Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DANO AMBIENTAL: MATERIAL OU MORAL? Carlos Gonçalves de Andrade Neto. Mestre e Doutorando em Direito Privado pela UFPE. Professor da Graduação em Direito da ASCES e da Especialização em Direito Civil da UFPE. Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família e do ISFL – International Society of Family Law. Advogado. E-mail do autor: carlos@aprconsult.com Sumário. 1. Noção de responsabilidade civil. 2. Responsabilidade civil por dano ambiental. 2.1. Suporte fático do dano moral ambiental. 2.2. O bem ambiental. 3. A categorização do dano ambiental na dogmática da responsabilidade civil. 4. Conclusão. Bibliografia. 1 - Noção de Responsabilidade Civil Na seara do direito obrigacional, vínculo jurídico mediante o qual alguém está sujeito a outrem com finalidade de adimplir uma prestação (MONTEIRO, 1977), é tratada parte substancial de todo o direito privado. Dele trata o Livro I da Parte Especial do Código Civil de 2002, sob a alcunha de Direito das Obrigações. Ora nascendo dos atos e negócios jurídicos lícitos, ora diretamente da própria lei, a obrigação também se faz valer através da lesão perpetrada aos bens jurídicos dos sujeitos de direito, ocasião em que exurge a denominada responsabilidade civil. Sob a égide da expressão “responsabilidade civil” tem-se estritamente os efeitos dos atos, atos-fatos e fatos ilícitos de natureza extracontratual, i.e., violação a direito causadora do dano sem relação com algum vínculo contratual entre lesante e lesado. Entretanto, o uso da expressão a elevou a categoria geral, da qual emanam a responsabilidade civil aquiliana ou extranegocial e a negocial (LÔBO, 1999), conforme exista ou não vínculo convencional entre as partes. 1 Delimitada como a obrigação de indenizar em virtude de violação danosa a direito, a responsabilidade civil vem a ser tratada no Título IX do mesmo Livro. Nítida e louvável a distinção em relação ao trato do ato ilícito e da responsabilidade civil em compartimentos distintos, ao contrário do Código anterior, que de pronto pugnava pela obrigação de indenizar já na parte geral, ao tratar de ato ilícito. Louvável ainda, porque torna a indenização um gênero a partir da qual nascerá a espécie proveniente do ato ilícito, pois a dissociação entre ato ilícito e responsabilidade civil se faz necessária em virtude de outras hipóteses de obrigação de indenizar, tais como os atos-fatos ilícitos, os fatos ilícitos e mesmo a obrigação de indenizar por fato lícito (§ único do art. 927 da Lei 10.406/2002). Primorosa e precisa a nova disposição e o rearranjo das normas referentes à responsabilidade civil conforme trazida pelo novo Código. Além da cláusula geral de indenizar (art. 927 da Lei 10.406/2002), traz o novo Código elenco de hipóteses específicas de indenização, tais como em exemplo a de danos causados pelo detentor de animal, dono de edifício ou construção e habitante de prédio, do credor que cobra dívida antes do vencimento, já paga, do homicida, entre outros. Tais hipóteses, embora perfeitamente encaixáveis na cláusula geral de indenizar, são fruto da experiência jurídica e tem se consolidado como tipos legais específicos de inolvidável indenizabilidade. O sistema jurídico do common law, vale frisar, lança mão da experiência jurisprudencial para construir hipóteses de atos e fatos indenizáveis, analogamente aos tipos legais subscritos pelo Código. Inegável, porém, a versatilidade da cláusula geral, em que pese a possibilidade de alguns inconvenientes, como por exemplo, a possibilidade de indenizações diferentes para casos iguais em julgados distintos. A legislação extravagante cuida também de hipóteses variadas de indenização, análogas às expressadas na legislação codificada. Assim, o Código do Consumidor cuida da responsabilidade do fornecedor por fato ou vício do produto ou serviço, bem como da responsabilidade dos profissionais liberais (arts. 12, 18 e art. 14 § 4o da Lei 8.078/90); a indenização por danos atividades nucleares (Lei 6.453/77); danos causados pelo Poder Público (art. 37 § 6o da Constituição Federal de 1988, art. 43 do Código Civil); danos ao patrimônio público para fins de enriquecimento ilícito (Lei 8.429/92); entre outras. 2 A doutrina tradicional elencava como elementos do suporte fático da responsabilidade civil o ato danoso, o dano, o nexo causal entre eles e o elemento subjetivo, a culpa. O último elemento vem perdendo espaço em virtude da admissão da doutrina do risco já largamente adotada. Para que haja obrigação de indenizar, comum a todas as hipóteses legais, é mister haja um dano cuja causa seja um fato que a lei imputa a alguém para responsabilizá-lo. O elemento da culpa pode eventualmente ser utilizado para justificar a imputação, mas considerações de solidariedade social e a necessidade de indenizar mais largamente os danos tem deixado de lado esta justificativa. Sequer se exclui o ato ou atividade lícita, apontando por isto a responsabilidade civil no sentido de se tornar uma obrigação cada vez menos associada ao ilícito, e no surgimento de um direito geral à indenidade baseado em considerações de eqüidade1 e justiças corretiva e distributiva. O Código Civil brasileiro ainda mantém a culpa como elemento do suporte fático da obrigação de reparar o dano, em continuidade ao disposto no Código de 1916. É bem verdade que reduziu o universo de fatos sobre os quais aquela incide, alargando o espaço para a responsabilidade sem culpa. Mas ainda tem, no elemento subjetivo, um de seus principais pilares. Em verdade, já se reconheceu alhures a existência de um sistema dualista 2 de responsabilidade civil, por sobre o qual a doutrina e a jurisprudência forçosamente laborariam. Em comparação com o Código Civil Português, por exemplo, o novo Código brasileiro (Lei no 10.406/2002) já representa um avanço em termos de responsabilidade civil objetiva. Naquele, a culpa só não está presente nos casos de expressos em lei, vale dizer, numerus clausus, enquanto a proposta brasileira cria uma cláusula de maior generalidade3, 1 “Esta cláusula deveria facultar al juez a imponer um deber de indemnización por um acto dañoso y contrario a derecho, siempre y em la medida em que, atendida la conducta entera de los interesados, su situación patrimonial y las demás circunstancias especiales de caso, estuviera de acuerdo com la equidad.” [ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de obligaciones. 3. ed. Vol. 2. Doctrina Especial. 2ª parte. Barcelona: Bosch, 1966, p. 1030.] 2 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 184. 3 Nunca é demais enfatizar que esta técnica tem prodigioso futuro no direito civil:"As cláusulas gerais, mais do que um 'caso' da teoria do direito – pois revolucionam a tradicional teoria das fontes – constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos elementares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo o uso do tráfico jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-jurídicos, vialibizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo." [MARTINS-COSTA, JudithHofmeister. O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro in: Revista de Informação Legislativa, v. 139, Brasília, 1998, pp. 5-22.] 3 gerando obrigação de indenizar sem culpa em virtude do dano causado pela atividade normalmente desenvolvida. A responsabilidade civil subjetiva, portanto, perde espaço a cada dia, embora ainda se mantenha de pé, como regra ao menos formalmente majoritária, nas legislações privatistas amiúde, como no exemplo exposto. Para a compreensão da razão desta transformação, necessário se faz antes mostrar as raízes ideológicas do modelo anterior, ou seja, seus fundamentos valorativos e as conseqüências desta determinada visão do indivíduo e da sociedade que doravante denominamos de pensamento liberal. ica claro que a responsabilidade civil dita subjetiva, embora não tendo nascida no seio do liberalismo, foi por este conformada e fundamentada para os fins colimados nas ordens jurídicas da época. As bases da culpa no pensamento jurídico de inspiração liberal ainda mais se evidenciam na pena dos doutrinadores quando do crítico momento em que os juristas europeus - e brasileiros a reboque - tiveram que enfrentar a questão da nascente sociedade de massas e a subseqüente incompetência do modelo subjetivista em compor os conflitos decorrentes da reparação de danos que cresciam em escala exponencial no seio desta nova realidade. Foi ainda esta sociedade nascente quem demandou por novos valores, como o da solidariedade social e da revalorização da pessoa humana4 - em detrimento da hipervalorização dos bens, característica do liberalismo e que se refletiu fortemente nas legislações civilistas amiúde - impondo-se gradativamente sobre o vestusto formalismo e o frio patrimonialismo5 associados ao instituto da responsabilidade civil tradicional. Para compreender esta trajetória e os fatores que para ela contribuíram, se faz necessário detido olhar sobre a culpa, seu papel no suporte fático da responsabilidade civil no contexto do Estado Liberal e suas limitações; em outras palavras, seu fundamento axiológico e sua incompatibilidade ante a evolução dos fatos. 4 DESSAREGO, Carlos Fernández. Hacia uma nueva sistematizacíon del daňo a la persona in: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: RT, a. 20, n. 75, jan-mar/1996, pp. 5-16. 5 É sintomática a desproporcional preocupação com a conduta do lesante e a respectiva tutela do lesado: "La responsabilidad está basada en unas pocas disposiciones legales, la mayoría vinculadas a acciones humanas. Por ejemplo, el Código Civil francés dedicó cuatro artículos; el Código Civil argentino, dedica 40 artículos (desde el 1066 hasta el 1106). En todas estas codificaciones, la víctima está ausente." [LORENZETTI, Ricardo Luis. El sistema de la responsabilidad civil: una deuda de responsabilidad, un crédito de indemnización o una relación jurídica? in: AJURIS, a. XXII, n. 63, Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul: 1995, pp. 166-198.] 4 Em face disto, pode-se compreender as mudanças de interpretação e as subseqüentes inovações legislativas em matéria de responsabilidade civil ao longo da experiência jurisprudencial brasileira no Século XX. Sem um atento olhar para o passado, não se pode compreender o presente e, menos ainda, captar a chegada do futuro no perene devir do fenômeno jurídico. Entrementes, uma vez derrribado o castelo em ruínas da culpa, é que se pode construir um novo edifício para o instituto, consoante, portanto, com a ascensão de novas valorações, de nova visão do ser humano e da sociedade, bem diversa da teoria florida e da prática perversa do liberalismo clássico, assim como seguir os passos que vão desde a nova plataforma axiológica às suas implicações para o instituto da responsabilidade civil. Os institutos jurídicos, como as civilizações, são construídos e destruídos pelo avanço da História, senhora que é de ambos. Afigura-nos, por ora, mais um momento de clivagem, de destruição e reconstrução. Um momento já não tão novo, tempo em que a culpa perde sua importância no instituto da responsabilidade civil, restando-lhe apenas servir de ornamento supérfluo para uma legislação que prima pela desatualização, o que se constitui, aliás, no destino de toda lei humana. Um desfecho possível, porém improvável, para esta senda seria a conclusão de que a culpa deveria ser abolida do suporte fático da responsabilidade civil. No momento, entretanto, assim não parece ser o futuro próximo, não por algum sólido argumento doutrinário, mas pelas profundas raízes que a idéia de culpa possui na mentalidade jurídica brasileira. Que não pense o leitor ser igualmente dogmática a posição do missivista, uma vez que as idéias aqui propostas são fruto de estudo e observação, e, por isso mesmo, de modo dialético, susceptíveis à crítica. Para além de tudo isso, inúmeras serão as facetas apenas tocadas e amplamente inexploradas, possibilidades vislumbradas ao longo da construção deste trabalho que, não obstante, foram aludidas apenas no que possuem de construtivo para seu eixo central. 5 A reparação é gênero do qual é espécie a indenização. Pode ser in natura ou em dinheiro (finalidade reparatória), pois visa antes de tudo a restauração ao status quo ante das posições jurídicas lesadas. Esta última pode ainda ser previamente estipulada (analogamente a uma multa) ou visar a extensão do próprio dano. Pode também ter finalidades compensatória e punitiva/preventiva, no caso das lesões a direitos de natureza não-patrimonial (segundo a doutrina, apenas os direitos de personalidade). Exemplo de norma reparadora que transcende ou passa de largo da avaliação de prejuízo é a da repetição em dobro do pagamento indevido, a demonstrar que tais finalidades não são estranhas ao nosso ordenamento jurídico, e isso ainda na vigência do Código revogado: “Art. 1.531(CC/16). Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação. (Redação dada pelo Decreto do Poder legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)” A função “reparadora ou restauradora” da responsabilidade civil evidencia-se ainda mais no tratamento do dano ambiental: “Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: (...) § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.” Veja-se o emprego das duas palavras: indenizar e reparar. Não sendo possível a reparação (i.e., a restituição in natura do status quo ante, a exemplo do § único do art. 952), a indenização incidirá para que seja prestado valor equivalente. 6 2. Responsabilidade Civil por Dano Ambiental A responsabilidade civil pressupõe sempre dano a um determinado bem jurídico que, segundo a melhor doutrina nacional, podeter conteúdo econômico, configurando portanto o assim chamado dano material, bem como configurar violação a direito de personalidade, gerando o denominado dano moral. 2.1. O suporte fático do dano moral ambiental A Lei 7.347/85, que trata da Ação Civil Pública, com as alterações sofridas, entre outras, pela Lei 8.884/94, passou a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994) l - ao meio-ambiente (...)” Curioso notar que a expressão “morais e patrimoniais” não existia na redação original, que referia-se apenas a danos causados à lista que se seguia. A Lei 8.884/94, que acrescentou a expressão referida supra, aliás, em nada tratava de questões de meio-ambiente, mas tão somente da prevenção e repressão às infrações à ordem econômica, nos dizeres de sua própria ementa. Entretanto, esta lei, que não guarda nenhuma conexão material com o direito ambiental, simplesmente criou um problema técnico-dogmático, que é o da possibilidade jurídica de se reconhecer danos morais ambientais, ou melhor dizendo, danos ambientais morais. A tentativa, a posteriori, de justificar conseqüências não previstas de atos legislativos é, aliás, não incomum em nossa ordem jurídica, a demonstrar o descuido com que o feitio das leis é conduzido. 7 Ora, para que se reconheça, no estado da arte da doutrina privatista brasileira, o dano ambiental como moral, mister se faria de pronto identificá-lo com algum direito de personalidade. Examinemos, pois, a natureza do bem jurídico protegido pela norma do dano moral ambiental, e vejamos se a mesma encaixa-se na hipótese desejada. Caso tal subsunção seja impossível, far-se-á mister abandonar a tradicional doutrina em favor de uma releitura do próprio instituto da responsabilidade civil, como se verá ao final. 2.2. O bem ambiental A Constituição Federal de 1988 já prevê o bem ambiental e a seguir procura caracterizá-lo quanto à sua titularidade, enquadrando-o como interesse difuso e coletivo: “Art. 129, III. promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.” E ainda, no art. 225 § 3º prevê a possibilidade de sua reparação civil: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (...) § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” 8 No que é complementada pela Lei 6.938/81: “Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: (...) § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.” O bem ambiental, claramente, é um interesse de natureza difusa6, como bem definiu a Constituição Federal7. Logo, por não ter titularidade individual, característica dos direitos de personalidade, não pode ser equiparada a estes. Tal constatação cria um dilema doutrinário: como reconhecer o dano moral ambiental sem a concomitante consideração do bem ambiental violado como direito de personalidade? 3. A categorização do dano ambiental na dogmática conceitual da responsabilidade civil No direito brasileiro, há duas categorias reconhecidas de dano: material e moral. A indenização, na sistemática jurídica liberal, alcançava apenas as diminuições patrimoniais de qualquer natureza. No início do Séc. XX, com a construção do dano moral pela jurisprudência (de função, ressalte-se, compensatória e, menos confessadamente, punitiva), surgiu na doutrina francesa e foi importada para o Brasil a referida distinção que, ressalte-se, demorou bastante a ser aceita entre nossos julgadores, afeitos que estavam ao atrelamento entre indenização e patrimônio pecuniariamente mensurável. Para a doutrina brasileira moderna, cujo 6 Para um aprofundamento no tema, cf. KRELL, Andréas Joachim. Concretização do dano ambiental: objeções à teoria do risco integral. In: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1720. Disponível em 11/01/2005. 7 Há ainda autores que não distinguem o bem ambiental dos bens relacionados ao meio ambiente. Cf. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 100 e segs. 9 maior representante é o festejado Professor Paulo Lôbo, essas categorias esgotam todas as dimensões possíveis de dano. Uma crítica que se pode fazer a esta posição é que a mesma é derivada do forte apelo reparador do vocábulo dano. Entrementes, ao se admitir outras dimensões à responsabilidade civil (v.g. compensatória, no caso de dano moral), abre-se uma janela de possibilidades do emprego da responsabilidade civil para além da reparação patrimonial. Esta questão restará relevante ao se tratar do enquadramento (se possível) do dano ambiental em uma das categorias de dano modernamente aceitas. Daí decorre a pergunta central do presente trabalho: o dano ambiental se categoriza como dano material ou como dano moral? Veja-se que o bem ambiental consiste no “meio ambiente ecologicamente equilibrado” (art. 225, CF), e não diretamente nos recursos ambientais concretos. É à qualidade de equilíbrio do meio ambiente que tem titularidade difusa (art. 129, III, CF), e não os recursos ambientais em si, que podem até ter titularidade privada. Exemplo: uma propriedade rural destina 20% de sua superfície como área de preservação ambiental. Se o meio ambiente fosse o bem de titularidade difusa (bem de uso comum do povo), então o proprietário da terra não poderia proibir a passagem de qualquer pessoa pela região preservada. Isso não condiz com a verdade, pois tal travessia ou uso pode ser oposto por ações possessórias em geral. Tendo o proprietário o domínio sobre a área reservada, é lógico que apenas sobre o equilíbrio ecológico da área que há titularidade difusa. O mesmo não pode manejar ou praticar atos que desequilibrem o meio ambiente naquela reserva de sua propriedade, sem autorização e fiscalização do órgão competente, sob pena de sanções administrativas, penais e civis. Logo, a titularidade do bem ambiental é a coletividade, posto que é interesse difuso8. 8 Quanto à responsabilidade civil por violação a interesse difuso e coletivo, veja-se: NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporâneosda responsabilidade civil, in: Revista dos Tribunais, ano 88, vol. 761, março 1999, pp. 31-44. 10 O dano aos recursos ambientais quase sempre é material, e como tal deve ser encarado. Entretanto, o dano à qualidade de equilíbrio do meio ambiente nem sempre será passível de redução a esta categoria. Qual o valor patrimonial da extinção de uma espécie animal? Qual a medida de dano material da destruição de um ecossistema completo numa dada localidade? Em verdade, há perturbações do meio ambiente até reversíveis, mas que ensejam e justificam a indenização devida, mesmo que a título preventivo e educativo (neste mister, a experiência jurídica do common law não se ressente de utilizar a indenização como fator de exemplo – exemplary damage9 – em qualquer dimensão do dano). Se o bem em tela é extra-patrimonial, como parece ser o caso, a solução mais cômoda seria enquadrá-lo como dano moral. Mas a violação ao equilíbrio do meio ambiente não pode ser categorizada como violação a direito de personalidade, logo, temos uma indenização normativamente prevista, mas sem categorização conceitual. É hora de avançar a doutrina. Se o dano moral foi um constructo oriundo da necessidade prática de compensar a vítima violada em seus direitos extra-patrimoniais ligados à personalidade, nada obsta a que, premido pelas necessidades práticas de ressarcir a vítima de violação de outros direitos extra-patrimonais, se supere a dicotomia do dano. 4. Conclusão Discute-se hoje a abertura do leque de funções relacionados ao instituto da responsabilidade civil. Do primitivo objetivo de alcançar a restauração do “status quo ante”, tem- se hodiernamente a responsabilidade civil como instrumento de indução de comportamentos conformes à ordem jurídica, seja inibindo a prática de determinados atos, seja induzindo a 9 SEC. 41.008 [4HQ+j. LIMITATION ON AMOUNT OF RECOVERY. (a) In an action in which a claimant seeks recovery of exemplary damages, the trier of fact shall determine the amount of economic damages separate/y from the amount of othercompensatory damages.(EXEMPLARY DAMAGES. http://www.tex-lit.org/advocate/1402_154.PDF ) Disponível em 13/12/2004. Veja também: THE PUNITIVE DAMAGE EXCLUSION AND MOTOR CARRIER'S INSURANCE IN ALABAMA. F. Lane Finch, Jr. Em http://www.adla.org/finch01.html (13/12/2004). 11 prevenção e o comportamento minimizador do risco. À função restitutiva da responsabilidade civil acrescente-se a função inibitória e mesmo didática do instituto. Há até quem advogue a aplicação da responsabilidade civil antes do aparecimento do dano, como medida preventiva10. Entretanto, a categorização teórica clássica da indenização tem se restringido, na doutrina nacional, a apenas duas espécies bem definidas: os danos materiais, i.e., oriundos de um prejuízo pecuniário ao lesado, cuja indenização tem caráter restitutivo, e os danos morais, causados, segundo majoritária doutrina nacional, pela violação a direito de personalidade, e com caráter nitidamente compensatório. Dentro deste horizonte tem se movido ampla doutrina e jurisprudência nacionais. Não há previsão normativa específica para indenização por qualquer ato ilícito, mas apenas para os que causarem dano ao lesado, nos sentidos entendidos supra. A conseqüência disto é que, em se violando, por exemplo, direito fundamental não ligado à personalidade, tem-se por impossível qualquer penalização de natureza civil dissuatória e exemplar do lesante de tão gravoso ato. A responsabilidade civil por ato ou omissão não prescinde da ocorrência de um dano que, segundo a letra da lei, pode ser “exclusivamente moral” (art. 186 da Lei 10.406/02). O dano, pelo teor do texto, e numa interpretação meramente gramatical, somente pode ser material ou moral, excluindo da categoria de dano, qualquer outra violação a direito. Historicamente, a díade material-moral, na esteira do fenômeno da evolução dos conceitos jurídicos, é passo sucessivo do reconhecimento apenas das violações de natureza patrimonial, a se abarcar a história recente. A própria construção do conceito de dano moral e, mais recentemente, sua associação com os direitos de personalidade evoluíram paulatinamente ao longo do Século XX, de modo que é recentíssima esta associação plena entre elas. Com a admissão do dano moral, a responsabilidade civil deixou de ter função meramente restitutiva das posições patrimoniais (pecuniárias) entre os sujeitos de direito, para 10 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Tendências atuais da responsabilidade civil in: Revista Brasileira de Direito Comparado. n.4, 1o.sem/1994, pp. 95-101. 12 abarcar função compensatória, de consolo, do lesado ante interesses não economicamente mensuráveis. Tal flexibilização da aplicabilidade clássica do instituto da responsabilidade civil abriu as portas para estender sua incidência a outras funções, tal como a de inibição da prática do ato ou atividade danosos, o que já está consolidado na experiência jurídica estrangeira com alguns avanços. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos fundamentais em sua íntima associação com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana também milita em favor de uma atuação inibitória à violação de tais direitos, independentemente de serem relacionados à personalidade. Conjugando ambos os argumentos, a nosso ver os mais evidentes, não há justificativa alguma a obstar a releitura do conceito de dano, para desentranhá-lo da sua heterogeneidade conceitual para a unidade a partir da qual suas espécies possam ser deduzidas de modo claro. Por esta proposição, o ato ilícito, na sua concepção ponteana como pura e simples violação de direito subjetivo, confundir-se-á com o próprio dano. Se o dano passa a ser tomado, na sua acepção mais simples, como violação a direito – qualquer direito –, tomando-se o dano moral e o material apenas como espécies não taxativas de violação a direito subjetivo, fica mais direta a abordagem aqui impressa. Ao reler o conceito de dano, tendo-se em mente, no caso dos direitos fundamentais, aos argumentos expostos supra, é mister reconhecer-se a obrigação de indenizar o violado em quaisquer de seus direitos desta categoria. Entretanto, como já se observou, todo avanço no conhecimento cria suas próprias aporias. É como o curto cobertor do ser mitológico que, ao cobrir a cabeça, descobre os pés e vice versa. 13 Se todo ato ilícito confunde-se com o dano, que dizer de alguém que atravessa terreno alheio sem autorização? Cometeu ato ilícito, sem dúvida, mas não tendo causado prejuízo material, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, não cria obrigação de indenizar. Como já referido, apenas danos morais tangem a esfera dos direitos fundamentais, restringindo a norma indenizatória a apenas parte dela: “Considera-se, comumente, que os direitos da personalidade, globalmente considerados, enquadram-se na categoria dos direitos fundamentais.11” Entretanto, a se desejar uma aplicação dissuatória/inibitória à violação a qualquer direito fundamental, outra não pode ser a alternativa do que estender o conceito de dano a qualquer violação da categoria mais ampla. Em outro trabalho propusemos análoga aplicação da responsabilidade civil com finalidade dissuatória, nos casos em que a prática do dano é reiterada, o que induz ao raciocínio de que na balança do custo x benefício, vale a pena o risco da condenação à indenização12. Não se está aqui defendendo tese nova, a própria experiência jurídica européiajá tende para este âmbito de modo bastante claro: “É fato que, no continente europeu, a responsabilidade delitual esteja caminhando para uma função concretizadora dos direitos fundamentais13.” Desta forma, além dos direitos fundamentais já protegidos pela norma indenizatória (v.g., dano ambiental e violação a direitos de personalidade), a se abraçar a presente posição ter-se-á a possibilidade jurídica de pleitear indenização por agressão a qualquer direito fundamental, independentemente de sua vinculação com os direitos de personalidade. 11 POGREBINSCHI, Thamy. A construção de um direito à vida digna in: Revista Direito, Estado e Sociedade. N. 13. Edição Eletrônica. Disponível em: http://www.puc-rio.br/direito/revista/online/rev13_thamy.html (05/10/2004). 12 ANDRADE NETO, Carlos Gonçalves de. Responsabilidade Civil e Justiça Distributiva. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco: 2003 (não publicado). 13 Cf. CANARIS, Claus-Wilherm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 21. 14 Uma releitura do conceito de dano para abranger categorias de direitos não vinculados à personalidade mas erigidos direitos fundamentais é mais do que justificável. É até mesmo contraditório se valorar direitos de personalidade (subespécie de direitos fundamentais) de tal sorte que justifiquem uma satisfação pecuniária, e não se atribuir a mesma dignidade à categoria inteira. Equivaleria a dizer que os direitos de personalidade são diretos fundamentais “mais importantes” na escala valorativa do ordenamento jurídico- constitucional, o que não se sustenta pelos seus próprios méritos. Os efeitos práticos são previsíveis. A se aplicar tal sanção, o Estado, como destinatário maior dos imperativos de tutela e proibições de intervenção se tornaria alvo mais freqüente das conseqüências dos seus próprios erros, sem embargo da igualmente imperiosa eficácia horizontal dos direitos fundamentais14. Que o bem ambiental (ou mais precisamente, o direito a um meio ambiente equilibrado) é direito fundamental, disto já discorreu longamente a doutrina: “A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, visa a tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana.”15 Uma vez que o bem ambiental é considerado como direito fundamental (materialmente fundamental, para ser mais preciso), sua violação constituiria-se numa violação a direito fundamental, logo indenizável, resolvendo assim a aporia proposta no início do presente trabalho. 14 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 353. 15 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 58. 15 Bibliografia ANDRADE NETO, Carlos Gonçalves de. Responsabilidade Civil e Justiça Distributiva. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco: 2003 (não publicado). CANARIS, Claus-Wilherm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2003. DESSAREGO, Carlos Fernández. Hacia uma nueva sistematizacíon del daňo a la persona in: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: RT, a. 20, n. 75, jan-mar/1996, pp. 5-16. ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de obligaciones. 3. ed. Vol. 2. Doctrina Especial. 2ª parte. Barcelona: Bosch, 1966. FINCH, F. Lane: THE PUNITIVE DAMAGE EXCLUSION AND MOTOR CARRIER'S INSURANCE IN ALABAMA. http://www.adla.org/finch01.html Disponível em 13/12/2004. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Tendências atuais da responsabilidade civil in: Revista Brasileira de Direito Comparado. n.4, 1o.sem/1994, pp. 95-101. KRELL, Andréas Joachim. Concretização do dano ambiental: objeções à teoria do risco integral. In: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1720. Disponível em 11/01/2005. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito das Obrigações. Brasília: Brasília Jurídica:1999. LORENZETTI, Ricardo Luis. El sistema de la responsabilidad civil: una deuda de responsabilidad, un crédito de indemnización o una relación jurídica? in: AJURIS, a. XXII, n. 63, Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul: 1995, pp. 166- 198. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. MARTINS-COSTA, Judith Hofmeister. O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro in: Revista de Informação Legislativa, v. 139, Brasília, 1998, pp. 5-22. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações – 1a parte. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1977. 16 NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporâneos da responsabilidade civil, in: Revista dos Tribunais, ano 88, vol. 761, março 1999, pp. 31-44. POGREBINSCHI, Thamy. A construção de um direito à vida digna in: Revista Direito, Estado e Sociedade. N. 13. Edição Eletrônica. Disponível em: http://www.puc- rio.br/direito/revista/online/rev13_thamy.html (05/10/2004). SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. SIMPSON, John E.: EXEMPLARY DAMAGES. http://www.tex- lit.org/advocate/1402_154.PDF. Disponível em 13/12/2004. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 17
Compartilhar