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Direito Penal e desigualdade social

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úorla d4 l.á PnUl/ Capítulo I
2.1. Direito Penal e desigualdade social
1. Os objetivos tÚcÚJradosdo Direito Penal, legitimados pelo discurso
jurídico da igualtúuk, da libn-datÚ, do bem comum etc., consistem
na proteção de valores essenciais para a existência do indivíduo e da
sociedade organizada, definidos pelos bem juridicos protegidos nos
tipos legaislO• Os pressupostos não questionados desses objuivos tÚc/a-
,adus são as noções de unidad~ (e náo de divisáo) social. de identidade
(e náo de conrradiçáo) de classes. de igualdatÚ (e náo de desigualdade
real) entre as classes sociais, de liberdat:k (e não de opressão) individual,
de salário equivalente ao trabalho (e não de expropriação de mais-valia,
como trabalho txctdmtt náo remunerado) etc. 11.
2. O significado político do comrole social realizado pelo Direito Penal
e pelo Sistema de Justiça Criminal aparece nas funções reais desse setor
do Direito - encobertas pelas funções declaradas do discurso oficial: a
criminalizaçiiIJ primária realizada pelo Direito Penal (definição legal de
crimes e de penas) e a criminalização secundária realizada pelo Sistema
de Justiça Criminal constituído pela polícia, justiça e prisão (aplicação
e execução de penas criminais) garantem a existência e a reprodução
da realidade social tksigual das sociedades conremporâneaslZ•
O Sistema tk Justiça Criminal, operacionalizado nos limites das
matrizes legais dó Direito Penal, realiza a função decÚIrada de garantir
uma ordem sociaJ justa, protegendo bens jurídicos gerais e, assim,
promovendo o bem comum. Essa fonção tkc/arada é legitimada pelo
discurso oficial da teoria jurídica do crime, como critério de racionali-
dade construído com base na lei penal vigente, e pelo discurso oficial
Id ZAFFARONI. BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Oirriw ~n41 bm.sikiro, 200.~, \'. I,
§ 11, I, ns. 4-6, admitem o bem jurldico como crittrio di mminaliZll(do, mas não
como ~ rk Prouflío do DirdlO Penal, que constituiri:t somente ato político de
pod~do"""'"
II C1RINO OOS SANTOS. Dirrlto Pmal(a ROI/aparttgt'fIlI), 1985, p. 23.
II BAR.-\JTA, Crimi.""'"purilUllt'cririÇ4dodi"llQ~nal, 2000, 2~c:diçáo, p. 173-174.
lO
GJpítuÚJ I DirtitOPt:na/
da teoria jurídica da pena, fundado nas funções de retribuição, de pre-
venção especial e de pretlnlção gn-al atribuídas à pena criminal.
3. Assim, através das definições legais de crimes e de penas. o legis-
lador protege interesses c necessidades das classes e categorias sociais
hegemônicas da formação social, incriminando condutas lesivas das
relações de produção e de circulação da riqueza material, concentradas
na criminalidade patrimonial comum, característica das classes e cate-
gorias sociais subalternas, privadas de meios materiais de subsistência
animal: as definições de crimes fundadas em bens jurídicos próprios
das elites econômicas e políticas da formação social garantem os
interesses e as condições necessárias à existência e reprodução dessas
classes sociais. Em consequência, a proteção penal seletiva de bens
jurídicos das classes e grupos sociais hegemônicos pré-seleciona os
sujeitos estigmatizáveis pela sanção penal- os indivíduos pertencentes
às classes e grupos sociais subalternos, especialmente os contingentes
marginalizados do mercado de trabalho e do consumo social, como
sujeitos privados dos bens jurídicos econômicos e sociais protegidos
na lei penal I3.
4. A proteção das relações de produção e de circulação materiais da vida
social abrange a proteção das forças produtivas (homens, tecnologia e
natureza) e, assim, certos tipos penais parecem proteger bens jurídicos
gerais ou comuns a todos os homens, independentemente da posição
social ou de classe respectiva, como a vida, a,integridade física e psíqui-
ca, a liberdade individual e sexual, a honra, a ecologia etc, Entretanto,
a proreção desses valores gerais é desigual'4, como demonstra quaJquer
pesquisa empírica'~: a} titulares desses bens jurídicos pertencentes às
" BARATfA, Crimmologia mtira t CTÍUCil do d,mlo pmaf, 2000, 2" edição. p.
164-174.
13ARAT1'A, Crimi"oÚJgi4 critica t cn'ticp tÚJ ái,dto prna/. 2000, 2- ediçiio. p. 164 s.
IS Ver MACHADO, Vinícius. E"," númrros. cJku/m t hJmumidndr: o principio
constiruri011ll/ lÚt ináiviJUIllizilfM M pmiI r o mito tÚlpunirilo hum41r~. Dissc"l'taçáo
de Mestrado. UnB, 2009.
II
lioria da Lá Ptl'l4J CapItulo 1
classes ou categorias sociais hegemônicas são protegidos como ures
humanos, os verdadeiros sujeitos da formação econômico-social; b)
titulares desses bens jurídicos pertencentes às classes ou grupos sociais
integrados nos processos de produção/circulação material como força
de trabalho assalariada são protegidos apenas como e enquanto objetos,
ou seja, como energia necessária à ativação dos meios de produção/
circulação e capaz de produzir valor superior ao seu preço de mercado:
a mais-valia, extraída do tempo de trabalho excedente; c) titulares
desses bens jurídicos pertencentes aos contingentes marginalizados do
mercado de trabalho, semJunção na reprodução do capital (a força de
trabalho excedente das necessidades do mercado), não sáo protegidos
nem como mjlitos, nem como objetos: são destruídos ou eliminados
pela violência estrotural das relações de produção ou pela violência
institucional do sistema de controle social, sem consequências penais.
Assim, se a criminalização primária (ou abstrata) parece nrotra, a cri-
minalização secundária (ou concreta) é diferenciada pela posição social
dos sujeitos respecrivosl6•
5. Por outro lado, condutas criminosas próprias dos segmentos sociais
hegemônicos. que vitimizam o conjunto da sociedade ou amplos seto-
res da população, sáo diferenciadas ao nível da criminalização primária
(eipos legais) ou da criminalização secundária (repressão penal)17: 110
nível da criminalização primária. ou não são definidas pelo legislador
como crimes, ou são definidas de modo impreciso e vago, ou as penas
cominadas são irrisórias; no nível da criminalização s~cunddria. portan-
co, ou fruscram a repressão penal, ou a natureza das penas cominadas
mmsforma essas práticas criminosas em investimemos lucrativosl8•
A criminalização dessas condutas constitui o moderno Direiro Penal
simbólico {crimes contra a ordem econômica, a ordem tributária, as
'. CIRlNO OOS SANTOS, D,rt'lto pmaJ (a "ol/apam gtraJ), 1985, p. 26-27.
p stJ1li.ERlANO. Whiu roJla,. rr;mt: tht uncut II~NlOns, 1983, p. 240.257.
ta BAJtKITA., CrmU1U1Ú1pa mtjel! t critica db dirtito proa', 1999, 2a edição, p.
16S-167.
12
C41plruw I
relações de consumo, o mercado de capitais, o meio ambiente e outras
formas da criminal idade das elites econômicas e políticas da formação
social), produzido para satisfação retórica da opinião pública, como
discurso encobridor das responsabilidades do capital financeiro in~
ternacional e das elites conservadoras dos países do Terceiro Mundo
pela criação das condições criminogênicas estruturais do capitalismo
neoliberal contemporâneol9.
6. Seja como for, é no prousso ck criminalização que a posição social dos
sujcicos criminalizáveis revela suafonçáo determinante do resultado de
condenação/absolvição criminal: a variável decisiva da criminalização
secundária é a posição social do autor, integrada por indivíduos vulne·
ráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e Outros mecanismos
ideológicos dos agentes de controle social - e não pela gravidade do
crime ou pela extensão social do dano1o• A criminalidade sistémica
econômica e financeira de autores pertencentes aos grupos sociais
hegemônicos não produz consequências penais: não gera processos de
criminalização, ou os processos de criminalização não geram conse·
quências penais; ao contrário, a criminalidade individual violenta ou
fraudulenta de autores pertencentes aos segmentos sociais subalternos
(especialmente dos contingentes marginalizados do mercado de traba·
lho) produz consequências penais: gera processosde criminalização,
com consequências penais de rigor punitivo progressivo, na relação
direta das variáveis de subocupação, desocupação e marginalização do
mercado de trabalho21•
7. Enfim, o sistema penal representado pela prisão e instituições conexas
consome os sujeitos criminalizados mediante supressão da liberdade
l~ ALBRECHT, Kriminowgit, 1999, p. 29-30.
1il Ver BARATTA, Crimino/ogid cririCd e CritiCd do dirriro pendi, 1999. 2' edição. p.
165-166; também ZAFFARONI, BATISTA. AlAGIA c SLOKAR, Direiro fJnUlJ
brasiÚiro, i003, v. 1, § 2. m. n. lO,
BARATTA, Crimi"o~ criricA e criticd do dirriUJ penal, 1999, 2" edição. p.
165·166.
13
Úlpítulo J
e ourros direims náo especificados na condenação, como direitos
políticos. sociais e individuais de dignidade. sexualidade. recreação,
informação etc. A prisão, justificada pelo discurso penal de retribuição
e de preumçáo do crime, é um mecanismo expiatório que realiza a
uoca jurídica do crime em tempo de liberdade suprimida, acoplado
a um projeto técnico-corretivo de transformação individualu, com
regimes diferenciados de execução penal. O projeto técnico-corretivo
da prisão. cuja história registra 200 anos de fracasso reconhecido,
marcado pela reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado- o
célebre isomorfismo rrformista de FOUCAULT -, caracteriza-se por
uma eficácia invertida, com a reprodução ampliada da criminal idade
pela introdução de condenados em carreiras criminosas23. O discurso
crítico da teoria criminológica da pena mostra que a prisão não pode
ser explicada pelos objetivos declarados de correção do criminoso e de
prevenção da criminalidade, mas pelos objetivos reais do sistema penal,
de gestão diferencial da crirnlnalidade e de garamia das relaçõessociais
desiguais da contradição capital/trabalho assalariado das sociedades
contemporâneas14•
2.2. Bem jurídico: ilida um conceito necessário
1. Juristas e criminólogos críticos pesquisam um referente material
de definição de crime, capaz de exprimir a negatividade social das
situações conflituais da vida coletiva nas sociedades modernas2) e de
indicar hipóteses merecedoras de criminalização legal, admitindo
J.l FOUCAULT. Vigiart punir, 1977, p. 207·223
!.I Vc:r BECKER, Our.swn (nudin in/h/! sociology ofrirvianu), 1973, p. 101 5.; também
FOUCAUL1: Vigiare punir, 1977, p. 239.
l~ FOUCAULT, VrtiaTtpunir, 1977. p. 228·239.
"' BARATTA. Chtcosailtt cnminologlil critica? in Dei D/!Iirti tdtllt Ptnt, 1991, n. 1,
p. 65 s.,.

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