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A China e a Guerra da Coréia (1950-1953) Giovanni Mannarino e Lauter Dourado "[o PCC] decidiu enviar uma parte de nossas tropas, sob o nome de Voluntários Chineses, para lutar contra os americanos e as forças de [Syngman] Rhee na Coréia e para ajudar os nossos camaradas coreanos. [...] Nós pensamos que este é um passo necessário, porque se permitirmos que a Coréia seja ocupada pelos norte-americanos, as forças revolucionárias coreanas serão completamente destruídas. Veremos então os invasores americanos mais desenfreados, o que será muito desfavorável para todo o Oriente." (Telegrama de Mao para Stálin em Outubro de 1950). "Para chegar à libertação completa, os povos oprimidos devem apoiar-se em primeiro lugar na sua própria luta, e só depois na ajuda internacional. Os povos cujas revoluções já triunfaram devem ajudar os que ainda lutam pela libertação. Esse é o nosso dever internacionalista." (O livro vermelho, p. 128). A Guerra da Coréia teve início no dia 25 de junho de 1950, com a invasão da Coréia do Sul pelas tropas norte-coreanas. Não se sabe ao certo quem foi o responsável pela deflagração do conflito - até hoje os coreanos do sul e do norte acusam como responsáveis os homens do outro lado do paralelo 38°. Com a entrada dos Estados Unidos da América (EUA) - 27 de junho de 1950 - e das tropas da ONU na Guerra esse conflito deixa de ser local, uma simples guerra civil, e transforma-se em um dos mais tensos e sangrentos embates da Guerra Fria. Para compreendermos melhor esse conflito é importante analisar a situação política dos países envolvidos - Coréia, Japão, China, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e EUA - nos anos que antecederam a guerra. Antecedentes A península coreana foi um dos primeiros territórios asiáticos a ser ocupado pelas tropas japonesas em seu expansionismo imperialista, ainda no início do século XX (1910). Nas décadas seguintes, dando seguimento a essa política, os japoneses ocupariam boa parte dos territórios do leste asiático, inclusive territórios chineses. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os setores nacionalistas dos diversos territórios ocupados uniram-se aos aliados, principalmente os norte-americanos e soviéticos, na luta contra o Japão. A vitória dos aliados na guerra levou os territórios da China, Coréia e Japão a caminhos diferentes. Na China, os nacionalistas do Goumindang - comandados por Chiang Kai-shek - eram reconhecidos pelas potências internacionais (inclusive pela URSS) como governantes legítimos. Mas os comunistas do Partido Comunista Chinês (PCC) - liderados por Mao Zedong1 - também disputavam o poder. Com o fim da Segunda Guerra Mundial o país logo entrou em uma guerra civil, que durou de 1946 a 1949. Nesta os comunistas, mesmo sem apoio internacional, saíram vencedores e proclamaram a República Popular da China em Outubro de 1949. Mao e outros líderes do PCC costumavam dizer que "a revolução chinesa alcançou sua vitória contra a vontade de Stalin" que, naquele momento, tinha Chiang Kai-shek como seu principal aliado na China. Mais à frente, veremos como era ambígua a relação entre o PCC e a URSS. O Japão, com a derrota para os norte-americanos, terminou a Segunda Guerra Mundial ocupado militarmente. O gen. MacArthur, chefe militar americano importante durante os conflitos no Pacífico na guerra mundial e futuro comandante das tropas da ONU na Guerra da Coréia, foi nomeado como líder da ocupação. A Coréia vivia dias de muita alegria com a vitória sobre os japoneses, mas este sentimento não duraria muito. Logo ficaram sabendo das decisões das potências (EUA, URSS e Grã-Bretanha) no tratado de Yalta (1945): a Coréia, que sempre foi um país unificado, seria dividida pelas tropas soviéticas e norte-americanas. Cada país ficaria responsável por 'tutelar' uma metade da Coréia - soviéticos no norte e americanos no sul - e derrotar as últimas tropas japonesas que ainda atuavam na península. O marco escolhido como fronteira para as duas Coréias foi o paralelo 38º (veja a figura 4). Os últimos japoneses foram derrotados, mas a ocupação das tropas estrangeiras permaneceu. Em 1948, cada potência em sua metade da Coréia organizou um governo para os novos países que se estruturavam. No norte, liderado pelo Partido Comunista e Kim Il-Sung, surgia a República Democrática Popular da Coréia. E no sul, a República da Coréia, tendo como presidente Syghman Rhee. Entre 1948 e 1949 as tropas soviéticas e norte-americanas retiraram-se da Coréia. Evidências recentes mostram que mesmo com a retirada das tropas da URSS, os contatos e intercâmbios militares, tecnológicos e econômicos entre este país e a Coréia do Norte continuaram muito intensos. Isso criou um desequilíbrio de forças entre as duas Coréias. Mesmo com um poderio militar desigual, a vontade de reunificar o país estava presente dos dois lados do paralelo 38°. Discursos radicais e ameaças foram proferidas e o risco de uma guerra civil era real. É nesse momento que Kim Il-Sung tenta convencer Josef Stalin, líder da URSS, a apoiar seu plano de reunificar a Coréia pela força das armas. Inicialmente ele não consegue: o soviético temia uma intervenção norte-americana e uma guerra entre as maiores potências mundiais. 1 O nome do líder chinês pode ser transcrito de duas maneiras: Mao Zedong ou Mao Tsé-Tung. Figura 1: Povo coreano comemorando a rendição japonesa em 1945 e a Libertação da Coréia – Foto do livro Historia de Corea. Por que Stalin muda de opinião e apóia a Coréia do Norte na sua tentativa de reunificar o país? Por que a China entra no conflito? Por que o que era para ser uma guerra local se transforma em uma disputa internacional? Para respondermos estas questões analisaremos a relação entre URSS e o PCC. A URSS e a Revolução Chinesa As relações entre soviéticos e os comunistas chineses foram muito ambíguas ao longo da história. Em alguns momentos, o Partido Comunista Chinês (PCC), fundado em 1921, era praticamente controlado pelos líderes da revolução mundial, recebendo financiamentos e apoio humano dos soviéticos. Em outros momentos o PCC era deixado de lado, esquecido e até combatido pela URSS. Não podemos esquecer que os soviéticos reconheciam o líder nacionalista Chiang Kai-shek, durante as décadas de 1930 e 1940, como legítimo governante da China. É nesse contexto que, após a rendição dos japoneses em 1945, recomeça a guerra civil na China entre nacionalistas e comunistas. Para manter o apoio das potências na guerra civil contra os vermelhos, C. Kai-shek aceita os termos do tratado acordado em Yalta, cedendo aos soviéticos o controle dos portos da Manchúria e a Mongólia Exterior, por exemplo. Apesar desses apoios internacionais os nacionalistas não conseguem frear os avanços comunistas que vão vencendo batalha após batalha. Com a proximidade do fim do conflito e da vitória do PCC, os comunistas tentam restabelecer seus contatos com a URSS, afinal, aquele era o país líder da Revolução Mundial e Mao Zedong queria aliar a nova China que surgia ao bloco de países socialistas. A vitória final dos comunistas na China acontece com a fuga dos nacionalistas para ilha de Taiwan e a proclamação, em 1° de Outubro de 1949 da República Popular da China (RPC). A partir daqui, os contatos entre Mao e Stalin vão se intensificar (Mao, inclusive, viaja à URSS para se encontrar com o líder soviético) até ser assinado o novo tratado sino-soviético em Fevereiro de 1950. São revistas uma série de cláusulas desfavoráveis à China que estavam no acordo de 1945, além de serem assinados acordos militares e de mútua defesa. É nesse contexto de transformações da geopolítica no leste asiático que Kim Il-Sung tenta convencer Stalin, maisuma vez, a apoiar a unificação das Coréias O líder norte-coreano argumenta que a ofensiva seria rápida, o que impediria qualquer reação dos norte-americanos. Além disso, a península coreana estava fora do "perímetro defensivo" projetado pelos EUA no Pacífico (este incluía as Aleutas, o Japão, Okinawa, as Ryukyu a e as Filipinas, e excluía Taiwan e a Coréia). Convencido pelos argumentos dos norte-coreanos e apoiado pelos chineses, J. Stalin aprova o plano da invasão sobre a Coréia do Sul e os preparativos para o embate começam a ser tomados. Precisamos frisar, no entanto, que a Guerra da Coréia (1950-1953) não foi uma prova do desejo expansionista dos soviéticos como argumentaram várias gerações de políticos e historiadores. Mas também não foi uma decisão exclusiva dos norte-coreanos. Como afirma Figura 2: Mao Zedong proclama a República Popular da China em 1° de Outubro de 1949. Kathryn Weathersby, "foi a intersecção dos objetivos de Moscou e de Pyongyang [capital da Coréia do Norte] que produziu a guerra em junho de 1950". Outro fator que pode ter influenciado Stalin a aprovar o plano de invasão norte- coreano foi o novo peso político da RPC. Caso os soviéticos fizessem com os norte-coreanos o que eles haviam feito com os chineses - ignorar os pedidos de apoio para a revolução comunista - a China poderia assumir um papel de liderança no leste asiático: o seu modelo de revolução já ameaçava os soviéticos e forçar a China a entrar no conflito poderia enfraquecê- la. Mao Zedong, por outro lado, seguindo seus ideais internacionalistas de revolução, como podemos observar no texto que abriu este trabalho, apoiaria o plano norte-coreano. A China compartilharia a decisão soviética não só porque estes eram os líderes do bloco socialista, mas também por quererem consolidar a aliança recém firmada. A Guerra da Coréia (1950-1953) Após a aprovação do plano de invasão norte-coreana pelos líderes comunistas, os preparativos para o conflito começaram a ser tomados. A pedidos de Stalin e Kim, Mao Zedong envia para a Coréia entre 50 e 70 mil soldados de origem coreana que haviam lutado pelo Exército de Libertação Popular (ELP) na Revolução Chinesa. Muitos desses soldados cruzaram a fronteira da China para a Coréia do Norte com seus equipamentos, ou seja, armados. Essa é uma evidência suficiente para mostrar o envolvimento da RPC nos preparativos para a guerra. No dia 25 de Junho de 1950 os norte-coreanos iniciam as operações cruzando o paralelo 38°. Em poucas semanas eles tomariam Seul e forçariam os sul-coreanos, mais fracos militarmente, a recuar para o sul da península. Um acontecimento não previsto pelos comunistas, no entanto, mudaria os rumos da guerra: dois dias após o início do conflito, o governo norte-americano declara guerra à Coréia do Norte. Figura3: Tropas norte-coreanas na Guerra da Coréia [Fonte: pt.wikipedia.org] Fugindo às expectativas dos comunistas, a entrada dos EUA na guerra pegou todos de surpresa. Estudiosos afirmam que as mudanças geopolíticas na região podem ter sido fundamentais para a decisão norte-americana, mesmo que o território coreano não estivesse no seu "perímetro defensivo". Entre essas mudanças podemos citar a criação da primeira bomba atômica soviética e a Revolução comunista na China em 1949. Os EUA temiam que esse conflito fosse o primeiro de uma série de tentativas expansionistas soviéticas, que deveriam ser respondidas à altura para evitar o avanço do inimigo em outras regiões do planeta. Seguindo o chamado dos EUA, a ONU aprova ações contra a Coréia do Norte e o envio de tropas (a URSS não pode vetar essa medida já que nesse momento estava boicotando a ONU em uma tentativa de incluir a China Comunista no Conselho de Segurança no lugar de Taiwan). Os EUA deslocam uma frota de navios para proteger Taiwan (os chineses estavam organizando uma invasão à ilha para concluir a reunificação do país) e envia tropas para a península coreana. Se em um primeiro momento o avanço das tropas norte-coreanas foi rápido, a entrada das forças da ONU no conflito e o desembarque de suas tropas no porto de Inchon (setembro de 1950), atrás das linhas inimigas, muda os rumos da guerra. A partir de então, a contra- ofensiva da ONU recuperaria os territórios da Coréia do Sul e estava pronta para avançar pelo paralelo 38° e seguir combatendo os comunistas. O avanço dos norte-americanos e o recuo dos norte-coreanos precipitam a entrada da China no conflito. Para os chineses, a Guerra da Coréia, a partir de Setembro de 1950, é sua responsabilidade não só pelo seu dever internacionalista como um país comunista, mas também uma questão de segurança nacional. Observando o terceiro mapa da figura quatro, percebemos que as tropas estadunidenses aproximavam-se perigosamente da fronteira com a China. Como podemos analisar na mensagem de Mao a Stalin que abriu esse trabalho, a presença de tropas norte-americanas na Coréia do Norte e avançando rapidamente na direção da China colocava em risco a sobrevivência do Governo revolucionário de 1949. É por esses motivos que a partir de Outubro de 1950 milhares de voluntários chineses cruzaram a fronteira para apoiar os norte-coreanos e fizeram uma contra-ofensiva que obrigou as tropas da ONU a recuar para o sul. No ano de 1951 os rápidos movimentos e reviravoltas da guerra diminuem, o conflito fica mais localizado próximo ao paralelo 38°. Os combates, no entanto, atingem seu período mais sangrento. A Guerra da Coréia chega ao fim apenas em Julho de 1953 com a assinatura do armistício em Panmunjom. A divisão existente no início da Guerra entre Coréia do Sul e Coréia do Norte foi mantida e dura até os nossos dias. Segundo Jonathan Spence o número de baixas foi enorme: 160 mil norte-americanos (incluindo mortos, feridos e desaparecidos), 400 mil da Coréia do Sul, 600 mil da Coréia do Norte e entre 700 a 900 mil chineses. Conclusão Podemos perceber, portanto, que a Guerra da Coréia teve uma importância muita grande para a RPC. Sua entrada na Guerra era fundamental para impedir os avanços norte- americanos na região, o que colocaria sua segurança em jogo. Em relação à aliança sino- soviética que estava sendo recentemente reativada, no entanto, a guerra é um "banho de água fria". De acordo com o novo tratado assinado por Mao e Stalin em 1950, em caso de guerra um país ajudaria o outro. Não foi o que aconteceu. Os soviéticos, temendo um conflito direto com os norte-americanos que evoluísse para uma guerra global, apoiaram os comunistas apenas indiretamente. Esta "traição" pode ser considerada como o início do desgaste diplomático entre China e URSS que nas décadas seguintes evoluiria para um corte de relações. Essa não é, no entanto, a única interpretação do conflito. Alguns autores, como Shu Sheng, argumentam que o conflito consolidou a aliança sino-soviética, já que demonstrou a lealdade de Mao perante os Soviéticos e os Comunistas. Segundo o autor, a URSS foi a grande vencedora da guerra: não teve grandes perdas humanas, seu território não foi atingido e ainda saiu economicamente fortalecida já que as “ajudas” financeiras e militares que cedia para chineses e coreanos não eram gratuitas. Podemos dizer que tropas de pelo menos 20 países participaram do conflito já que as forças da ONU eram compostas, além dos norte-americanos, por ingleses, franceses, turcos, gregos, filipinos, australianos e canadenses por exemplo. Militares soviéticos também participaram do conflito, mesmo sem a declaração de guerra oficial da URSS. Documentos mostram que para camuflar sua participação os pilotos soviéticos pintavam seus aviões e usavam uniformes chineses, além de falar no rádio apenas em coreano. Figura5: A Guerra da Coréia (1950-1953). Disponível em www.historia.uff.br/nec [últimoacesso em 24/10/2011]. A Guerra da Coréia não deve, portanto, ser entendida como um conflito local ou uma ação expansionista do bloco soviético. Ela deve classificada como um conflito internacional e um dos momentos mais tensos da Guerra Fria. Filmografia As pontes de Toko-ri, EUA, 1955 Título Original: The Bridges At Toko-ri Diretor:Mark Robson Os que sabem morrer, EUA, 1957 Título Original: Men in War Diretor: Anthony Mann Raposa do Espaço, EUA, 1958 Título Original: The Hunters Diretor: Dick Powell Sob o domínio do mal, EUA, 1962 Título Original: The manchuria candidate Diretor: John Frankenheimer Macarthur, EUA, 1977 Título Original: Macarthur Diretor:Joseph Sargent Inchon, EUA, 1982 Título Original: Inchon Diretor: Terence Young A irmandade da Guerra, Coréia do Sul, 2004 Título Original: Taegukgi hwinalrimyeo Diretor: Kang Je-gyu 71: into the fire, Coréia do Sul, 2010 Título Original: Pohwasogeuro Diretor: John H. Lee Bibliografia AARÃO REIS FILHO, D. A Revolução Chinesa. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. HOBSBAWM, E. Guerra fria. In: _______. Era dos extremos. O breve século XX: 1914- 1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. cap. 8, p. 223–252. JIAN, Chen. 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