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ALEGRAR nº10 - dez/2012 - ISSN 18085148 
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 ESPINOSA, DELEUZE & GUATTARI: O DESEJO COMO METAMORFOSE 
 
 Por Elton Luiz Leite de Souza
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Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo ─ 
ainda sem movimento. 
 Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes. 
 Manoel de Barros 
 
 
 I 
Como se sabe, Espinosa escreveu sua Ética em latim. Nesta obra ele faz uma das 
afirmações mais ousadas e surpreendentes que um filósofo já fez, e que confere à sua 
filosofia uma atmosfera de vida que toca de alguma maneira mesmo aqueles que não 
estudam filosofia.Não estranharíamos encontrar essa afirmação em um poeta ou em um 
artista. É uma afirmação de alguém que vive da melhor forma, e não apenas teoriza sobre a 
melhor forma de viver. “O desejo é a essência mesma do homem” (Ética III, “Definição 
dos Afetos”, I). Esta é uma das sustentações da Ética de Espinosa, uma vez que o é de toda 
vida que se quer mais viva. Todo homem segue seu desejo, embora pouquíssimos sigam a 
si mesmos quando seguem o que imaginam ser seu desejo. Segundo Espinosa, o desejo 
 
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 Mestre e Doutor em Filosofia pela UERJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professor 
Adjunto do Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado 
do Rio de Janeiro. E-mail: ellds@gbl.com.br 
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nunca é cego, embora cego possa estar o homem que deseja. A cegueira em questão não diz 
respeito ao objeto do desejo, ela concerne ao que é o desejo: quando o desejo ignora a si 
mesmo, isto tem por causa a ignorância do homem acerca de sua essência , pois a essência 
do homem é a essência mesma do desejo. 
Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas.Este termo se refere ao deus 
Cupido .Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. 
O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O 
daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir.Trata-se de um meio de 
passagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um 
grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das 
representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal 
visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença 
entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as 
que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas 
também, mas estas eram asas de borboleta. Isso não é um mero detalhe. Há uma razão para 
Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro. Entretanto, as representações cristãs fizeram 
essa adaptação, trocando as asas de borboleta pelas de um pássaro. Os pássaros já nascem 
com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento : 
elas são a expressão de uma metamorfose ,tal como ocorre com o garoto do filme espanhol 
A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas ): 
contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose . 
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Foi de um ser que rasteja pelo chão, a lagarta, que as asas da borboleta nasceram. 
Para estas nascerem, foi preciso que a lagarta se dobrasse sobre si: é assim, dobrada sobre 
si, inventando para si um casulo, que a lagarta pôde desabrochar. O desabrochar é um 
desdobrar aquilo que nos é imanente. Isto nos mostra que a re-flexão, o dobrar sobre si, é 
um acontecimento da própria natureza. Este acontecimento é uma metamorfose da qual 
nascem asas, asas estas com as quais não nascemos em um primeiro nascimento. A 
metamorfose também é uma prática de paciência. A paciência não é uma passividade, ela é 
uma ação. Ela não significa exatamente suportar o que nos acontece, mas nos preparar para 
sermos o que de fato somos independentemente das flutuações dos fatos ao redor. A 
paciência é uma virtu, uma força da alma.A paciência não é uma espera por algo, ela é a 
conduta que devemos ter para produzirmos aquilo pelo qual não devemos esperar que um 
outro faça por nós. O casulo expressa a arte da paciência da qual nasce a autêntica 
autoconfiança. Padecer é tornar-se paciente de uma ação externa. Todavia, quando agimos 
sobre nós mesmos é com paciência que se obra. A paciência não é o tempo de espera por 
algo que virá, ela é o processo de afirmação e produção do que já se é. 
Não se deve confundir o desejo com o prazer. O prazer quase sempre faz o desejo 
cessar quando o tomamos como a finalidade ou fim do desejo. Quando possuímos de fato 
nossa capacidade de desejar, fazemos com que o prazer esteja subordinado ao desejo, e não 
o inverso; de tal modo que reinventamos o prazer, ou conseguimos extrair prazer das coisas 
mais simples. Decerto que vivemos em uma sociedade do prazer, mas raros são aqueles que 
vivem conforme o seu desejo. As drogas, o consumismo e processos semelhantes 
evidenciam que a mera busca pelo prazer pode ser movida pela infelicidade ou alimentá-la. 
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Há no desejar autêntico uma potência de metamorfose. É por isso que Espinosa 
afirma que o desejo é a essência mesma do homem. Mas o desejo também constitui sua 
existência. A passagem da existência à essência não se faz em linha reta , atravessando uma 
porta ou percorrendo um caminho sinalizado. A passagem é, na verdade, um atravessar de 
fronteiras, de limiares, de zonas intensas como aquelas que apenas Cupido sabia como nos 
fazer atravessar, conduzindo-nos não sobre as costas dele, mas guiando-nos pelas mãos, 
pois é preciso que nos apoiemos sobre nossas próprias pernas, mesmo que seja para saltar. 
Do contrário, não há travessia, não há passagem, tampouco conhecimento e 
autoconhecimento. A passagem para a essência do desejo é uma metamorfose . Nós não 
nascemos com tais asas, e é por isso que a visão cristianizada das asas nos representa como 
tendo caído aqui na Terra. Além disso, o cristianismo e outras religiões tentaram reduzir a 
experiência da metamorfose a uma espécie de "conversão". Contudo, a conversão é um 
morrer para uma determinada vida para renascer em outra reputada a 'Vida Verdadeira', ao 
passo que a metamorfose é um potencializar a vida: é um aumentar a vida através da Vida. 
A visão da metamorfose não nos introduz em outro mundo : ela é um amar este mundo , é 
um "dizer eu-te-amo para todas as coisas", tal como acontece na experiência poética 
descrita por Manoel de Barros
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. A metamorfose é um afirmar que nasce do amor 
à Imanência. Em seu livro sobre Espinosa ( Espinosa e outros hereges), Yovel se refere ao 
terceiro gênero de conhecimento como uma “metamorfose mental”. O desejo é a causa 
dessa metamorfose: as asas que nascem são a expressão de um pensar e agir livres. 
 
2
 Desenvolvo esse tema e suas relações com a filosofia no livro de minha autoria: Manoel de 
Barros: a poética do deslimite ( FAPERJ/7letras, 2010). 
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Conforme afirmam Deleuze e Guattari, um quadro é produzido de perto, mesmo que 
ele seja visto de longe. Enquanto pinta, o artista vê o que ele produz a partir de uma 
distância que não se mede por uma medida fixa. Ele vê perto o que vê. Ele vê o mais perto 
do seu ver aquilo que pinta, como se este lhe saísse daquele ato. Na verdade, o pintor não 
pinta apenas com suas mãos, ele pinta também com seus olhos, uma vez que estes 
produzem aquilo que vão vendo nascer. Este perto não é o perto da afecção, ele é ter o afeto 
perto, próximo. O perto da afecção indica uma ação que sofremos, ao passo que viver o 
afeto perto nos impulsiona à ação. Ver de perto faz nascer um afeto fruto da afecção, mas 
ver perto é experimentar um afeto que nasce imediatamente da compreensão.Ver perto é ser 
tocado e tocar a ideia daquilo que compreendemos, tal como o artista que vê perto a obra : 
o perto está sempre pronto, e é sempre a partir dele que se produz, embora ainda não esteja 
pronta a obra.O perto está pronto não como obra: ele o está como desejo, como atividade ou 
potência que nunca falta a si mesma. 
Pintar, produzir, é um drama
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 . No sentido original, “drama” significa o trabalho de 
parto. O drama expressa o processo de um nascimento. Não é a dor exatamente o que lhe 
caracteriza, mas o esforço, o trabalho. Não apenas a mãe é agente desse trabalho, também o 
é aquele que nasce. Ao contrário do que fazia Sócrates, para quem partejar a alma significa 
apartá-la do corpo, o drama do qual nasce uma obra, seja um quadro ou um modo de vida, 
 
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 Cf. Deleuze, “La méthode de dramatisation”, L’île deserte et autres textes. Paris: Minuit,2002. 
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expressa as núpcias entre o espírito e o corpo. Eis o drama: dar um corpo ao espírito, 
espiritualizar o corpo, experimentar cada um perto quando vivemos o outro: sentir o corpo 
perto quando pensamos, sentir o espírito perto quando agimos. 
Em todo drama há um método, que é o processo de reflexão sobre a produção de si 
mesmo. Há um drama em Espinosa, assim como em Deleuze, mas não há tragédia, a não 
ser como momento preliminar de instauração de um diagrama e enfrentamento do caos, 
uma vez que a tragédia é a vivência de um Pathos, diante do qual muitos sucumbem e 
furam os olhos. A salut, a clínica, ao contrário , é um exercício de abrir os olhos: “as 
demonstrações são os olhos do espírito”, ensina-nos Espinosa. De olhos abertos, despertos, 
experimentamos o limiar do perceptível, de tal modo que é ao imperceptível que 
apreendemos em nosso devir intenso, molecular, imperceptível. 
O artista vê perto, próximo. O pintor nunca está diante do quadro: ele está no 
quadro, como o germe em seu meio, como a lagarta em seu casulo. Ele está no quadro e o 
quadro está nele, e a distância entre os dois não é uma linha intermédia, ela é distância 
absoluta percorrida por afetos expressos em cores, linhas, volumes. 
Esta proximidade não é apenas física, ela é, ao mesmo tempo, anímica, espiritual, 
sensorial. Mais do que vistas, as entidades que o artista produz são também tocadas, 
sentidas e vividas como o produto de um Afeto em obra. Este perto, esta proximidade, é a 
expressão de uma distância na qual nasce o Afeto como produto de uma vida e de uma 
potência próximas de si mesmas. Quando produz sua música, o músico a ouve perto, como 
aquilo que lhe é o mais próximo, embora de longe a ouça a entusiasmada platéia. Todavia, 
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ouvir perto do ouvido físico aquilo que a alma sentiu dentro dela faz nascer no músico um 
encantamento que o leva a desejar produzir mais. Este perto, esta proximidade, torna o 
artista mais próximo dele mesmo e de sua capacidade de produzir o que nunca se viu ou 
ouviu. Este Afeto torna mais potente sua capacidade de ver e o ouvir. Ver perto e ouvir 
perto não são a mesma coisa que ver ou ouvir de perto. Eventualmente, o espectador pode 
ver de mais perto o que via de longe, embora tal deslocamento no espaço jamais o leve a 
ver perto tal como o produtor vê seu produto, pois o produtor vê/sente sua obra como se ela 
estivesse nele mesmo, no limiar de si mesmo. Por mais que o espectador veja de perto a 
obra, isto não o faz passar à atividade que somente o produtor experimenta, embora o 
próprio espectador possa experimentar muita coisa. Nossa época vive um triste afã por ver 
as coisas de perto, sobretudo a vida alheia. Mas ver de perto com curiosidade mórbida pode 
se tornar um pôr-se longe da própria capacidade de afetar e se afetar. Ver perto a vida nos 
torna aptos para compreender todos os seus matizes, todas as suas cores, as de alegria e as 
de dor. 
Ver perto nos permite ver longe. Ver longe não é ver de longe, ver longe é ampliar a 
visão, tal como aquele paciente que passava o dia a descrever aos outros enfermos o que 
ele via através de uma pequena janela da enfermaria. Em sua descrição cristalina da vida, 
esta fulgurava em beleza e em intensidade através de suas palavras: estas faziam renascer o 
afeto na alma daqueles que, reclusos naquele recinto, lutavam contra a morte. Ele descrevia 
acontecimentos que seus olhos viam através daquela janela, que era como uma abertura a 
vazar com luz espiritual, a “luz natural” de Espinosa, aquela escura e fechada mônada. Um 
dia, porém, o tal paciente permanecia mudo. Ao se aproximar dele, a enfermeira constatou 
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que ele havia morrido. Ele era o mais doente entre todos, embora nunca abrisse a boca para 
lamentar ou lamuriar. Então, um outro paciente foi posto no mesmo lugar. Ao olhar para 
fora da janela, um silêncio se fez. E perdurou por muito tempo. Os outros pacientes 
indagaram ao paciente mudo por qual razão ele também não fazia como o outro. Por fim, 
ele diz aos outros pacientes que diante da janela não havia paisagem: havia apenas, 
constatava ele, um espesso muro cinza. Incapaz de produzir perceptos e afetos portadores 
de uma fabulação como linha de fuga (pois foi isto que fizera o paciente-poeta), o 
paciente-analítico foi vencido pela presença do muro, cuja lógica o fazia calar. Por 
ver/sentir a Vida perto, o primeiro paciente, o poeta, via longe: via a partir de sua “visão 
fontana”.4 
Há uma distância ideal para se usufruir a obra, mas para produzi-la existe uma 
proximidade optima que só conhece quem a produz e frui da sua própria potência, ou se 
esforça para tal; pois não se trata de ver uma coisa pronta, mas do produzir um ver que seja, 
também ele, causa eficiente do que se produzirá como objeto artístico que se poderá ver de 
perto ou de longe. O espectador vê a maçã pintada, ele vê a montanha individuada pelos 
seus contornos. Tais imagens poderão lhe suscitar associações psicológicas com maçãs e 
montanhas que ele já experimentou e viu. Talvez ele julgue a maçã e a montanha pintadas a 
partir destes referenciais psicológicos que nutrem sua opinião. O pintor, no entanto, vê a 
potência da cor com a potência do seu ver: o ver e a cor como graus ou modos de uma 
mesma Potência que se experimenta para poder se expressar. O artista percebe a modulação 
 
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 Sobre a “visão fontana”, a visão da qual brota o visto do ato de ver: Manoel de Barros, “Canção 
do ver”, Poemas rupestres, p. 11 
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da força esposando uma matéria heterogênea, de tal maneira que ele vê o que nunca viu e 
nunca viveu a não ser ali, enquanto produz. O pintor vê a obra se fazendo, nãoela feita. E é 
isto que é o ver perto: ver o "se fazendo" que requer, como dizia Manoel de Barros, uma 
"visão fontana": “olho divinatório” de transver as coisas, tal como as transviu Espinosa em 
seu terceiro gênero de conhecimento. Ao experimentar este "ver perto", o artista consegue 
fazer sobreviver a ele o que ele viu, de tal forma que aquilo que ele viu perto tem a potência 
para ir o mais longe dele, expandindo-se ele próprio neste longe, afirmando de si o que é 
eterno. 
Quando produzimos nosso modo de vida de forma adequada, quando nos tornamos 
agentes ativos daquilo que obramos, é dessa maneira que percebemos nossa vida: a vemos 
perto, a vemos se fazendo de acordo com a ideia adequada de nós mesmos. Não a vemos de 
longe ou perto, como se fosse o produto de outra coisa, pois mesmo que vejamos nossa 
vida de perto, ou de muito perto, isso não nos torna menos passivos diante daquilo que nos 
acontece. Quando duas pessoas se amam, por exemplo, elas não se vêem de perto sem antes 
se verem perto uma da outra, e este estar perto não é apenas uma questão física, ele é 
também da ordem do afeto. Ou seja, cada uma atribui à outra a liberdade de estar perto, de 
tal modo que o afeto que as une é vivido como uma necessidade. Estar perto da outra é 
estar perto do próprio afeto, do próprio amor: este as acompanha. Do mesmo modo, quando 
o artista vê perto o que ele produz, é porque a obra tem uma certa autonomia que é a marca 
de sua atividade: o estar perto do artista e o estar perto da obra são expressões de uma 
atividade. Por ser também uma atividade, um agente, a obra também produz: ela produz no 
ver do artista um aumento de potência que ressoa na própria arte. De tal maneira que ao ver 
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perto a obra, o artista vê perto a própria arte: quanto mais perto esta, mais potência o artista 
conquista para ver, para ver e ver-se naquilo que produz, embora a obra não seja o resultado 
de suas vivências e opiniões pessoais. O espectador, ao contrário, crê que é o único pólo 
ativo na relação com a arte que ouve ou vê, uma vez que ele imagina que a pode ver ou 
ouvir de perto ou longe, supondo que a obra é um mero objeto que nada produz. Mas o 
artista que vê ou ouve perto compreende que o visto ou o ouvido também é ativo, também é 
agente e, como tal, produz no artista um afeto que é a própria obra se fazendo, com 
liberdade e necessidade. Ver o espírito de perto, como relatam alguns místicos, ou ver o 
corpo de perto, como se gabam os hedonistas, nada tem a ver com ver o espírito perto e o 
corpo perto um do outro. Não há como vermos o espírito perto sem que vejamos perto 
também o corpo. É na distância de nós em relação a nós mesmos que se dá nossa 
existência, ao passo que nossa essência é o que nos mostra a necessidade de sermos 
próximos, pertos, a nós mesmos. 
 III 
Descartes defendia que a Ideia verdadeira é inata ao espírito. Quando se identifica 
Espinosa a essa posição, coisa que muitos comentadores fazem, inúmeras dificuldades 
aparecem. Deleuze, por sua vez, distingue o inato do natal. Acreditamos que tal distinção 
nos permite compreender melhor o que Espinosa denomina como Ideia, e que já faz de 
Espinosa Espinosa, e não um continuador de Descartes. 
O inato é aquilo com o qual nascemos, e que independe de onde tenhamos nascido, 
pois está apenas dentro de nós, ao passo que o natal é onde nascemos: a "cidade natal", por 
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exemplo. O natal está dentro e fora de nós, dado que ele é a conjugação da ideia e do afeto. 
Combray, a cidade natal do personagem de Proust, não estava apenas dentro dele, estava-
lhe também fora, fora inclusive de sua memória pessoal. O natal nos faz compreender que 
há mais dentro de nós do que imaginamos, e que o fora de nós também concerne à nossa 
vida espiritual. Enquanto o inato é objeto apenas de uma razão fechada sobre si mesma, de 
costas para o mundo, o natal é a ideia através da qual o espírito nasce, abre-se para o 
mundo, como ideia viva do corpo. Assim, a ideia verdadeira não é aquela com a qual 
nascemos, ela é a aquela que nos permite nascer ou renascer, e isso a todo momento, 
embora ela não seja fruto do momento, mas da eternidade. Em francês, a palavra que 
corresponde a conhecimento é co-naitre , “nascer junto”. O conhecimento adequado nos 
faz nascer junto com a ideia que nos liberta de toda tristeza, de todo ódio, de toda 
inadequação e confusão, teórica e existencial, uma vez que conhecer também é, em 
Espinosa, agir, existir. 
O natal ganha toda sua urgência quando estamos dele afastados e desejamos a ele 
retornar. O afastamento do natal não é exatamente no espaço físico, via de regra é um 
afastamento mental, anímico, afetivo, espiritual. Nesse caso, o afastamento é entre nós 
mesmos e aquilo que nos potencializa, e que não se encontra fora de nós. Quando referimos 
o natal à cidade onde nascemos, tal cidade ocupa duplamente nossa alma, por isso mesmo 
cindido a alma em duas: ora ela ocupa nossa memória como uma lembrança, atestando 
uma saudade , ora ela ocupa nosso desejo: neste ela é uma expectativa de uma ação que 
faremos no futuro, ao retornar, mesmo que em visita, ao natal onde nascemos. Na memória, 
o natal nos prende ao ontem; no desejo, ao amanhã. Contudo, quando experimentamos o 
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natal como a própria ideia adequada , vencemos o ontem e o amanhã, integrando-os a um 
pensar e agir adequados que confere consistência aos dias que passaram e aos que estão por 
vir, uma vez que lhes dá sentido uma duração conquistada, na qual sentimos de algum 
modo que somos eternos. E isto nos liberta da saudade, bem como da angústia e da 
expectativa que alimenta a esperança. Como ter saudade do que nunca passou, passa ou 
passará? Como esperar por aquilo que já somos? A ideia adequada restitui a alma a alma, 
impedindo que ela padeça dividida, cindida em duas. O natal não lhe falta como uma coisa 
passada ou futura, mas lhe está imanente como sua parte eterna. Passado e futuro são no 
presente: eles são afecções, isto é, o resultado da ação dos corpos sobre o nosso. Passado e 
futuro são modos da imaginação. O passado é uma afecção presente que nos retira de todo 
presente que não seja o dela. O futuro também é uma afecção presente que enfraquece 
nossa relação com o presente em troca de imagens que a imaginação fornece. Na verdade, 
passado e futuro não enfraquecem exatamente nossa ligação com o presente, eles nos 
retiram do eterno, uma vez que o presente que passa é a realidade inconstante da afecção 
mesma, como o resultado em nós de algo que não somos. É por isso que a afecção perdura 
sempre fora dela mesma, e imaginativamente nos projeta ao que não é mais e ao que ainda 
não é. E quanto mais nos projetamos assim, mais a afecção se enraíza , diminuindo nosso 
sentimento de existir. 
É por essa razão que a experiência com o eterno se faz mediante uma duração que 
nos faz experimentar o que é, não o que foi , o que será ou o que passa. Ter saudade de uma 
felicidade passada ou viver na esperança de uma no futuro nos afasta da real felicidade que 
não nasce das afecções dos corpos exteriores, uma vez que ela nasce quando de fato 
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nascemos no natal que não está no passado ou futuro: é no eterno que se dá um nascer 
sempre no infinitivo. Este nascer é a experiência com o natal. O “viveu” é uma ação 
passada, o “viverá” é uma ação futura, mas o viver é uma ação que dura enquantoestivermos dentro dela. Ela não nasceu no passado, nem depende do futuro para nascer: ela 
nasce quando experimentamos que somos eternos, e quando nos esforçamos para tornar 
essa experiência singular o mais constante que pudermos, dado que é ela que nos torna 
constantes, isto é, de acordo conosco. 
Pensar não é alterar a consciência, tampouco apenas sair dela ou negá-la. Pensar é 
experimentar um natal que não é a consciência, natal este no qual já estamos e jamais 
saímos, a não ser quando nos alienamos. Não se trata, aqui, de um alienar-se em relação às 
coisas, e sim alienar-se em relação a si mesmo. Alcançar o natal é libertar-se igualmente da 
ideia confusa que confunde o pensar com o alterar da consciência. O alterar da consciência 
é condicionado pelo encontro com substâncias externas, ao passo que o pensar é produzido 
pelo encontro conosco enquanto modificação da Substância Eterna, isto é, da Natureza. 
Seria tão absurdo desejar que o contato com o natal nos altere quanto o seria alguém 
nascido no Rio alterar seu natal, e passar a dizer que nasceu em outro lugar. Viver o natal, 
experimentá-lo, não se faz para obter artificialmente alterações de nós mesmos, mas 
potencializações de nós mesmos conforme a luz natural que já nos é imanente. 
Potencializar-se não é alterar-se, potencializar-se é encontrar-se, encontrando-se e estando 
de acordo consigo mesmo naquilo que se pensa e faz. 
 
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