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Canguilhem - Vida

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Veritas 
Revista de Filosofia da PUCRS
ISSN 0042-3955 
e-ISSN 1984-6746
Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, 
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação 
original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
FilosoFias da Biologia
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas
: http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2015.2.22005
Vida
Life
*Georges Canguilhem
**Tradução: Gabriela M. Jaquet
Resumo: Em 1973, Georges Canguilhem publica, na Encyclopédie 
Universalis, um extenso verbete histórico do conceito “Vida” na biologia 
e nas ciências da vida. A seguinte tradução do verbete é baseada 
na segunda edição, reimpressão publicada em 1989, nas páginas 
546-553.
Palavras-chave: Vida. Biologia. Animal. Le Vivant (O Vivo). Organismo.
Abstract: In 1973, Georges Canguilhem published a detailed historical 
entry on the concept of “Life” in biology and the life sciences for the 
French-language Encyclopédie Universalis. The following translation in 
Portuguese of the encyclopedia entry is based on the second edition, 
a reprint of the first, published in 1989, on pages 546-553.
Keywords: Life. Biology. Animal. Le Vivant (The Living). Organism.
** 1904-1995. Inspecteur Général de Philosophie (1948-55). Professor na Sorbonne e Diretor do 
Institut d’Histoire des Sciences et des Techniques de l’Université de Paris a partir de 1955. 
Em 1971, Professor Émérito da Sorbonne. Em 1983, recebeu a Medalha de Sarton; e em 1987 
a Médaille d’or do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Referência completa 
do artigo original: “Vie”, Encyclopaedia universalis, 23 (2e édition, Paris: Encyclopaedia 
Universalis France, 1989), p. 546-53.
** Mestranda CNPq, Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. <gabrielajaquet@
hotmail.com>.
“Quem sabe se a primeira noção de biologia que o homem pode 
formar não é esta: é possível dar a morte”. Esta reflexão de Valéry em 
seu Discours aux chirurgiens (1938) vai mais longe do que sua destinação 
primeira. Talvez não seja possível, ainda hoje, ultrapassar esta primeira 
noção: é vivo (vivant), é objeto do conhecimento biológico, todo dado da 
experiência de que podemos descrever uma história compreendida entre 
seu nascimento e sua morte. Mas o que é precisamente a vida de um 
vivo, além da coleção de atributos próprios para resumir a história deste 
ser nascido mortal? Se se trata de uma causa, por que sua causalidade é 
estritamente limitada no tempo? Se se trata de um efeito, por que ele é 
gerador, para aquele dentre os vivos que se interroga sobre sua natureza, 
da consciência ilusória de uma força ou de um poder?
Em La Logique du vivant (1972), François Jacob escreveu: “Não 
interrogamos mais a vida hoje nos laboratórios”. Se é verdade que a vida 
não é mais um objeto de interrogação, é também verdade que ela não o 
fora sempre. Há um nascimento – ou uma aparição – do conceito de vida 
no século XIX, atestada pela multiplicação de artigos nos dicionários e 
enciclopédias científicas e filosóficas. Um breve histórico da aparição 
deste conceito não é supérfluo. 
A gênese do conceito
O primeiro esboço de uma definição geral da vida se encontra em 
Aristóteles. “Entre os corpos naturais [i.e. não fabricados pelo homem] 
alguns possuem a vida e outros não a possuem. Nós entendemos por vida 
o fato de se nutrir, de crescer, e de se degradar por si mesmo” (De l’âme, 
II, 1). E, mais adiante, Aristóteles diz que a vida é aquilo pelo que o corpo 
animado difere do inanimado. Mas o termo de vida, como aquele de alma, 
é passível de muitas acepções. É suficiente, no entanto, que uma dentre 
elas convenha a tal objeto de nossa experiência “para que nós afirmemos 
que ele vive” (II, 2). A vegetação ou vegetalidade representa o mínimo de 
expressão das funções da alma. Fora disso, não há vida. Não existe forma 
mais rica de vida que não a suponha como sua condição necessária (II, 3). 
A identificação das noções de vida e de animação e, por conseguinte, a 
distinção da vida e da matéria, na medida em que a alma-vida é a forma 
ou o ato do corpo natural vivo, constituem uma concepção da vida tão 
vivaz, através dos séculos, quanto o fora a filosofia aristotélica. Todas as 
filosofias médicas que, até o começo do século XIX, tiveram a vida por 
um princípio ora original, ora confundido com a alma, essencialmente 
diferente da matéria, fazendo exceções às suas leis, foram diretamente ou 
indiretamente devedoras desta parte do sistema aristotélico que podemos 
chamar indiferentemente de biologia ou psicologia. 
G. Canguilhem – Vida
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Mas a filosofia de Aristóteles é igualmente responsável, e isto 
até o final do século XVIII, por um método de estudo dos seres vivos, 
especialmente dos animais e de suas propriedades, que consiste em 
classificá-los, em distribuí-los em um quadro de semelhanças e de 
diferenças, segundo suas partes – ou seja, seus órgãos –, suas ações ou 
funções, seus modos de vida. De forma que, de fato, Aristóteles instaurou 
nos naturalistas uma maneira de perceber as formas vivas que eclipsava 
a interrogação sobre a natureza da vida sob a preocupação de planificar, 
sem lacunas e sem redundâncias, os produtos observáveis de um poder 
plástico que não colocava, quanto a ele, nenhum problema. É a razão 
pela qual procuramos em vão nos naturalistas da idade clássica, como 
Buffon ou Linné, aquilo que poderíamos chamar de uma definição da 
vida, como modo de existência específico dos seres que eles descrevem 
e classificam. Na idade clássica, a interrogação sobre a vida é antes 
questão de médicos que de naturalistas, ela é necessariamente ligada 
à interrogação sobre a natureza da saúde, que é o modo normal de vida 
do qual, a partir do século XVII, a fisiologia, no sentido estrito do termo, 
constituirá estudo. Se acontece que nos interrogamos sobre a vida, é 
antes para determinar-lhe os signos ou as marcas de reconhecimento, 
para fixar os critérios do estado vivo, do que para procurar o que é 
essencialmente este poder singular da natureza. Um filósofo-médico, 
John Locke, escreve em 1690: “Não há termo mais comum do que o de 
vida, e não encontraríamos poucas pessoas que não tomariam por uma 
afronta se lhes perguntássemos o que eles entendem por esta palavra. 
No entanto, se é verdade que colocamos em questão se uma planta 
que está já formada na semente possui vida, se a galinha em um ovo 
que ainda não foi chocado, ou um homem em estado de falência, sem 
sentimento ou movimento, está em vida ou não, é fácil perceber que 
uma ideia clara, distinta e determinada, não acompanha sempre o uso 
de uma palavra tão conhecida como a de vida” (Essai philosophique 
concernant l’entendement humain, III, x, 22). É ainda sob a relação de 
signos perceptíveis da vida que Kant começou a dissertar sobre relações 
da matéria morta (inerte) e os princípios espontâneos de animação desta 
mesma matéria. “Mas dentre os membros da natureza quais são aqueles 
aos quais a vida se estende e quais são os graus de vida que confinam à 
sua inteira supressão, talvez seja sempre impossível de decidir de forma 
certa” (Rêves d’um visionnaire, 1976, II). 
É um médico alemão, Georges-Ernest Stahl (1660-1734) quem 
mais trabalhou para impor uma teoria da vida como fundamento 
indispensável ao pensamento e à prática médica. Stahl é o médico que 
mais abundantemente utilizou o termo de vida. Se o médico ignora qual 
é o fim, a destinação das funções vitais, como ele poderá dar um sentido 
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à sua intervenção? O que confere vida, ouseja, o movimento dirigido, 
finalizado, sem o qual a máquina corporal se decompõe, é a alma. Os 
corpos vivos são corpos compostos, constantemente ameaçados de 
uma rápida dissolução e de uma fácil corrupção, e, no entanto, são 
dotados de uma disposição contrária e oposta à corrupção. O princípio 
de conservação, de autocracia da natureza viva, não pode ser passivo, 
material. A evidência especificamente médica, é a autoconservação do 
vivo (vivant). Esta evidência funda a Theoria medica vera (1708). Alguns, 
tendo lido Stahl, que renunciarão à identificação da vida e da alma, não 
esquecerão no entanto a força com a qual ele definiu a vida como poder 
de suspender temporariamente um destino de corruptibilidade. 
Em termos menos carregados de metafísica, Bichat começou suas 
Recherches physiologiques sur la vie et la mort (1800) com a célebre 
fórmula: “A vida é o conjunto de funções que resiste à morte”. Definindo 
a vida por um conflito entre um corpo composto de tecidos de estrutura e 
de propriedades específicas (elasticidade, contractilidade, sensibilidade) 
e um ambiente ou um meio – como diria Auguste Comte um pouco mais 
tarde – em que se exprimem leis indiferentes às exigências próprias 
do vivo, Bichat se apresentava como um Stahl purgado de teologia. 
Esta purgação fora em parte obra da escola médica de Montpellier, e 
singularmente de P. J. Barthez. Os Nouveaux Éléments de la science 
de l’homme (1778) são um tratado de fisiologia vitalista. “Eu provarei 
que o Princípio vital deve ser concebido por ideias distintas daquelas 
que temos do Corpo e da Alma; e mesmo que nós ignoramos se este 
princípio é uma substância, ou somente um modo do corpo humano vivo”. 
Mesmo se Barthez possui grandes reservas sobre a forma como A. von 
Haller compreendeu a fisiologia, é certo que a refutação dos princípios 
da fisiologia mecânica pela observação dos fenômenos de irritabilidade 
muscular e de sensibilidade nervosa, tidos por irredutíveis a efeitos de 
ordem simplesmente mecânica ou física, teve um papel importante na 
elaboração, por La Caze e Bordeu, de uma doutrina de escola na qual 
Barthez se inspirou mais do que ele quis admitir. 
No ano da morte de Bichat, em 1802, o termo biologia fora utilizado 
pela primeira vez, e simultaneamente, na Alemanha por G. R. Treviranus, e 
na França por Lamarck (em Hydrogéologie), para reivindicar um status de 
independência próprio à ciência da vida. Se Lamarck se propôs, durante 
tanto tempo, a escrever um tratado intitulado Biologia, é porque, desde 
muito cedo em seu ensino do Muséum, ele propunha uma teoria da vida. 
O que é “essencial à existência da vida em um corpo” deve ser procurado 
no exame dos organismos mais simples. Uma organização complicada 
requer órgãos ao mesmo tempo especializados e interdependentes, mas 
que não estão necessariamente ligados “à existência da vida em qualquer 
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corpo vivo”. Sob este aspecto, o ensino de Lamarck não contradizia 
aquele de Cuvier, que se gabava, em sua concepção pessoal de anatomia 
comparada, de ter tornado possível a dissociação das funções gerais da 
vida dos modos de exercício especiais que lhe impõe, nestes ou naqueles 
vivos, a posse destes ou daqueles órgãos (“Lettre à Lacépède”, em 
Anatomie comparée, III, 1805). 
Mas Lamarck concebe a vida como a acumulação e interiorização 
contínuas e progressivas de movimentos de fluídos em sólidos, sob a 
forma inicial de um tecido celular, “matriz na qual toda organização foi 
formada”. Assim a vida, cujas origens naturais devem ser procuradas 
na matéria e no movimento, nos revela seu poder original pela sucessão 
ordenada de seus efeitos, a série dos vivos, de que ela complexificou 
gradualmente a organização, e de que multiplicou as faculdades 
(Recherches sur l’organisation des corps vivants, 1802). Ainda que morrer 
seja do destino de cada indivíduo, a vida parece, com o tempo, e sob os 
aspectos mais eminentes da animalidade, ter tomado distância do estado 
de passividade e de inércia dos corpos brutos, a partir de um primeiro 
“ato de vitalização”, efeito do calor, “esta alma material dos corpos vivos” 
(Philosophie zoologique, 1809, II, VI). Podemos qualificar de materialista 
a teoria lamarckiana da vida à condição de esquecer que, para Lamarck, 
“todas as matérias compostas, brutas ou inorgânicas, que observamos 
na natureza” são resíduos da decomposição dos corpos vivos, os únicos 
capazes, porque vivos, de produzir as sínteses químicas. 
Bem diferente é a concepção de Cuvier. A vida e a morte não 
estão opostas em um tipo de relação polêmica, como em Lamarck, em 
Bichat, ou em Stahl, mas compostas nos modos de vida, exprimindo a 
compatibilidade de organizações internas, rigorosamente especializadas, 
com as condições gerais de existência. “A vida é um turbilhão contínuo 
cuja direção, complexa como é, permanece constante, bem como a 
espécie de moléculas que estão nele envolvidas, mas não as moléculas 
individuais; ao contrário, a matéria atual do corpo vivo logo não será mais 
acionada, e, no entanto, ela é depositária da força que fará com que a 
matéria futura se movimente no mesmo sentido que ela. Assim a forma 
destes corpos é mais essencial que sua matéria, uma vez que esta se 
modifica sem parar enquanto a outra se conserva” (Histoire des progrès 
des sciences naturelles depuis 1789 jusqu’à ce jour, 1810). Percebemos 
onde se entrelaça a relação entre o vivo e a morte. “É fazer-se uma falsa 
ideia [da vida] considerá-la uma simples ligação que reteria juntos os 
elementos do corpo vivo, enquanto que ela é, ao contrário, uma mola 
que os move e os transporta sem parar: estes elementos não conservam, 
nem por um instante, as mesmas relações e as mesmas conexões, 
ou, em outros termos, o corpo vivo não mantém o mesmo estado e a 
G. Canguilhem – Vida
268 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286
mesma composição; quanto mais sua vida é ativa, mais suas trocas e 
suas metamorfoses são contínuas; e o momento indivisível de repouso 
absoluto, que chamamos morte completa, é apenas o precursor de novos 
movimentos de putrefação. É aqui que começa o emprego razoável do 
termo de forças vitais...” (ibid). A morte está presente na vida, não só 
como trama universal, mas também como prazo inelutável de suas 
formações diversamente organizadas, de forma coerente ao mesmo 
tempo que frágil. 
Doravante, graças à revolução conceitual e metodológica que os 
trabalhos de naturalistas como Lamarck e Cuvier provocaram, ainda 
que de forma diferente, na representação do mundo dos vivos, as teorias 
da vida ganharam espaço, logicamente, no ensino de fisiologistas que 
acreditaram ter exorcizado, pelo método experimental, o espectro da 
metafísica. É assim que o Handbuch der Physiologie des Menschen (1833-
1834) de Johannes Muller trata, em seus prolegômenos, do organismo e 
da vida, essência da organização vital, assim como do organismo animal 
e da vida animal. É por isso que Claude Bernard, cujo Cahier de notes 
conservou o traçado do percurso intelectual durante o período mais fértil 
de sua carreira (1850-1860), não cessou de questionar-se tanto sobre 
a vida quanto sobre o problema fundamental de uma biologia geral, 
questionamento cujas conclusões nuançadas são expostas em Leçons sur 
les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux (1878; 
particularmente as três primeiras lições), mais sistematicamente que 
na Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (1865). Sabemos 
que a teoria bernardiana da vida consiste em fornecer uma explicação 
coordenada de duas fórmulas voluntariamente contrastadas: a vida é a 
criação (1865), a vida é a morte (1875). 
Tendo adquirido no século XIX o status de uma questão de caráter 
eminentemente científico, “o que é a vida?” tornou-se uma interrogaçãoa que nem mesmo o físico desdenha tentar encontrar uma resposta 
(Schrodinger, What Is Life? 1947), ainda que um bioquímico ache a 
questão mal colocada (E. Kahane, La vie n’existe pas, 1962). Aqui termina 
o histórico da aparição do conceito de vida no campo da cultura científica. 
Sua dívida é grande para com Michel Foucault (Les Mots et les choses, 
1966, VIII). 
Os obstáculos ao conhecimento científico da vida
É à obra de Gaston Bachelard que a epistemologia francesa deve 
o interesse que dedica, em geral, à origem e ao funcionamento dos 
obstáculos ao conhecimento. Esboçando os princípios de uma psicanálise 
do conhecimento objetivo, Bachelard, se não propôs ele mesmo, ao menos 
G. Canguilhem – Vida
 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 269
sugeriu a ideia de que não existe para o conhecimento objetos complexos 
em si, mas sim objetos de complexos. A questão dos obstáculos não se 
coloca nem para o empirismo nem para o racionalismo clássico. Para o 
empirista, nossos sentidos são receptores. Ele desconhece o fato de que 
os sentidos são também produtores de qualidades. Para o racionalista, o 
conhecimento deprecia a sensibilidade, de uma vez por todas. Quando o 
intelecto é reencontrado em sua pureza, não podemos mais perdê-lo. Ao 
contrário, para a antropologia contemporânea, instruída pela psicanálise e 
pela etnografia, não podemos considerar os obstáculos à ciência de outra 
forma que como imposições obsessionais que um paleopsiquismo impõe 
prévia e indistintamente aos projetos de pesquisa de um pensamento 
curioso e dócil. É então o sentido da presença obsedante de valores 
estranhos ao conhecimento, no ato inicial deste mesmo conhecimento, 
que deve ser salientado no caso do conhecimento da vida. Podemos 
em uma palavra dizer que, mesmo se o conhecimento objetivo, sendo 
ação humana, é finalmente um trabalho do vivo, seu postulado, ou sua 
condição primeira de possibilidade, consiste na negação sistemática, 
em todo objeto ao qual ela se aplica, da realidade das qualidades que o 
vivo humano identifica com a vida, a partir da consciência que ele possui 
do que é, para ele, viver. Viver, é valorizar os objetos e as circunstâncias 
de sua experiência, é preferir e excluir meios, situações, movimentos. A 
vida é o contrário de uma relação de indiferença com o meio. Bichat o 
notou com muita perspicácia: “Há duas coisas nos fenômenos da vida: 
o estado de saúde, e aquele de doença; daí duas ciências distintas, a 
psicologia [...], a patologia. A história dos fenômenos nos quais as forças 
vitais possuem seu tipo natural nos leva, como conseqüência, àquela dos 
fenômenos em que estas forças estão alteradas. Nas ciências físicas, só 
existe a primeira história, nunca encontramos a segunda” (Introdução 
à Anatomie générale appliquée à la physiologie et à la médecine, 1801). 
Quanto ao conhecimento, ele nega as desigualdades axiológicas que 
a vida introduz nas relações dos objetos entre si; ele mede, ou seja, 
determina, seus objetos pela relação de uns com os outros, sem privilégio 
de referência e de referido. Seu primeiro sucesso histórico principal foi 
a mecânica fundada sobre o princípio de inércia, pela subtração do 
movimento da matéria ao poder executivo da vida. Inércia é inatividade 
e indiferença. Concebemos então tranquilamente que a extensão à vida 
dos métodos de conhecimento da matéria tenha encontrado, até nossos 
dias, resistências renovadas, que não exprimiam sempre unicamente 
uma repugnância de natureza afetiva, mas às vezes a recusa refletida 
de uma esperança paradoxal, aquela de explicar um poder através de 
conceitos e de leis inicialmente formadas a partir de hipóteses que 
o negam.
G. Canguilhem – Vida
270 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286
Quando quis fazer uma “psicanálise da vida”, Bachelard escreveu 
Lautréamont (1939), no qual ele mostra que os primeiros esforços da 
objetividade científica para retificar o realismo ingênuo da animalidade 
não escaparam “à sedução primeira do complexo de Lautréamont”. Em 
um golpe de maestria, Bachelard, que, no entanto, não deu lugar em seus 
escritos à filosofia biológica, descobriu em Les Chants de Maldoror em 
quê consiste o obstáculo primordial à inteligência do objeto biológico: o 
desejo de metamorfose. 
A ideia de metamorfose é sem dúvida o índice mais concreto da 
sobredeterminação do objeto biológico, se por isto entendermos o fato, 
para tal objeto ou tal comportamento, de servir de substituto a um 
grande número de objetos ou de atos proibidos. Esta sobredeterminação 
concerne, aliás, mais à animalidade que à vegetalidade. O pensamento 
arcaico e o pensamento primitivo fizeram e fazem um uso massivo e 
constante da metamorfose, da conversão de formas animais específicas 
umas nas outras. Isto, evidentemente, não tem nada a ver com um 
pensamento transformista, porque o transformismo implica uma 
orientação pela causalidade, enquanto que a metamorfose é possível 
em qualquer sentido. Por detrás da imaginação da metamorfose, se 
deve perceber o desejo insatisfeito de um poder ilimitado de realização 
do desejo. O animal no qual o homem sonha em se metamorfosear é o 
delegado pelo homem para o sucesso de um ato que um obstáculo natural 
ou uma censura social o impede de executar. Poucos animais totens não 
apresentam alguma qualidade desejável pelo homem. Em seus sonhos de 
metamorfoses, o homem se identifica com todas as possibilidades, com 
todas as liberdades supostas da animalidade. Como diz Bachelard: “O 
homem aparece então como uma soma das possibilidades vitais, como 
um superanimal”. Mas é imediatamente sensível que um tal vetor da 
imaginação está em oposição direta às exigências de um conhecimento 
metódico dos seres vivos: classificação, determinação de constantes 
funcionais, de leis da hereditariedade. Um daqueles que, por razões 
mais poéticas do que científicas, tentaram importar para a botânica a 
ideia de metamorfose, escreveu, no entanto: “A ideia de metamorfose é 
um maravilhoso mas perigoso dom do Alto. Ela resulta no amorfismo, 
ela destrói o saber, ela o dissolve” (Goethe, Essai sur la métamorphose 
des plantes, 1790). 
Não parece arbitrário detectar na interrogação persistente relativa 
às origens da vida e nas diferentes versões da tese das gerações 
espontâneas a presença latente de uma outra sobredeterminação afetiva. 
Hoje, quem não sabe – e não diz – que a questão da geração é tanto mais 
fascinante para o indivíduo humano sexuado quanto ela é censurada, 
mais ainda que dissimulada, pela sociedade. A fabulação infantil sobre 
G. Canguilhem – Vida
 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 271
o assunto exprime o caráter ao mesmo tempo importante e misterioso 
do nascimento. Ainda que vários historiadores da biologia, quando eles 
tratam das origens da vida, atribuam, com toda simplicidade, à ausência 
de provas ou à insuficiência de provas negativas as crenças sucessivas na 
espontaneidade de gerações de vivos a partir da matéria, podemos nos 
perguntar se este não seria um desejo nostálgico de geração espontânea, 
um mito em suma, que seria o fundo positivo desta teoria. Sabemos 
que um discípulo dissidente de Freud, Otto Rank, em Le Traumatisme 
de la naissance (1924), sustentou a ideia de que a separação brutal da 
criança do meio placentário é a origem e o modelo de toda angústia, e 
que os mitos de negação, ou seja, de recusa, do nascimento, nos dão a 
confirmação disto. Seu estudo sobre Le Mythe de la naissance du héros, 
quanto à formação de homens recusando sua etapa embrionária, se dá 
por um argumento complementar da teoria. Sem pretender que todos os 
partidários do que chamamos a geração equívoca ou a heterogonia, fossem 
eles materialistas ou criacionistas, tivessem apenas colocado em forma 
de discurso um fantasma originário de seu inconscientetraumatizado, 
resta que a teoria da geração espontânea é uma sobrevalorização da vida. 
Na aversão pelo nascimento e pela gênese que não são, via de regra, que 
continuação e descendência, deve-se perceber um efeito do prestígio do 
original, do primordial. Se o vivo deve nascer e se ele só pode nascer do 
vivo, a vida é uma servidão. Mas, se o vivo pode ser declarado perfeito 
por uma ascensão sem ascendência, a vida é uma dominação.
Mas existe uma outra espécie de obstáculo epistemológico em 
biologia, que podemos nomear obstáculo de interesse técnico. As práticas 
alimentares, a medicina e a farmácia, a pecuária e a agricultura, depois da 
caça, da pesca e da colheita, são as principais formas de relações que as 
diferentes sociedades humanas instituíram primeiramente entre os seres 
vivos. Lamarck repetiu diversas vezes que o interesse econômico, relativo 
ao uso de produtos vivos da natureza, precedeu o interesse filosófico, 
relativo ao conhecimento destes mesmos objetos. Mas ele não se 
colocou a questão de saber se o primeiro tipo de interesse não era para o 
segundo uma fonte permanente de perturbações. Talvez não assinalamos 
suficientemente quanto a utilização de um ser vivo difere da utilização 
de um objeto inerte. O homem fabricou ferramentas isolando, separando, 
nas matérias inertes, uma certa propriedade (por exemplo, dureza do 
metal para uma faca, uma lança; elasticidade da madeira para um arco, 
uma mola de armadilha). As técnicas do objeto inerte constituem, de 
qualquer forma, uma prática da abstração. Sem dúvida, o homem deve 
levar em conta ao mesmo tempo, junto da propriedade que ele utiliza, 
todas as outras propriedades da matéria em questão, – a ferrugem, por 
exemplo, para o ferro; mas sua engenhosidade consiste em neutralizá-los 
G. Canguilhem – Vida
272 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286
relativamente ao emprego que ele faz, exclusivamente, da propriedade 
que lhe é útil. No entanto, para utilizar o ser vivo é preciso levá-lo em 
conta em sua totalidade, e assim o conservar. Quer se trate de alimentos 
ou de vestuário, as técnicas antigas, e mesmo as contemporâneas, de 
utilização dos produtos vegetais ou animais, não são técnicas analíticas. 
Podemos conceber, e tentamos obter em laboratório, através da cultura 
de tecidos ou de órgãos, produtos vivos dirigidos, equivalentes dos 
produtos espontâneos correspondentes. Mas enfim, mesmo nas criações 
pecuárias mais organizadas cientificamente, continuamos a confiar às 
galinhas o porte de seus ovários, às ovelhas o porte de seu tecido cutâneo 
lanífero, aos cavalos a circulação de seu sangue gerador de anticorpos 
imunizadores. É que outros vivos, diferentes do homem, interessaram 
o homem na medida em que operavam eles mesmos transformações 
físicas e químicas que geravam produtos que o homem não sabia fabricar 
através de suas técnicas analíticas, como a seda, o mel, o ópio, as féculas, 
as tinturas, os venenos. Assim como utilizar um produto vegetal, na 
alimentação ou na farmacopéia, é valorizar sua capacidade de síntese, 
primitivamente nomeada essência ou virtude, da mesma forma utilizar 
um poder animal (olfato do cachorro ou do porco trufeiro, visão do falcão, 
senso de orientação do pombo), é levar em conta o animal inteiro. Assim, 
não é necessário insistir sobre a força da inclinação que o uso da vida 
pelo vivo humano enraizou-se nele, pela qual toda tentativa de explicação 
analítica da vida se encontra previamente inconscientemente censurada. 
Seria fácil encontrar em vários textos da época da Renascença ou do 
século XVII traços desta censura obsessional. No entanto, parece mais 
convincente assinalá-los em época mais próxima em que, através dos 
trabalhos de Pasteur, as questões da origem e da natureza da vida foram 
levantadas em terreno em que agora sabemos que elas podem encontrar 
sua solução. François Dagognet (Méthode et doctrine dans l’oeuvre de 
Pascal, 1967) mostrou quais obstáculos as experiências e as análises de 
Pasteur concernentes à fermentação encontraram no espírito de biólogos 
ou ainda de bioquímicos, seus contemporâneos, que projetavam em suas 
explicações deste fenômeno imagens míticas fomentadas pelas técnicas 
milenares da fabricação do pão e do vinho. 
A vida como animação
De fato, esquecemos, ao falar de animal, de animalidade ou de 
corpo inanimado, que todos estes termos são os vestígios da antiga 
identificação metafísica da vida e da alma e da identificação da alma 
com o sopro (anima anemos). Assim, o único vivo capaz do discurso sobre 
a vida acreditou falar da vida em geral ao falar da sua, como de uma 
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respiração sem a qual ele mesmo, manifestamente, é incapaz não só da 
vida, mas da palavra. Se os filósofos gregos anteriores a Aristóteles, e 
Platão mais e melhor que todos, especularam sobre a essência e o destino 
da alma, é, no entanto, ao tratado aristotélico, De anima, que remonta 
a distinção tradicional da alma vegetativa ou nutritiva, faculdade de 
crescimento e de reprodução, da alma animal ou sensitiva, faculdade 
de sentir, de desejar e de mover-se, e da alma razoável ou pensante, 
faculdade de humanidade. Pouco importa aqui saber se Aristóteles 
concebeu estas três almas como entidades distintas ou somente como 
graus hierarquizados, em que o inferior pode existir sem o superior 
do qual ele é, no entanto, a condição indispensável de existência e de 
exercício. O importante é lembrar que psuchè significa, para os gregos, 
“sopro refrescante”, e que os judeus não possuíam uma ideia diferente 
da alma e da vida, como testemunha o trecho do Gênese: “O Eterno Deus 
forma o homem da poeira da terra, ele assopra em suas narinas um sopro 
de vida e o homem se torna um ser vivo”. Não seria necessário retomar 
a história das escolas de Alexandria, judaica com Philon, platônica com 
Plotin, cujos ensinamentos combinados com a predicação pauliniana 
(I Cor., XV) inspiraram os temas fundamentais da primeira doutrina cristã, 
concernente à vida, à morte, à salvação e à ressurreição. Até mesmo o 
termo de espírito (de spirare) deve ao ecletismo cultural das civilizações 
mediterrâneas sua capacidade polissêmica, sua ambigüidade, que a 
fez convir, tão bem em teologia, à terceira Pessoa da Trindade, quanto 
em medicina, à antecipação figurada do influxo nervoso, sob o nome de 
espírito vital e de espírito animal. 
A concepção da vida como animação da matéria, ainda que 
desgastada, principalmente a partir do século XVII, por concepções 
materialistas, ou simplesmente mecanistas, das funções próprias aos 
seres vivos, permaneceu vivaz, no entanto, até a metade do século XIX, 
sob forma de ideologia medico-filosófica, enquanto que ela havia cessado 
de aparecer como uma resposta objetivamente fundada à questão da 
natureza da vida. Pediremos a prova a um texto pouco conhecido e pouco 
utilizado, o Prefácio dos editores à décima terceira edição do Dictionnaire 
de médecine (1873), publicado pela J.-B. Baillière por dois médicos de 
tendência positivista, Émile Littré, autor do célebre Dictionnaire de la 
langue française, e Charles Robin, professor de histologia na faculdade de 
medicina de Paris. Este prefácio é a resposta tanto a uma reivindicação de 
propriedade de um título de obra quanto uma discussão sobre a liberdade 
de ensino ocorrida no Senado (1868). 
O Dictionnaire de médecine em questão era a reformulação, desde 
1855, do Dictionnaire de P. H. Nysten (1814), ele mesmo sucessor revisado 
e aumentado do Dictionnaire de médecine de J. Capuron (1806). Os 
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editores ressaltam a diferença entre o materialismo, do qual se acusa 
os autores, e o positivismo, que reclamavam para si mesmos; com esta 
finalidadeeles reproduzem as diferentes definições dos termos: alma, 
espírito, homem, morte, propostos entre 1806 (Capuron) e 1865 (Littré 
e Robin). 
Em 1806, a alma é definida: “Princípio interno de todas as operações 
dos corpos vivos; mais particularmente do princípio da vida no vegetal 
e no animal. A alma é simplesmente vegetativa nas plantas e sensitiva 
nos animais; mas ela é simples e ativa, razoável e imortal no homem”.
Em 1855, encontramos outra definição: “Termo que, em biologia, 
exprime, considerado anatomicamente, o conjunto das funções do cérebro 
e da medula espinhal e, considerado psicologicamente, o conjunto das 
funções da sensibilidade encefálica, ou seja, a percepção tanto dos objetos 
exteriores quanto dos objetos interiores; a soma das necessidades, das 
inclinações que servem à conservação do indivíduo e da espécie, e às 
relações com os outros seres; as aptidões que constituem a imaginação, 
a linguagem, a expressão; as faculdades que formam a compreensão; 
a vontade, e finalmente o poder de fazer funcionar o sistema muscular 
e de agir assim sobre o mundo exterior”. Em 1863, esta definição era 
objeto de uma violenta crítica por parte de E. Chauffard, confundindo 
na mesma reprovação, por um lado Littré e Robin, e por outro Ludwig 
Buchner (Kraft und Stoff, 1855), grande figura, na época, do materialismo 
na Alemanha. Chauffard celebrava “a indissolúvel aliança da medicina 
e da filosofia”, e se entusiasmava ao fundar “a noção do ser real e vivo” 
sobre “a razão humana que se sente causa e força” (De la philosophie dite 
positive dans ses rapports avec la médecine). Dois anos depois, Claude 
Bernard escrevia: “Para o experimentador fisiologista, não poderia haver 
nem espiritualismo, nem materialismo [...] O fisiologista e o médico não 
devem imaginar que eles devem pesquisar a causa da vida ou a essência 
das doenças” (Introduction à l’étude de la médecine expérimentale, II, I).
A vida como mecanismo
Ao final do Traité de l’homme (1633, mas publicado somente em 1662-
1664), Descartes escreve: “Desejo que considerem que estas funções 
seguem todas naturalmente, nesta Máquina, à única disposição de seus 
órgãos, nem mais nem menos do que fazem os movimentos de um relógio 
ou outro autômato, de seus contrapesos e de suas rodas; de maneira que 
não se deve nela conceber nenhuma outra Alma vegetativa ou sensitiva, 
nem nenhum outro princípio de movimento ou de vida que seu sangue 
e seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente 
em seu coração e que possui a mesma natureza que todos os fogos que 
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estão nos corpos inanimados”. É bastante conhecido que a identificação 
feita por Descartes entre o animal (o homem físico ou fisiológico) e o 
autômato maquinado e maquinal é o revés da identificação da alma ao 
pensamento (“Há em nós somente uma alma e esta alma não possui em 
si nenhuma diversidade de partes...”, Traité des passions, art. 47, 1649) 
e da distinção substancial da alma indivisível e da matéria extensa. Se o 
Traité de l’homme pôde, ainda melhor que o resumo que nos fornecia em 
1637, em sua quinta parte, o Discours de la méthode, servir de manifesto 
por uma fisiologia animal purificada de toda referência a um princípio 
de animação é porque, neste intermédio, a descoberta por W. Harvey da 
circulação do sangue e a publicação de Exercitatio anatomica de motu 
cordis et sanguinis in animalibus (1628) haviam proposto um exemplo de 
explicação hidrodinâmica de uma função da vida que vários médicos, 
principalmente na Itália e na Alemanha, fizeram esforços para imitar, 
sob forma de projetos de modelos artificiais, para explicar outras funções 
como a contração muscular, ou como o equilíbrio do peixe na água. Na 
realidade, os alunos e discípulos de Galileu na Accadémia del Cimento, 
J. A. Borelli (De motu animalium, 1680-1681), F. Redi, M. Malpighi, 
haviam efetivamente tentado aplicar em fisiologia o ensino de Galileu 
de mecânica e de hidráulica, enquanto Descartes se satisfizera com um 
programa heurístico mais intencional que operatório. 
Se é racional procurar a explicação das funções de um órgão, tal 
como o olho, ou de um aparelho tal como o coração e os vasos, através 
da construção, em esquema ou em maquete, daquilo que chamamos 
desde então de modelos mecânicos, como os iatromecânicos (ou 
iatromatemáticos) dos séculos XVII e XVIII tentaram para a contração 
muscular, para a digestão, para a secreção glandular, pelo contrário, 
à prova dos fatos, se mostra impossível explicar somente pelas leis 
da mecânica galileana ou cartesiana a formação gerativa de órgãos 
ou de aparelhos cuja coordenação funcional é precisamente o que 
compreendemos pela vida do vivo. Em suma, o mecanismo é a teoria 
do funcionamento das máquinas construídas, vivas ou não, mas não da 
construção das máquinas. 
Na prática, o mecanismo se mostrou inoperante em embriologia. O 
uso do microscópio, que se difundiu na segunda metade do século XVII, 
permitiu a observação dos germes de vivos, ou de vivos nos primeiros 
estágios de seu desenvolvimento. Mas a observação, por J. Swammerdam, 
de metamorfoses de insetos, ou a descoberta, por A. van Leeuwenhoek, 
do espermatozóide, foram inicialmente apresentadas como confirmações 
de uma concepção especulativa da geração, vegetal ou animal, segundo 
a qual a semente, ou o ovo, ou ainda o animálculo espermático contêm, 
pré-formado em uma miniatura que ilumina a ampliação ótica, um ser 
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que sua evolução levará às suas dimensões de adulto. A observação 
microscópica que mais ajudou a validar esta teoria é incontestavelmente 
aquela de Malpighi, relativa à figura inicial de uma gema de ovo de 
galinha, erroneamente tido como não chocado (De formatione pulli in 
ovo, 1669). Podemos pensar que o mecanismo professado por Malpighi 
estruturou inconscientemente sua visão dos fenômenos. 
Que o queiramos ou não, atrás de toda máquina se perfilava um 
maquinista, ou seja, na linguagem da época, um construtor. As máquinas 
vivas postulavam seu maquinista e este postulado conduzia a um Summus 
Opifex, a Deus. Era então lógico supor que a fabricação das máquinas 
vivas fora uma operação inicial única, e que, por conseqüência, todos os 
germes de todos os vivos pré-formados, passados, presentes e futuros, 
estavam encaixados uns nos outros. Nestas condições, a sucessão dos 
vivos é uma história apenas aparentemente, já que um nascimento 
não é, na realidade, outra coisa que um desempacotamento. Quando 
as observações, menos previstas ou mais engenhosas, reativaram, 
reformando-a, uma velha interpretação do crescimento embrionário pelo 
fenômeno da epigênese, ou seja, da aparição sucessiva de formações 
anatômicas não deriváveis geometricamente de formações antecedentes 
(C. F. Wolf, Theoria generationis, 1759; De formatione intestinorum, 1768-
1769), a embriologia moderna se instituiu como uma ciência capaz de 
encorajar a fisiologia a se liberar da fascinação do mecanismo. 
A multiplicação das observações de microscopistas, naturalistas, 
médicos, ou curiosos da natureza, contribuiu, no entanto, para o 
descrédito do mecanismo por um efeito diferente, ainda que paralelo. A 
estrutura íntima e escondida das partes do vegetal ou do animal pouco 
a pouco apareceu como prodigiosamente complicada em relação à sua 
estrutura macroscópica, acessível à vista pelas técnicas de dissecação. 
A descoberta dos animálculos, desde então nomeados protistas, abriu o 
império dos vivos a profundezas inimagináveis. Enquanto que a mecânica 
do século XVII era uma teoria dos deslocamentos e dos choques, ou 
seja, uma ciência dos dados da vista e do tato, a anatomia microscópica 
desembocava em objetos para além do manifesto e do tangível,e podia 
se valer deste além estrutural para conceber um além deste primeiro 
além, e assim sucessivamente. O microscópio oferecia à imaginação 
de um infinito de complicações estruturais o poder de rivalizar com um 
novo cálculo, estranho à álgebra geométrica de Descartes, o cálculo do 
infinito. Nesta dupla razão de repudiar o mecanismo, Pascal e Leibniz se 
encontraram sem sabê-lo. Mas o segundo, à diferença do primeiro, soube 
fundar sobre suas críticas uma concepção dos seres vivos chamada a 
orientar decisivamente a biologia ainda por vir em direção à representação 
da vida como organização e organismo. “Assim cada corpo orgânico de 
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um vivo é uma espécie de máquina divina, ou de um autômato natural, 
que supera infinitamente todos os autômatos artificiais. Porque uma 
máquina feita pela arte do homem não é máquina em cada uma de suas 
partes [...]. Mas as máquinas da natureza, ou seja, os corpos vivos, são 
ainda máquinas em suas menores partes até o infinito. É isto que faz a 
diferença entre a natureza e a arte, ou seja, entre a arte divina e a nossa” 
(Monadologie, 1714, 64). 
A vida como organização
É mais uma vez a Aristóteles que é necessário fazer remontar o termo 
de corpo organizado. Um tal corpo é um corpo disposto para fornecer à 
alma os instrumentos ou os órgãos indispensáveis ao exercício de seus 
poderes. É por isso que, até o século XVII, o corpo organizado exemplar é 
o corpo animal. Nos perguntamos sobre a organização do vegetal, ainda 
que segundo Aristóteles as partes da planta sejam também órgãos, se 
bem que extremamente simples. O exame microscópico de preparações 
vegetais permitiu a generalização do conceito de organização, inspirando 
até analogias fantasiosas entre as estruturas e as funções vegetais e 
animais. R. Hooke (Micrographia, 1667), Malpighi (Anatome plantarum, 
1675) e N. Grew (The Anatomy of Plants, 1682) descobriram a estrutura 
da casca, da madeira, da medula, distinguiram os tubos, os vasos e as 
fibras, compararam raízes, caules, folhas, frutos quanto à relação de suas 
membranas ou tecidos.
O organon grego designa, todavia, tanto o instrumento do músico 
quanto a ferramenta do artesão. A assimilação do corpo orgânico humano 
a um órgão designa, no século XVII, mais que uma metáfora – mas não 
a mesma – em Descartes, Pascal, Bossuet (Traité de la connaissance de 
Dieu et de soi-même), Leibniz. A polivalência, biológica e musical, dos 
termos (organização, orgânico, organizar) se encontra até o século XIX 
no Dictionnaire de Littré. Para Descartes, o órgão orgânico funciona sem 
organista. Mas para Leibniz a unidade estrutural e funcional do órgão 
supõe o organista. Sem organizador, ou seja, sem alma, não há organizado 
ou orgânico. “Não chegaremos nunca a algo do qual possamos dizer: 
eis realmente um ser, exceto quando encontrarmos máquinas animadas 
cuja alma ou forma substancial possa tornar a unidade substancial 
independente da união exterior do toque” (Carta à Arnauld, 28 nov. 1886). 
Menos célebre, mas mais pedagógico, o médico Daniel Duncan escreve: 
“A Alma é este hábil organista que forma ele mesmo seus órgãos antes 
de os fazer tocar [...]. É um jogo peculiar que, nos órgãos inanimados, 
o organista é diferente do ar que ele neles empurra; ao passo que nos 
órgãos animados, o organista e o ar que os movimenta são uma só e 
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mesma coisa, quero dizer a alma, que é extremamente semelhante ao 
ar ou ao sopro” (Histoire de l’animal, ou la Connaissance du corps animé 
par la mécanique et par la chimie, 1686). 
A história do conceito de organismo, no século XVIII, se resume na 
pesquisa, por naturalistas, por médicos e por filósofos, de substitutos 
ou de equivalentes semânticos da alma, a fim de dar conta do fato, cada 
vez melhor estabelecido, da unidade funcional de um sistema de partes 
integrantes. Em um tal sistema as partes mantém entre si relações de 
reciprocidade, direta ou mediada, bem representadas pelo que chamamos 
hoje em dia de gráfico, fazendo com que, entendido rigorosamente, 
o termo de parte não mais convenha para designar os órgãos dos 
quais o organismo pode ser entendido como a totalidade mas não 
a soma.
A leitura de Leibniz inspirou Charles Bonnet, tanto que as observações 
de Abraham Trembley sobre a reprodução dos pólipos por estaquia e 
suas próprias observações sobre a partenogênese dos pulgões foram 
confirmadas em sua hostilidade em relação ao mecanismo. “Ainda não 
consigo tornar a dificuldade suficientemente manifesta: ela não consiste 
apenas em fazer formar mecanicamente este ou aquele órgão, composto 
ele mesmo de tantas peças diferentes, ela consiste principalmente em 
explicar, unicamente pelas leis da mecânica, esta imensa quantidade de 
relações variadas que ligam tão estreitamente todas as partes orgânicas, 
e em virtude das quais elas conspiram todas para um mesmo objetivo 
geral, ou seja, formar esta unidade que nomeamos animal, este todo 
organizado que vive, cresce, sente, se move, se conserva, se reproduz” 
(“Quadro das considerações sobre os corpos organizados”, em La 
Palingénésie philosophique, 1769). 
Na Alemanha, no fim do século XVIII, o texto que mais contribuiu 
para inscrever o organismo no topo da lista dos conceitos da biologia 
do período romântico é a Critique du jugement (1790) de Kant. No artigo 
65, Kant, sem utilizar as palavras de vida ou de vivo, analisa o conceito 
de ser organizado. Um tal ser é máquina em um sentido, mas não o é no 
que supõe uma energia formadora, organizadora de matérias que não a 
possuem, energia diferente da simples potência motriz. O corpo orgânico 
não é somente organizado, ele é auto-organizador. “Em um tal produto 
da natureza, cada parte, como só existe em virtude de todas as outras, é 
concebida também como existente para as outras e para o conjunto, ou 
seja, como instrumento (órgão); e tal não é suficiente [...], mas ela deve ser 
considerada como órgão que engendra os outros (e isto reciprocamente); 
ora, nenhum instrumento da arte pode ser assim, mas somente aqueles 
da natureza”. Na mesma época, o médico C. F. Kielmeyer, que Cuvier, 
estudante, havia encontrado como condiscípulo na Academia Caroline 
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de Stuttgart, expôs em uma célebre conferência (Rapport des forces 
organiques dans la série des différentes organisations, 1793) as ideias 
diretrizes de um ensino da zoologia e da botânica que exerceu grande 
influência. O organismo é definido como sistema de órgãos em relação 
de reciprocidade circular; estes órgãos são determinados por suas ações, 
de modo que o organismo é mais um sistema de forças que um sistema 
de órgãos. Kielmeyer parece copiar Kant quando ele diz: “Cada um dos 
órgãos, nas modificações que ele sofre em cada instante, é a tal ponto 
função daquelas que sofrem seus vizinhos que ele parece ser causa e 
efeito das causas”. Compreendemos então o prestígio que possuíam as 
imagens do círculo e da esfera para os naturalistas românticos. O círculo 
configura a reciprocidade dos meios e dos fins ao nível dos órgãos. A 
esfera configura a totalidade, individual ou universal, das formas e das 
forças orgânicas. 
Na França, no início do século XIX, fora da biologia de Cuvier, mas 
não sem relação com ela, é a filosofia de Auguste Comte que expôs de 
maneira sistemática os elementos de uma teoria da organização viva 
(Cours de philosophie positive, III, 1838; lição XL-XLIV). Considerando 
que “a ideia de vida é realmente inseparável daquela de organização”, 
Comte define o organismo pelo consensus de funções “em associação 
regular e permanente com o conjunto dos outros”. Consensus é a tradução 
latinado grego sumpatheia. A simpatia, pela qual os estados e as ações 
das partes determinam uns aos outros pela comunicação sensitiva, é 
uma noção que Comte empresta, juntamente daquela de sinergia, de 
Barthez, que escreve: “A conservação da vida está ligada às simpatias 
dos órgãos, assim como o organismo o está às suas funções [...]. Designo 
por esta palavra de sinergia uma confluência de ações simultâneas 
ou sucessivas de forças de diversos órgãos, confluência tal que estas 
ações constituem, por sua ordem de harmonia ou de sucessão, a forma 
própria de uma função da saúde ou de um gênero de doença” (Nouveaux 
Éléments de la science de l’homme, IX). Comte, sabemos, importa para a 
teoria do organismo social este conceito de consensus, e é na exposição 
da estática social que ele o retoma para retrabalhá-lo a fim de generali- 
zá-lo. Consensus torna-se então sinônimo de solidariedade nos sistemas 
orgânicos, e Comte esboça uma série de graus do consensus orgânico, 
cujos efeitos são ainda mais estritos que ascendemos do vegetal ao 
animal e ao homem. A partir do momento em que consensus é identificado 
com solidariedade, não sabemos mais, do organismo ou da sociedade, 
qual deles é modelo, ou ao menos a metáfora, do outro. 
Nos enganaríamos ao atribuir somente à lassidão da linguagem 
filosófica a indeterminação do sentido da relação entre organismo e 
sociedade. Deve-se perceber, no plano de fundo, a persistência da 
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imagem tecnológica sempre vivaz desde os tratados aristotélicos. No 
início do século XIX, um conceito importado da economia política, 
o da divisão do trabalho, vem enriquecer a acepção do conceito de 
organismo. A primeira exposição desta transcrição metafórica deveu-se ao 
fisiologista comparatista Henri Milne-Edwards, no artigo “organização” 
do Dictionnaire classique des sciences naturelles (1827). O organismo 
sendo concebido como um tipo de ateliê ou de manufatura, torna-se lógico 
medir o aperfeiçoamento dos seres vivos pela diferenciação estrutural 
e pela especialização funcional crescente de suas partes, logo, por 
sua complexificação respectiva. Mas esta complexificação requer, em 
compensação, uma garantia de unidade e de individuação. A introdução 
da teoria celular na biologia, vegetal inicialmente (meados de 1825), 
animal em seguida (meados de 1840), devia necessariamente orientar 
a atenção em direção aos problemas de integração de individualidades 
elementares e de vidas particulares na individualidade totalizante de um 
organismo e em sua vida geral. 
Estes problemas de fisiologia geral são precisamente aqueles que 
Claude Bernard progressivamente privilegiou no curso de sua carreira de 
pesquisador e professor. Disto encontraremos a prova na nona de suas 
Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux. 
O organismo é uma sociedade de células ou de organismos elementares 
ao mesmo tempo autônomos e subordinados. A especialização dos 
componentes é função da complexidade do conjunto. O efeito desta 
especialização coordenada é a criação, ao nível dos elementos, de um meio 
intersticial líquido que Claude Bernard nomeou “meio interior”, e que é a 
soma das condições físicas e químicas de toda vida celular. “Poderíamos 
expressar esta condição do aperfeiçoamento orgânico dizendo que ele 
consiste em uma diferenciação, cada vez mais acentuada, do trabalho 
preparatório à constituição do meio interior”. Bem sabemos que Claude 
Bernard foi um dos primeiros a colocar em evidência a constância deste 
meio interior, que sob o nome de secreção interna ele descobriu um 
mecanismo de regulação e de controle desta constância, desde então 
designada pelo termo de homeostasia. É nisto que consiste o aporte 
original e capital da fisiologia bernardiana à concepção moderna da 
organização viva. É porque a existência de um meio interior, de constância 
obtida pela compensação das diferenças ou perturbações, constitui para 
os organismos regulados uma garantia de independência relativa, face 
às variações ocorridas nas condições externas de sua existência. Claude 
Bernard preferia o termo de elasticidade para dar ideia do que ele pensava 
da vida orgânica. Talvez ele esquecesse que a máquina paradigma de 
sua época, a máquina a vapor, era provida de um regulador, quando ele 
escrevia: “Tratamos o organismo como uma máquina e temos razão, mas 
G. Canguilhem – Vida
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o consideramos como uma máquina mecânica fixa, imutável, encerrada 
nos limites de uma precisão matemática, e então erramos. O organismo é 
uma máquina orgânica, ou seja, uma máquina dotada de um mecanismo 
flexível, elástico, devido a procedimentos especiais orgânicos que são 
colocados em funcionamento sem, no entanto, derrogar as leis gerais da 
mecânica, da física e da química”. (Pensées. Notes détachées, publicadas 
em 1937). 
A vida como informação
Se compreendemos por cibernética uma teoria geral das operações 
controladas, executadas por máquinas montadas de tal maneira que 
seus efeitos ou seus produtos estejam conformes a normas fixadas ou 
ajustadas a situações instáveis, acordaremos que seria normal que 
as regulações orgânicas, e sobretudo aquelas que o sistema nervoso 
assegura, tornem-se um dia o modelo destas máquinas das quais muitas 
eram tomadas por modelos destas regulações. Entre as máquinas 
a servo-mecanismo ou a homeostatos e os organismos, as relações 
de analogia são de duplo sentido. Ao conceito de ação recíproca das 
partes umas sobre as outras acrescentou-se o conceito de retroação 
(feed-back) ou de circuito de regulação. É por isso que a organização 
cibernética das máquinas artificiais e das máquinas naturais se dá 
em termos de teoria das comunicações, ou seja, de informação. Em 
um sistema de ligações em que a grandeza de um efeito é controlada 
por um detector de desvios a partir da taxa ou do optimum fixados, e 
onde a detecção determina por ação retrógrada uma modificação da 
quantidade da causa, o agente do controle e do comando intervém como 
portador de uma instrução comunicada pelo detector ao efetuador. Esta 
instrução opera por sua forma de sinal mais do que por sua força de 
impacto. A informação é uma mensagem de ordem em todos os sentidos 
do termo: estrutura coerente com função de chave, comando sem 
equívoco.
Um organismo é então compreendido como um sistema biológico, 
sistema dinâmico aberto que defende seu equilíbrio, mantendo constantes 
perante e contra as perturbações que o afetam, ajustando, seja a um nível 
de manutenção, seja a uma performance a realizar, as relações que ele 
mantém com o meio de onde tira sua energia.
Os trabalhos de C. E. Shannon (1948) sobre a teoria das comunicações 
e da informação, sobre as relações entre a teoria da informação e a 
termodinâmica, pareceram oferecer à filosofia biológica os elementos de 
uma resposta positiva à questão milenar da natureza e função da vida. O 
segundo princípio da termodinâmica, que explica a irreversibilidade das 
G. Canguilhem – Vida
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transformações em um sistema isolado, por degradação da energia ou por 
crescimento da entropia, concerne aos objetos indiferentes à qualidade de 
seus estados, inertes, mortos. O organismo que se nutre, cresce, regenera 
suas mutilações, reage às agressões, se cura espontaneamente de certas 
doenças, não está em luta contra o destino de desorganização universal 
proclamada pelo princípio de Carnot? A organização é ordem no seio da 
desordem? Manutenção de uma quantidade de informação proporcional 
à complexidade da estrutura? Em sua linguagem algorítmica própria, 
será que a teoria da informação não diria mais sobre a questão do vivo 
que Bergson em L’Évolution créatrice(1907, III)?
A distância é grande e a diferença irredutível entre as teorias atuais da 
organização por informação e as ideias que tinham, por um lado, Claude 
Bernard sobre o desenvolvimento do organismo individual sob o império 
de uma “ideia diretriz” e, por outro, Bergson sobre a evolução das espécies 
na esteira do élan vital. Claude Bernard não fornecia nenhuma explicação 
sobre a evolução das espécies, Bergson não fornecia nenhuma explicação 
da estabilidade, da fiabilidade das estruturas vivas. O agrupamento das 
lições da biologia molecular e da genética determinou a formação de uma 
teoria unitária da construção química, do funcionamento regulado, da 
hereditariedade e das variações específicas por seleção natural, à qual 
a teoria da informação conferiu um rigor comparável àquele das teorias 
físicas. 
Mas permanece uma questão, no interior da teoria, e cujo status 
mesmo de questão não parece estar em via de ser ultrapassado: é aquela 
da origem da informação biológica. A. Lwoff ensina que a ordem biológica 
só pode nascer da ordem biológica, formulação contemporânea dos 
aforismos omne vivum ex vivo, omnis cellula e cellula. Como representar 
então a auto-organização inicial, se é verdade que a transmissão de 
informação supõe uma fonte de informação? Um filósofo, Raymond Ruyer, 
coloca a questão: “O acaso não pode determinar a razão do anti-acaso. A 
comunicação mecânica de informação por máquina não pode determinar 
a razão da informação ela mesma, já que a máquina só pode degradá-la, 
ou, no melhor dos casos, conservá-la”. Esta questão, os biólogos não 
a consideram insignificante. As teorias contemporâneas da origem da 
vida sobre a Terra procuram em uma evolução química a condição da 
evolução biológica. No quadro estrito da teoria da informação, um jovem 
biofísico, H. Atlan, propôs recentemente uma resposta engenhosa e 
difícil que ele nomeia “o princípio de ordem a partir de ruído” segundo 
o qual os sistemas auto-organizadores utilizam, para evoluir, o “ruído”, 
ou seja, as perturbações aleatórias do meio. O sentido da organização 
estaria na utilização do contrassenso? Mas por que sempre dois sentidos 
inversos?
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A vida e a morte
Paradoxalmente, o que caracteriza o vivo é o fenômeno de usura 
progressiva e de cessação definitiva destas funções, mais que sua 
existência mesma. É sua morte que qualifica os indivíduos vivos no seio 
do mundo, é sua inevitabilidade que torna sensível a aparente exceção 
que eles instituem relativamente às coerções termodinâmicas. De 
maneira que a busca dos signos da morte é, no fundo, a busca invertida 
de um signo irrecusável da vida.
A teoria de A. Weismann (1885) sobre a continuidade do plasma 
germinativo oposta à mortalidade de seu suporte somático, as técnicas de 
cultura de tecidos embrionários (Alexis Carrel, 1912), ou de cultura pura 
de bactérias, introduziram, na biologia geral, a noção de imortalidade 
potencial do vivo unicelular, mortal somente por acidente, e fizeram 
crer na ideia que o envelhecimento e a morte natural, ao termo de uma 
duração específica de vida, estão ligados à complexidade dos organismos 
altamente integrados. Em tais organismos, cada constituinte elementar 
está submetido a uma limitação de suas potencialidades, devido ao fato 
do exercício, pelos outros constituintes, de suas funções respectivas. 
Morrer é o privilégio, ou o resgate, ou em todo caso o destino, das 
máquinas naturais melhor reguladas, das mais homeostáticas.
Considerada do ponto de vista da evolução das espécies, a morte 
é o fim da suspensão que a pressão da seleção acorda aos mutantes 
momentaneamente mais aptos a se situarem em um certo contexto 
ecológico. A morte abre vias, libera espaços, abre falaciosamente o futuro 
a formas imprevistas de vida para as quais a última hora também soará. 
Considerada do ponto de vista do indivíduo, a morte é um prazo 
inscrito em seu patrimônio genético, como se sua anulação e seu retorno 
à inércia, passado um determinado prazo, lhe fossem impostos como seu 
último dever. 
Podemos então nos perguntar por que uma teoria como aquela que 
Freud esboçou sob a denominação de “pulsão de morte” (Au-delà du 
principe de plaisir, 1920) encontrou tantas resistências. Esta ideia em 
Freud estava ligada a uma concepção energética da vida e do psiquismo. 
Se é verdade que o vivo é um sistema em desequilíbrio incessantemente 
compensado por empréstimos do exterior, se é verdade que a vida está 
em tensão com o meio inerte, o que há de estranho ou de contraditório na 
hipótese de um instinto de redução das tensões à zero, de uma tendência 
à morte? “Se nós admitirmos que o ser vivo só apareceu a partir dos 
objetos inanimados do qual ele é originário, devemos concluir que o 
instinto de morte se conforma à fórmula dada acima, segundo a qual todo 
instinto tende a restaurar um estado anterior”. Talvez a teoria freudiana 
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seria alvo de uma reconsideração, se em relação às conclusões dos 
trabalhos de Atlan: “O único projeto reconhecível de fato nos organismos 
vivos é a morte. Mas, devido à complexidade inicial desses organismos, 
perturbações capazes de afastá-los do estado de equilíbrio tem como 
conseqüência a aparição de uma complexidade ainda maior no processo 
mesmo de retorno ao equilíbrio” (“Mort ou vif?”, em L’Organisation 
biologique et la théorie de l’information, 1972). 
Restaria, em último lugar, compreender a razão e o sentido do 
desejo reacional de imortalidade, do sonho de sobrevivência – “tema de 
fabulação útil”, diz Bergson – próprio ao homem de certas culturas. Uma 
árvore morta, um pássaro morto, uma carniça: tantas vidas individuais 
abolidas sem consciência de seu destino de morte. O valor da vida, a 
vida como valor não se enraizaria no conhecimento de sua precariedade 
essencial? “A morte (ou sua alusão) torna os homens preciosos e 
patéticos. Eles emocionam por sua condição de fantasmas; cada ato que 
eles executam pode ser o último; nenhum rosto que não esteja no instante 
de se dissipar como um rosto de sonho. Tudo nos mortais possui o valor 
do irrecuperável e do aleatório” (J. L. Borges, L’Aleph, 1962).
Referências
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1977. 
SIMONDON, G. L’Individu et sa genèse physico-biologique. Paris: P.U.F., 1964.
Endereço postal:
Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PUCRS
Av. Ipiranga, 6681
90619-900 Porto Alegre, RS, Brasil
Data de recebimento: 30/09/15
Data de aceite: 30/10/15
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