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O trabalho de psicólogos (as) no “terceiro setor”
Mariana Prioli Cordeiro[1]
Introdução
Vivemos em um país marcado por uma intensa desigualdade social. Enquanto alguns grupos têm acesso à educação de qualidade, à medicina de ponta e a moradias seguras e confortáveis; outros frequentam “escolas de lata”, perdem suas “casas” por conta de uma chuva de verão e morrem esperando atendimento nas filas dos hospitais públicos. Embora alguns índices específicos[i] tenham apontado melhoras na situação brasileira, o tratamento dado à questão social foi insuficiente para tirar o Brasil da posição de “médio desenvolvimento” nos indicadores do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A situação de desigualdade social, com um quadro de degradação geral das condições de vida, continua preocupante: a partir do Censo de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que 16.267.197 de brasileiros (8,5% da população) vivem na linha da extrema pobreza, com renda per capta mensal de até R$ 70.  Para reverter esse quadro, o governo brasileiro lançou alguns programas sociais – tais como o Bolsa Família e o Fome Zero – que, por seu caráter assistencialista, são incapazes de chegar às raízes do problema (PAIVA; YAMAMOTO, 2011).
Além de ver proliferarem políticas sociais compensatórias insuficientes para acabar com a desigualdade no país, caminhamos rumo ao fim do “Estado interventor”, à redução dos investimentos públicos em políticas sociais e à desregulação das condições de trabalho. Nas palavras de Ilana Paiva e OswaldoYamamoto (2011, p.13), caminhamos rumo a um Estado protetor unicamente da propriedade privada e das liberdades individuais…. Dessa forma, poderíamos pensar, como pacificar a questão social, com esse enxugamento do Estado? Ora, a resposta atual e concreta para essa questão chama-se “terceiro setor”. Com a refilantropização da questão social,… o “terceiro setor” toma para si a responsabilidade de diminuir a pobreza e a exclusão social que assolam nosso país, através de parcerias com diversos segmentos da sociedade.
De acordo com os autores, a reforma do Estado fez com que o “terceiro setor” não somente crescesse, como, também, se profissionalizasse: nos últimos anos, inúmeros(as) técnicos(as) de nível superior – incluindo psicólogos(as) – migraram para essa nova área de atuação. Alguns(mas) movidos(as) pela necessidade de fugir do desemprego; outros(as) pela busca de um significado de relevância para sua atuação profissional. Neste trabalho, apresentarei algumas reflexões acerca da atuação (tópico 1) e da formação (tópico 2) psicológica nesse campo. Para embasar tal reflexão, realizei uma revisão bibliográfica em diferentes bancos de dados[ii], utilizando os seguintes descritores: “Psicologia e terceiro setor”; “Psicologia e ONG”; “Psicologia e organizações não governamentais”, “Psicologia e formação”.
 
A Psicologia no “terceiro setor”
De acordo com o Cadastro Central de Empresas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), no ano de 2010, existiam 556.846 entidades sem fins lucrativos em atividade no Brasil. Excluindo desses dados figuras jurídicas não associadas à noção de “terceiro setor” – como partidos políticos, sindicatos, associações patronais e profissionais, cartórios, entidades de mediação e arbitragem, condomínios, sistema S (Sesc, Senac etc.), comissões de conciliação prévia, conselhos e fundos municipais, cemitérios e funerárias – tínhamos cerca de 290 mil organizações, que empregavam mais de um milhão e 900 mil pessoas – numero três vezes superior ao de servidores federais na ativa. Atuando exclusivamente na área da assistência social, tínhamos 33.076 entidades (10,2% do total), nas quais trabalhavam cerca de 5.500 psicólogos(as) (DADICO; SOUZA, 2010).
Luciana Dadico e Marilene Proença Rebello de Souza (2010) realizaram um interessante estudo sobre o trabalho desses(as) profissionais no “terceiro setor”. Entre os anos de 2000 e 2003, as autoras entrevistaram onze psicólogos(as) de cinco organizações não governamentais do município de São Paulo que atuam na área da Educação. Ao conversar com esses(as) profissionais, perceberam que eles(as) exercem diferentes funções e possuem cargos diversos: uns(mas) são contratados como assistentes técnicos, outros(as) como pesquisadores ou, ainda, como coordenadores de área ou de  projetos específicos.
Nas cinco organizações que fizeram parte desse estudo, todas as atividades educacionais contavam, em algum momento, com a participação de profissionais de Psicologia. No entanto, isso não significa que essas atividades fossem, necessariamente, constituídas por práticas “psi” (no sentido tradicional do termo).  Na maioria das organizações, as funções atribuídas aos(as) psicólogos(as) não  se  diferenciavam  das de  profissionais  de outras  áreas  do conhecimento. “Assim como outros profissionais, integravam equipes multidisciplinares ou ocupavam postos abertos, de modo genérico, aos profissionais da área de humanas.” (DADICO; SOUZA, 2010, p. 120) – em apenas uma das organizações, eles(as) tinham atribuições que necessitavam de formação em Psicologia. Entre as atividades citadas estão: desenvolvimento de projetos educacionais, realização de oficinas, elaboração de materiais de capacitação e publicações, trabalhos burocráticos, revisão de textos, seleção e avaliação dos funcionários da ONG, desenvolvimento de equipes, produção de eventos, representação institucional e administração financeira. É interessante notarmos que todos(as) os(as) entrevistados(as) valorizaram sua formação, mesmo quando grande parte de suas atividades não eram específicas da Psicologia.
A maioria dos(as) psicólogos(as) entrevistados(as) por Dadico e Souza (2010) não possuía registro em carteira de trabalho e era remunerada em função de sua participação em projetos. Em uma das ONGs, não havia verba para pagar os salários dos(as) técnicos(as) –  havia  apenas  a  perspectiva de  receber alguma remuneração  através  de  um  convênio  que estava para ser celebrado com a prefeitura.  Em outra, empregavam-se voluntários(as) com regularidade para atuar em um projeto específico para profissionais liberais. Três das cinco organizações estudadas faziam amplo uso do trabalho de estagiários(as) mal remunerados, sendo que as tarefas a eles(as) atribuídas pouco tinham a ver com a ideia de aprendizado implícita nessa modalidade de formação.  As autoras explicam essa dificuldade de conseguir um contrato de trabalho adequado e uma remuneração compatível com a oferecida por organizações privadas pelo fato de, “no Brasil, o trabalho social possuir historicamente forte vinculação com a Igreja e, em consequência, com a ideia de doação, ou, sob o novo discurso, de voluntariado. Como contraponto laico, aponta-se a busca do trabalho competente.” (p. 125)
De acordo com Dadico e Souza (2010), o trabalho assume um sentido bastante especial na vida de profissionais que atuam no “terceiro setor”.  Ele se mescla, se funde, se confunde com os princípios, valores e métodos da organização. “Dessa forma, o contrato de trabalho se torna, necessariamente, um compromisso assumido frente aos ideais defendidos pela ONG. O psicólogo se  transforma  em  um  militante […] é obrigado a vestir a camisa da organização.” (p.  126).  Essa imbricação reduz os limites entre o trabalho e a vida pessoal.  Com isso, os momentos de lazer passam, muitas vezes, a se confundir com a atividade militante realizada na organização.
É importante ressaltarmos que essa necessidade de comprometer-se – e de compartilhar o discurso “politicamente comprometido” da organização – é uma das características fundamentais do trabalho no “terceiro setor”, tanto que muitos anúncios de vagas de emprego na área colocam “compromisso social” como um dos pré-requisitos para a candidatura – ao lado, por exemplo, de formação na área de Ciências Humanas, experiência profissional, veículo próprio etc. Cabe, aqui, indagarmos como esse compromisso é medido, avaliado ecomparado durante um processo seletivo. Afinal, trata-se de um critério subjetivo, que não faz referência a uma habilidade específica, nem pode ser quantificado em anos de experiência ou legitimado por um diploma acadêmico. E mais: trata-se de um critério que envolve os valores, opiniões e posicionamentos políticos dos(as) candidatos(as). Trata-se, portanto, de uma exigência de envolvimento pessoal, muito mais do que de execução adequada de determinada tarefa.
Ilana Paiva e Oswaldo Yamamoto (2010, 2011) também realizaram uma pesquisa sobre o trabalho de psicólogos(as) em organizações do “terceiro setor”.  Os autores fizeram vinte entrevistas semiestruturadas com psicólogos(as) de quatorze organizações diferentes, localizadas nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Minas Gerais, a fim de compreender as estratégias utilizadas por esses(as) profissionais no enfrentamento das mazelas da questão social, bem como a formação necessária para atuar nesse campo.
Um primeiro ponto que os autores destacam é o fato de os(as) psicólogos(as) entrevistados(as)  serem, em sua grande maioria, do sexo feminino (90%) e jovens (75% tinham entre 21 e 35 anos).  Sabemos que a predominância de mulheres não é uma exclusividade dessa área de atuação – no Brasil, a Psicologia é, e sempre foi, uma profissão feminina. Soma-se a isso o fato de o “terceiro setor” também atrair mais mulheres que homens – afinal, vivemos em um país em que, historicamente, trabalhos assistenciais, como aqueles que ocorrem na maioria das instituições filantrópicas, são de responsabilidade das mulheres. Desse modo, para os autores, “a procura de profissionais de Psicologia pela atuação no ‘terceiro setor’ vem reforçar o estereótipo que acompanha as chamadas profissões femininas, que são pior remuneradas, mas compensadas pelo seu valor social. (PAIVA; YAMAMOTO, 2011, p. 65, 66).
Em relação à juventude da maioria dos(as) entrevistados(as), Paiva e Yamamoto (2011) afirmam que a maioria desses(as) profissionais começa a atuar no “terceiro setor” quando está ingressando no mercado de trabalho. “Com as novas exigências de eficiência e resultados, as organizações precisam de pessoal qualificado, mas não têm condições de mantê-los. Então, suas equipes são compostas por muitos membros principiantes, e a qualificação ocorre na aprendizagem do próprio trabalho de campo.” (p. 66).
Segundo os autores, além de jovem, a maioria desses(as) psicólogos(as) ingressa no “terceiro setor” sem nunca ter realizado um estágio na área social. Esse déficit em sua formação pode ser explicado pela ênfase que muitos cursos de graduação dão à área clínica, além da escassez de cursos de formação complementar na área social.
Em relação aos fatores que motivaram os(as) psicólogos(as) entrevistados(as) por Paiva e Yamamoto (2011) a ingressar no “terceiro setor”, alguns(mas) afirmam que foi meramente uma oportunidade de trabalho, pois nunca haviam pensado na área social, para outros foi justamente  o interesse pela área social (seja pela experiência anterior, ou por motivações pessoais), que fez com que buscassem uma vaga na instituição. Em quase todos os comentários daqueles que afirmaram que sua atuação no “terceiro setor” foi uma oportunidade qualquer e “eu agarrei”, está presente a ideia que, depois disso, se envolveram de tal forma com a “causa” da instituição, que essa é a motivação para continuar nesse tipo de trabalho. (PAIVA; YAMAMOTO, 2011, p. 69, 70, destaques dos autores).
Para os autores, essa “paixão pela causa” – aliada à necessidade de entrar em um concorrido mercado de trabalho – faz com que muitos(as) desses(as) profissionais ingressem no campo sem refletir criticamente sobre o papel político desse tipo de organização, nem questionar as condições de trabalho (muitas vezes precárias) que lhes são impostas. Faz, por exemplo, com que adotem “passivamente” o discurso oficial da instituição. Faz com que aceitem salários abaixo da média da categoria. Faz com que se conformem com vínculos empregatícios precários. Faz com que aceitem ter seus direitos trabalhistas negados. Em suas palavras, os salários dos psicólogos no ‘terceiro setor’ não são muito atrativos, a maioria está entre 2(21,1%), 3(21,1%) e 4(21,1%) salários mínimos. O que chama a atenção é termos encontrado, inclusive, profissionais que trabalham sem remuneração fixa, ou seja, a depender da capacitação de recursos da instituição[…]. Parece que a área social é mesmo uma ‘profissão de fé’, pois não há reconhecimento e valorização em termos salariais…. Além disso, o tipo de vínculo denota a fragilidade desse setor, já que muitos profissionais entrevistados estabelecem uma relação de prestação de serviço, sem nenhum tipo de garantia trabalhista…. É importante observar, ainda, as consequências para a categoria profissional, que não se articula para enfrentar as condições precárias desse mercado de trabalho que vem se configurando também para a Psicologia (PAIVA; YAMAMOTO, 2011, p. 72, 73, destaques dos autores).
Segundo os autores, a despeito de reconhecerem essa precarização, os(as) psicólogos(as) que atuam no “terceiro setor” parecem estar conformados(as) com sua situação profissional. Afinal, além de estarem escapando do temido “exercito de reserva”, estão contribuindo para transformar a realidade social. A lógica que está por trás desse conformismo é, portanto, que o(a) profissional que se doa à causa e à instituição, aceita condições materiais de trabalho que, em outros contextos, seriam inaceitáveis. Que na luta pelos direitos dos outros, aceita negar seus próprios direitos.
Além dessa precarização das condições de trabalho, Paiva e Yamamoto (2011, p. 70) destacam que “as amplas atividades desenvolvidas no ‘terceiro setor’ e a absorção dos valores empresariais têm exigido dos profissionais habilidades para o trabalho nos setores privado e público, como a capacidade de trabalhar em grupo, cumprir metas, gestão de recursos etc.”. Por essa razão, psicólogos(as) organizacionais, com experiência na área de gestão empresarial, têm encontrado no “terceiro setor” um fértil campo para desenvolver seu trabalho.
É interessante observarmos que apenas 37,5 % dos(as) profissionais entrevistados(as) por Paiva e Yamamoto (2010, 2011) ocupavam cargos de psicólogo(a) dentro das instituições – os(as) outros(as) eram contratados(as) como coordenador(a) de projetos (25%), educador(a) ou orientador(a) social (18,8%), diretor(a) (6,3%), entre outras funções. Os autores relatam que, inclusive, muitos(as) desses(as) profissionais sentiam-se incomodados por não estarem realizando atividades comumente atribuídas à Psicologia.
No geral, esses(as) profissionais exerciam atividades  semelhantes às relatadas no estudo de Dadico e Souza (2010), tais como: atendimento clínico individual (n. 7), execução de projetos (n. 6), atendimento a jovens e suas famílias (n. 1), levantamento de demandas (n. 1), planejamento institucional (n. 1), grupos terapêuticos (n. 2) e gestão organizacional (n. 2). Os autores nos chamam a atenção para o fato de uma das atividades mais frequentes entre os(as) entrevistados(as) ser  execução de projetos – atividade esta que foge daquilo que geralmente é entendido como “trabalho de psicólogo” e que exige uma série de habilidades específicas, tais como: saber trabalhar   em equipes multidisciplinares, criar estratégias de educação social, conhecer como se elabora um projeto e como se capta recursos para implementá-lo.
 
2  A formação em Psicologia
Ao perguntarem aos(às) entrevistados(as) como a formação em Psicologia havia contribuído para sua prática comunitária atual, Paiva e Yamamoto (2011) obtiveram respostas preocupantes: quatro profissionais disseram que sua formação foi dissociada da prática social; sete afirmaram que ela valorizava apenas áreas clássicas e nove sustentaram que o preparo que ela oferece não é suficiente. Tal lacuna na formação em Psicologia pode ser explicada, entre outras coisas, pela ênfase dada pela maioria dos cursos à área clínica. Alémdisso, essa ênfase na clínica torna precários o conhecimento e a discussão acerca de políticas públicas, tais como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema de Garantia de Direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
Em texto publicado originalmente em 1979, Silvio Botomé (2010) já sustentava que os currículos de Psicologia eram inadequados para formar profissionais capacitados(as) para atuar no complexo cenário dos problemas sociais. Esses currículos, segundo o autor, só preparavam os(as) alunos(as) para as atividades mais próximas às salas de aula, situações de teste, salas de clínica, laboratórios e ambientes de treinamento, ao passo que deveriam prepara-los(as) para contribuir com a melhoria das condições de vida dos que mais precisam melhorá-las. Em suas palavras, é difícil, com a formação acadêmica existente, que os atuais estudantes de psicologia percebam, analisem, conheçam, avaliem e proponham providências relacionadas aos fatos e dificuldades reais da população que constitui o país. É mais fácil as informações  acadêmicas  dirigirem  e  determinarem  o  que pensamos e fazemos como profissionais como se as circunstâncias de seu uso não importassem para constituir o trabalho de formação dos futuros psicólogos. Isso tudo pode construir uma percepção “acadêmica”… da realidade social e não um compromisso significativo com a superação das atuais condições de vida da maior parte das pessoas que vivem e constituem o país real em que vivemos. (Botomé, 2010, p. 186).
A despeito de o compromisso social ser um tema muito mais recorrente nos eventos e publicações de Psicologia, a situação atual dos cursos de graduação da área não é muito diferente daquela apontada por Botomé (2010) há mais de três décadas. Nos dias de hoje, muitas universidades e faculdades incluem em seus currículos temas relacionados à intervenção comunitária, no entanto, na maioria das vezes, esse conteúdo é ministrado em disciplinas isoladas, que não promovem a construção de um corpo conceitual consistente, nem de metodologias adequadas a novas demandas. Essa lacuna na formação faz com que muitos(as) profissionais se sintam despreparados(as) e inseguros quando saem de  suas clínicas para atuar no “terceiro setor”.
Segundo Paiva e Yamamoto (2010), aqueles(as) que enfrentam essa insegurança e ingressam em organizações do “terceiro setor” se dizem movidos por diferentes fatores, tais como: desejo de proporcionar bem-estar e qualidade de vida, defender direitos, colaborar com políticas públicas e aumentar a participação cidadã. Esses objetivos são condizentes com os preceitos da Psicologia Comunitária, no entanto, segundo os autores, na prática, a “realidade” é diferente: a maioria das ações promovidas por psicólogos(as) visam promover mudanças num âmbito individual ou institucional. Além disso, elas não favorecem o protagonismo de seus personagens, uma vez que as mudanças são atribuídas a alguém externo à comunidade, a um saber técnico, institucionalizado e academicista. A fala de um de um dos psicólogos entrevistados por Paiva e Yamamoto (2010, p. 156, 157) é exemplar:
A partir do momento que a direção contrata um psicólogo pra trabalhar nesse programa, é porque começa a perceber que existem outros aspectos, não só biológico-sociais na questão da desnutrição. Então, quando a gente encontra uma família desnutrida, a gente vai avaliar, realmente existem aspectos psicológicos, a relação mãe-bebê que ficou, seja mais dificultosa, a criança não consegue absorver os nutrientes da alimentação. O nosso trabalho é de tentar proporcionar um debate acerca das principais repressões…
Nesse relato, podemos perceber que o que foco do trabalho desse profissional não são questões sociais mais amplas, como desigualdade social, fome, ausência de mobilização política, neoliberalismo, alienação, exploração do trabalho etc., mas é o indivíduo, seu psiquismo, sua história, suas relações pessoais. É algo que ele conhece e com o que aprendeu a lidar nos tempos de faculdade. Segundo Paiva e Yamamoto (2010), esse psicologismo pode ser justificado pelo fato de os(as) psicólogos(as) que começam a atuar na assistência social não estarem preparados para realizar uma reflexão aprofundada sobre o contexto em que se dá essa atuação, além de não terem clareza acerca da dimensão política e filosófica que envolve a intervenção social.
Magda Dimenstein (2011) também problematiza o modelo de formação empregado nos cursos de Psicologia. De acordo com a autora, o campo das políticas sociais é o que atualmente mais absorve psicólogos(as) no Brasil e, para formar profissionais capacitados para atuar nessa área, precisamos criar um modelo de formação contextualizado, que contribua para produzir um conhecimento interdisciplinar e práticas multiprofissionais voltadas às necessidades da população.
Isso implica estarmos alertas aos especialismos, às naturalizações, às dicotomias, a um esforço permanente de ruptura com essa lógica que persegue as verdades inquestionáveis. Precisamos nos inserir em equipes, transitar nas comunidades, circular no âmbito da cidade, sair daquele modus operandi tradicional e inaugurar novas formas de trabalho…. Sabemos que grande parte dos psicólogos brasileiros está inserida historicamente em setores como a saúde pública, a assistência social, o terceiro setor, instituições públicas de proteção à infância e à adolescência, ao idoso, nas varas de família, nos núcleos de combate à violência e desigualdade social em geral. A maioria de nós está inserida nesses lugares e nós temos uma formação completamente descontextualizada para atuação nesses campos. (Dimenstein, 2011, p. 123).
Mas como seria exatamente uma formação em Psicologia contextualizada, capaz de capacitar os(as) alunos(as) para atender às demandas sociais? Segundo Maritza Montero (2008), essa formação deveria, antes de tudo, conscientizar os(as) futuros(as) psicólogos(as) de que não devem separar a teoria da prática. Isso não significa, obviamente, que o curso não deva abordar os principais conceitos, temáticas e referenciais teóricos da área. Mas é preciso mostrar ao(à) aluno(a) que não podemos simplesmente pegar uma teoria e tentar aplicá-la na nossa prática profissional. Em outras palavras, é preciso ensiná-los(as) a usar o vocabulário da Psicologia para refletir sobre a situação de uma dada comunidade, além de usar a experiência nessa comunidade para refletir sobre a própria teoria. Para a autora, a melhor forma de fazer isso é criando oportunidades para eles(as) irem a campo, conhecerem outras realidades, identificarem demandas, criarem estratégias de enfrentamento dos problemas sociais e confrontarem os conceitos que aprenderam em sala de aula com a realidade concreta daquelas comunidades. É importante destacarmos que confrontar conceitos com a realidade concreta não significa pegar as experiências vivenciadas na comunidade e utilizá-las para exemplificar a teoria. Mas questionar se uma dada teoria contribui para explicar uma realidade. E se contribui, quais os limites e potencialidades dessa contribuição? Em que medida a experiência na comunidade pode nos ajudar a rever determinados aspectos da teoria?
Montero (2008) sustenta que é igualmente importante criar espaços para que os alunos possam refletir criticamente sobre essas experiências. E os grupos de supervisão são uma boa forma de fazer isso, afinal, eles permitem que os(as) alunos(as) reflitam não somente sobre suas vivencias, mas também sobre as de seus(uas) colegas. Para a autora, cada sessão de trabalho com a comunidade deve ser analisada para que se possa colocar em evidência os erros, os acertos e os motivos de certas condutas e para que se possa aprender uns com os outros.
Cada projeto de trabalho com uma comunidade específica exige um plano. Evidentemente, há certos temas que necessariamente precisam ter lugar nos programas acadêmicos. Como ensinarpsicologia comunitária sem trabalhar temas como a noção de comunidade, a participação, o compromisso ou a pesquisa-ação participante, por exemplo? Mas, ao lado dos temas básicos, podem haver outros voltados a sustentar alguma orientação específica correspondente ao pensum de estudos. Por isso, é possível que haja programas de estudos predominantemente dirigidos aos aspectos relacionados com uma prevenção primária e secundária em saúde comunitária, e outros mais orientados para a pesquisa-ação. Mas […] os conceitos básicos que informam o estudante sobre a disciplina, seus alcances, relações e limites, seus principais métodos e técnicas de intervenção e investigação, seus aspectos éticos e seus fundamentos teóricos devem estar ao alcance de todos aqueles que se iniciam no campo psicológico comunitário” (Montero, 2008, p. 194).
Para Montero (2008), a formação em Psicologia Comunitária deve, portanto, priorizar a práxis. Ou seja, deve priorizar a atividade comprometida de conhecer, que deve ser pensada e planejada em função dos objetivos da produção a que se propõe. Brônia Liebesny e Sandra Sanchez (2001, p. 216) também sustentam que o modo como o ensino superior brasileiro está estruturado não permite essa flexibilidade e, sobretudo, essa ênfase na práxis: fruto de uma política de ensino superior no país que se exime de garantir sua qualidade, a formação de quadros e a adequação de sua produção à compreensão e atuação nas condições vividas por essa sociedade, resultou, a partir da década de 70, um modelo de educação pragmatista, imediatista, voltado para o atendimento de um modelo de produção competitivo e excludente, que incentiva o individualismo e a resolução de questões pontuais pouco voltadas para o compromisso com o conjunto social. Contextualizado nessa lógica, desenvolve-se um ensino profissional de caráter meramente tecnicista, que pressupõe um saber que determina formas próprias e prontas de atuação; a aplicação de soluções não responde às questões estabelecidas pela situação que as demanda, mas está direcionada pelo modelo ideal de realidade criado por um conhecimento acrítico dessa mesma realidade; ou seja, não só na área da Psicologia mas também em outras áreas claramente vinculadas a uma prática profissional, não há produção de conhecimentos comprometidos com o conhecimento da realidade brasileira, de sua demandas e formas possíveis de questionamento. Os fatos sociais são vistos como formas abstratas a ser analisadas por um saber que confirma sem questionar analisa o produto sem denúncia das condições determinantes, explica mas não compreende e por isso não pode transformar.”
Como forma de mudar essa realidade, as autoras sugerem que professores de Psicologia Social: 1) ensinem seus alunos a não separar o conhecimento da realidade social na/para a qual ele é construído; 2) tratem a técnica não como algo que deve, necessariamente, ser seguido à risca, mas como algo que pode ser modificado e adaptado a fim de atingir os objetivos a que se propõe; 3) busquem formar profissionais capazes de reconhecer desconhecimento e perguntar, para criar possibilidades de conhecer (afinal, a pesquisa é uma forma de perguntar, conhecer, atuar); 4) tratem o saber como algo que está sempre sendo construído, exigindo questionamentos, capacidade de decisão de quem o produz sobre sua direção; a realidade não pode  ser vista como estática, a espera do uso da técnica pronta e certa para cada situação; 5) compreendam a realidade em sua totalidade e complexidade, entendendo que isso só é possível a partir de muitos e diferentes olhares profissionais que se intercomplementam; 6) que sua ação seja uma intervenção, isto é, algo que interfere para a modificação da situação, algo que tem consequências e que está comprometido com a saúde dos sujeitos da ação, no conjunto das relações em que estas ações ocorrem coletivamente.
 
Referências
BOTOMÉ, S. P. (1979). A quem nós, psicólogos, servimos de fato? In: YAMAMOTO, O. H.; COSTA, A. L. F. (Orgs). Escritos sobre a profissão de psicólogo no Brasil. Natal: EDUFRN, 2010. p. 169-202.
DADICO, L. SOUZA; M. P. R. Atuação do Psicólogo em Organizações não Governamentais na Área da Educação. Psicologia Ciência e Profissão, v. 30, n. 1, p. 114-131, 2010.
DIMENSTEIN, M. A ação clínica e os espaços institucionais das políticas públicas: desafios éticos e técnicos. In: SEMINÁRIO NACIONAL PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS, 5, 2011, Brasília. Anais… p. 119-126.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (2010). As fundações privadas  e associações sem fins lucrativos no Brasil – Nova metodologia 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fasfil/2010/default_entidades_ods_nova_2010.shtm>. Acesso em: 4 de abr. 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.  Censo demográfico 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/>.  Acesso em: 4 de abr. 2013.
LIEBESNY, B.; SANCHEZ, S. Os desafios no ensino da Psicologia Sócio-Histórica. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (Orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001. p. 215- 221.
MONTERO, M. Introducción a la Psicología Comunitaria: desarrollo, conceptos y procesos. Buenos Aires: Paidós, 2008.
PAIVA, I. L.; YAMAMOTO, O. Formação e prática comunitária do psicólogo no âmbito do “terceiro setor”. Estudos de Psicologia, v. 15, n. 2, p. 153-160, 2010.
_____. Os novos quixotes da psicologia e a prática social no âmbito do “terceiro setor”. Natal: EDUFRN, 2011.
[1] Mestre e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). mpriolicordeiro@gmail.com
[i] Tais como aumento da expectativa de vida, dos níveis de escolarização e diminuição da mortalidade infantil.
[ii] Tais como SciELO (www.scielo.br);  BVS-Psi (http://www.bvs-psi.org.br); Biblioteca  Dante  Moreira  Leite  do  Instituto de Psicologia da USP e  meu arquivo  pessoal.
Tags: dignidade da pessoa humana, filantropia, psicologia social, terceiro setor

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