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Aula 23 - Crise do Regime Servil e Abolição do Tráfico - Prado Jr. C.

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Crise do Regime Servil e Abolição do Tráfico 
 Bruno Gabriel Witzel de Souza 
Caio Prado Jr 
 
 Caio Prado discute no presente artigo a evolução histórica que conduziu ao fim do tráfico negreiro, com 
conseqüente desarticulação de todo o regime de trabalho compulsório no Brasil. Uma posição característica do 
paradigma pradiano é justamente observar a inorganicidade da massa escrava frente aquele processo, que lhe tocava o 
mais diretamente possível; se é verdade que os escravos, em algumas circunstâncias participaram de movimentos de 
rebelião, despertando com isso grande terror entre as classes dominantes, é também fato que sua acompanharão a luta 
muito debilmente (contrapor a idéia levantada pela historiografia moderna da participação efetiva do escravo na luta 
contra a escravidão e desta instituição posta não apenas pelos senhores, mas resultante de uma interação entre o 
escravo e o senhor). Tal inatividade dos negros pode ser explicada pelo afluxo constante de escravos, que 
desarticulava possíveis relações estabelecidas por aqueles que tivessem sido desembarcados no Brasil há mais tempo, 
e pela não rara existência de conflitos entre as diversas nações africanas, cujos membros eram trazidos ao país como 
escravos. 
 A opinião do autor é que a escravidão gradualmente perde “base moral” no país, embora isto não signifique, 
de início, a busca efetiva pela abolição daquela instituição de trabalho que servia aos interesses das classes dominantes 
política e socialmente. De fato, a escravidão recrudescerá após a Independência, quando as classes dos proprietários de 
terra finalmente logram uma participação política maior, ao mesmo tempo em que crescia no país o sentimento 
antiescravista: ao mesmo tempo em que a escravidão é condenada moralmente, é justificada pela necessidade 
econômica de sua permanência. 
 Acompanhar os motivos que levaram a esta perda de base moral da instituição escravista, no entanto, explica 
como a escravidão foi ruindo gradual e lentamente ao longo de todo o século XIX. 
 Em primeiro lugar, soava estranho àquela nação recém-Independente manter uma instituição escravocrata. 
José Bonifácio fala com clareza da necessidade de se formar uma nação unida e como isto se mostrava complexo num 
país como o Brasil, onde havia uma dicotomia do grau daquela gerada pelo escravismo. 
 O segundo fator que fez ruir a “base moral” da escravidão foi a desarticulação contínua do tráfico negreiro. O 
fim do abastecimento externo de negros teria, por uma questão quase que simplesmente algébrica, de acabar com a 
escravidão: como os índices de crescimento vegetativo dos escravos eram muito baixos (seja pela desproporção entre 
homens e mulheres escravos importados, seja pelas condições de vida), o contingente escravo só poderia manter-se 
pela importação; estancada esta, o fim da própria escravidão era simples questão de tempo. Assim, “o que as 
contingências históricas destinam ao desaparecimento não tarda em perder sua base moral”. 
 Prado acompanha, então, o processo que levou à extinção do tráfico negreiro. O ponto principal de sua 
argumentação é que foi a pressão inglesa a principal responsável pelo término do comércio negro: impulsionada por 
suas novas características econômicas, não podia coadunar-se com aquela forma de organização econômica decorrente 
da escravidão, tanto que a abolira em suas próprias colônias já em 1807. Em nota em capítulo posterior, o 19, Prado 
afirma que “[...] o capitalismo é incompatível com a escravidão; o capital, permitindo dispensá-la [a escravidão], a 
exclui. É o que se deu com o advento da indústria moderna”. 
 Em 1810, no tratado de paz e amizade com Portugal, os portugueses aceitaram realizar o tráfico apenas a 
partir de suas próprias colônias na África. Aos ingleses, ficava garantido o direito de aprisionar a carga de navios que 
afirmassem advir de colônias inglesas. Como era muito difícil provar a origem do negro, a Inglaterra praticou 
arbitrariamente o confisco de negros em navios portugueses. 
 Em 1815, por conta do Tratado de Viena, os ingleses aceitaram restituir trezentas mil libras aos portugueses 
como compensação pelos abusos realizados frente à lei de 1810, mas proibiram qualquer tráfico ao norte do Equador. 
A situação de fato repetiu-se à de 1810: arbitrariedade dos navios ingleses na polícia marítima que faziam aos navios 
portugueses. Na seqüência, em 1817, tiveram os ingleses aprovada a lei de visita, pela qual podiam entrar em navios 
portugueses para revista em busca de negros escravos; como o tráfico ainda permanecia muito lucrativo, não era raro 
que os capitães portugueses lançassem algumas cargas de negros ao mar quando avistavam navios de policiamento 
ingles: se perdiam o lucro da viagem, ao menos não tinham contra si quaisquer provas incriminadoras. 
 Se é verdade que estas medidas tenderiam a diminuir vez ou outra os lucros dos traficantes, não é fato que 
tenham diminuído o tráfico: à época, chegou-se ao Brasil mais de 40.000 escravos por ano, um número nunca dantes 
alcançado; e mais, na última década de tráfico legal, a de 1850, este número saltaria para os 50.000 negros/ano. Assim, 
até a segunda ou terceira década do século XIX, aquele sentimento antiescravista ainda não havia sido difundido no 
país porque as circunstâncias históricas permitiam que o tráfico prosseguisse sem problemas. 
 Em 1822, conquistando a independência, surgiu ao Brasil a necessidade do reconhecimento internacional. A 
aproximação do país com a Inglaterra seria condição necessária para que tal reconhecimento pudesse espalhar-se pela 
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Europa. Assim, ao passo que os ingleses intermedeiam o reconhecimento internacional da nova nação, cobram 
medidas efetivas para o fim do tráfico: em 1826, o país compromete-se a proibir o tráfico dentro de três anos; em 
1831, assina uma lei que o proíbe, mas que para Prado é simples letra morta. 
 Neste mesmo ano, 1831, com a abdicação de D. Pedro I, chega ao poder a classe dominante cujos interesses 
eram os que estavam mais ligados à manutenção do trabalho escravo: chegam ao poder os grande proprietário de terra. 
Daí se explica a oposição que o Parlamento brasileiro fará às pressões inglesas para que o tráfico termine de fato e não 
apenas na lei; a cláusula dos indícios, que permitia à Inglaterra incriminar um navio se este apresentasse algumas 
características de navio negreiro (assim, seus proprietários poderiam lançar os negros ao mar, mas não poderiam sumir 
com estas outras provas), foi sumariamente negada pelo Brasil. 
 Aos poucos a situação agrava-se. Apercebendo-se que suas medidas não surtem efeito e que o Brasil não está 
disposto a findar efetivamente com o tráfico, a Inglaterra assume para si as rédeas da questão: em 1845, ano em que 
terminaria seu direito de visita aos navios brasileiros para busca de negros, proclama a Lei Bill Aberdeen, a qual 
declara ilícito o tráfico de negros por qualquer nação, de modo que se permitia a qualquer navio inglês aprisionar e 
tratar como pirata qualquer embarcação, de qualquer nação, que tivesse vestígios de ser uma nave escravista. 
 Neste contexto, a perseguição aos navios brasileiros acentua-se. Além disso, não raro, ferem os ingleses a 
autonomia territorial brasileira. Não tarda para que surja no Brasil um sentimento verdadeiramente anti-britânico, o 
que, naquele momento de inflexão frente à percepção que se fazia do tráfico, tornava-o “[...] quase uma questão de 
honra nacional”. 
 Duas circunstâncias alterariam a posição brasileira frente ao tráfico. Em primeiro lugar, a tensão com a 
Inglaterra crescia continuamente e Bill Aberdeen era praticamente uma declaraçãode guerra antecipada; sabendo não 
poder sustentar um conflito armado com uma nação como a Inglaterra, surgia como necessário ao país atender-lhe as 
exigências e findar definitivamente o tráfico. Em segundo lugar, temos um interesse interno importante a considerar: 
os fazendeiros e proprietários escravistas, tendo armazenado um estoque relativamente grande de mão-de-obra escrava 
naqueles últimos anos de grande importação de negros, viram suas dívidas frente aos traficantes crescer 
consideravelmente; assim, as medidas que acabaram sendo tomadas pelo governo brasileiro contra eles, como a 
expulsão de notórios traficantes portugueses de negros a partir de 1851, foram muito bem recebidas, sobretudo pelos 
escravistas mais endividados. Sob este novo contexto, a “base moral” do tráfico fora finalmente alterada e, em 1851, a 
Lei Eusébio de Queiroz vem findar de fato o tráfico negreiro. 
 Prado conclui que este período foi de profunda importância pela inflexão que representou na história 
brasileira. O fim do tráfico “põe em cheque o conjunto daquela estrutura assente na produção extensiva de gêneros 
tropicais para o comércio internacional”, ou seja, apesar de ainda adaptar-se às novas circunstâncias e manter até a 
contemporaneidade algumas daquelas características que estruturaram a sociedade colonial, o Brasil ingressava agora 
em um novo período. Findo o tráfico, grandes quantidade de recursos financeiros e humanos puderam ser alocadas 
para outras atividades: desenvolver-se-ão largamente os negócios, o comércio e a indústria no pós-extinção do tráfico; 
o Brasil envolver-se-á, pela primeira vez, em uma onda financeira que terminará com as crises de 1857 e 1864. Tudo 
isto evidencia que uma nova dinâmica, ainda que assentada em bases antigas sob diversos aspectos, configurava-se na 
economia brasileira.

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