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, .., HISTORIA GERAL DA ARTE NO BRASIL ú VOL. I I t \ I I INSTITUTOWALTHERMOREIRASALLES FUNDAÇÃODJALMAGUIMARÃES SãoPaulo1983 BRASIL SUMÁRIO 8 ARTECONTEMPORÂNEA 499Walter Zanini Introdução 501 . DASORIGENSDOMODERNISMOÃSEMANADE1922 8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista 502 8.2 As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais507 8.3 As primeiras exposições modernistas 511 8.4 Anita Malfatti, a precursora 513 8.5 A contribuição de Di Calvalcanti, Vicente do Rego 520 Monteiro e Victor Brecheret 8.6 O Futurismo em São Paulo 528 8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio 530 ( 8.8 Os artistasplásticosna Semana de Arte Moderna 533t EVOLUÇÃODOMODERNISMO,DEPOISDASAM,ATÉ1930 8.9 Desdobramentos e difusão do Modernismo 541 8.10 Deslocamentos dos artistasda Semana para Paris547 8.11 Os primeiros anos de Segallno Brasil 55A 8.12 Tarsilado Amaral: do pau-brasil à antropofagia 556 8.13 Outros artistasde experiência européia 560 8.14 Goeldi, Nery eoutros artistasativos no Rio 562 TRANSFORMAÇÕESARTÍSTICASDE 1930AO PERÍODODA SEGUNDA GUERRAMUNDIAL 8.15 MIrmação do Modernismo no meio artístico alargado568 8.16 Novas fasesdos pioneiros 574 8.17 O "salão revolucionário' , 578 8.18 Agrupamentos de artistasno Rio e SãoPaulo 579 Núcleo Bernardelli 579 ASPAM 580 OCAM 582 O Salãode Maio 583 O Grupo Santa Helena 585 A FAP e o sindicato 586 8.19 A obra de Portinari 588 8.20 Síntese da contribuição dos artistasdo Rio 596 Guignard e Pancetti 596 Artistas do Núcleo Bernardelli 599 Artistas influenciados por Portinari, quase sempre602 Burle Marx 605 Artistas europeus 605 Escultoresdo período 609 Bruno Giorgi 610 Maria Martins 613 A arquitetura eo programa do edifício do 614 Ministérioda Educação 8.21 Sínteseda contribuição dos artistasde São Paulo 615 O meio paulista 615 Fláviode Carvalho 615 Novosnomes 618 Ernestode Fiori 621 Os santelenistas: Bonadei, Graciano, Pennacchi, 623 Rebolo, Volpi, Zanini e outros Posiçõesdiversificadas 630 Os escultores 634 8.22 Aspectosda arte em váriosEstados 637 AINTEGRAÇÃONOCURSOINTERNAClON1\LDAARTE 8.23 A aderência ao universo das formas abstratas 641 8.24 Transformações do meio ambiente 643 8.25 Os artistassurgidoscom a exposiçãodos' 19' 649 8.26 Arte concretae neoconcreta no Brasil 653 8.27 Outras tendências construtivase diferentes morfologias abstratas 678 O interesseconstrutivo em Volpi e outros artistas 678 A abstração lírica 689 O Expressionismoabstrato 693 As tendências do Expressionismoabstrato na gravura703 A escultura e a abstração 708 8.28 Engajamentos na arte social 709 8.29 A perseverançada figuração 715 8.30 Aspectosda arte em capitais regionais 726 ASVARIÂVEISARTÍSTICASNASÚLTIMASDUASDÉCADAS 8.31 Os desdobramentos da arte e o quadro localde atividades728 8.32 O movimentoartísticodiversificado. 734 8.33 Contribuição ao níveldo objeto e da arte desmaterializada739 As novasfigurações 739 A surrealidade presente 758 O ideário construtivo 763 Asmúltiplas linguagens no desenho e na gravura 764 Variantes da expressãoescultural 769 Desmaterialização e reanimaão 776 Os processosintermediais 785 8.34 Aspectosda arte em váriosEstados 802 A caricatura 806 Arte incomum 808 A visãoingênua e popular 810 CONCLUSÃO 812 Notas 813 Bibliografia 820 I I 10 it FOTOGRAFIA 867 Boris Kossoy Introdução 869 A invenção da fotografia 870 A descobena isoladada fotografia no Brasil 872 A chegada e a disseminação da daguerreotipia no Brasil 874 Os novos processosfotográficose a expansão 876 do retrato fotográfico A documentação fotográfica 878 A fotografia no Brasilnas primeiras décadas do séculoXX 882 Tec:nologianacional: uma tentativa 883 O "lambe-lambe" 884 O fotoclubismo no Brasil 884 A fotografia comercialnos meados do século 886 A fotografia impressa 888 A evoluçãoda fotografia nas últimas décadas: panorama 892 internacional e suas repercussõesno Brasil A opção pela fotografia: o modismo e a autenticidade 893 O ensino da fotografia 893 Exposições:a fotografia ganha maior espaço. Avolumam-se 894 as mostras A fotografia é objeto de publicação e divulgação 896 Movimentos fotográficos 897 Temas e tendências: alguns exemplos significativosda 897 fotografia brasileiranos últimos anos Brasile América Latina: uma problemática semelhante 907 Fotografia e história 908 Fotografiae a documentação do patrimônio cultural 909 O patrimônio fotodocumental brasileiroe a 910 preservaçãoda memória nacional Notas 911 Bibliografia 913 ., 9 ARQUITElliRA CONTEMPORÂNEA 823Carlos A. C. Lemos " 9.1 Introdução 825I 9.2 As primeiras obras modernas 827 I I 9.3 A introdução do funcionalismo de LeCorbusier 837 9.4 A arquitetura moderna carioca 840 9.5 Os tempos do amadurecimento 851 4. 9.6 A arquitetura paulista 853 9.7 Panorama atual 861 Notas 864 Bibliografia 865 11 11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6 12 13 13.1 13.2 13.3 13.4 13.5 13.6 13.7 13.8 13.9 - DESENHO INDUSTRIAL Júlio Robeno Katinsky Introdução Antecedentes do An-Nouveau A crítica inglesa A expansão tecnológica A criatividade não institucionalizada O An-Nouveau 1880-1914 Período entre guerras 1918-1940 Período da "guerra fria" 1945-1975 Brasil 1910-1980 Bibliografia COMUNICAÇÃO VISUAL Alexandre Wollner Pioneiros da comunicação visual Bibliografia ARTE AFRO- BRASlIElRA Mariano CarneifO da Cunha Introdução Evolução da escultura africana Compreensão da ane africana Esboço histórico: o elemento negro nas anes plásticas Ane afro-brasileira: definição As primeiras coleções conhecidas: sua cronologia relativa Bidimensionalidade dos objetos e o problema do "sincretismo" Análise de alguns dos exemplares mais antigos: continuidade estilística e sentido cultUral Oxês de Xangô A estatUária dos Ibeji A visão do mundo subjacente à iconografia dos oxês de Xangô Estatuária de Exu Os protótipos africanos da estatUária de Exu Os primeiros exemplares brasiléuos da estatuária de Exu Exus de ferro: reformulação de uma estatUária africana em madeira As etapas evolutivas da estatUária de Exu no Brasil Técnica e estilo da estatUária de Exu Sentido cultUral da iconografia de Exu 915 917 918 918 919 919 923 926 930 931 951 953 955 971 973 975 978 984 989 994 996 997 999 999 1002 1003 1004 1005 1006 1008 1009 1011 1013 13.10 13.11 13.12 14 14.1 14.2 14.3 14.4 14.5 14.6 14.7 14.8 15 15.1 15.2 15.3 15.4 15.5 15.6 Parafernália das feiticeiras:expressãode um ritUalarcaico ligado ao culto das "mães ancestraisnagô-yorubá' , O que sãoasmáscarasGueledé Continuidade provávelde convençõesformais africanasligadasà representação natUralista na arte brasileira A emergência de artistase de temas negros a partir das décadas de 1930e40 APÊNDICE:Artes corporaise decorativas, jóias, jóias crioulas, alfaias,cestaria, cerâmicae marroquinaria, vestimenta Notas Bibliografia ARTESANATO Vicente Salles Introdução Empresa vitoriosa Adestramento da mão de obra A Corporação colonial Rebaixamento e dispersão do trabalho manual Uma colônia fechada Posicionamento conceitUal Anesanato brasileiro-seuuniverso Notas Bibliografia ARTE EDUCAÇÃO Ana Mae Tavares Bastos Barbosa Introdução AtUalidade da MissãoFrancesa Os liberaiseo ensino de arte anti-elitista Influência deJohn Dewey Arte para criançase adolescentescomo atividade extracurricular Ane para liberação emocional Notas Bibliografia Índice Onomástico 1014 1016 1017 1022 1029 1030 1033 1035 1037 1040 1041 1045 1046 1048 1050 1056 1071 1073 1075 1077 1078 1081 1085 108Y 1090 1095 1095 1097 ..., Arte contemporânea - . . . 8 . .. " '. Walter Zanini t . I 500 ARTE CONTEMPORÂNEA PARTE I DAS ORIGENS DO MODERNISMOÂ SEMANA DE 1922 São Paulo, núcleo do movimento ":l0deçnista As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais Asprimeiraexposiçõesmodernistas. Anita Malfatti, a precursora A contribuição de Di Cavalcanti, Vicénte do Rego.Monteiro e Victor Brecheret O FutUrismo em São Paulo A abenura no ambiente conservador do Rio Os artistas plásticos na Semana de Arte Moderna I PARTE 11 EVOLUÇÃO DO MODERNISMO, DJ;:P9IS DA SAM, ATÉ 1930 Desdobramentos e difusão do Modernismo Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris Os primeiros anos de Segall no Brasil Tarsila do Amara!: do pau-brasil à antropofagia Outros artistas de experiência européia Goeldi, Nery e outros artistás ativos no Rio . " Introdução . Os novos ideários da arte que se impuseram no Brasil pelo desenrolar do século XX são objeto desta parte do livro. Desde o movimento modernista (das raízes à Semana de Arte Moderna e sua evolução até 1930) encadeiam-se os estudos referentes a períodos cronológicos quase sempre bem demarcados por décadas. É verdade que no início do decênio de 1930 delineia-se uma fase que se alonga aos anos da Segunda Guerra Mundial. ou mesmo um pouco além. Cada uma das três décadas seguintes. entretanto, apresent.a fortes peculiaridades. Procurou a abordagem dessas etapas distintas colher nas linhas gerais tanto o trabalho individual quanto a animação de grupos ou tendências. assim como as características do sistema só- cio-cultural da arte aqui existente. A análise - por entre as dificuldades de pesquisa já apontadas no prefácio do livro - busca esclarecer os aspectos principais que marcam a atividade artística criadora no diversificado meio brasileiro e ao mesmo tempo mostrar os dados que a ligam ao contexto inter- nacional. 501 PARTEIII TRANSFORMAÇÕESARTÍSTICASDE 1930AO PERÍODODA SEGUNDA GUERRAMUNDIAL Afirmação do Modernismo no meio artístico alargado Novas fases dos pioneiros O "salão revolucionário" Agrupamentos de artistas no Rio e São Paulo A obra de Portinari Síntese da contribuição dos artistas do Rio Síntese da contribuição dos artistas de São Paulo Aspectos da arte em vários Estados PARTE IV A INTEGRAÇÃO NO CURSO INTERNACIONAL DA ARTE A aderência ao universo das formas abstratas Transformações do meio ambiente Os artistas surgidos com a expos'içãodos '19' Arte concreta e neoconcr(~tanb Brasil Outras tendências construtivas e diferentes morfologias abstratas Engajamentos na arte social A perseverança da figuração. Aspectos da arte em capitais regionais PARTE V AS VARIÃVEIS ARTÍSTICAS NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS OSdesdobramentos da arte e o quadro local de atividades O movimento artístico diversificado Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada Os aspectos da arte em vários estados CONCLUSÃO '\ ~ Das origens do Modernismo à Semana de 1922 8.1 SãoPaulo, núcleo do movimento modernista Desde o segundo decênio deste século alguns fatos tornaram-se indicativos do aparecimento de uma nova situação cultural no Brasil. Em reação a antigos e sedimentados estratos de nossas artes e letras. tributárias. ainda depois da Primeira Guerra Mundial. de valores já esgotados em fins do século XIX na Europa - sempre centro das atenções dainte//igentsiada nação - afirmou-se gradual- mente uma orientação revolucionária de sensibilidade e de idéias resultante nos anos posteriores em sucessivas e agudas manifes- tações que configuraram de vez o fenômeno conhecido comoModer- nismo.Entre essas manifestações aparece, como um marco decisivo 502 de arregimentação e ao mesmo tempo com toda a força de um sím- bolo, a Semana de Arte Moderna. Nela demonstrava-se o quanto era imperiosa e urgente a renovação mental do meio. A transformação pretendida embasava-se na absorção das tendências mais avançadas da cultura e da arte do Velho Mj.mdo, havendo consciência da neces- sidade de introduzir nessa atualização um conhecimento aprofundado da realidade nacional. Embora suas não poucas contradições, a Semana de 1922 representou. ao aglutinar esforços 'dispersos em várias áreas poéticas e valendo-se do escândalo, o primeiro gesto coletivo de rejeição do passadismo em que aqui remansavam a expressão icônica, musical e verbal. E mesmo indo além de tudo isto, ela nãp deixava de exprimir anseios mais vastos que idealizavam o país integrado ao diapasão das sociedades evoluídas. A partir de então. outros desdobramentos cpnsolidaram o Modernismo até o final da década, quando, em sincronia com ocrackde 1929 e '6 advento da República de 1930, inaugurou-se um outro tempo, que aproveita o impulso dos pioneiros mas que decorre em função de coordenadas próprias. No transcorrer dos anos 20 registraram-se movimentos que se aproximam do espíri- to de renovação da Semana também em outras capitais do hemis- fério. a exemplo daqueles dirigidos pelo Sindicato de Artistas Revolu- cionários do México (1922) e o grupo da revistaMartin Fierrode Buenos Aires (1924). Essa tomada de consciência das artes e das letras era contem- porânea de uma sociedade penetrada de perseverante espírito positi- vista. dominada politicamente pela velha e poderosa oligarquia lati- fundiária - sociedade que, de. um modo geral. mostrava-se cultural- mente conformista, apegada a modelos estéticos europeus pouco renovados, que a compraziam desde o Império. O propósito dos artis- tas. como dos literatos da primeira hora modernista. coincidia com a industrialização que se acelerava - impelida pela massa de imigran- tes fixados no sul do país - e encontrava ,correspondência, pela déca- da de 1920. no ânimo político contestatário da classe média em ascensão e nos ideais de reforma moralizante do tenentismo, diante do desajuste e o desgaste do regime instituído em 1889 - todas / causas desencadeadoras dos rumos ideológicos responsáveis pela Revolução de 1930. Não faltam interpretações que atribuem decidi- damente à Semana de Arte Moderna méritos de estimulação de um discernimento objetivo dos problemas substanciais de auto-identifi- cação de que era carente a nação e ela, que assimila as tensões da sociedade, certamente os pode reivindicar pela natureza e alcance de seus conceitos. Entretanto, antes dos acontecimentos intelectuais e artísticos da Semana e do desenrolar dos vários e importantes episódios políticos da década de 1920, nos anos que antecederam o evento de 1922, sobretudo a partir do período da Primeira Guerra, todo um processo de abertura tomava consistência em setores do país, reduzindo o arcaísmo confrangedor herdado das velhas estruturas sócio-econômi- cas em que fora longamente moldado. No Brasil do segundo decênio do século XX fortalecia-se o sistema capitalista como conseqüência do conflito mundial. Um dos efeitos maiores deste fato foi o desenvol- vimento fabril concentrado nos próprios recursos manufatureiros locais. Era ao mesmo tempo o instante em que se acentuava a penetração das idéias socialistas, sucedendo-se as reivindicações proletárias que em 1922 resultavam na fundação do Partido Comu- nista. Este industrialismo incipiente, mas que deixava longe os índices qualitativos do fim do Império e começo da República, ocorre com muito maior ênfase em São Paulo, para onde se deslocara o eixo de gravidade econômica do país e a~a-se inextricavelmente ligado à propulsão das concepções de tendência modernista. Considerar São Paulo florescente pela riqueza do café espalhado pelo interior do Estado, acrescido vertiginosamente em sua população (de 240 mil habitantes em 1910 passava a 500 mil em 1920). convulsionado pela construção e reconstrução imobiliárias, por empreendimentos financeiros e comerciais e, acima de tudo, pela multiplicação de oficinas e fábricás, é levar em conta desde logo os contrastes sócio-econômicos que passavam a se acentuar entre a província do sudeste - principalmente - e outras regiões do território nacional.Sob angulação mais vasta agravava-se a já considerável assimetria existente entre as cidades litorâneas, algumas também e mais sensivelmente atingidas pela explosão demográfica e o desen- volvimento industrial, do interior agreste e pobre posto à mostra pela obra de Euclides da Cunha. O fenômeno da rápida expansão da capital paulista assinalava-se pela complexidade de seus determinantes. A imposição da cidade, subvertendo a tradicional primazia do campo em toda a nação, era em São Paulo devida em grande escala às levas imigratórias que par- ticipavam de forma vital na criação de recursos de toda ordem, influindo na economia, nos costumes, na problemática das idéias. Por outras palavras, essa presença que transformava os Estados meridio- nais, trazendo nova contribuição à etnia brasileira, fazia-se fortemente sentir na dinâmica da sociedade e da sua cultura. Não a podemos perder de vista quando abordamos o fenômeno do Modernismo. Liga- do à lavoura cafeeira - que recuperava submersas energias de des- cendentes de antigas famílias bandeirantes e cuja intensificação, por entre os dramas das crises sucessivas que afetavam o produto, se fizera, ao lado de outros incrementos agrícolas, pelo braço do negro e do imigrante - o surto de industrialização que alterava radicalmente ( . 503 »:D ~noz-Irns::""o:D:»-zrn» 504 o velho burgo de Piratininga, sobretudo depois da Segunda Guerra, diferenciava sobremaneira São Paulo de outras cidades, como o Rio de Janeiro; capital da República, ou Belém, engrandeci da na fase efê- mera da exploração da borracha. Este quadro progressista será instigação decisiva para os moder- nistas do campo das letras, que o relacionavam às lições colhidas no agitado meio cultural europeu da época, principalmente a uma de suas vertentes mais prolíferas: o Futurismo, fundado em 1909, e toda a sua crença na civilização tecnológica. Preparado em São Paulo, a partir da segunda década, ampliando-se em direção ao Rio e contan- do com uma participação pernambucana, a corrente renovadora estendeu-se depois de 1922, nos seus aspectos literários, a outras cidades que, inicialmente mais ao norte que ao sul, recebiam o estí- mulo, enfrentando densos contextos de marasmo. Haviam permanecido muito influentes na pintura brasileira inter- secular o academismo derivado da ortodoxia neoclássica, as impreg- nações românticas e realistas, às quais faltara a vivencialidade históri- ca geradora dessas problemáticas e assimilações tardias da sensibi- lidade impressionista. Crisol de homens e instituições que o impu- nham como pólo de irradiação das diretrizes culturais do país, o Rio gerava para as provín~ias esses elementos colhidos no ambiente parisiense mais tradicionaT. Desde a fundação da Academia Imperial das Belas-Artes em1826,transformada em 1890 na Escola Nacional de Belas-Artes, reduto do ensino oficial das artes no Brasil. dali se disseminava a orientação aos estabelecimentos congêneres que, a longos intervalos, foram sendo instalados em diversas províncias: em 1877 na Bahia, a que se seguem, só muito mais tarde, as escolas de Porto Alegre (1908) ou Belém (1918). Em São Paulo não haveria ins- tituição como essa antes de 1925. Tornou-se até um truísmo. dizer que a longa ausência do ensino estatal na capital paulista lhe foi vantajosa na medida em "que a subtraía ao menos por esse lado, dos preceitos da estética de conteú- do e de soluções formais descompassadas com o seu tempo lógico. É claro que o academismo invadia solto o ambiente paupérrimo por outras vias. Mas aquele fato não deve ser descurado, inclusive na inversão que revela, quando se faz alusão à arquitetura moderna, a qual absolutamente nada poderia pretender da Escola Politécnica e que, afinal, na Paulicéia, se restringia a uns poucos representantes, ao contrário da incitação que essa área de estudos receberia no cír- culo, neste particular menos preconceituoso, da Escola Nacional de Belas-Artes'. Na deflagração da vaga modernista a inexistência de tra- dição no cultivo artístico em São Paulo é, portanto, dado ponderável e deve ser vinculada a todos os aspectos sociológicos resultantes do fundamental e recente cosmopolitismo personalizador da cidade. -É necessário insistir nas características culturais paulistanas, que permaneceriam por muitos anos ainda e~tabilizadas em sérias defi- ciências provinciais. Na vastidão do crescente espaço urbano, Sã~ Paulo se europeizava sobretudo à feição italiana desde os fins do sé- culo XIX, no ecletismo e depois no Art-Nouveau da arquitetura e da decoração (neste último estilo as melhores realizações pertenceriam, no entanto, a arquitetos de outras origens), nos hábitos, na própria miscigenação da língu.a. A cidade, em suma, na sua vivência, peculiarizada pelos contextos étnico-culturais de uma populaçãosu;- , l ,. , generis(com seus italianos, portugueses, alemães, espanhóis, sírios etc.). adquiria ares de capital, com edifícios públicos e residências de grande porte, a ereção de monumentos escultóricos e a urbanização c01T!áreas ajardinadas. Engrandecida e enriquecida, a cidade impri- miu um ritmo rápido às suas atividades culturais. A abertura do sole- ne Teatro Municipal (1911) assinalou nova data para a cultura institu- cional, provida, bem antes, de casas de espetáculos para peças teatrais, óperas e operetas, concertos musicais e outros eventos, sofrendo já a concorrência docinematógrapho.Um cinema artesanal, sobretudo ensaiado junto aos il41igrantes italianos, procurava sua oportunidade. As freqüentes exposições de arte adaptavam-se aos espaços improvisados no velho centro. Em 1911 esse entusiasmo já era muito acentuado, como prova o I Salão de Belas-Artes, feito nos moldes do Salão Oficial do..Rio. Já antes, em 1905, fundara-se a Pinacoteca do Estado, que até QSanos 60 não escaparia ao espírito. do conservadorismo.. Entre os mestres mais acatados que atendiam, no seu imobilis- mo, a uma clientela amante da pintura reprodutora do real, achavam- -se Benedito Calixto (1853-1927) ePedro Alexandrino (1856-1942). Ambos haviam estudado em Paris, Calixto com Gustave Boulanger (1824-88), Alexandrino com Antoine Vollon (1833-1900), O primeiro cultivou um repertório de temas religiosos e históricos, assim como a paisagem e a marinha, e o segundo tornara-se meticuloso pintor de naturezas-mortas. Fixando-se em São Paulo, Oscar Pereira da Silva (1867-1937), formado no Rio ainda nos tempos do Império e depois aluno de Bon- nat (1833-1922) em Paris, cultor neo-romântico de temas ternos ou de ênfase celebrativa, também correspondia àquelas expectativas. Numerosos eram desde então os artistas estrangeiros que por exten- sas temporadas ou definitivamente se radicavam em São Paulo, como acontecia em outras cidades das Américas. Os pintores Georg Fischer Elpons (1865-1939), Enrico Vio (1874-1960) e os escultores Ama- deu Zani (1869-1944) e William Zadig (1884-1952) de sedentários códigos visuais, como tantos outros seus colegas, exerciam também atividades de ensino, ainda não estudadas. Não faltavam ao núcleo de artistas, de predominância italiana, já compacto nos anos 1910- -1920, requisições para a decoração de edifícios públicos ou de resi- dências de famílias tradicionais e de imigrantes enriquecidos. Releve- se o papel do Liceu de Artes e Ofícios no aprendizado de inúmeros artistas e artesães qualificados. Dessa casa de ensino e do esforço autodidata surgiriam valores mais tarde afirmados. Passaram por seus bancos muitos estatuários e decoradores que adornavam a cida- de, tal como ainda em 1935 a viu severamente Lévi-Strauss, na "indi- gência pretensiosa das suas ornamentações", "agravada pela pobreza do trabalho graúdo: as estátuas e as guirlandas não eram em pedra mas sim em gesso pintado de amarelo a imitar uma pátina"2. O interesse em dar expressão cultural à cidade, até cerca de 1890 reduzida quase só à Escola de Direito e à suaemanação literária, expandia-se na busca de existência artística que compensas- se ou conjurasse o preponderante pragmatismo. Se na transformação urbana, em seu sentido monumental, fora dos mais salientes o papel do arquiteto e empresário Ramos de Azevedo (1851-1928) e o grupo móvel de arquitetos - incluindo muitos estrangeiros- que com ele 505 506 trabalhavam,na animação intelectual de São Paulo essa tarefa coube principalmente a um homem de carreira política, apaixonado pela cul- tura francesa, que adquirira gosto pelo colecionismo de obras de arte, e que se destacou na promoção de exposições e na obtenção de bol- sas para viagem de artistas ao exterior: o senador Freitas Valle. É ver- dade que o primeiro - profissional de rígida formação neoclássica, responsável desde 1886 por inúmeras obras importantes (iniciadas com o remanejamento e construção dos edifícios do Pátio do Colé- gio) - nas contingências de suas funções empresariais ou em incum- bências oficiais, também se interacionava ao meio de pintores, de escultores e, pela própria natureza do seu escritório de engenharia e arquitetura, a artistas decoradores. Mas coube a Freitas Valle, espírito não menos conservador, um desempenho constante e dos mais pres- tativos nesses aspectos. Caracterizou-o, ainda, a atividade de anfitrião de famosos encontros de artistas e intelectuais, de gerações e atitu- des diversas, na sua Vila Kirial. A aproximação fazia-se sob a égide do cidadão que enfeixava não raros poderes nas mãos, o que não deixa de ser já sintoma dos aspectos mecenáticos ou paternalistas que no futuro estariam no cerne da orientação de muitas instituições artísti- cas no Brasil. Freitas Valle patrocinou por anos a fio esse clima de convivência na sua casa de Vila Mariana, considerada "templo de arte" (Souza Lima), onde as estimulações não eram de sorte a induzir o contexto artísticoà alternativa renovadora de que necessitava. Outras forças, entretanto, emergiam nos contornos alargados de São Paulo. Dois artistas, principalmente, exerceram enorme influência na metamorfose operada no contexto antes de 1922: Anita Malfatti (1889-1964) e Victor Brecheret (1894-1955). Apoiados por alguns intelectuais e poetas, jovens como eles e ainda num estágio de inde- cisão entre estéticas declinantes e a experimentação, é da sua ligação íntima que tomará corpo o movimento modernista. Sua eclo- são na São Paulo industrializada e não fora dela foi explicada em 1942 por uma das figuras centrais do Modernismo, Mário de Andra- de, quando sublinhou os contrastes culturais existentes entre São Paulo e Rio. A primeira cidade - diz ele - "estava muito mais "ao par" que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o Modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província. Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: porto de mar e capital do país, o Rio possui um internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais moderna porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo conseqüente. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua políti- ca, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo"3. Ao levantar a complexa problemática da promoção da Semana, clímax da arregimentação de energias que já extrapolava São Paulo, Mário de Andrade aquilatava as distâncias que separavam as classes dirigentes de ambas as cidades em suas relações com a arte. Opunha a formação da ';alta burguesia riquíssima" do Rio, que não se achava preparada para "encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista", ao nível cultural da "aristocracia intelec- tuaI paulista"4. Esta, na sua empolgação pelo progresso civilizatório que atingia o Estado, considerou coerente o risco de trabalhar a favor da Semana de Arte Moderna.t verdade que foram somente alguns poucos homens dessa classe - à frente dos quais o escritor e homem de negócios Paulo Prado - a encorajar o evento. A ela coube essa solidariedade aos artistas e escritores que procuravam reagir ao "que era a inteligência nacional"s. Quanto a estes, em parte perten- ciam à mesma origem social ou então desfrutavam de inegávelstatus na comunidade - o que deixa patente as camadas de onde provinha a primeira geração do Modernismo brasileiro. Mas deve-se ressaltar a presença de imigrantes e descendentes no agrupamento de vanguar- da, os quais certamente nela introduziam inquietudes sociais próprias do seu meio, tese levantada por Flávio Motta nas suas reflexões sobre um artista mais antigo, Eliseu Visconti (1866-1944)6. Da mesma for- ma, é preciso lembrar os intelectuais estrangeiros, entre os quais muitos de formação anarquista, atuantes em São Paulo e outras cida- des, e cuja ideologia revolucionária não deixaria de ressoar no espíri- to inconformista mais geral do Modernismo, embora a dissidência deste viesse configurar-se em modelos exclusivamente estéticos.507 8.2 As fonteseuropéiase a buscade estimulantesnacionais A histórica recorrência da cultura brasileira às fontes européias ratificava-se uma vez mais nessa geração que aparecia disposta a con- testar paralisantes correntes nos primeiros dois decênios do século XX. Se permanecia o contributo francês, tradicionalmente primordial. ou- tras inserções salientes, como o já referido Futurismo, de procedência italiana, nas letras, ou o Expressionismo alemão, nas artes plásticas, alteravam a quase unicidade do apelo anterior. Mas a busca dramá- tica do paralelismo com a dinâmica do tempo internacional fazia-se com a atenção simultânea nos valores internos .do país, outrora objeto de transfigurações românticas e acadêmicas. A difícil procura de osmo- se entre universal e nacional estava, pois, no cerne da consciência sincrônica dos intelectuais modernistas (a preocupação com o nacio- nal era contudo menos generalizada entre os artistas plásticos). Nãç:>obstante as restrições de que se tornou passível o Modernis- mo brasileiro quanto à extensão e profundidade do corolário de experiências absorvidas no estrangeiro, à ausência de homogeneidade grupal e à margem de atraso na assimilação das vanguardas interna- cionais, nele tomava corpo um teor de essencialidade que, nos casos mais consistentes, voltaria as costas a todo o convencionalismo cul- tural daqui e do Continente Antigo, este defrontado desde o final do século XIX por um encadeamento de resolutas afirmações de indiví- duos e comunidades intelectuais e artísticas. Não cabe aqui senão breve aceno ao extraordinário clima de cria- tividade que marcou algumas capitais européias - particularmente Paris - num contexto de vida turvado em contradições sociais. Antes de 1914, deixados para trás Impressionismo e Pós-Impressionismo, 508 mas influente ainda o Art-Nouveau, cumprira-se uma etapa que revolu- cionava o entendimento aceito das linguagens plásticas que têm em Picasso (1881-1973)um nome maior. As artes plásticas, como a I,iteratura e a música, refaziam-se estruturalmente. Através do Expres- sionismo, do Cubismo, do Futurismo, das correntes abstratas e construtivas, da pintura metafísica - as primeiras três facções e a últi- ma já com um ápice alcançado no limiar da guerra - haviam-se difun- dido códigos visuais que projetavam um universo ajustado à complexa dinâmica da realidade contemporânea. Tratava-se de ruptura com cri- térios de representação herdados de longa data, ultrapassados pela prospecção de conceitos de espaço/tempo, equivalentes às for- mulações científicas pós-euclidianas. A dissidência dialética de Mareei Duchamp (1887-1968),entretanto só ao alcance do futuro, com a sua refutação da pintura retinal e a valoração primacial da idéia naarte, datava também do período de pré-guerra. Na anárquica postura Dada dos anos de conflito mundial e logo após, radicalizava-se uma proble- mática nihilista na crítica feroz aoestab/ishmentsocial e à arte. Nessa atmosfera de mudanças rápidas que alteravam no sentido visceral o conceito das artes e das letras ocidentais, permeavam influências do pensamento de Nietzsche, cujo individualismo enleia Expressionismo e Futurismo; de Freud, menos impregnante, mas cuja investigação do inconsciente repercute na literatura e artes visuais des- de os anos 20 - a ambas essas influências acrescentando-se outras, de particular significação, como foram as do materialismo histórico de Marx e do intuicionismo de Bergson. A divergência vigorosa dos repertórios artísticos tombados na entropia retórica, únicos reconhecidos com o direito de cidadania no acomodamento da alta sociedade européia, era fenômeno que se difundia pelo mundo e que chegava até aqui pelo segundo decênio do século, produzindo conseqüências similares de perplexidade e refu- tação. Esse conflito entre novos e passados princípios estéticos não poderia ser reduzido à simples reedição da querel~ hi.stórica entre anti- gos e modernos. A expressão artística procurava integrar-se a uma totalidade de consciência diante do mundo em crise desde muito antes da Primeira Guerra e sem mais condições de readaptação a velhos sis- temas de idéias e de estruturas sociais e políticas. Difundiam-se as recentes concepções no curso da chamada Segunda Revolução Industrial, quando o aperfeiçoamento das comuni- cações intervinha na formação de uma internacional idade cultural intensificada, mas onde o nacionalismo das potências de outrora resis- tia com razões de força. Era também a gênese da era dos super-Esta- dos. No Brasil essa revolução histórica internacional fluiu na própria medida de sua problemática de país dependente. Tomando alento na inflamada ideologia futurista (mas logo excluindo o repúdio às tra- dições que a caracterizava na Itália) e seu espírito agressivo e exaltante da civilização transformada pela técnica, o Modernismo brasileiro nes- sa fase foi antes de mais nada uma busca em bruto de libertação. Os estímulos da modernidade vinham, igualmente, para escritores e artis- tas, de recentes fenômenos culturais parisienses. No caso da pintura um dos membros da vanguarda brasileira - Anita Malfatti - recebia uma carga do Expressionismo alemão. Da conjugação desses valores internacionais às idéias locais tomadas de efervescência, após o tempo de descompasso com o ritmo da cultura ocidental, à qual o Brasil per- tence, todavia sincretizada por outros importantes aportes culturais, houve mais tarde, pelo avanço dos anos 20, resultados incontestes nas letras, na música e também nas artes visuais. No segundo decênio o Modernismo (sobretudo pelos seus repre- sentantes da literatura, mais numerosos) mostrava ligação entre o fenômeno da renovação e o problema da afirmação de um fundo próprio de cultura. E contrariamente à idealização que sofria no passa- do o enfoque da realidade brasileira, como se disse, com o Modernis- mo dar-se-ia um salto à frente, principalmente graças à que seria sua ala mais lúcida, liderada por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, na seqüência impondo-se sobretudo o trabalho mais solitário deste úl- timo, estabelecendo em níveis críticos a visão do meio da vivência. Apegando-se ao "exótico descoberto no próprio país pela sua curiosidade liberta das injunções acadêmicas" 7, reapreciaram o con- junto dos fatores componentes de um caráter específico de ambiente que Ihes devia ser básico para o trabalho. Desde o estudo do espaço físico até à observação do homem de etnia complexa que o habita e transforma, enfatizada a contribuição recente encarnada pelo imigranteS, tudo adquiriu para eles aura de estímulo legítimo. Em alguns outros países latino-americanos, como o Uruguai e o México, desvelava-se essa preocupação, com a criação de padrões estéticos ligados a fatores locais de vida e cultura. São exemplos disso, na área de pintura, Torres Garcia (1874-1949) e Oie- go Rivera (1886-1957). O interesse pela realidade nacional. entretanto, precedera os modernistas e era já voz corrente no segundo decêni09, quando se fun- dara aRevista. do Brasil.Oeclarava:..se o ideário francamente antes e durante o ímpeto da modernidade, em figuras de diversificada for- mação. Duas ,delas, ligadas aos problemas visuais e estéticos, são Gonzaga Duque e Vicente Licínio Cardoso. Ao menos desde1888 havia no crítico simbolista essa preocupação. Ele se indaga: "Se a nos- sa arte não tem uma estética nem no seu ensinamento existem tra- dições, como admitir a existência de umaEscola Brasileira?"'0. Diante das exposições do final do Império e seus "assuntos bíblicos e as 81e- gorias", ele pergunta: "Este desnacionalismo ameaça continuar?" ". Mais tarde, reafirmará a ausência de uma identidade nacional na arte produzida no Brasil. justificando-a pela natureza nova do país, mas acreditando que o evento esteja próximo12. Por sua vez, o filósofo posi- tivista Vicente Licínio Cardoso, que aperfeiçoara o pensamento estético no próprio período da ebulição do Modernismo, sem contagiar-se por ele, apegar-se-ia à tese nacionalista e também americanista.13. A 'problemática, evidentemente, vinha de longe, despertapelo Romantismo. Entre os escritores muito atentos à questão do nacio- nalismo, cumpre mencionar Lima Barreto, prosador de particular acui- dade crítica; GraçaAranha,o autor deCanaã,mais tarde,em 1921, atraído pelas hO$tes modernistas; e o regionalista Monteiro Lobato, autêntico militante na abordagemde questões relevantes do país, impulsionadordo movi.mento editorial brasileiro, espírito fascinado pelo progresso, sem meias palavrasnotrato do 'subdesenvolvimento'. O escritor deUrupês, todavia, pendeu para o lado contrário à causa artística reformadora, fatalidade que um dos maiores entre os moder- nistas, Oswald de Andrade, lamentaria profundamente depois'4. 509 510 No âmbito da arquitetura, encontra-se outro aspecto significativo desse comportamento, como demonstra a irrupção do neocolonial, tentando inicialmente ganhar terreno na cosmopolita São Paulo pela pregação de Ricardo Severo (1869-1940) e com melhores resultados na obra de Victor Dubugras (1868-1933), mas que se tornaria real- mente fértil na atmosfera conservadora do Rio. Muitos equívocos cer- caram o movimento, defendido na capital federal pelo espírito ortodoxo e apaixonado de José Mariano Filho - em oposição ao magnetismo exercido por diferentes estilos históricos europeus implantados no país e pela presença menos difundida do Art-Nouveau - que serviu acen- tuadamente à reivindicação de uma cultura de substratos locais. No plano do pensamento transformador, teria cabido a Oswald de Andrade, que a crítica supõe informado das recentes experiências da literatura européia já em 1912, ao escrever os versos livres de "Último passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde" - obra todavia extraviada e que se desconhece - um empenho antecipador nesse sentid015. Dele, a quem se deve a fundação, em 1911, do seminário O Pirra/ho- órgão em que se transfundia com irreverência a nervosa atmosfera paulistana da época, captada graficamente pela caricatura mordaz de Voltolino(1884-1926)16 - e cujos conhecimentos dovers- -/ibrismede Paul Fort e da doutrina futurista iriam minar, emboralen- tamente, os elos que o prendiam ao Parnasianismo - conscientização crescente de liberação, como atesta a carta de Monteiro Lobato de 1916, mencionada por Mário da Silva Brit017 e a sua solidariedade a artistas modernistas~ é o citadíssimo artigo "Em prol de uma pintura nacional", publicado em seu periódico no começo de 191516. No tex- to, Oswald clamava contra os artistas pensionistas do Estado que viaja- vam para a Europa e que regressavamdéracinés19,opondo a eles o ,pintor AlmeidaJúnior (1850-99) como exemplo: "Creio que a questão da possibilidade de uma pintura nacional foi, em São Paulo mesmo, resolvida por Almeida Júnior, que se pode bem adotar como precursor, en- caminhador e modelo"20.Esta opinião sobre o pintor de Itu ele não mante- ria a seguir ao criticá-Io pela sua "mera documentação nacionalista"21. Se o aluno de Cabanel não se prestava a servir de modelo à evolução da arte, aqui ou em outro lugar, havia nele sem dúvida, com suas limitações, a veracidade do regionalismo, da sua visão caipirista. Neste sentido, é ele precursor de um aspecto da pintura no Brasil arraigapa aos estímulos imediatos do meio. Oswald, que se equivocava totalmente ao dizer que os estágios no exterior serviam apenas à "aprendizagem técnica", tinha razão ao condenar os famosos "prêmios de viagem", os quais desandavam quase sempre sob a pressão dacul- tura plástica mais involutiva ensinada e divulgada em Paris. Oswald se afigura assim como um dos introdutores do germe de atualização internacional no país, pela via do verso livre e do Futurismo, ao mesmo tempo em que se empenhava por uma arte afeita às suges- tões locais, preludiando a própria instauração do nativismo de "Pau- -Brasil", dez anos depois22, Ele que, no início de 1918, não hesitará em defender a pintora expressionista Anita Malfatti, na exposição que levantava "as mais irritadas opiniões e as mais contrastantes hostilida- des"23, fará prosélitos, contribuindo para a formação da grei modernis- ta que é em muito trabalho seu, resultado da sua argúcia de catalisa- dor de talentos, embora viesse a ser mérito da área não verbal a polari- zação do movimento. 8.3 Asprimeirasexposiçõesmodernistas . É na órbita das artes visuais que a definição de Modernismo pôde ganhar sua mais avançada consistência. Passavam-se as coisas diferentemente no âmbito literário, onde, além de Oswald, outros futuros participantes do movimento - Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho- retardavam-se em compromissos estéreis com valores oitocentistas, os quais, já próximo da Semana, Oswald e Mário procuravàm superar. A poesia de Manuel Bandeira em Carnaval antecipava elementos assimétricos em 1919.Em música, depois do silêncio do fim do século XIX, estava-se, em 1914, chegan- do tardiamente ao fluxo impressionista de Debussy, com Villa-Lobos (a primeira dasDanças africanas)24. No entanto, a obra expressionista de Anita Malfatti, posta em evidência quando de sua exposição de 1917- -18, mostrou-se contribuição precursora e audaciosa que não apenas separava a artista por um abismo da pintura acadêmica como também a distanciava dos que logo mais seriam seus companheiros de rup- tura25. Amadurecendo antes que os demais colegas do seu ou de outros domínios poéticos, tateantes na busca de um sistema presentifi- cado de linguagem, como se verá adiante, a pintora paulistana, filha de imigrantes ítalo-norte-americanos, tornou-se presença de importância capital na pequena constelação de episódios vanguardistas da década. Embora fosse de 'futurismo', em interpretações equivocadas, de que obsessivamente se falasse a respeito de qualquer'obra que fugisse à 'normalidade' representativa, couberam a artistas encaminhados ao Expressionismo as primeiras exposições de arte moderna realizadas no Brasil. a de Anita, citada acima, e duas outras anteriores: a de Lasar Segall (1891-1957)em São Paulo e Campinas (1913) e a da própria Anita em São Paulo (1914). Não restam dúvidas, entretanto, no que concerne estritamente à evolução histórica do Modernismo no país, e s~m considerar a qualidade de ambos os artistas, que a mostra de 1917-18, pela repercussão alcançada, aparece como acontecimento de significado superior. Há casualidade de encontro nessas manifestações quase contem- porâneas (1913 e 1914) de Lasar Segall e Anita Malfatti, artistas que praticamente cruzaram seus passos em Berlim e que começavam a se marcar nos contatos com opathos expressionista. Sabemos que tanto a dupla exposição de Segall, como aquela de Anita, despertaram limi- tado interesse. Das obras exibidas por Segall (pinturas e desenhos). parte ao menos só por volta de 1922 seria notada pelos modernistas, como confirmam as palavras de Mário de Andrade, ao falar no "des- cobrimento assombrado de que existiam em São Paulo muitos quadros de Lasar Segall"26. Entusiasmado pelo Expressionismo, o escritor já conhecia o pintor atravésde publicações e~ropéias. 511 512 Muitíssimas referências foram dedicadas a esses primórdios cro- nológicos que alimentaram controvérsia já superada.A questão girava em torno do mérito da introdução da arte moderna no Brasil. Indiscuti- velmente, a mostrà do pintor de Vilna antecipara-se de muito àquela fundamental, de Anita, em 1917-18 e também viera antes da primeira individual da artista brasileira em 1914. Sega11expusera - segundo o próprio depoimento - "algumas experiências típicas de arte expressio- nista, ao lado de obras de um modernismo mais moderado"27. Deci- dira-se, no entanto, por uma seleção centrada neste último aspecto, de fase anterior, onde predominava o acento impressionista. As de caráter expressionista já anunciavam a linguagem futura e o seu inerente cará- ter humanista. Mas o ambiente não estava à altura da mensagem e em pouco ou nada reagiu.A receptividade crítica de alguns jornais quase não ultrapassou o nível dos lugares-comuns amenos, não raro dispensados aos forasteiros. Segall foi passivamente absorvido e até elogiado pela "técnica moderna e às vezesousada"28. Todavia,houve a exceção do cronista Abílio Álvaro Miller que, em Campinas, colhia em cheio, instintivamente, a essencial idade da instauração segaliana, referindo-se ao autor como "um dos mais empolgantes pintores de almas que tenho conhecido"29. Há ainda o detalhe da aquisição de várias peças expostas (sem que isto certamente tivesse o mínimo a ver com qualquer tipo de apoio à nova arte), Segall também, ao partir, dei- xaria trabalhos com parentes aqui residentes. Essas obras sem dúvida foram vistas durante a'nos junto aos seus colecionadores. Mas não há indícios de que provocassem fermentação no meio prosaico. O episó- dio se encerraria com o retorno do artista à Alemanha nesse mesmo ano de 19133°. A exemplo da exposição de Segal!. a de Anita, em 1914, entre seu regresso da Europa e a viagem aos Estados Unidos (1915). não alcançou maior ressonância, embora as novidades que traziam a sua pintura, desenho e gravura. Os jornaisCorreio Paulistanoe O Estado de S. Paulo registraram a mostra com simpatia. Neste último órgão, o crítico Nestor Pestana, de tendência conservadora, enalteceu nas obras "uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de exe- cução", vendo com fé o seu futur031, A pintora - que em 1912 visitara a IV Sonderbund, em Colônia ("para mim foi uma revelação e minha primeira descoberta")32 e que, em Berlim, estudara com Lovis Corinth (1858-1925). no início da fase em que este ~e aproximava do Expres- sionismo, e com dois outros pintores, aproveitando ainda a estada para muitos outros conhecimentos - voltava com apreciável cultura visual. informada dos grandes artistas do fim do século XIX e início do século XX. Vinha já inteirada do Expressionismo. Em que pese, entretanto, a crispação das tonalidades, os acentos por vezes duros do contorno e a textura agitada de algumas pinturas exibidas na ocasião, ela ainda não estava de posse da liberdade formal, da pulsação da cor, do tratamen- to espacial sintético e da agudez interior que lhe traria a permanência nos Estados Unidos33, 8.4 Anita Malfatti, aprecursora , I I > Toda outra é' a história da"exposição insurrecional"34 de 1917- -18, que demonstraria a convicção expressionista de Anita Malfatti. Se a residência na Alemanha(1910-14)fora o instante da incubação nes- sa visão do mundo, através da cor, os quase dois anos passados nos EstadosUnidos(desde fins de 1914) e, em especial. os contatos com as idéias de Homer Boss(1882-1956).na Independent School of Art, de Nova York - ambiente que incentivava a interdisciplinaridade poéti- ca e que lhe deu acesso pessoal a vários artistas de primeira ordem, traçaram o perfil durável da pintora, destinada a ser a força inaugural do Modernismo no Brasil35. Às descobertas precedentes que haviam formado a sua sensibili- dade - o Impressionismo e o Expressionismo, o conhecimento de Van Gogh (1853-90).Gauguin (1848-1903).Munch (1863-1944),Hodler (1853-1918).Nolde (1867-1956) e outros pintores,na visita à IV Son- derbund - associou-se a experiência existencial com Boss, mestre que obrigava o aluno a umprocesso catártico antesde considerá-Ioapto ao trabalho artístic036.Essa aproximação foi determinante para a per- sonalidade tímidade Anita, fazendo-aextravasar disponibilidades emo- cionais em desenhos e telas de enérgica instauração. Sua conscienti- zação da dramáticaWeltanschauungcontida na assistemáticacorrente do Expressionismo - centradana prospecção confessional da imagem, que havia germinado sem pausa em seu espírito, concretizava-se des- de 1915 em múltiplas obras de unitária organização, onde se incor- poram também outras influênciasdo internacionalizadomeio novaior- qUInO. Exemplos maiores da produção que assinala o clímaxde toda a trajetória da artista,em 1915-16,pertencentes a museus e coleções ,de São Paulo, são as paisagens"Rochedos", "O Farol", "A Ventania"; as figuras "A Estudanta Russa", "O Homem Amarelo" (segundaver- são), "A Boba", "A Mulher de Cabelos Verdes" e "O Japonês" (todas pinturas a óleo), além de "O Homem Amarelo", primeira versão e "O Homem das Sete Cores" (ambos pastéis). "Torso",realçado a carvãoe pastel e vários desenhos a carvão, entre eles "O Homem de Muita Força" e "Nu MasculinoSentado"37. . Superando convenções de forma, cor e percepção do espaço, ain- da visíveis em obras de 1914e dominando os códigos técnicos, a sua linguagem verticalizara-se em todos os sentidos. Alta temperaturade cor e tensão gráfica equilibravam-se agora na concisão da imagem subjetiva, onde o anímicoenraizamento expressionista recorria a esquemas de construção cubo-futurista. A influência expressionista em Anitaera de ordem generalizada, havendo outras incidências, sobretudo da Escolade Paris. Nãoconsta na pintora, entretanto, aexacerbaçãoconteudista de um Kirchner (1880-1938) ou Nolde, por exemplo. A introspecçãopsicológica pre- valeceu nas figuras ("O HomemAmarelo",primeira e segunda versões e "O Japonês", do IEB-USP, "A Boba", qo MAC-USP, "A Mulher de Cabelos Verdes", da coleção Ernesto Wolfetc.). Na paisagem, uma 513 extroversão formal explosiva - determinada pelo tema e a influência de Van Gogh - surgiu em "A Ventania", porém é quase exceção. No desenho ela ousou mais nas deformações, como em alguns carvões (e.g. no "Nu Masculino Marchando"). de 1915-16. A representação sarcástica, recordando a caricaturalidade de George Grosz (1893- -1959). apareceu isoladamente, como em "Café Americano" (c. 1915- -16)38. Anita concentrou-se em temário reduzido no seu expressionismo - quase sempre figuras de retratados de feições vagas e abstratizadas e vistas paisagísticas. Lúcida e decidida, a pintora brasileira participou desse universal contexto plástico de idéias e símbolos "sem preocu- pação de glória, nem de fortuna, nem de oportunidades proveito- sas" 39, transmitindo uma inquietação pessoal que tocava em proble- mas essenciais do seu tempo. 514 685 686 1 685AnitaMalfatti - "A Boba", 1917. oleos/tela, 61 x 50.6, col. MAC-USP. 686Anita Malfatti - "Nu Masculino Sentado", 1915-16. carvão, 59 x 41,6. col. IEB-USP 687Anita Malfatti - "O Farol", 1915, óleo s/tela, 46 x 61, col. Gilberto Chateaubnand, Rio de Janeiro. 515 , I '. ,","" 'f:"-- -:t .. ":\ E-- 516 688 Anita Malfatti - "O Homem Amarelo". 1915-16. óleo s/tela. 61 x 51. cal. IEB-USP. Na permanência em Nova York, tivera a importantíssima oportuni- dade de avizinhar-se de artistas e escritores europeus ali radicados ou refugiados, como Mareei Duchamp, Juan GriS(1887-1927).Máximo Gorki, Jean Crotti (1878-1958) , o empresário dos balés russos Serge de Diaghilev (1872-1929) e o cenógrafo Leon Bakst (1866-1924). Em depoimento de 1939, ela se referiu particularmente ao "bonito Mareei Deschamps (sic). que pintava sobre enormes placas de vidro" e que "fez uma dissertação engraçadíssima sobre a maneira de fazer a barba num dia de tristeza"40. 1915é o ano do início da execuçãodo "Gran- de Vidro" e certamente Anita foi o nosso primeiro artista a ter conheci- mento dessa obra antológica do século XX, assim como de uma sua performance.Mas o que é imprescindível de ressaltar é a sua vivência na cidade sacudida pelo Armory Show(1913) - e fortalecidapela pre- sença de algumas figuras fundamentais da arte revolucionária. A Independent School of Art promovia exemplares contatos pes- soais com esses e outros artistas. Isadora Duncan também aparece nas citações de Anita a propósito das aulas de desenho ao vivo junto aos seus dançarinos no Century Theatre41. No que diz respeito à evolução do seu expressionismo, especificamente no arcabouço construtivo das figuras, parece-nos não descartável a idéia de que ela tenha tirado proveito formal das próprias imagens do "dinamismo está- tico" de Duchamp, cujo "Nu Descendant I'Escalier" (1912) era a mais célebre pintura moderna existente nos Estados Unidos. Outras inferên- cias extraídas dos artistas desse círculo sem dúvida se tornaram sensí- veis em sua obra: "Eles Só falavam no cubism042 e nós de macaquice começamos a fazer as primeiras experiências" - afirma Anita43. Ao concluir a estada nos Estados Unidos, a pintora estava inegavelmente de posse de grande segurança de recursos plásticos e de um ideário que parecia inabalável. Os fatos que a envolveram ao regressar ao Brasil ("viagem no tempo e no espaço", como diz sua biógrafa Marta Rossetti Batista). são por demais conhecidos. "Quando viram minhas telas, todos acharam-nas feias, da~tescas ( . . J Guardei as telas" 44. Entrementes, Anita participara de concurso promovido por Monteiro Lobato sobre a representação do "Saci". A versão da pintora, entretanto, despertou o espírito de chacota do próprio organizador do certame: "A sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo" - dizia ele45. Foi nesse perío- do que o então jornalista e caricaturista Emiliano Di Cavalcanti(1897- -1976). visitando Anita, animou-a a expor, o que se deu depois de mui- ta hesitação da artista,entre dezembrode 1917e janeiro de1918, num salão da rua Líbero Badaró. Anita selecionou mais de 50 obras em técnicas diversas (inclusive a gravura) e inseriupeças já produzidas em São Paulo,com enfoque temático nacional (e.g. 'Tropical") 48. Uma curiosidade foi que acrescentou um desenho cubista de A. S. Baylinson (1882-1950).secretário da Independent Schoolof Art, que poderia servir de reforço à sua posição renovadora. A exposição constituiu-se emimpacto para a crítica e a opinião pública e ajudou afazerconhecer melhor o estado doestreitamento cultural de São Paulo. Nainterpretação dos críticos, como na reação do público, em tudo transparecia essa 'situação descompassada do dinâmico ritmo criador inaugurado pelos europeus desde abelle épo- que. A exposição foi um choque exatamente porque nas soluções das obras realizadas nos Estados Unidos não havia resquícios passadistas. 517 518 Houve dois aspectos relevantes e opostos entre si na mostra: um alta- mente positivo, o de provocar a idéia da arregimentação de forças dis- persas que se encaminhavam para uma nova cultura. Nesse sentido, Anita foi o "estopim do modernismo", conforme a expressão de Mário da Silva Brit047. O outro aspecto é inteiramente oposto, podendo-se dizer que, às custas dessa contribuição, a artista tornou-se alvo decomentários violentos e insultuosos, e que interferiam desastradamen- te em seus principios estéticos e na sua qualidade artística. É verdade que, antes da exposição, já havia censuras à sua pintura e que ela em nada reagira às circunstâncias adversas, mostrando-se temerosa de exibir trabalhos. Em última análise, a responsabilidade do retrocesso que se anunciava e que se agravou com os ataques à mostra, coube à sua própria dificuldade de enfrentar não só o poderoso misoneísmo artístico do ambiente como certamente também outras formas de pre- conceito da época, a exemplo das restrições à liberdade feminina. A parcela de responsabilidade da crítica é enorme, porém. A prin- cipal investida à exposição veio do conceituadíssimo escritor Monteiro Lobato,cujo artigo"A propósito da Exposição de Anita Malfatti" era acolhido na edição vespertina de OEstado de S. Paulo48e depois ain- da reproduzido no livroIdéias de Jeca Tatu,sob o título de "Paranóia ou mistificação". No texto, Lobato, defensor da arte acadêmica e ele mesmo pintorpompier,embora paradoxalmente não se isentasse de reconhecer o "talento vigoroso, fora do comum" de Anita e de perce- ber o quanto a "autora é independente, como é original, como é inven- tiva", não a viu, finalmente, sen'ão como alguém que "penetrou nos domínios dum impressionismo ~sic) discutibilíssimo e (que) põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura". O seu racioci- nio falhava na suposição de que a estrutura sintática das obras que condenava não era inseparável da estrutura de sua significação. O improvisado crítico - e isto não era exceção no Brasil - situava temerariamente a artista como pertencente à 'espécie' dos que "vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes ( . . .)". "São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência (, . r, E mais ainda: "Embora eles se dêem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação". Ao comentário não fal- taram as costumeiras referências caluniosas ao "Futurismo, Cubismo, Impressionismo e "tutti quanti"49. Nos entreveros suscitados pela exposição, um único dos logo mais líderes modernistas saiu em defesa da artista. Foi Oswald de Andrade: "Anita está a serviço de seu século" - ele afirma. "As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negativa de cópia, a ojeriza da oleografia". E adiante: "Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe? A realidade existe mesmo nos fantásticos arrojos criadores e é isso jus- tamente que os salva" 50, I .~.LIOTECA DA PUC-MO I Além de Oswald e Di Cavalcanti. que convencera a pintora a mostrar-se. outros do futuro clã foram envolvidos pela mensagem. como Mário de Andrade. Menotti dei Picchia e Guilherme de Almei- da5'. O papel estimulador exercido por Anita Malfatti nos modernistas em potencial é testemunhado por Mário de Andrade. que afirma em 1944: "Ninguém pode imaginar a curiosidade. o ódio. o entusiasmo que Anita Malfatti despertou. Não posso falar de meus companheiros de então mas eu pessoalmente devo a revelação do novo e a con- vicção da revolta a ela e à força dos seus quadros ( . . J E nós cerra- mos fileiras em torno da artista. Se alguns poucos escritores ponderá- veis. Menotti dei Picchia. o sr. Oswald de Andrade que iam se tornar os propulsores eficazes do movimento modernista já nos conhecíamos então. eles podem testemunhar se o primeiro espírito de luta. a pri- meira consciência coletiva. a primeira necessidade de arregimentação foi despertada ou não pelo que se passava na cidade. com a exposição de Anita Malfatti. Foi ela. foram os seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pelá moderni- zação das artes brasileiras. Pelo menos a mim" 52. Mas a geração de poetas que integraria a facção modernista não escapava. ainda em 1917. à coação do meio. à sua exigência de mol- des parnasianos. Entre os lançamentos daquele ano. figuravam livros como Juca Mulato. de Menotti (a cujos méritos de jornalista o movi- mento modernista deverá muito de sua propagação!.Nós. de Guilher- me de Almeida eHá uma gotade sangue em cada poema.de Mário de Andrade (então Mário SobraDo o primeiro e o último aderentes à convicta linha literária nacionalista. intensíssima naquele ano assinala- do pelo engajamento do Brasil na Guerra e quando eclodia também o nacionalismo econômico e ao mesmo tempo se fazia sentir. mais pro- fundamente. com a greve geral dos operários em São Paulo. a influên- cia do socialismo no país. Por essa época. Oswald de Andrade já ela- borava asMemórias sentimentais de João Miramar.destinada a ser das obras magnas da moderna literatura brasileira. Isto tudo era con- temporâneo ao surgimento. no Rio de Janeiro. do livroCinza das horas. de outro futuro modernista. Manuel Bandeira53. A polêmica exposição abrira uma perspectiva e seria motivadora do primeiro elo do movimento moderno. Paradoxalmente. entretanto. esta conseqüência. na percepção dos estimulados. foi descompensada pela reação contrária provocada na causadora da mudança. Os teste- munhos são muitos: Anita. na indecisão contraída no seu país. psicolo- gicamente menos preparada do que se poderia supor. não assimilou a diatribe e a repercussão que ela tivera nos espíritos recalcados. As razões externas que antes já interferiam no seu mundo interior a con- duziriam a uma crise da qual não mais escapou. 519 ( Vicente do Rego 8.5 A contribuiçãode Di Cavalcanti, Monteiroe VictorBrecheret 689 r- -:-" Se o novoaporte entre os artistas plásticos era dos mais consis- tentes em Anita Malfatti, nas outras figuras que se projetavam naqueles anos já próximos da Semana de Arte Moderna - essencial- mente Victor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e Di Cavalcanti - a linguagem carecia da afirmação autêntica adquirida posteriormente. Era incontestável, porém, sua evolução em novas vias de percepção, em torno de1920-21.Este amadurecimento anterior dos artistase o entusiasmo que provocava nos escritorese poetas mais abertos autorizam a acreditar na tese do empuxo exercido pelas artes no modernismo das letras54. Dos três artistas, Di Cavalcanti aparecia como o menos afirmado. Nascido no Rio, iniciara-se na arte através da caricatura, em 1914, na revistaFon-Fon,praticando-a intensamente nos anos seguintes ao lado de uma atividade de ilustrador. Paralelamente, exercia o jornalismo. Em 1917 fez sua primeira exposição em São Paulo. Nesse mesmo ano começou na pintura junto a Elpons.Assinalava-o,sobretudo, umaincli- nação tardia pelo Simbolismo e o acentoart-noUlleau,visível em desenhos influenciados por Beardsley (1872-98) e telas de um 'pe- numbrismo' exteriormente próximo a Eugéne Carriére (1849-1906) (o paralelo com o simbolista francês é de Ronald de Carvalho). Em 1921 ele realizou no Rio a série de desenhos "Fantoches da Meia-Noite", enfocando o mundo boêmio da Lapa com a verve da caricatura. Mas 520 1. 689 Di Cavalcanti- "Fantoches da Meia-Noite", fev. 1922, Monteiro Lobato e Cia. Editores. São Paulo. 690 Di Cavalcanti - "O Beijo", 1923, têmpera s/tela. 90,4 x 62,3, col. MAC-USP. 691 Capa do catálogo da exposição da Semana de ArteModerna. desenhada por Di Cavalcanti. 690 691 antes de 1923 - data da primeira viagem à Europa - a linguagem do artista já evoluíra. Sua empolgação pela modernidade levara-o a resul- tados como "O Beijo", tela a óleo do MAC-USP, onde as figuras são decididamente hipertrofiadas e o espaço cobre-se de formas dúcteis e cores em liberdade. Das telas conhecidas da época é a mais avançada (ao lado do desenho para a capa do catálogo da Semana de Arte Moder- na) e exemplificao que ele mesmo diz: "Meu modernismo coloria-se do anarquismo cultural brasileiro e, se ainda claudicava, possuía o dom de nascer com os erros, a inexperiênciae o lirismobrasileiros"55. Paralelamente, a participação de Di Cavalcanti fazia-se também notar pelas qualidades do animador. Viu-se que fora ele a incitar Anita a fazer a exposição de 1917-18, como será ele um dos 'descobridores' de Brecheret. Em 1921, trará incentivo importante a Osvaldo Goeldi (1895-1961) no Rio. Caber-lhe-ia uma posição central no repto ao "carrancismo provinciano paulista" (e brasileiro): partiu dele, ao que tudo indica, a iniciativa do evento de 1922, o ápice de sua tarefa na movimentação do contexto divergente. A presença de Vicente do Rego Monteiro no grupo de ponta reu- nia alternativas pessoais de pesquisa ainda de base formativa antes de 1922. Como em Brecheret e Di Cavalcanti, a angulação exata de sua problemática visual foi evento posterior. Nos anos de que aqui se trata, este artista, originário de Pernambuco, integrou-se ao Modernismo tra- zendo a ebulição de uma experiência precoce e movediça, em que intervinham apropriações de culturas antepassadas ao lado de influên- cias da contemporaneidade parisiense e um apego à realidade telúrica do seu país. Ativo no Rio e Recife, após anos de aprendizado em Paris (1911-14), Rego Monteiro exporia em São Paulo (maio de 1920) um conjunto de 43 aquarelas e desenhos, entre os quais muitos de temáti- ca indígena. Esta mostra, que deveria conter ao menos parte das obras já apresentadas no Recife, em 1919, teve lugar na Livraria de Jacinto Silva, sede de outros eventos artísticos e intelectuais situados nas ori- gens da Semana da Arte Moderna. Em 1921 ele deu prosseguimento 521 692 Vicente do Rego Monteiro - "Nascimento de Mani". 1921, aquarela e nanquim a cores, 28,2 x 38,2, col. MAC-USP. à série de figurações de ídolos e episódios míticos florestais (d. "O Nascimento de Mani'l de apuro formal sintético e estilizada linha de contorno, por onde transparece o seu preparo escultórico. Absorções da arte egípcia e hindu,da gravura japonesa dos séculos XVIII-XIX, eram por ele interacionadas ao estudo da arte marajoara. As peças que exibiu em São Paulo captaram simpatia pela narrativa aborígene, mas algumas liberdades formais no arranjo da composição bastaram para que a crônica, por vezes, o estigmatizasse como 'futurista'. 522 o Jornal do Comércio(edição de São Paulo) comentava os exemplares como sendo "todos extraídos das nossas ingênuas lendas indígenas, trabalhadas com uma tendência mais do que pronunciada para o descabido futurismo - eterno foco de coisas ridículas" 56,nota que contrastava com a opinião de Nestor Pestana, em OESlaao de S. Paulo, para quem o artista não caíra "nos exageros do futurismo ou do cubismo", ressaltando a "forma individual. que revela apreciável inde- pendência de espírito e qualidade de inventiva" dos desenhos e aquarelas57. Monteiro Lobato também o viu com bons olhos, encontrando nos quadros de temas lendários "sempre um alto senso decorativo"58. Fora diferente o pensamento do Fanfulla, que criticara a "incompatibili- dade existente entre os temas mitológicos brasileiros e o estilo futurís- tico das figuras" 59.Nada havia, em verdade, de 'futurista', nessa série, posteriormente ampliada para a nova exposição de 70 exemplares, desta vez no Rio, em 1921, no Teatro Trianon, com outras figuras e ambientes amazônicos imaginários, ocasião em que Ronald de Car- valho dedicou-lhe uma apreciação motivada essencialmente pelo senti- mento nacionalista, sugerindo o aproveitamento do tropicalismo de Monteiro em bailados: "Na sua exposição, o que mais interessa, é a contribuição do pintor para os efeitos de uma grande arte cênica, de caráter profundamente nacional. A série de bailados que sugeriram as fábulas selvagens, como a do Corupira e o Caçador, a de Pahy e Tumaré e a das Ikamiabas, mereceria ser aproveitada por um dos nos- sos musicistas, como Villa-Lobos. Com aqueles cenários e a curiosíssi- ma indumentária que desenhou Rego Monteiro, poderíamos ter alguns bailados admiráveis"60. Os desejos do escritor não se realizariam. Eles eram, aliás, os do próprio artista adolescente, cujo interesse tropicalista, ao que ele afir- mou, se manifestara logo na volta de sua primeira viagem à Europa. Em 1918, Monteiro cogitara de organizar um bailado de lendas indíge- nas, ao assistir a espetáculo de Anna Pavlova no Recife. Mas tudo ficara nas intenções, enquanto Anita foi induzida pela vaga nacionalista a valer-se de temas nativistas na exposição de 1917-18. Não havia nela a convicção que assinala a obra de fundo indianista de Vicente, a partir de 1919. Muito mais tarde, o pintor pernambucano reivindicaria a condição de "um precursor do indianismo", razão de sua recusa em aderir ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade61. Antes de começar a se impor como pintor, já em anos vizinhos da Semana da Arte Moderna, Vicente do Rego Monteiro se havia con- centrado momentaneamente na escultura. Estudando pintura, desenho e escultura na Académie Julian, em Paris, ele (aos 14 anos) tivera obras aceitas no Salon des Indépendants, em 1913. Adveio-Ihe dessa época o cognome de Le Petit Rodin62. No Brasil. entre 1914 e 1919, o trabalho escultura I (ele também lecionou essa arte no Recife) traria conseqüências definitivas para a sua pintura, onde a cor é subalterna ao desenho, traçado com denso teor de estabilidade. Viajando pela segunda vez à Europa, em 1921, Monteiro confiou a Ronald de Car- valho algumas pinturas recentes, que seriam expostas na Semana. O conjunto era bastante heterogêneo. Entre outras peças, havia quadros de influência impressionista, como "Cabeças de Negras", uma aquarela de acentosart-nouveau,seuratianos e matissianos ("Baile no Assírio''), desenhos com estilizados motivos indígenas e retratos em p" 693 693 VicIarBrecherel - "Cabeça de Cristo".1920. bronze. 33.5 x 13.5 x 23.5. cal. IEB-USP 694VicIarBrecherel - "Eva" (Roma), 1920. mármore. 85 x 62 x 119. cal. Prefeiturado Município do Estado de São Paulo que idealiza os personagens, como no de Ronald de Carvalho, colocan- do-os por vezes à frente da paisagem nordestina. Tudo isto além de telas de caracterização cubista que marcavam "a evolução do pintor em direção à pintura intelectual"63.Evidenciava-se a decisão do artista na escolha do procedimento pictórico: ele estava perto dos propósitos expressivos que o salientaram na década de 1920. Afora Anita Malfatti, entretanto, nenhum outro artista da primeira leva modernista atraiu tanta atenção quanto Victor Brecheret. Nascido em Viterbo (Itália) em 1894 e emigrado para o Brasil em 190464 fizera aprendizado no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo viajando para Roma em 1913, onde estudou escultura com Arturo Dazzi (1882- -1971). No retorno ao Brasil, em 1919, permaneceu meses entregue a um trabalho solitário. Em janeiro de 1920, esse isolamento foi quebra- do pela visita de Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e o pintor e carica- turista Hélios Seelinger (1878-1965) ao atelier que improvisara numa sala do Palácio das Indústrias. Logo em seguida, em artigos encomiás- ticos, o próprio Monteiro Lobato (desencontrando-se com o que afir- mara sobre Anita) e Menotti dei Picchia deram início à divulgação de sua obra. Era o começo da trajetória amadurecida depois de 1921, na segunda viagem à Europa. A escolha de Roma não havia sido acerta- da. Apenas no plano da material idade e da técnica da escultura o tradi- cional Dazzi lhe poderia ter sido útil. Brecheret, todavia, familiarizara-se desde muito cedo com o modelado desenvolto de Rodin (1840-1917). Houve, nessa estada européia, o contato admirativo com a obra do iugoslavo Ivan Mestrovic (1883-1962), escultor eclético, influenciado por Rodin e Bourdelle (1861-1929). E a incidência de aspectos da escultura de épocas anteriores. Por entre todasessas assimilações, Brecheret já manifestava, porém, em torno de 1920-21, refinamentos formais singulares confir- mados na evolução do seu estilo. Entre as peças executadas na Itália, "Eva", gesso de 1919 (transposta em mármore no ano seguinte). ape- ga-se a uma concepção nat,yralista que remonta no mínimo a "Desper- tar", de 1916. Em seus acentos musculares e na energia fisionõmica são visíveis inflexões faciais e torsões da linha serpentinada de Miguel Ângelo (e.g. "O Gênio da Vitória", do Palazzo Vecchio de Florença). Nos exemplares paulistas de 1920-21, como os bronzes "Sóror Dolorosa", "Cabeça de Cristo" e "Vitória", a composição éart-nouveau enquanto a matéria sensibiliza-se em nuanças impressionistas deriva- das de Rodin. A "Cabeça de Cristo", estruturada simetricamente com dureza arcaizante (a exemplo das demais peças da série), é de grande tensão interior. Nessas obras já estão prenunciadas as constantes 'ma- neiristas' do escultor, enquanto em "Daisy", busto em mármore de c. 1921, reaparece o movimento dramático de "Eva", com registros ana- tõmicos muito acusados, que ele eliminará no essencial da atividade posterior. A sofisticação linear de Brecheret aparenta-se ao grafismo da figuração escultórica do arquiteto Antonio Moya (1891-1949). de origem espanhola, radicado em São Paulo e participante da Semana de Arte Moderna, que conjugava esse elemento aos seus projetos de edifícios fantásticose túmulos. 523 !. 524 695 Antonio Garcia Moya- "Túmulo", s/data, nanquim, 22,5 x 25,5, col. Regina Helena Ferreira da Silva, São Paulo. 696 Antonio Garcia Moya - "Cabeça de índio", 1920, lápis preto, 40 x 26, col. Regina Helena Ferreira da Silva, São Paulo. Mesmo se embrionária, a obra de Brecheret era fato inédito e drástico confrontado à escultura produzida no Brasil, submetida aos padrões que haviam caracterizado essa arte no século XIX. O Neoclas- sicismo, introduzido pela Missão Artística Francesa, impusera-se no paí.s,deixando atrás o Barroco, cedendo mais tarde a conceitos menos idealísticos e academizando-se, como trata outro capítulo deste livro. No círculo de escultores formados no Rio e que usufruíam dos prêmios de viagem à Europa, havia, ainda neste século, um respeito a essas tradições, ignorando-se ou desprezando-se as iniciativas profundas de renovação. Esta fidelidade da escultura a princípios de figuração retesada - que atingia em alguns casos menos ostensivamente a pintura - é tes- temunhada por Rodolfo Bernardelli(1852-1931J. Coube a ele, a José Otávio Corrêa Lima (1878-1974) e a outros escultores mais jovens, a ereção, segundo o gosto oficial corrente, de numerosos monumentos públicos no Rio de Janeiro, Em. São Paulo (como em Belém, Recife e outros centros), a situação não era diferente em relação a preferências esculturais. Operavam, entretanto, na capital paulista, vários escultores imigrantes ou de passagem, de linha tradicional, quase sempre italianos, como Ettore Ximenez(1855-1926),Luigi Brizzolara(1868-1939),Amadeu Zani, Julio Starace(1887-1952),Niccola Rollo(1889-1926)e o sueco William Zadig. Nas pegadas conservadoras de seus mestres, seguiram descendentes de imigrantes como Vicente Larocca(1892-1964), João Batista Ferri(1896-1977), Humberto Cozzo(1900-81)e outros. Das obras públicas de que foram incumbidos (Cozzo em outros Estados), nos primeiros decênios, quando a cidade, no súbito crescimento, pas- sou a exigir a presença de marcos prestigiosos para simbolizar seu novo status,algumas tiveram porte dos mais avantajados, como o monumento do Pátio do Colégio (Zani) e o complexo em homenagem a Carlos Gomes, no Anhangabaú (BrizzolaraJ. O monumento do Ipiran- ga tornou-se alvo de todas as atenções com a aproximação da data do centenário da Independência. O concurso instituído teve como vence- dor Ettore Ximenez, um entre os muitíssimos escultores de espírito conservador ativos na Itália e que atendeu, na concepção épica do conjunto, às expectativas oficiais reinantes. É em tal contexto que surgiu Brecheret com o ágil modelado de formas introspectivas, distanciado da radicalidade de cubistas, futuris- tas e construtivistas, reestruturadores da concepção plástica bi e tridi- mensional, mas que procurava renovar alguns elementos do antigo repertório expressivo da escultura. Nas obras feitas em São Paulo, Brecheret demonstrava muita segurança e exigência no que tinha a dizer. Para o nosso ambiente eram importantes as deformações de suas imagens diante das obstinadas leis miméticas literalmente adota- das na escultura. Ao conhecer o artista, os intelectuais, na iminência de constituir o grupo modernista, referiam-se a ele com incontido entu- siasmo. Em artigo do quinzenárioPapel e Tinta- órgão que trouxe apoio às novas tendências da arte - Ivan (Oswald de Andrade?) traçou paralelos entre o artista brasileiro e Carl Milles, Mestrovic e outros europeus para salientar que "Brecheret faz a sua escultura endireitar para o futuro apoiando-seproficuamente nos preceitos ancestrais"65. Brecheret servia de arma contundente de ataque contra o espírito tradicionalista prevalecente nas artes: Menotti dei Picchia declara que sua obra "não despertara a curiosidade de ninguém, ou melhor, fora hostilizada pelos Pachecos da estatuária, embevecidos em aplaudir os Zadigs, os Staraces, os Ximenez e outros de igual força e sabe- doria . . .". E com uma dose de chauvinismo ataca os estrangeiros (em outras atividades para ele benquistos), chamados para as tarefas escul- tóricas da cidade66. Sem dúvida, Brecheret detonara muita polêmica, não lhe sendo poupadas críticas dos acadêmicos; mas, ao mesmo tempo e ao contrário do que ocorrera com Anita Malfatti, sua atividade plástica de compromisso atraíra depoimentos de apoio da ala contrária à moderni- dade. Do próprio Monteiro Lobato vieram estas palavras: "Brecheret apresenta-se-nos como a mais séria manifestação do gênio escultural surgido entre nós"67. O êxito provocou desdobramentos: ele seria encarregado do pro- jeto do "Monumento às Bandeiras", em meados de1920, seguindo uma conceituação de símbolos e alegorias68. A idéia do complexo escultórico/arquitetOnico surgiu no clima eufórico das festividades do Centenário, aplicando-se o escultor numa seqüência de desenhos e na elaboração de uma maqueta composta essencialmente de uma massa de ciclópicas figuras em movimento sobre altopodium, que sugerem a 'entrada' no sertão, e de outras dispostas lateralmente. O estatuário "seguia a linha mestroviciana de expressividade violenta, além de se subjugar às alegorias"69. Havia sem dúvida concessões naturalisticas. O projeto não pOde ser levado adiante e só em 1936, após remaneja- mentos vários, que o apuraram, foi retomado e realizado em granito (conclusão em 1953). 525 526 697 Ao escultor que em 1921 se fixaria na Europa para a fase decisi- va, coube o mérito de selar a unidade do grupo sensível às novas idéias. Oswald, que se refere a ele, em crônica de c. 1920, como "o nosso único escultor, mas que vale bem diversas gerações de modela- . dores", defende-o dos que vêem a arte apenas por critérios de cópia do reaI70. Mário de Andrade, em 1921, na partida do artista para a Europa, chama-o de "amigo e irmão dos mais íntimos" e "a profecia mais genial que o país teve até hoje na escultura"71. Muito mais tarde, na conferência de 1942, dirá que "fazíamos verdadeirasrêvenesa galope em frente da simbólica exasperada e estilizações decorativas do 'gênio'. Porque Victor Brecheret. para nós, era no mínimo um gênio. Este o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que ele nos sacudia"n Menotti, em fins de 1921, sabendo-o admi- tido no Salon d'Automne, em Paris, intitula-o "a bandeira dos futuristas paulistanos"73. Ninguém media os arroubos que dirigia à obra de Brecheret que, na seqüência da comoção suscitada por Anita, aparecia como uma espécie de pivô de sua arregimentação
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