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História do Existencialismo e da Fenomenologia -Thomas Ransom Giles Martin Heidegger 1. Introdução O pensamento de Heidegger surgiu em meio a uma geração conturbada, sacudida em seus valores tradicionais e no orgulho da sua civilização, mutilada pelo espanto da Primeira Guerra Mundial (a guerra que pretendia acabar com todas as guerras). Esse pensamento pretende representar a recolocação dos problemas fundamentais da Filosofia em função do problema axial do caminhar reflexivo que é a questão sobre o Ser, tema que coincide, conforme Heidegger, com o destino do próprio Ocidente, pois tal como Heidegger a considera, a História do Ser é a história mais autêntica do Ocidente; a questão mais fundamental de todas será, pois, a questão sobre o Ser, e na medida em que o Ocidente configurar o mundo, essa questão atingirá dimensões planetárias. Todavia, essa questão só se torna compreensível a partir de uma análise fenomenológica do ser do homem, único existente a quem foi confiado o pensamento e a guarda do Ser. Martin Heidegger nasceu em Messkirch, em Baden, no sul da Alemanha, aos 26 de setembro de 1889. Fez os primeiros estudos com os jesuítas, onde obteve uma vasta cultura clássica. O incidente que despertou nele a vocação filosófica foi o contato que teve com o livro de Franz Brentano, Sobre os Diversos Sentidos do Ente segundo Aristóteles, presenteado a ele por Konrad Gruber, vigário de Konstanz, e futuro arcebispo de Freiburg-im-Breisgau, a quem Heidegger evoca como amigo paternal e conterrâneo. Portanto, o primeiro contato do jovem Heidegger com a filosofia foi por um estudo sobre o Estagirita, o companheiro mais assíduo e mais familiar ao longo do seu caminhar filosófico. Depois de concluídos os estudos humanísticos nos ginásios de Konstanz e Freiburg-im- Breisgau, Heidegger matricula-se na Faculdade de Teologia da Universidade de Freiburg. Desde essa mesma época Heidegger procura perscrutar o conteúdo das Investigações Lógicas de Husserl, que, nessa obra, tentava a refutação rigorosa e definitiva do psicologismo. Sob a influência do neokantiano Heinrich Rickert, Heidegger já se orientava para estudos sobre o problema dos objetos lógicos em face do subjetivismo psicologista. Foi Rickert também quem o iniciou, através dos exercícios de seminários e dos escritos do neokantiano Emil Lask, e quem o levou mais adiante pelo caminho já aberto para ele por Brentano: o caminho da filosofia da Grécia antiga. Entre 1910 e 1914 Heidegger toma contato com a Vontade de Potência, de Nietzsche, a tradução das obras de Kierkegaard e de Dostoievski, e mostra um interesse crescente em Hegel e Schelling, como também nos poemas de Rainer Maria Rilke, George Trakl, além das obras de Wilhelm Dilthey. Tantas forças que levarão Heidegger a colocar em questão toda a orientação metafísica do pensamento ocidental, colocação essa que revelará a profundidade dos transtornos cujas consequências catastróficas se tornaram perceptíveis na Primeira Guerra Mundial, como nas revoluções e guerras que se seguiram. Em 1915, Heidegger é nomeado livre-docente em Freiburg e, no ano seguinte, publica a tese de habilitação: A Teoria das Categorias e das Significações em Duns Escoto. É a Husserl que Heidegger deve o passo decisivo, sobretudo o tema da gramática pura, que o levou para o caminho da fenomenologia, acontecimento que para ele será de importância capital. Doravante, os dois grandes orientadores do filosofar de Heidegger serão Aristóteles e Husserl: o primeiro por ser o formulador da teoria do Ser enquanto Ser, e o segundo por ser o formulador do método fenomenológico. De 1917 a 1919 Heidegger presta serviço militar na frente de combate e toma contato direto com a Primeira Guerra Mundial, o agonizar apocalíptico do mundo moderno após o brilho do século XIX. Desde 1919, Heidegger é assistente de Husserl, ministrando aulas sobre várias questões de fenomenologia. Comenta semanalmente as Investigações Lógicas de Husserl, sua obra de preferência. Já desde o início da época em que colabora com Husserl, Heidegger tem a sua própria posição e não está disposto a seguir Husserl pelo caminho do transcendentismo. Pelo contrário, intenciona desligar o método fenomenológico do idealismo transcendental das ideias. Nesses primeiros anos de magistério, Heidegger leciona sobre Wilhelm Dilthey, cuja Filosofia da Vida terá repercussões decisivas sobre o seu pensamento, São Paulo, Agostinho, Lutero e Kierkegaard, alternando o estudo sobre esses autores com estudos sobre Aristóteles, os pré- socráticos, Kant, Fichte, a mística medieval, Descartes etc. Em 1923, Heidegger é nomeado catedrático na Universidade de Marburg, onde dedica a maioria das aulas e seminários à história da ontologia, através de estudos sobre Platão, Aristóteles, os escolásticos, Descartes, Kant, Hegel e Schelling. Em 1933 é nomeado reitor da Universidade de Freiburg. Demite-se do cargo em 1935 mas continua como professor até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando é temporariamente licenciado por supostas simpatias com o regime nazista. Heidegger falece em 26 de maio de 1976, em Messkirch. 2. O que significa filosofar? O filosofar heideggeriano é uma constante interrogação, na procura de revelar e levar à luz da compreensão o próprio objeto que decide sobre a estrutura dessa interrogação, e que orienta as cadências do seu movimento: a questão sobre o Ser. Esse filosofar não procura soluções (e nem podia, mesmo que quisesse), mas procura ser um pensamento que interroga dentro do âmbito a partir de onde todas as interrogações e soluções se levantam. É um caminhar que nos dará pelo menos a possibilidade de interrogar, de questionar,e quiçá de entender a voz do Ser do qual somos o pastor. Percorrer o caminho do filosofar significa estar dentro dele, coincidir com ele, encontrar moradia nele, comportar-se conforme ele nos guie. A meta de Heidegger é penetrar na Filosofia, demorar nela, submeter seu comportamento às suas leis. O caminho seguido por ele deve ser, portanto, de tal modo e de tal direção, que aquilo de que a Filosofia trata atinja nossa responsabilidade, vise a nós homens, nos toque e, justamente, em todo o ente que é no ser. O espanto carrega a Filosofia e impera em seu interior; perpassa qualquer passo da Filosofia. Aristóteles diz o mesmo na Metafísica, quando afirma que é pelo espanto que os homens chegam, assim como chegaram antigamente, à origem imperante do filosofar, àquilo donde nasce o filosofar e que constantemente determina sua marcha. É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim, e não de outra maneira. Todavia, o espanto não se esgota nesse retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. O espanto é a disposição em meio a qual está garantida a correspondência do ser do ente. Nesse caminho, que é caminho de reflexão, não pode ser questão de uma “filosofia” pessoal, de uma filosofia de Heidegger, pois ele próprio nos diz, numa conferência de 1955, que não há uma Filosofia” heideggeriana, e mesmo que houvesse algo de parecido, ele (Heidegger) não se interessaria por ela. Portanto, não se trata de estudar a Filosofia de Heidegger, não só porque ele desconheça tal Filosofia, mas também porque a questão que ele coloca caracteriza a Filosofia como tal. Não se trata de questão excepcional, mas de retomada do próprio fundamento da metafisica. Nessa colocação encontramos uma posição que, em certo sentido,ultrapassa a metafisica clássica- não no sentido da metafisica clássica ser falta de sim , na medida em que nela algo permaneça retraído e fora de todo o questionamento. Todavia, esse pensamento tampoucoé extra filosófico, pois ele não abandona a Filosofia para perguntar a qualquer outra realidade aquilo que a própria Filosofia seria supostamente incapaz de proporcionar. Pelo contrario, o pensamento de Heidegger é um retorno ao fundamento da metafisica num movimento problematizador, uma meditação sobre a Filosofia no sentido daquilo que permanece fundamentalmente velado. Alias,mesmo se não há uma Filosofia, na continuidade monumental da sua historia. Evidentemente, não se trata daquilo que se chama de Filosofia hoje em dia-aquele carnaval onde a virtuosidade e desregramento humanista, o desbaratamento dos valores e a pretensão cientifica, as pretensões dialéticas e a improvisação fenomenológica desempenham as suas comedias. A Filosofia sobre a qual medita Heidegger e sobre a qual ele nos convida a meditar é grande característica da inquietação humana em geral, inquietação inseparável da questão-guia a questão sobre o Ser, o primeiro e ultimo fenômeno. Perscrutar o pensamento tal como existe até agora para decifrar nele o que contém de impensado, a fim de que descobrir o lugar onde construir e morar no futuro. É esse o caminho que segue Heidegger. É nesse caminho que o Ser se torna transparente e, pelo próprio fato, se desvela, se mostra, tornando-se cognoscível em resposta à nossa procura do Ser e da verdade enquanto transparência. É nesse caminho que encontraremos talvez a força para tirar a própria Filosofia da solidão onde se refugiria. Mas, o que é essa Filosofia sobre a qual medita Heidegger e que, por assim dizer, orienta de uma forma misteriosa o seu caminhar? Ouvimos e pronunciamos essa palavra desde os primórdios da nossa civilização. É a palavra grega enquanto palavra grega o caminho que se estende diante de nós. Esse caminho que se nos mostra que a Filosofia é antes de tudo algo que pela primeira vez e antes de tudo vinca a existência do mundo grego. Mas não é só. A filosofia determina também, no seu fundamento, o próprio curso- o mais interior-e a linha mestra da nossa história ocidental-eu-mestra da nossa História ocidental- européia a ponto de a expressão “Filosofia ocidental europeia”ser uma tautologia, pois a Filosofia é grega em sua essência. Heidegger entende que a filosofia é nas origens, na sua essência, de tal natureza que ela primeiro se apoderou natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver. Com isso Heidegger quer nos lembrar que somente o Ocidente e a Europa são, na marcha mais intima de sua história, originalmente “filosófico”. O que é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato delas brotarem da marcha mais intimas da historia ocidental- européia, o que quer dizer do processo da Filosofia, são elas capazes de avançar hoje, com seu cunho especifico, para orientar a historia da humanidade nunca existiria, se a Filosofia não a tivesse precedido e antecipado. Mas será que essas afirmações realmente definem os termos do problema da maneira mais exatas? Quando perguntamos que é a Filosofia?, perguntamos sobre a filosofia e pelo próprio fato,colocamos-nos fora dela, ao passo que nós queremos entrar dentro dela, pois é essa a única meta das discussões do pensador de meta das meditações do pensador de Freiburg-im-Breisgau, seguir a filosofia, consciente de que o filosofar é e permanecerá sempre um saber, que não só não deixa moldar pela medida do tempo, mais ainda submete o tempo à sua própria medida. A Filosofia se acha necessariamente fora do seu pensamento, por pertencer àquelas poucas coisas cujo destino consisti em nunca poder nem dever encontrar ressonância imediata na atualidade . Onde tal parece ocorrer, onde uma filosofia se transforma em moda, é porque ou não há verdadeira Filosofia foi desvirtuada e abusada segundo proposito alheios, para satisfazer ás necessidades do tempo. Por isso, também, a Filosofia não é um saber que, à maneira dos conhecimentos técnicos e mecânicos, se possa aprender diretamente, ou formação profissional que se possa aplicar imediatamente e avaliar de acordo com sua utilidade. Todavia,o que é inútil pode ser, justamente por ser inútil, uma força. O que desconhece toda ressonância imediata, na pratica de todos os dias, pode estar em profunda consonância com o que propriamente acontece no pensar. Pode até mesmo ser a sua pré-sonância e prenúncio, pois aquilo que se encontra fora do tempo terá seu próprio tempo . É o que vale da Filosofia. É essa a razão de não se poder estatuir em geral a missão da filosofia e, por conseguinte, o que dela pode esperar. Cada estádio e cada principio de seu desenvolvimento traz consigo sua própria lei. Somente o que a Filosofia não pode ser nem servir pode-se dizer. Mas, um pensador que está ainda a caminho, que está ainda a caminho,que está ainda à procura do caminho,pode já dizer o que é Filosofia?Consegue situar a questão num caminho claramente orientado, para não vagar através de representações arbitrária e ocasionais a respeito da Filosofia?Conseguirá encontrar o caminho no qual poderá determinar de maneira segura a questão? Talvez a palavra grega lhe mostre a direção, pois conforme Heidegger, se presentarmos atenção ás palavras da língua grega,penetraremos numa esfera privilegiada. Lentamente vislumbramos que a língua grega não é uma língua como as demais. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente em presença da própria coisa, aí diante de nós, e não primeiro apenas diante de uma simples significação verbal. Mas, mesmo que o filósofo, que está à procura do caminho,falasse, não cairia no perigo de ser mal entendido, pois sempre não estará presente a tentação de não tomar o pensamento como indicação, como simples meio de sinalização para aquele que está ainda à procura do seu caminho e, sim,como um resultado adquirido e acabando, apto para ser “compreendido” ? É em função da verdadeira e única questão que orienta o caminhar de Heidegger, a questão sobre o Ser, que forma o principio axilar desse caminhar,que ele recusa qualquer tentativa para dar uma reposta feita,mesmo a essa pergunta. Não se trata de recear que surjam contra-sentidos a respeito de um pensamento, mas da continuação do próprio esquecimento do Ser. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do Ser. Portanto, a nossa tarefa será tentar compreender a origem desse esquecimento;buscar a possibilidade de uma saída; descobrir o caminho de acesso áquilo que deve ser pensado, e conduzir a ele, o que exclui toda resposta feita. O caminho se obscurece e confunde quando nossa relação para com ele se mostra vacilante e abalada, pois filosofar significa tentar ousadamente esgotar, à força de investigações, o inesgotável desse caminho, revelando aquilo que se impõe a investigar. Onde qualquer coisa de semelhante ocorrer, há Filosofia. Nesse sentido toda questão essencial da Filosofia se encontra necessariamente fora de seu tempo, por duas razões principais: ou porque a Filosofia se projeta para muito além da atualidade; ou , então, porque faz reencontrar a atualidade a seu passado- presente originário. Não se trata de tentar conseguir uma compreensão acabada, e sim, de abrir o caminho para uma transformação da disposição do espírito fundamental de nosso filosofar- uma transformação de nosso estado de espirito a partir da qual aquilo que se chama Filosofia se torna atingível como aquilo que carrega em si um destino, o nosso destino. O caminho que Heidegger segue, sem saber muito bem aonde vai,perscruta o pensamento tal como existia até agora, para, ver o que há nele de impensado, para poder talvez descobrir, à sua maneira, o lugar da verdade do Ser enquanto lar onde construir e habitar no futuro. Por enquanto, esse pensamento secontenta em trabalhar na procura do caminho, à procura do que é o ente enquanto tal. A Filosofia, através do diálogo com aquilo que se nos transmitiu como Ser do ente. A Filosofia jamais poderá proporcionar imediatamente as forças, nem tampouco criar os modos de agir e as ocasiões que conduzem a determinada situação histórica, pela simples razão de concernir de modos imediato apenas a um minoria. Que minoria? A minoria daqueles que ,criando, transformam, a minoria dos revolucionários. A difusão da Filosofia é sempre mediata e segue caminhos incontroláveis, para, em algum tempo afinal, mas já há muito esquecida como Filosofia,decair de seu nível originário e transforma-se numa banalidade da existência. O que a Filosofia pode e tem que ser por excelência é outra coisa: a manifestação pelo pensamento dos caminhos e das perspectivas de um saber, que instaure critérios e hierarquias. Fundado nesse saber e a partir dele, um povo concebe e realiza plenamente a sua existência no mundo histórico do espirito. Trata-se daquele saber que antecede, ameaça e impede toda investigação e avaliação. Pois bem, a Filosofia por essência, nunca torna as coisas mais fáceis, senão apenas mais graves. E isso não lhe é acidental, devido ao fato de seu modo de comunicabilidade parecer estranho e mesmo deslocado da compreensão vulgar, pois o agravamento da existência histórica, com isso, no fundo, do Ser, simplesmente constitui o sentido autêntico de seu esforço. Esse agravamento resistiu ás coisas, ao ente, ao seu peso (o Ser ). É por que tal agravamento é uma das condições essenciais e fundamentais para o nascimento de tudo que é grandioso, em cujo número encontramos, antes de tudo, o destino e as obras de um povo histórico. Ora, só há destino quando a existência se encontra dominada por um verdadeiro saber acerca das coisas, e é a Filosofia que desbrava os caminhos e abre os horizontes para consegui-lo. Quando se diz que da Filosofia não se obtém resultado algum, ou com ela não se pode fazer nada, ambas as maneiras de falar, que de modo particular correm nos círculos dos professores e pesquisadores das ciências, exprimem verificações de indiscutível exatidão. Quem tentasse provar- lhes que por fim faria outra coisa senão aumentar e consolidar a incompreensão reinante. Isso se conclui do preconceito segundo o qual se poderia avaliar a Filosofia de acordo com os critérios vulgares, com que decidi da utilidade das bicicletas, ou da eficiência de banhos mediacionais. Está,pois, certo e na melhor ordem dizer-se que “com Filosofia nada se pode fazer”. O errado seria pensar que com isso terminou o juízo sobre a Filosofia, pois lhe sobrevém ainda um pequeno acréscimo na forma de uma contra pergunta:se nós nada poderemos fazer com a Filosofia, pois lhe sobrevém ainda um pequeno acréscimo na forma de uma contra pergunta: se nós nada poderemos fazer com a Filosofia, acaso a Filosofia também não poderá fazer coisa alguma conosco, contanto que nos abandonemos a ela?- Isso basta para elucidar-nos o que a Filosofia não é. Filosofar é investi ficar o extraordinário o que essa investigação em si mesma se apoiá por completo, própria e livremente, no fundo misterioso da liberdade, naquilo que é o salto. Filosofar, assim podemos dizer, é a investigação extraordinária do extraordinário 3. Da Fenomenologia para a Ontologia Conforme testemunha o próprio Heidegger,ele foi levado para o caminho da reflexão sobre a questão fundamental, isto é, a questão sobre o Ser, iluminado pela atitude fenomenológica. Heidegger associava-se de tão perto à fenomenologia, que o próprio Husserl,quando nos primeiros anos após a Primeira Guerra Mundial, perguntado sobre a fenomenologia de Husserl, pensamento esse que se caracteriza pela análise metódica,pela clareza na exposição e o rigor científico, que ensinava a tomar pé numa época de dissolução interna e externa de tudo o que era estável, obrigando a evitar toda linguagem grandiloquente, a provar cada conceito na instituição dos fenômenos, pois a fenomenologia é precisamente a arte de desvelar aquilo que, no comportamento quotidiano, ocultamos de nós mesmos. Mas o Husserl de que se trata é o Husserl das Investigações Lógicas, caracterizadas pelas suas intenções descritivas, pois um dos passos mais importantes na guinada que Heidegger dará à fenomenologia será a sua desvinculação do idealismo das Ideias, caracterizadas pelas pelas intenções transcendentais, para partir da vida real. O papel da fenomenologia consiste em se inserir nessa realidade, que escapa à total auto transparência, e nela manifestar aquilo que ali se oculta da reflexão, assim como a partir de si se manifesta, isto é, ocultando-se para a radicalidade reflexiva. É só assim que podemos atingir o ser do ente, muito além das dissimulações da vida em seu acontecer concreto, assumindo o Ser como velamento e desvelamento reciprocamente entranhados. Todavia, Heidegger não adotará a fenomenologia como movimento, como Filosofia existente, real e sim,como possibilidade metodológica. Ela não caracteriza o “quê” dos objetos da pesquisa, fundamentada na maneira pela qual entramos em contato com as próprias coisas. Heidegger fundamenta a fenomenologia como movimento naquilo que se cham de hermenêutica da facticidade, o que será em definitivo a fenomenologia de hermenêutica;hermenêutica que é primeiramente uma ciência que caracteriza os objetivos, as vias e as regras da interpretação; teoria da metodologia para todo tipo de interpretação e, no caso da fenomenologia, essa própria interpretação, ou seja, anunciar o ser do ente de tal maneira que o próprio Ser venha a parecer. Porém, desde o primeiro momento da sua formulação por Husserl, a fenomenologia foi antimetafísica, se tomarmos o termo metafisica conforme o seu uso clássico. Contra todo sistema ela propõe um método; contra toda especulação ou construção metafisica ela propõe uma filosofia que assume as proporções de uma ciência de rigor: contra o realismo metafísico ingênuo ela preconiza uma colocação entre parênteses de todo juízo e afirmação sobre a existência e a própria realidade factícia. Em outros termos, a fenomenologia se coloca na perspectiva da estrita neutralidade metafísica, ou seja, na perspectiva das próprias coisas, antes de toda e qualquer intervenção do espírito,deixando que elas se mostrem naquilo que são. Nisso a fenomenologia representa o domínio das pesquisas neutras, em que todas as ciências têm raízes. Aliás, se a preocupação central da fenomenologia de Husserl era a procura do fundamento radical e primeiro de todo conhecimento, e se ele conseguiu levar essa procura num sentido transcendental, é evidente que essa Filosofia exige fundamentalmente uma teoria geral do Ser, isto é, uma Ontologia, pois, através do seu método puro intuitivo, a fenomenologia analisa e descreve a generalidade das essências. Ora, a fenomenologia foi animada, e não apenas de maneira latente, por uma preocupação ontológica; ela foi, por assim dizer, polarizando-se no sentido de fundamentar uma metafísica nova. Ela foi tomando consciência cada vez mais explícita da sua tarefa específica neste sentido, que consiste em lançar os fundamentos dessa metafísica nova. Na medida em que ela se foi aperfeiçoando e aprofundando, tornou-se evidente que ela já era uma ontologia, fato que talvez por causa da sua própria novidade levou algum tempo para ela reconhecer como tal. Mas, graças ao seu movimento incessante de superação e explicitação progressiva, a fenomenologia descobriu e revelou, como por natureza reflexa, a ontologia que lhe é inerente. É nessa ontologia fenomenológica que encontramos a originalidade ea própria profundidade do novo método. Mas nunca esqueçamos que o Ser de que é questão no caso não é mais aquele da ontologia escolástica, nem da ontologia hegeliana. Como para Husserl, também para Heidegger não se trata de perguntar o que é , nem de que realidade posso ter certeza, nem o que é a realidade fundamental e primeira. A questão para ambos será Qual o significado do ser? O que nós entendemos por ser? Até Heidegger, entendia-se, pelo menos tacitamente, que o significado da palavra ser era evidente, embora indefinível. Heidegger, enquanto autêntico fenomenológico, desejoso de levar à luz da compreensão os significados, chega à conclusão de que se é difícil responder à questão o que significa o ser, é porque o significado da própria questão não é tão claro. Aquilo que nos é mais próximo é ao mesmo tempo aquilo que é mais obscuro. Heidegger nos diz em Ser e Tempo, que hoje em dia a questão sobre Ser caiu no esquecimento. Ela inspirava as reflexões de Platão e de Aristóteles, para infelizmente emudecer-se depois como questão temática de uma investigação efetiva. O que ambos conseguiram conservou-se através de múltiplas modificações e retoques até a “lógica” de Hegel. E aquilo que eles, outrora, por um esforço intelectual dos mais árduos, conseguiram arrancar dos fenômenos, embora fragmentário e incipiente, há tempo se trivializou. Não só isso. Na base dos ensaios feitos pelos gregos para interpretar o Ser, desenvolveu-se um dogma que não só declara supérflua a questão do significado do Ser, mas também sanciona a omissão da questão. Diz-se que o “Ser” é o mais universal e vazio dos conceitos. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse, o conceito mais universal e, por fim, indefinível, tampouco precisa de definição. Cada um o usa constantemente e entende também imediatamente o que se quer dizer com ele. De tal sorte que aquilo que os antigos filósofos consideraram como algo obscuro e inquietante, se tornou uma evidência por si tão clara como o sol, a ponto de aquele que ainda pergunta sobre esse assunto ser acusado de um erro metodológico. Ao iniciar essa investigação, não é possível tratar por extenso dos preconceitos que constantemente alimentam de novo a ideia de que uma questão sobre o Ser seja desnecessária. Esses preconceitos têm raízes na própria ontologia antiga. E só será possível (no que diz respeito ao fundamento a partir do qual brotam os conceitos ontológicos de base, e no que se refere à exatidão de sentido e do número das categorias) interpretar aquela ontologia de maneira adequada quando a questão sobre o Ser estiver esclarecida, respondida e tomada como indício. Heidegger leva então a discussão desses preconceitos até p ponto onde a necessidade de uma recapitulação da questão sobre o significado do Ser se torna clara. Nesse sentido ele aponta três desses preconceitos: 1. O Ser é o mais universal dos conceitos. A universalidade do ser transcende toda universalidade genérica. O Ser é designado na ontologia medieval como um transcendental. A unidade desse universal transcendental, como a unidade da analogia em contraste com a multiplicidade dos conceitos genéricos superiores, já é conhecida pelo próprio Aristóteles. Graças a essa descoberta e, apesar de toda a sua dependência da maneira de Platão formular a questão ontológica, Aristóteles colocou o problema do Ser sobre uma base fundamentalmente nova. Mas nem Aristóteles conseguiu tirar a obscuridade dessas interconexões categoriais. A Ontologia medieval discutiu amplamente esse problema,sobretudo nas escolas tomista e escotista, sem todavia chegar à clareza fundamental. E quando enfim Hegel define o ser como “o imediato indeterminado” e faz dessa definição a base de todas as demais explicações categoriais da sua “lógica”, permanece ainda na perspectiva da ontologia antiga, sem porém levar em conta o problema aristotélico da unidade do Ser em face da multiplicidade das “categorias” aplicáveis ao material. Constatamos então que dizer que o Ser é o conceito mais universal não pode significar que este seja o mais claro dos conceitos, ou que dispensa toda explicação ulterior. O conceito do Ser é, pelo contrário, o mais obscuro de todos. 2 . O conceito do Ser indefinível. É isso que se deduz da sua suprema universalidade. O Ser não pode deduzir-se de conceitos superiores por definição, nem pode ser induzido a partir de conceitos inferiores. Mas, segue-se daí que o Ser já não apresenta mais problema? De maneira alguma, afirma Heidegger. Podemos concluir apenas que o Ser não é um ente. Por fim, a forma justificável de determinar os entes dentro de certos limites – a definição da lógica transcendental que tem ela própria as bases na ontologia – não é aplicável ao ser. A indefinibilidade do Ser não dispensa a questão do seu significado, mas pelo contrário, torna essa interrogação necessária. 3 . O Ser é mais evidente de todos os conceitos. Em todo conhecer, afirmar, em todo comportar-se com respeito ao ente, mesmo com respeito a si próprio, faz-se uso do termo Ser, e esse vocábulo é supostamente compreensível sem mais. Todo o mundo compreende: “O céu é azul”, “Eu sou feliz”, e coisas semelhantes. Mas esse modo comum de compreensão demonstra apenas ser “ininteligível”. Torna-se evidente que em qualquer modo de comportar-se para com um ente enquanto ente, existe, a priori um enigma. O próprio fato de nós já vivermos numa compreensão do Ser e do significado do Ser ainda ser velado na obscuridade prova que é necessário levantar a questão de novo. A consideração desses preconceitos, porém, torna clara não apenas que à questão sobre o Ser falta uma resposta, mas que até a própria questão é obscura e sem direção. Recapitular a questão sobre o ser quer dizer enfim isso: elaborar de uma vez e de maneira adequada a própria formulação dessa questão. Fazer com que o Ser apareça, torná-lo tema de pesquisa metódica, tal é a tarefa que Heidegger se propõe. Para essa tarefa, já que temos a nossa disposição pelo menos uma compreensão vaga da palavra “é”, que nos ajudará na colocação da questão, a análise fenomenológica deve auxiliar-nos na explicação desse significado, fazendo surgir aos poucos as estruturas e os modos do Ser, para fazer ver aquilo que era de início velado e oculto. Nessa nova orientação da fenomenologia, que é ontologia, quais os elementos distintivos do método fenomenológico que encontramos em Heidegger, do método de “mostração”, de revelação ou de libertação, de explicitação que deve levar-nos um dia até o Ser que já foi esquecido, que caiu no esquecimento, para descobrir aquilo que já está encoberto? Trata-se de levar à luz da compreensão as estruturas fundamentais do Ser, que são as condições de possibilidade do nosso mundo empírico, o fundamento constitutivo de tudo o que é. Trata-se de compreender esse mundo, e não de explicá-lo no sentido de reduzi-lo a outra coisa a ponto de ele desaparecer como mundo natural, do qual parte o próprio caminhar reflexivo. É essa compreensão que representa a realização máxima e radical da fenomenologia. Fenomenologia significa então: fazer ver a partir de si mesmo aquilo que se manifesta, tal como a partir de si mesmo se manifesta efetivamente. É esse o sentido formal que se dá ao nome de fenomenologia: não outra coisa que a máxima: voltar às próprias coisas. E é nesse mesmo sentido que a fenomenologia oferece as possibilidades de um caminho para o Ser, pois o Ser é aquilo que se oculta naquilo que se manifesta e, contudo, constitui o fundamento de tudo que se manifesta. A fenomenologia adequar-se-á, portanto, ao modo de manifestação do Ser, que será o caminho para recolocar a questão sobre o Ser. O conceito fenomenológico de fenômenovisa ao Ser do ente, enquanto aquilo que se manifesta, seu sentido, suas modificações e derivações. Na guinada que Heidegger dá à fenomenologia, encontramos a oposição entre o real e o seu significado, entre o empírico e o transcendental, sob a forma da oposição que é a chave pela compreensão de Ser e Tempo, entre o ôntico, aquilo que é o ente e o ontológico, o Ser, ou significado daquilo que é. Encontramos enfim, sob uma forma ainda mais reforçada, se isso for possível, a procura de um fundamento realmente radical, não somente do conhecimento, como em Husserl, mas da qualidade do Ser de tudo o que é: um fundamento que seja ao mesmo tempo significado. A fenomenologia é ao mesmo tempo procura do significado do Ser, isto é, ontologia. E, mais ainda, é um ontologia fundamental, que pretende responder à questão básica – qual o significado do Ser? - e revelar uma estrutura fundamental. Dentro da perspectiva da ontologia fenomenológica, a novidade essencial do transcendentalismo de Heidegger, em relação ao seu mestre Husserl, é ter tentado resolver o problema do fundamento sem recorrer à consciência, mesmo transcendental, o que seria sem dúvida idealista demais, mesmo subjetivista, pois Heidegger recusa partir de intuições, mas parte da compreensão da vida concreta. Do contrário, passamos ao lado da vida na sua realidade e no complexo dos significados do mundo. Em lugar da consciência pura, do Eu transcendental, Heidegger parte da vida na sua facticidade no mundo, da vida que é em última análise histórica e se compreende historicamente. A história torna-se o fio condutor das pesquisas fenomenológicas no caminho que vai da vida, na sua facticidade, à vida na sua historicidade. Filosofar fenomenologicamente vem a significar acompanhar a vida, o que para Husserl, será cair no antropologismo transcendental, como ele próprio falou na ocasião de publicação de Ser e Tempo, obra que Heidegger visa, e isso em termos de preocupação essencialmente ontológica, à analítica do Ser-aí (Dasein) como o ponto de partida privilegiado, para a recolocação da questão sobre o Ser, contra toda tradição transcendentalista e subjetivista. Aquém da consciência pura, Heidegger se apoia nessa estrutura mais nitidamente ontológica que é o Ser-aí, a partir do qual podemos compreender a possibilidade e o significado de uma consciência ou de um “eu” transcendental. É no plano mais radicalmente ontológico, como irrupção ou como abertura do aberto, que o Ser-aí pode finalmente compreender-se naquilo que dá significado a seu Ser. Todavia, o Ser e Tempo apresenta apenas uma análise preliminar. Nele, Heidegger não fala ainda do próprio Ser, mas se limita a explorar o campo das estruturas ontológicas da existência do Ser-aí. É nesse ponto, aliás, que intervém a influência decisiva de Kierkegaard, mas é importante notar que os temas kierkegaardianos (Angústia, Possibilidade, Repetição, Decisão etc.) são imediatamente transpostos para um registro transcendental e ontológico, pois representam, para Heidegger estruturas do Ser-aí, que é, ele próprio, uma estrutura eminentemente ontológica. De tal modo que, embora utilizando as categorias kierkegaardianas, a fenomenologia ontológica se opõe frontalmente à Filosofia da Existência no nível do vivido e do concreto. Heidegger coloca entre parênteses o homem concreto, como Husserl colocou entre parênteses os dados existenciais da consciência. Se um dia vislumbrarmos o Ser, ofuscado este por aquilo que é, devemos operar essa mesma redução fenomenológica no homem e na consciência. Desde que a fenomenologia hermenêutica procura, a partir da questão sobre o sentido do ser, do Ser-aí chegar à questão sobre o sentido do ser, o sentido do termo hermenêutico é o de uma analítica da existencialidade da existência, embora o ser e a estrutura do Ser, se situem além de todo ente e de toda determinação ôntica possível de um ente. O objetivo da hermenêutica fenomenológica é em última análise a questão sobre o sentido do Ser em geral e, nesse sentido, tornar-se Ontologia, pois aquilo que deve tornar-se manifesto não é o ente que se impõe, mesmo que fosse o Ser-aí, mas aquilo que é escondido em todo ente, a saber, o seu Ser e o sentido desse Ser. Como apresentação do Ser do ente, e do seu sentido, a fenomenologia hermenêutica é Ontologia. 4 . A Ontologia Fundamental e a Instauração da Metafísica Como entender o ente em seu ser? De acordo com a tradição, a Filosofia entende por problema só Ser a pergunta pelo ente enquanto ente. Ela é a pergunta da Metafisica. A resposta a essa pergunta se refere sempre a uma explicitação do Ser, que elimina toda problematicidade e que prepara o fundamento e o chão para a Metafisica. Se o ente pode, em seu ser, enunciar-se de diversas maneiras, como pensar a unidade dos diversos dos diversos significados do Ser? A Metafisica clássica considerava o pensamento como uma “visão”, o Ser como constante ser-sob-os-olhos, uma presença constante, esquecida de que a faticidade e a historicidade são indispensáveis, se o Ser tiver de ser pensado como presença constante a partir do modo do tempo, que é o presente. O domínio onde o pensamento efetua a passagem do ente para o Ser, o horizonte transcendental da determinação do Ser como Ser, será, portanto, objeto de uma pesquisa sobre sua ausência. O fundamento da enunciabilidade múltipla do Ser torna-se problemático quanto à maneira de a ele ser fundamento, e assim se encontra colocada anteriormente à questão sobre a enunciabilidade do Ser, a do sentido do próprio Ser. A ciência do Ser enquanto Ser, a ontologia, se encontra baseada, de maneira fundamental, sobre a questão relativa ao sentido do Ser como fundamento para todo significado possível. Ser e Tempo é a elaboração da questão de saber como o tempo pertence ao sentido do Ser, a tentativa de alcançar, mediante o pensamento, aquilo que permaneceu impensado, o fundamento esquecido da metafísica, sobre o qual tudo o que ela concebe se fundamenta. Nesse sentido é significativo que, como preâmbulo a essa obra, figure aquela questão quem vem dos primórdios da Metafísica: o que quer dizer realmente a expressão “ente”? A respeito dessa questão, que Platão levanta no Sofista, Heidegger diz que hoje é necessário suscitar novamente a intelecção dela. A questão sobre o significado do Ser deve formular -se de modo explicito, pois, se é uma questão fundamental, ela deve torna-se transparente e de uma forma adequada. Para tanto, Heidegger tenta explicar o que é inerente em geral em qualquer questão, para poder depois, a partir desse ponto de vista, tornar sensível a originalidade da questão sobre o Ser. Todo questionar é uma procura e toda procura tem a sua direção prévia que lhe vem daquilo que é procurado. Questionar é procurar conhecer o ente naquilo que é, como é. A procura do conhecer pode assumir a forma de um “investigar” enquanto discernimento do objeto sobre o qual a questão é formulada. Todo “questionar sobre” é de alguma forma questionar algo. Ao questionar é inerente, além daquilo sobre o qual se questiona, um objeto questionado. Na investigação, isto é, na questão especificamente teórica, o objeto questionado é determinado e elevado em conceito. Naquilo que é questionado reside, então, como a autêntica intenção do objeto questionado, aquilo graças ao qual o “questionar” alcança sua meta. O próprio “questionar” possui, enquanto comportamento de um ente, o questionador, um caráter singular do Ser. Um “questionar” pode assumir a forma de um “palavrório interrogativo”, ou de uma questão explícita. O peculiar disso reside no fato deo “questionar” se tornar transparente em si em todos os caracteres mencionados constitutivos da própria questão. Enquanto procura, o “questionar” exige uma orientação prévia pelo objeto questionado. O significado do Ser deve ser desde já acessível a nós de alguma maneira. Já notamos que nos locomovemos sempre dentro de uma compreensão do Ser. Dessa compreensão prévia surge uma questão explícita sobre o significado do Ser e a tendência a forjar o conceito correspondente. Não sabemos o que quer dizer “Ser”. Mas já quando perguntamos “o que é Ser”, encontramo-nos dentro de uma compreensão do “é”, sem que possamos forjar conceitualmente o que o “é” significa. Nem sequer conhecemos o horizonte a partir do qual devemos aprender a forjar o significado, mas ao menos, essa compreensão comum e vaga do Ser é um fato. Essa compreensão do Ser pode ser vacilante e desvanescente, até aproximar-se do mero conhecimento da palavra; essa indeterminação da compreensão do Ser, que já é disponível é, ela própria, um fenômeno positivo, que necessita de esclarecimento. Uma investigação sobre o significado do Ser não encontra o seu fio condutor necessário primeiramente no conceito mais elaborado do Ser. À luz desse conceito e dos modos da sua compreensão explícita, podemos entender o que significa essa compreensão obscurecida ou, ainda, não iluminada do Ser, assim como as formas de obscurecimento, isto é, a barreira para uma explicação possível e necessária do significado do Ser. A compreensão comum e vaga do Ser pode ser tão contaminada por teorias e opiniões tradicionais sobre o Ser, que essas teorias venham a permanecer como fontes de compreensão. E, todavia, o que procuramos no “questionário” sobre o Ser não é algo totalmente desconhecido, embora seja algo totalmente inacessível. O objeto da questão que havemos de elaborar é o Ser, aquilo que determina os entes enquanto entes, aquilo na base do qual os entes já são entendidos, embora possamos discuti-los em pormenores. O ser dos entes não “é” ele próprio um ente. O Ser, enquanto aquilo que é procurado, exige, afinal, uma forma toda especial de “mostração” que se diferencia essencialmente do descobrimento dos entes. Correlativamente, exige também o procurado, o significado do Ser, um aparelho conceitual especial que se destaque por sua vez essencialmente dos conceitos em que os entes alcançam a sua determinação significativa. A questão sobre o Ser exige, no que diz respeito ao procurado, que se inicie por encontrar um modo de acesso que assegure de antemão a reta forma de acesso. Mas, chamamos “entes” a muitas coisas, e em sentidos bem diferentes. O ente é tudo aquilo de que falamos, aquilo que significamos, aquilo relativo ao qual nos comportamos de tal ou tal maneira; o ente é também aquilo que somos nós mesmos e a maneira de sê-lo. O Ser está implícito no que é e como é, na realidade, o ser-subsistente, na consciência, no valor, no Ser-aí, e no “há”. Em qual ente se deve ler o significado do Ser, em qual ente se deve tomar o ponto de partida para exploração do Ser? É esse ponto de partida arbitrário, ou será que existe determinado ente com uma prioridade no desenrolar da questão sobre o Ser? Qual é esse ente exemplar e em que sentido tem uma prioridade? Se a questão sobre o significado do Ser é explicitamente formulada e elevada à plena autoconsciência, o seu desenrolar exige uma explicitação do modo segundo o qual se deve visar ao Ser, o seu significado entendido, e sua colocação em conceito, a possibilidade de escolher concretamente o ente exemplar e tornar manifesta a genuína forma de acesso a esse ente. Visar ao Ser, compreender, conceituar, escolher e aceder são modos de aproximação constitutivos da questão e, portanto, são eles próprios modos do Ser de determinado ente, do ente que formula a questão que é cada um de nós. Desenrolar a questão sobre o Ser significa: a explicitação de um ente – aquele que questiona – em seu ser. Esse ente, que é cada um de nós e que tem, entre outras possibilidades de ser, a de questionar, Heidegger o designa pelo termo Ser-aí. Portanto, a colocação explícita e consciente da questão sobre o significado do Ser exige uma análise prévia e adequada desse ente (o Ser-aí) relativo a seu ser. Em outros termos. A Metafisica exige uma ontologia fundamental. 5 . A Análise Fundamental do Ser-aí O fato do Ser-aí se encontrar no centro da questão sobre o sentido do Ser é totalmente motivado pela preocupação fundamental de Heidegger, que consiste em responder à questão: o que é o Ser? Afastamo-nos inteiramente, como Heidegger nos aconselha, de qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos o ente em seu todo, mas sem qualquer preferência. No entanto, um dentre eles se insinua estranhamente: o Ser-aí, que investiga a questão. E é justamente o que lhe confere uma distinção. Para melhor elucidar essa problemática, Heidegger distingue inicialmente aquilo que é , o ente, e o ser do ente. O que é , o ente, inclui todos os objetos, todas as pessoas e em certo sentido o próprio Deus. O ser do ente, como tal, que é o fato de que todos esses objetos e todas essas pessoas são, não se identifica com nenhum desses entes, nem sequer com a ideia do ente em geral. Em certo sentido, não é, pois se fosse, seria um ente por sua vez, ao passo que é de certa maneira o próprio acontecer do Ser de todos os entes. Na filosofia tradicional sempre ocorria uma transição quase que imperceptível do Ser do ente em direção do ente. O ser do ente, o Ser em geral se tornava um ser absoluto, ou Deus. A originalidade de Heidegger consiste precisamente em manter com nitidez essa distinção, sem jamais falhar. O ser do ente é o objeto da Ontologia, ao passo que os entes representam o campo de investigação das ciências ônticas. Olhando mais de perto essas distinções, vemos que os atributos dos entes fazem com que seja isso ou aquilo. Determinando os tributos do ente, dizemos o que é, alcançamos a essência. Porém, ao lado da essência do ente podemos constatar, por uma percepção ou uma demonstração, que existe. E, com efeito, é a essa constatação da existência que se reduzia, pela Filosofia clássica, o problema da existência, que se colocava além do da essência. Mas determinar o que significa essa constatada existência sempre foi considerada como impossível, pois, sendo de uma generalidade superior, a existência não podia definir-se. A Filosofia da Idade Média chamava “transcendente” esse ser do ente. Kant conhecia também a especificidade do ser do ente com relação ao ente e com relação a todo atributo do ente, pois, na refutação que faz do argumento ontológico, frisa de modo especial a irredutibilidade do Ser a qualquer atributo do ente. Exatamente porque o Ser não é um ente, não é preciso alcançá-lo pelo gênero e pela diferença específica. O fato de compreendê-lo em sua significação fundamental a cada momento já mostra que se pode alcançá-lo de outra maneira. A compreensão do ser é a característica e o fato fundamental da experiência do Ser-aí. Nesse caso, então, a procura não será supérflua? Contudo, o simples fato da compreensão não quer afirmar que tal compreensão seja explícita, nem que seja autêntica. De fato, procuramos algo que já possuímos de uma certa maneira. Porém, explicitar essa posse ou essa compreensão do ser não é um ato puramente teórico e , sim, um acontecimento fundamental onde todo o destino do Ser-aí se engaja. Desde então, a diferença entre os modos explícitos e implícitos de compreender não é uma simples diferença entre um conhecimento claro e obscuro, pois diz respeito ao próprio Ser do Ser- aí. A passagem da compreensão implícita e não-autêntica paraa compreensão explícita e autêntica, com suas esperanças e seus dissabores, é o drama da própria existência do Ser-aí. Passar da compreensão implícita do Ser para a compreensão explícita significa assumir uma tarefa de maestria e de dominação no seio de uma familiaridade ingênua com a existência que fará talvez cair a própria segurança dessa familiaridade. Nesse momento, o Ser-aí é caracterizado como o ente que compreende o Ser implicitamente (de maneira pré ontológica) ou explicitamente (de maneira ontológico). E é por o Ser-aí compreender que o Ser interessa à ontologia. O Ser-aí é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do Ser, como a pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no Ser. Mas o elemento distintivo do Ser- aí consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face dele, permanece relacionado com o Ser e assim lhe corresponde. O Ser-aí é propriamente essa relação de correspondência e é somente isso. “Somente” não significa limitação, e sim plenitude. No Ser-aí impera em pertencer ao ser, porque a ele entregue como propriedade. Somente o Ser-aí, aberto para o Ser, propiciá-lhe o advento enquanto “apresentar”. Ser-aí e Ser estão entregues reciprocamente um ao outro. Por isso, será por uma análise profunda da existência do Ser-aí que deverá necessariamente começar toda pesquisa sobre o Ser da existência em geral. Esse privilégio não é arbitrário, pois se justifica pela capacidade de reflexão própria desse existente. A ação de questionar torna-se um modo de ser daquele que questiona. Todavia, nós somos o existente que se interroga sobre o ser de toda existência, e é por isso que o problema metafísico deve em geral iniciar-se por um exame fenomenológico do Ser-aí, pois este constituiu o caminho de acesso e o ponto de apoio obrigatório de toda Metafisica. Evidentemente, esse privilégio do Ser-aí não preconiza nenhum julgamento de valor. Não estabelece nenhuma hierarquia na ordem ontológica. Não há em tudo isso, nada mais que a constatação de uma situação de fato. A qualidade particular da existência do Ser-aí é que, sendo um ente existencial, se interessa por seu próprio ser. O entendimento do Ser, é, em si mesmo, um elemento de ser da existência do Ser-aí. Por esse motivo, a existência do Ser-aí é chamada ontológica, ao passo que todos os demais entes são denominados ônticos. A compreensão do Ser caracteriza a existência humana como o modo de ser que lhe é próprio. Determina não a essência e, sim, a própria existência do Ser-aí. Evidentemente, se consideramos o Ser-aí como ente, a compreensão do Ser faz a essência desse ente. Mais exatamente – e é essa uma das características fundamentais do pensamento heideggeriano -, a existência do Ser-aí é, ao mesmo tempo, sua existência. Essa identificação da essência com a existência não quer dizer que na essência do Ser-aí haja necessidade de existir – o que seria inexato-, pois o Ser-aí não é um ser necessário. Pelo contrário, a confusão da essência com a existência significa que, na existência do Ser-aí nada mais são do que seus modos de existir. Mas uma tal relação entre essências e existências só se realiza graças a um novo tipo de ser que caracteriza o fato Ser-aí. É a esse tipo de ser que Heidegger reserva a palavra existência, destinado o nome de presença pura e simples ao ser dos demais entes. É pelo fato de a sua essência consistir na existência que Heidegger designa homem pelo termo Ser-aí e não pelo termo ente-aí. A forma verbal exprime o fato de cada elemento da essência do homem ser o modo de existir, de se encontrar aí. A preocupação principal de Heidegger consiste em construir uma ontologia na base da qual será possível entender tanto os êxitos como as falhas na história da Metafisica, em reconduzir a vigência histórica do Ser-aí às suas raízes na Metafisica, redimensionando a propósito a própria problemática da questão sobre o Ser. Nessa tentativa de construir uma ontologia, em vez de imitar a Metafisica clássica que partia da cosmologia, Heidegger parte do Ser-aí. Mas lembramos que o interesse que mostra Heidegger no Ser-aí não tem por finalidade conseguir uma nova formulação da existência humana em termos psicológicos e culturais, mas só enquanto a instância peculiar do ser. O que importa é a relação entre essa instância do ser e a estrutura do ser como tal. Em Ser e Tempo, Heidegger, ao preparar o questionamento do problema sobre o sigilo do ser, se propõe repensar a essência do Ser-aí, no fundamento da sua possibilidade, a partir da experiência fundamental do esquecimento do ser. Esse caminho não significa uma ruptura com a história, nem a sua negação, mas uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Heidegger designa esta apropriação com a expressão destruição que não quer dizer arruinar e, sim, desmontar, demolir e por de lado, abrir o ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira. Seguindo esse caminho, a estrutura fundamental do Ser-aí quotidiano revela-se com o ser- no-mundo, que é indicada, decomposto em seus diversos momentos, para enfim ser considerado na sua unidade como preocupação. A facticidade que se baseia no Ser-no-mundo é o fundamento de todas as realidades do Ser- aí. Podemos mudar certos elementos dessa realidade, mas sempre iniciamos a construção de nossas existências a partir dela. Todos os elementos constitutivos do Ser-aí são reais, mas só enquanto possibilidades para um ente que já está lançado no mundo, isto é, para um ente cuja essência consiste em estar além de si, dentro do mundo. No entanto, este ser-no-mundo não representa simplesmente a relação de dois seres no espaço. O Ser-aí é consciente da sua realidade, pode dar-lhe significado, assumir posição diante dela e lutar contra seu ambiente. Ele tem uma dupla maneira de reagir que são a preocupação, quando se trata de entes não-humanos, e a solicitude, quando se trata de outros entes humanos, outros seres-aí. Na descrição da existência do Ser-aí Heidegger evita, com muito cuidado, usar o termo “homem”, “ser-humano”, etc; porque esses termos poderiam denotar ou dar uma conotação tradicional ao problema ontológico, e é exatamente contra essa tradição metafisica, iniciada por Aristóteles que Heidegger seu inquérito. O Ser-aí está numa situação, torna-se consciente de si enquanto ser inserido num mundo de contradições factuais, que ele mesmo não criou. Por exemplo, o homem nasce em determinado ambiente linguístico, social, econômico, geográfico, etc.; pelo qual ele não é responsável, pois já se encontra nele desde o primeiro instante de sua existência. Heidegger mostrará que a existência do homem tem prioridade sobre a sua essência ou, mas exatamente, a existência é a sua essência, no sentido de que sua existência é a própria existência humana que defronta as suas tarefas, que transcende seu passado e se projeta para o futuro; que transforma e recria as estruturas sociais, culturais e factuais. Todavia, o primeiro fato que Heidegger anota é que a existência não é jamais a simples existência em geral. A existência é sempre minha , isto é, sempre pessoal. Para compreendê-la, Heidegger analisa a existência cotidiana banal, e não suposta existência purificada, que só seria alcançada pela aplicação de métodos complexos, como, por exemplo, a dúvida cartesiana e a huseerliana, que pretende colocar entre parênteses a própria existência. Pelo contrário, a existência cotidiana está sempre no mundo e com os outros, pois existir é ser no mundo com os outros. Ser-aí quer dizer estar-aí. O Ser-aí, por ser o Ser-no-mundo, não é apenasuma coisa num universo de outras coisas (pois, de fato, nem é uma coisa); a sua própria existência constitui-se por suas relações com o ambiente das coisas e de outras pessoas. O espaço geométrico abstrato da física- matemática difere fundamentalmente do espaço qualitativo das preocupações atuais, que é inseparável dos objetos. O lugar onde está o objeto determina a sua natureza e condiciona a sua função; o freio não é freio a não ser que esteja na roda, e o fato de ele estar no lugar certo cria as condições estáveis do ambiente. Se o espaço qualitativo das preocupações atuais é inseparável dos objetos, isso implica não apenas que as coisas são utensílios na sua própria essência, mas que o Ser-aí, aquele que faz utensílio e vos emprega, deve também conceber-se como vivendo naquele mesmo espaço qualitativo com os seus utensílios, fazendo-os e sendo condicionados por eles. Quanto aos demais seres-aí, são constituídos igualmente em seus pensamentos, sentimentos, na suas ações por suas relações com outros seres-aí, e não apenas o seu comércio com os objetos. Os ser-no-mundo, no sentido de Ser constituído por projetos e por relações com os objetos que utiliza e desenvolve como utensílios para realizar esses projetos e relações, envolve os ser-com- os-outros que também são seres no mundo no mesmo sentido que ele. A existência dos outros não é um simples acidente, nem um problema para o pensamento e, sim, uma necessidade do pensamento; é constitutiva do Ser-aí e está implicada nele. A natureza do Ser-aí é ser-em-comum; a existência do Ser-aí é uma existência compartilhada, e a interdependência social da sua experiência cotidiana é primordial e constitutiva. A plena auto- consciência e a auto-confirmação derivam da consciência que tenho dos outros; não é que começo por mim mesmo, como dado indubitável, para de alguma maneira deduzir a existência de outros seres semelhantes. O Ser-aí é constituído tanto pelas preocupações que condicionam o uso que faz dos objetos como utensílios, como pela solicitude que sente pelas pessoas que compartilham a existência com ele. A existência humana é “ser-com”, tanto com as coisas como as pessoas. Outro é fundamentalmente o homem-companheiro essencial e não apenas acidentalmente. O ser-com pertence à própria natureza do Ser-aí e é constitutiva da essência da existência. As coisas se apresentam em duas categorias: ou estão simplesmente presentes ou são vistas pelo prisma da sua utilidade. O mundo do Ser-aí, no estado cotidiano, o mundo dito natural, é o mundo circum-ambiental. O ente que encontramos no dia a dia não é um ente dado colocado a distância, é o ente à mão, um utensílio que sempre tem um destino preciso. O utensílio serve para algo; o utensílio se refere ao Ser-aí e através dessa referência recebe o seu significado. Os utensílios sempre tem relação entre si e com aquele que os manipula ou utiliza. A característica do utensílio, de estar-à-mão, depende das circunstâncias que podem modificar o seu sentido. Essas condições referem-se, em última análise, ao “para que”, pois se trata de uma intenção. Portanto, o Ser-aí é a condição indispensável da possibilidade do utensílio se revelar. Cada utensílio tem seu lugar e aí se manifesta. O lugar potencial do instrumento é que Heidegger chama de proximidade. No Ser-aí há uma tendência especial para proximidade, isto é, a aproximação do utensílio. As distâncias objetivas não coincidem com o afastamento ou a proximidade do instrumento, pois é a categoria da preocupação que constitui a medida de proximidade ou distância. O mundo é uma determinação ontológica do Ser-aí existe unicamente para o Ser-aí. Todas as primeiras ontologias cometeram o erro de confundir o estar-a-mão com algumas coisas que simplesmente está presente, erro notório, particularmente em Descartes. No entanto, não é a presença que qualifica, mas a nossa preocupação com o instrumento. O fato de ser utensílio ser utilizado para o trabalho e ao mesmo tempo significa que o Ser-aí existe com o utensílio. O Ser-aí está no mundo com utensílios e com os outros seres-aí. O mundo da existência humana é o lugar onde estamos juntos com utensílio e outros seres-aí, pois nosso Ser-aí é essencialmente ser-com-o-outro. O conjunto do complexo de referências ao outro e de significados é que constitui o mundo como mundo-ambiente. Esse complexo se determina como aquilo “em vista de que”, segundo modo determinativo do ser do Ser-aí. A existência que torna possível o “em vista de que” é a própria mundaneidade. O mundo não é apenas o mundo-ambiente, pois a mundaneidade do mundo fornece a primeira indicação decisiva sobre a estrutura do mundo; se o mundo se experimenta a partir do complexo de referências e de significados, então pode ser pensado como o domínio de onde vem um sentido. O ente que tira seu ser de tal procedimento não é o ente dado dentro de uma visão que recua e, sim, o ente-à-mão de uma práxis. Se o Ser-aí aprende a conhecer o mundo-ambiente, Heidegger se coloca, pelo próprio fato, em contradição com o ponto de partida da Filosofia tradicional, pois, normalmente, o pensamento se orienta em direção à representação de um ente que se pode mostrar. Numa perspectiva teórica, concebe-se como visão e representação o dado que está lá para a contemplação. O conjunto, o todo do dado, tal como deve existir para uma consciência que sobrevoa tudo, é considerado então como mundo. Assim, uma omissão do fenômeno da mundaneidade ( tal como se mostra primeiramente na mundaneidade do mundo-ambiente) surge junto com o fato de perder de vista a constituição do Ser-aí como ser-no-mundo. Em Ser e Tempo,Heidegger interpreta o mundo a partir do ser do ente que é dado como ultramundano, mas sem ser na maneira alguma inicialmente descoberto a partir da natureza. A natureza não é compreendida a não ser na medida em que é dada. Mas nesse aspecto ela é um caso limite do ser de um ente ultramundano possível, em que precisamente a mundaneidade do mundo não se manifesta. O conhecimento do mundo não se manifesta. O conhecimento do mundo subsistente tem por motivo o caráter de certa desmargarinização do mundo. Desde o inicio da tradição ontológica, que é determinante para Heidegger, e mais explicitamente em Parmênides, o fenômeno do mundo falta, e será de novo seguidamente as sempre omitido. O ente intramundado, descoberto primeiramente na “ natureza “, toma como tema o lugar do fenômeno omitido. No decorrer dessa evolução, Descartes encontrara na extensão das coisas naturais a determinação fundamental do mundo. O modo de acesso ao ser do mundo, ele visa num conhecimento “ matemático”, não em virtude de uma predileção pela as matemáticas e, sim, porque o pensamento como visão é sempre orientado para aquilo que subsiste contatamento, e porque os matemáticos conhecem antes de tudo aquilo que está sempre lá, permanece sempre e sobrevive a toda mudança. Por hipótese, permanecemos ainda no plano da ontologia cartesiana, quando consideramos a subsistência e a extensão como se fossem apenas uma camada fundamental sobre a qual devem ser erguidas outras camadas, para chegar finalmente ás qualidades especificas: o belo, o utilizável etc. A respeito da tentativa de complementar a analise cartesiana do mundo apelando para o fenômeno do valor, Heidegger observa que a adjunção de predicados de valor não é em nada capaz de dar novos esclarecimentos sobre o ser dos bens, mas continua simplesmente a pressupor, por esses, o gênero de ser da pura presença dada. Heidegger procura enraizar a extensividade da coisa, que era para Descartes o que havia de mais inteligível, enquanto fenômeno derivado, na espacialidade do Ser-aí e, consequentemente,na estrutura do ser-para do mundo-ambiente. Se a mundaneidade do mundo for reconquistada, o conhecimento não poderá mais ser concebido apenas como a representação de um subsistente permanente, mas deve medir-se permanentemente, mas deve medir-se pela circunspeção da preocupação conhecer-se nela, através dos complexos de finalidade, e de referencias ao mundo. Consequentemente, anula-se a primazia que a pura visão possuía no conhecimento desde os primórdios da ontologia grega até o dia de hoje. Ser-no-mundo não implica estar no mundo como os demais seres, naquilo que se chama mundo, no todo do ente. Ser-no-mundo significa mais “morar junto de “, “ser familiar de “. Afirmar que o Ser-aí é ser-no-mundo quer dizer que ele “e” seu mundo nela familiaridade que tem com ele ( o mundo). Como o Ser-aí não é um objeto que se apresenta no mundo, totalidade do ente, também não é um sujeito privado de mundo, a partir do qual seria precioso, como se acostumou a fazer desde Descartes, tentar lançar uma ponte em direção ao “mundo”. Ao contrario, enquanto ser-no- mundo, o Ser-aí já existe sempre junto ás coisas. E como está sempre junto ás coisas, está sempre com os outros. Não é primeiramente um “eu” que deve posteriormente estabelecer relações com os demais Ser-aí, mas originariamente um ser-com-o-outro. Todavia, o mundo em que o Ser-aí existe em sua facticidade é sempre um mundo determinado. A própria mundaneidade pode modificar-se no sentido da estrutura de conjunto que possuem individualmente os “ mundos” particulares, mas ela implica em-si no a priori da mundaneidade em geral. As coisas são alcançadas mediante conceito objetivos, gerais, onde através de um pensamento particular qualquer classe determinada pode ser substituída por uma outra. Masa a natureza humana só pode ser alcançada diretamente como sujeito individual. Há alguns aspectos da natureza do Ser-aí que podem evidentemente ser estudados pelas ciências e formulados mediante conceitos objetivos. Todavia, Heidegger enfatiza a grande diferença que há entre alcançar a existência do Ser-aí internamente e olhá-la externamente. A característica mais importante de ser um sujeito individual é que o homem é pessoalmente preocupado com as possibilidades de sua própria existência, e pode realizar-se apenas em termos dessas possibilidades. O Ser-aí pode tomar decisões com referência a essas possibilidades, pode ganhar ou perder seu verdadeiro eu em função delas. Heidegger insiste em que o Ser-aí não é apenas uma coisa no mundo; é um ser no mundo. As características peculiares do Ser-aí nos dizem algo de grande importância sobre a estrutura do próprio ser, algo que nunca aprenderemos mediante as ciências naturais ou a cosmologia. Admitido esse ponto, qualquer concepção do mundo que se queira abstrair da preocupação do Ser-aí e das demais características distintas da sua existência deve forçosamente ser superficial. Evidentemente, o indivíduo organiza a sua concepção do mundo à luz da maneira de ele se encontrar localizado no mundo. É por esse motivo que Heidegger inicia sua análise do mundo externo pelos utensílios, isto é, pelas coisas tais como se encontram e se dispõe na vida cotidiana, em vez de iniciar pelos fenômenos da natureza, tais como a ciência os descreve. Ele parte do fato de que o Ser-aí se preocupa primordialmente de coisas externas na medida em que afetam seus interesses e necessidades. Mesmo as pesquisas teóricas das ciências naturais são, antes de tudo, empreendimentos que tem sentido dentro da perspectiva de sua preocupação com a própria existência e a preocupação com o mundo externo na medida em que este afeta aquela existência. Portanto, uma análise que se abstrair dessa correlação não pode dar um quadro adequado do mundo e do Ser-aí. A preocupação é o conceito unificador da condição humana e exprime a natureza da nossa existência, enquanto existimos no mundo com os outros. Esse traço essencial que penetra o nosso Ser-aí revela-se no sentimento primário da angústia que surge da característica fundamental do Ser- aí como o ente cujo ser se orienta pela preocupação com sua própria existência. É esse modo existencial que o separa de todos os demais do universo. Para Heidegger a preocupação é simplesmente a concretização dessa qualidade em nossa existência quotidiana. O próprio modo de nosso ser no mundo dirige-se para o aspecto primário da preocupação. Não estamos no mundo do mesmo modo com um objeto, um ente que não é o Ser-aí. Não estamos no mundo como objetos no espaço geométrico, a serem descobertos mais adiante pelas operações abstratas da ciência matemática. O sentido primário, isto é, o que nos é dado diretamente em nossa vida banal, em nosso ser- no-mundo banal, é a nossa preocupação com este ou aquele objeto que nos cerca. Na noção de um mundo em que existimos, com o qual nos preocupamos, e sobre o qual estamos apreensivos, a preocupação exprime o caráter fundamental dessa experiência, enquanto nos locomovemos através do mundo ocupando-nos das diversas tarefas da vida. Heidegger exemplifica tudo isso com o seguinte resumo, que apresenta a essência da análise fenomenológica do sentimento-preocupação. O resumo toma a forma de uma fábula que Goethe conta no segundo ato do Fausto. “Um dia quando a Preocupação atravessava um rio, viu a argila, tomou um pouco e começou a moldá-la. Refletia sobre o que fizera, quando Júpiter entrou em cena. A Preocupação lhe pediu que desse uma alma àquela forma. Então, uma discussão surgiu entre os deuses. Cada um quis dar seu nome à nova criação. Estavam discutindo quando a Terra se aproximou e insistiu que seu nome fosse dado à nova criatura, visto que ela lhe tinha dado o corpo. Os três chamaram Saturno para julgar a questão. Saturno diz a Júpiter: “Como tu deste à criação uma alma, receberás a sua alma depois da morte. E tu Terra, receberás o corpo. E a Preocupação, porque moldou a criatura, possuí-la-á enquanto viver. Quanto ao nome será “Homo” (homem) por ter vindo de “Humus” (terra).” O homem durante toda sua vida estará sempre possuído pela preocupação. Entretanto, suposto que a preocupação seja sempre dirigida para uma realidade ausente e futura, Heidegger parece dar à existência uma indigência singular, fazendo como que seja impossível alcançar esta existência como estrutura íntegra e total. É essa tarefa que Heidegger se propõe esclarecer na análise do modo existencial, que é a morte. A análise de morte talvez seja a mais importante das interpretações que Heidegger faz do Ser-aí. É de certo modo a pedra angular de suas análises, pois qualquer tentativa para considerar a existência como um todo nos leva ao fato da morte que conclui essa existência. A morte não é um ponto final da existência e, sim, um elemento constitutivo dela, já que desde o primeiro instante da concepção o Indivíduo pode morrer. A morte não é o fim da vida humana no sentido de ser o fim de um caminho que pode ser alcançado no termo de um trajeto. Quando chego ao fim da jornada, ainda existo e, enquanto existente, estou no estado de ter acabado algo. Mas, quando vem a morte, já não existo mais e, assim, não há uma jornada propriamente dita que eu possa afirmar ter acabado. E mais ainda, quando já fiz a metade da jornada, só posso chegar até o final atravessando a outra metade que resta. Porém, a morte é o fim da vida humana, no sentido de que pode terminar de repente, a qualquer momento, a minha existência. A existência não é dada ao Ser-aí como um caminho bem arranjado no fim do qual está a morte, mas a morte, como possibilidade, atravessa a sua existência: a qualquer momento pode surpreendê-lo. Como podemos conceberem concreto e de modo positivo a morte com relação à existência do Ser-aí? Para responder essa questão, Heidegger concentra sua atenção numa análise da existência cotidiana, e pergunta como a morte aparece nesse contexto. O primeiro fato imprescindível é que o Impessoal tem meio engenhosos para fugir da perspectiva da morte, aproveitando o predomínio que tem sobre a existência cotidiana. O impessoal transforma a morte num fato, numa ocorrência quase banal: lemos nos jornais os falecimentos como fatos de óbitos; assistimos aos funerais como ocasiões públicas e sociais, regulados por prescrições complicadas sobre a maneira de comportar-se em tais funções. Todos esses ritos e cerimônias, que cercam a morte, tem por finalidade transformá-la num acontecimento público, anônimo. Por esse meio, o Impessoal esforça-se com ingenuidade para adiar a morte, apresentando-a como algo que acontece a todo mundo e, pelo próprio fato, não acontece a ninguém. O impessoal tem outro meio engenhoso para isso. Não somente torna a morte algo que acontece aos outros, mas também algo que acontecerá em outro tempo, mais tarde. Através do palavrório banal, o impessoal leva o Ser-aí a fazer afirmações tais como: “É certo que a morte vem a cada homem”, mas subentende-se que não vem agora para ele. Tem bastante tempo diante de si. Insiste, assim, em pensar na morte como o fim de uma jornada e imagina sempre que uma grande parte do caminho está ainda à sua frente. Entretanto, a morte não é um fato e, sim, uma possibilidade. E seu caráter real, enquanto possibilidade., consiste em que é possível a qualquer momento. Mas há pouco ainda mais significativo na atitude cotidiana acerca da morte. Apesar de a morte fugir da consciência, a existência banal se revela como essencialmente dirigida para a morte. Existimos continuadamente relacionados com a morte. O modo dessa relação, como aparece na cotidiana, é essencialmente o ser-para-a-morte. A morte, enquanto fim da existência, no sentido autêntico de fim, sempre está presente na existência humana. Mas a morte, uma vez entendida realmente como essa possibilidade, leva o Ser-aí a tomar o primeiro passo em direção a uma existência autêntica. Defrontando a morte como possível a qualquer momento, o Ser-aí é arrancado do contexto da vida banal e restaurado a si mesmo como aquele que deve e que pode enfrentar-se com a morte, sem máscaras, O Ser-aí deve viver com os olhos cheios da certeza e da soberania da morte; a morte de todo significado, de toda validez, além do fugaz e do temporal, pois, como Niezsche insistiu, Deus morreu, e os últimos vestígios da magia metafisica foram eliminados de seus substitutos, que são a moralidade objetiva, ou seja, a espiritualidade. Mas mesmo nesse caos podemos escolher, optar por criar os nossos próprios absolutos, por mais temporários, provisórios e condicionais que sejam. Esses novos absolutos serão determinados pelo quadro de nossas circunstâncias, pessoais e sociais. Ao menos assim, seremos um existência autêntica, seremos Indivíduos e não mais componentes do Impessoal. Então teremos aceito nosso nada original e final para dele fazer algo. Em virtude da resolução, com a qual ele se defronta com a sua própria morte, o Ser-aí está liberado da servidão dessas preocupações e atividades, que submergem a existência autêntica. Graças a resolução, o Ser-aí se liberta do Impessoal, que é o ditador onipresente dos afazeres humanos. Deixa de pertencer ao público no sentido de submeter-se a um processo em que cada um, numa atitude de conformismo necessário, se deixa dominar pelos usos estabelecidos, juízos e opiniões, assimilando-se nas formas gerais da existência. Todavia, rebelar-se contra esse processo do impessoal não significa a libertação automática dele e de sua influência; pode ser que o rebelde se encontre dentro do culto do excêntrico ou do não-conformismo sistemático. Mas de modo geral, o Ser-aí acha que é mais fácil nadar com a corrente; as forças da inércia e dos prazeres do conformismo são fortes demais para a maioria. É essa a substância da vida cotidiana. Essa situação tende a agravar-se, pois, como existência temporal, o Ser-aí é preso entre dois nadas factuais, atuais: a não-existência antes de nascer e o final da existência pela morte, que é a negação de todas as possibilidades ulteriores no futuro e, por antecipação, a desvalorização de todas as possibilidades, inclusive as possibilidades realizadas no presente. A verdade fundamental acerca do Ser-aí é que deve morrer. Veio do nada e, dentro em breve, voltará ao nada. O pano de fundo sobre o qual o drama da existência do Ser-aí se desenvolve é o vazio. A última dimensão do predicamento do Ser-aí é o Nada. Já que a natureza do Ser-aí consiste na preocupação, seu ser deve-se projetar sempre para o futuro de sorte que ele se define por suas potencialidades, pois é sempre infinitamente mais do que é em qualquer momento determinado. O futuro se revela como aquilo para o qual a existência é projetada; o passado é aquilo que a existência transcende. Porém, podemos voltar para o passado, escolher afirmar este ou aquele ponto dele, revalorizando-o. Futuro, passado e presente são dados juntos, e definem uma existência temporal. São esses três “êxtases” da existência, três aspectos nos quais a existência é deslocada horizontalmente em três fases. A temporalidade primária não se reduz a uma série de instantes que deslizam do passado para o presente e deste para o futuro. Esse conceito vulgar de uma série de tempos, enquanto dado primário da existência temporal, resulta da existência inautêntica cotidiana, onde o tempo aparece como algo que passa momento a momento. Se o Ser-aí não assumir a existência para projetar-se em plena antecipação da morte, a vida parece necessariamente uma série de momentos que se sucedem passivamente. Só no nível de uma existência autêntica se pode tomar consciência dos diversos aspectos do tempo passado, presente e futuro, em função da temporalidade. Relógios e calendários são simples instrumentos e, como tais, tem seu lugar dentro do mundo, onde a preocupação humana procura regular seus projetos. Mas a preocupação em seu caráter essencial não se define por relógios e calendários, pois estes são instrumentos úteis só pelo fato de a existência realizar-se no tempo. Paralela à temporalidade e ao tempo, segue a historicidade e a história. A existência é fundamentalmente histórica. O presente é o resultado da história e, por conseguinte, a tradição não é algo completo em si, que teria existência fora da decisão que nos coloca em relação a ela. O Ser-aí se apropria deste ou daquele aspecto do passado e cria a tradição em vista da espécie de futuro que projeta. O presente é um “tornar presente”. Só enquanto é uma derivação da história se pode dizer que o Ser-aí existe no presente. Com relação à tradição histórica esse presente é sempre o presente dessa geração. Longe de ser algo externo ao qual a existência se submete passivamente, cada geração sente seu presente como seu destino histórico. Esse destino é o próprio ato de definição e projeção de si pelo qual o Ser-aí escolhe, como seu, tal destino. O modo existencial, inautêntico, que é o Impessoal, seduz, tranquiliza e aliena o Ser-aí da existência dentro das dimensões da temporalidade e da historicidade. Esse modo existencial manifesta-se no palavrório, em que o Impessoal passa a ser a verdadeira ressonância do discurso. É uma forma de curiosidade, uma distração e agitação contínua. O Ser-aí não consegue mais distinguir entre o que sabe e o que ignora, pois não assume a existência mas deixa-a ser controlada pelo Impessoal. Todavia, retirar-se da categoria do Impessoal
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