência. Para evitar tal sujeição da memória às referências objetivas e à ideia de sua elaboração no passado, já no tópico 1, Meneses afirma que não podemos confundir a memória com seus vetores e mecanismos, pois ela não é algo concreto: está em permanente processo de construção e reconstrução. Completa o autor que mesmo a tradição – memória expressa como padrão – não se refere às crenças, normas ou valores já definidos e estáticos, mas está sujeita invariavelmente a transformações derivadas das necessidades do presente. Para exemplificar a ligação intrínseca entre a memória e o presente, o autor fala da sócio-memória-hábito, e segundo a citação escolhida de Paul Connerton, essa seria um elemento imprescindível para o êxito e a persuasão de códigos e normas da memória 4 Numeração colocada pelo autor deste trabalho para facilitar a análise. 3 cognitiva. Apesar do trecho de Meneses ser bastante vago em relação a esse exemplo5, entende-se que a sócio-memória-hábito é, como o nome sugere, um automatismo corporal que forma a sustentação das ações cotidianas de todos os homens. Não obstante seus dois primeiros tópicos afirmarem e reiterarem que a memória se dá no presente e para responder solicitações do presente, ele nomeia seu seguinte trecho de “No presente, é claro”, fazendo referência mais uma vez à necessidade de lidarmos com o conceito em seu permanente processo de construção. Nesse trecho, Meneses busca discutir três grandes afirmações feitas por ele mesmo ao longo do tópico seguinte: o papel fundante do presente na memória, o presente na ação da memória e a dominação da memória pelo presente6. Para alcançar seu objetivo neste trecho, Meneses lança mão de exemplos7 que visam elucidar suas propostas acerca do conceito de memória. Em relação à primeira afirmação – o papel fundante do presente na memória –, o autor faz uso de sua especialidade: a cultura material. Ele identifica que a categoria objeto antigo/histórico retira sua razão de ainda existir do presente e que “todo eventual valor de uso subsistente converte-se em valor cognitivo” (op.cit., p. 12). É nessa perspectiva que o autor reitera a memória como incapaz de dar conta de todo o passado – em suas variadas dimensões –, e reafirma o que foi dito anteriormente: a memória é filha do presente. Para a segunda afirmação – o presente na ação da memória –, o autor continua fazendo uso da cultura material; agora o exemplo é a crescente preocupação documental de nossa sociedade, a qual tem cada vez mais “preparado” a memória futura. Não é exatamente a uma enorme quantidade de documentos oficiais de nascimento de pessoas ou a multiplicação de monumentos que ele se refere, mas na retenção, por parte de museus, sobretudo, de objetos efêmeros. Exemplo disso é a preservação das mercadorias mais vendidas em supermercados, o que do ponto de vista damemória se transforma num “duplo fragmentado e parcelar do presente empírico” (op.cit., p. 13). O que nos interessa mesmo é a relação disso com o seu conceito de memória, apesar de o autor não deixar claro nesse 5 Como foi dito na introdução, o presente trabalho usa apenas do texto e das citações de Ulpiano Meneses, sem recorrer a outras referências. 6 Foram nomeados assim pelo historiador. 7 O artigo de Ulpiano contém muitos exemplos sobre memória, na medida do possível essa análise os trouxe à baila. 4 trecho, compreende-se que o exemplo elucida como o presente influencia na memória e, no decurso atual, procura intervir e induzir inclusive na memória futura. Concluindo a seção que se chamou neste trabalho de “Balizas básicas para a discussão do conceito de memória”, temos o último exemplo de Meneses – o qual foge do campo da cultura material –, o jovem K.C. Esse é incapaz de se lembrar de qualquer evento vivido antes ou depois de seu acidente, mas consegue reconhecer outras coisas sobre si, mas como faria um observador externo. O autor cita, então, Endel Tulving, o qual diz que “sem a capacidade de se lembrar o que fez ou de conceber o que o futuro pode trazer, K.C. está destinado a gastar (tem esse "o" mesmo?) todo o tempo de sua vida em um permanente presente”8 (op.cit., p. 14). Destarte, por não conseguir visualizar seu passado, tem sua existência “presentificada”; exemplo que lança luz à afirmação de Meneses, quando disse que existe um domínio do presente sobre a memória. Percebe-se, assim, que Meneses elaborou seus três primeiros tópicos para demonstrar como a memória responde a estímulos do presente e a esse está ligada intrinsicamente. Isto posto, o autor respondeu até aqui dois dos cinco problemas-chave por ele propostos: a resgatabilidade da memória e o peso do passado. Em relação ao primeiro, afirma ser uma ilusão o resgate da memória devido à sua heterogeneidade e de sua ligação com o presente. Em relação ao segundo, é com o exemplo do jovem K.C. que temos a resposta de que o passado é o referencial da memória, mas não o local de sua existência. Esse local para a memória é o presente. 3. Categorias e mecanismos da memória: aprofundando no tema Discutir-se-á aqui o conjunto compreendido pelos tópicos 4, 5 e 6: Memória individual, coletiva e nacional, Amnésia Social e Gestão da Memória. Propõe-se aqui esses três componentes como parte de um mesmo eixo temático, denominado “Categorias e mecanismos da memória”9. Nessa segunda divisão proposta por esse trabalho, Meneses indica caminhos para a pesquisa em memória e aprofunda o debate, discutindo alguns vetores e produtos da memória, bem como seus mecanismos de descarte e seleção. Em relação ao quarto tópico, sobre as categorias da memória, o autor as divide em três: individual, coletiva e nacional. No caso da primeira, ela só interessa às ciências sociais quando analisada sob a égide da interação social, ou seja, é necessário que existam 8 Tradução livre feita pelo autor do texto. 9 Como exposto no quadro anterior. 5 “ao menos duas pessoas para que a rememoração se produza de forma socialmente apreensível”. Essa categoria é relevante, pois a memória de um indivíduo pode permanecer oculta por anos, até que a relação com o outro a desperte. As outras categorias de memória são, para Meneses, opostas à individual, mas de maneiras diferentes. A coletiva tem seu suporte em grupos previamente organizados10 e não é espontânea, ou seja, tem a necessidade constante de ser renovada perante o mito que a originou. Nesse aspecto, várias memórias podem coexistir, não precisando de um processo unificador. No último ponto é o que mais a diferencia da nacional. Justamente por isso as camadas dominantes e o Estado se apresentam como maiores interessados no controle da memória nacional, pois assim têm a possibilidade de controlar o caldo de cultura e o desenvolvimento da identidade nacional. Logo em seguida, Meneses insere a discussão dos mecanismos de seleção e descarte da memória. Apesar de ela ser ligada, no senso comum, apenas a mecanismos11 de depósito e retenção, só há memória porque existe o esquecimento. E o processo mais comum de esquecimento, segundo o autor, é a reificação, que é o momento no qual a memória sai do campo pessoal e entra na dinâmica social e econômica de determinada comunidade. Apesar de o trecho não deixar explícito o conceito de reificação – nesse momento ele não cita exemplos –, interpretou-se que Meneses entende reificação como uma operação mental que se baseia em metamorfosear algo abstrato em uma realidade concreta. Desse modo, ao sair do campo pessoal, a memória também passa pelo descarte e o esquecimento. Como insiste Meneses, todo sistema classificatório funciona pelo método de exclusão. Ele afirma ainda que a maior parte dos estudos sobre o esquecimento é sobre seus mecanismos explícitos, “pela eliminação do seu referencial empírico, principalmente simbólico” (op.cit., p. 17). Para exemplificar, ele cita os procedimentos damnatio memoriae, na Roma Imperial. Esse dispositivo podia ser acionado pelo voto do senado e consistiu na possibilidade de apagar o nome do imperador odiado “onde quer que estivesse gravado e se proscrevia sua menção futura de qualquer ato cerimonial” (op.cit., p. 17). 10 Meneses alega que seja preferível falar em “redes de inter-relações estruturadas imbricadas em circuitos de comunicação”, entretanto, parece mais uma definição do que propriamente uma maneira de chamar o suporte da memória coletiva. 11 Vale ressaltar que se entendeu mecanismos como disposição das partes constitutivas de algo, usado de forma metafórica para parte interna ou externa da memória que a constitui em suas múltiplas funções. 6 Assim, o autor nos mostra que o processo de esquecimento pode ser via reificação ou sob outros mecanismos, sejam de ordem do explícito, da ocultação, dissimulação e até de inversões. No seguinte tópico, “Gestão da Memória”, Meneses vai finalizar esse segundo agrupamento, nomeado para fins didáticos de “Categorias e mecanismos da memória”, com uma verticalização do tema, demonstrando o que ele chamou de problemática social da memória. Ele diz que, se bem compreendida, essa problemática pode prevenir a redução da memória a seus produtos e, assim, evitar sua reificação. A problemática social da memória necessita, para o historiador, cobrir quatro questões: o sistema da memória (mecanismos, suportes, vetores, referenciais), seus conteúdos (as representações da memória), os agentes e, por fim, as práticas dos agentes. Em relação à primeira, ele assegura existirem cinco principais categorias de suporte da memória: linguagem, corpo, cerimônias, objetos materiais. Dessas, apenas a linguagem, segundo Meneses, teria estudos sistemáticos, “em especial o que concerne à palavra narrada (palavra narrativa?) e à passagem do registro oral para o escrito” (op.cit., p.19). Em relação aos conteúdos da memória, Meneses diz que foram alvo de várias pesquisas, principalmente sob o viés da ideologia, mas que “infelizmente se isolam os conteúdos e ideologias, desarticulando-os das estruturas e processo sociais” (op.cit., p.19). Em relação ao tema dos conteúdos, Ulpiano não esclarece com exemplos e se restringe a um parágrafo sobre o assunto. Posição parecida toma em relação aos agentes da memória, afirmando que o estudo “da memória fica debilitado sem investigações sobre os agentes ativos e passivos da memória e seus papeis sociais” (op.cit., p.20). Não nosesclarece, entretanto, as razões de o estudo da memória ficar debilitado sem a pesquisa acerca dos agentes passivos e seus papeis sociais. Para o seu último ponto sobre o tema, o estudo das práticas dos agentes se mostra importante para entender as estratégias que estabelecem equilíbrios entre memórias, pois formam estratégias de negociação. Nessa perspectiva, o autor acredita que só a Antropologia se preocupou o suficiente. É para esse quadro que Meneses sugere o conceito de P. Nora, Locus Memoriae, que ele elogia, concluindo ser “um conceito capaz de amplo alcance operacional, podendo articular as práticas, os agentes, os referenciais e os conteúdos da memória” (op.cit., p.20). 7 4. Memória: objeto da História? Para encerrar seu artigo, Meneses é enfático em seu último tópico: é imprecisa qualquer equivalência entre memória e História. Nada mais justo, construiu todo o seu texto ao redor dessa afirmação; e a reitera nesse curto trecho final. Para o autor, enquanto a História é uma operação cognitiva e forma intelectual de conhecimento, a memória, ao contrário, é operação ideológica, “processo psico-social de representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz” (op.cit., p. 22), bem como fornece códigos classificação para social e campos de orientação e integração com o novo. Como visto anteriormente, o autor diz que a memória não tem no passado seu local de existência, mas é ele seu objeto de estudo. A memória é filha do presente, e responde às suas exigências. Todo cuidado deve ser destinado a evitar que a memória seja confundida com a História ou mesmo que ela fique sujeita às suas próprias referências objetivas e mecanismos. O ofício do historiador, segundo Meneses, é continuar com sua função crítica em relação a seus conceitos e tratar a memória como seu objeto de estudo, não deixando a História se tornar o duplo científico da memória.
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