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34 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. O CONCEITO DE JUSTIÇA NA ÉTICA A NICÔMACO DE ARISTÓTELES: Uma abordagem hermenêutica Francisco Virgulino Alves de Oliveira Resumo Trata-se do conceito de justiça (dikaiosu/nh) na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Busca-se caracterizar uma compreensão do sentido de justiça enquanto virtude estritamente humana mediante análise interpretativa da obra mencionada. A questão acerca da justiça em Aristóteles se mostra implicada a questão da virtude (a©reth/). Isto significa que justiça é virtude. O ponto de semelhança entre virtude e justiça se evidencia mediante a noção de disposição de caráter. Porém, uma diferença se apresenta evidente quando da noção de justiça enquanto aquilo que se caracteriza no fazer prático e que implica a realização do bem (a)gato¿n), estritamente humano. Isto torna a justiça um bem meramente humano. O desdobramento disso condiciona a aproximação do referido termo com o conceito de sabedoria prática (fro¿nhsij). Esta implicação revela o aspecto flexível do termo, enquanto norma que caracteriza o que é justo nas ações práticas. Isto posto, a justiça se mostra enquanto absoluto, porém, enquanto aquilo que se caracteriza no âmbito da possibilidade humana. Palavras-chave: Justiça. Virtude. Sabedoria prática. Aristóteles. Ética a Nicômaco O presente texto caracteriza uma abordagem do conceito de justiça (dikaiosu/nh) no âmbito do livro V da obra Ética a Nicômaco de Aristóteles. Deste modo, faz-se necessário algumas considerações relativas à forma de abordagem do referido conceito a fim de dirimir possíveis confusões que, já a partir do título, possam acontecer. Ao se falar da justiça a partir de uma abordagem hermenêutica não se quer aqui evidenciar uma implicação da gênese da hermenêutica e o seu desenvolvimento respectivo, com os fundamentos da justiça em Aristóteles, ou seja, relacionar duas áreas específicas. Trata-se apenas de delimitar o modo de abordagem do conceito de justiça, isto é, o sentido hermenêutico aparece implícito à interpretação evidenciada acerca do conceito mencionado. Deve-se ressaltar ainda que o texto configura uma leitura elementar do referido conceito, objetivando despertar uma reflexão posterior, mais acurada e profunda. 35 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. A questão acerca da justiça (dikaiosu/nh) aparece no contexto de Ética a Nicômaco vinculada à questão acerca da virtude (a©reth/). Isto pode ser compreendido já em função do elemento comum que aparece na definição dos dois conceitos, ou seja, tanto a virtude como a justiça são caracterizadas por Aristóteles como “disposição de caráter”. No livro I Aristóteles deixa claro que se trata da virtude humana, já que o bem ou a felicidade que se busca é o Bem (a)gato¿n) ou felicidade (eu¹daimoni¿a) humana 1 . Com isso é evidente que o bem, o valor moral, é humanizado, pois o foco da discussão diz respeito ao modo como o homem se torna virtuoso pelo exercício e esforço próprios. Também é pertinente frisar que a realização completa da virtude humana não significa simplesmente uma atividade pura da parte racional da alma, isto é, não se reduz a uma atividade pura do intelecto. A virtude se concretiza pelo exercício e o hábito de ações conforme o que é justo, na vida prática. Isto significa que a virtude humana por excelência não prescinde do sentido moral. É no âmbito da vida moral que a virtude se exterioriza. Torna-se verdadeiramente uma virtude humana. E é nessa perspectiva que o sentido de justiça (dikaiosu/nh) se afigura como um dos termos mais importantes no contexto do pensamento ético de Aristóteles, pois, é nela que concentra todo o sentido verdadeiro da virtude estritamente humana. Não é à toa que Aristóteles dedica o livro V de Ética a Nicômaco ao tratamento da justiça. No início desse livro, Aristóteles dá uma primeira definição do termo da seguinte maneira: Vemos que todos os homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo; e do mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto 2 . A justiça é do ponto de vista geral, uma disposição de caráter. Esta definição apenas ratifica o sentido próprio da justiça como sendo virtude, conforme já fora aludido antes. Mas antes de proceder na análise desta passagem, evidenciando as características peculiares da justiça enquanto virtude e a especificidade de abrangência inerente a esse conceito é importante observar o ponto de partida sobre o qual 1 Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, I, 13 - 1102 a, 14. p. 23. 2 Ibid., V, 1, 1129 a, 6. p. 81. 36 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. Aristóteles inicia a sua investigação em torno do problema da justiça. A passagem acima começa pela consideração acerca do que os homens em geral entendem por justiça e esta consideração não revela traços ou posições de cunho erudito. Aristóteles não inicia mencionando a opinião de sábios sobre o assunto, mas parte do que se diz em geral sobre a justiça, ou seja, parte do julgamento da opinião comum. O que não significa também desconsiderar a opinião de caráter erudito. Aristóteles quer mostrar com isso que o homem comum também possui uma noção acerca do que seja o justo e a justiça. O sentido de justiça se revela assim extraído do meio social. A vida em comum possibilita o reconhecimento e a convenção de valores mediante o julgamento de ações praticadas por cada sujeito enquanto vivendo em comum. Pois as diferenças de caráter são resultantes das diferenças das qualidades dos atos praticados, conforme Aristóteles diz: “as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos praticados”3. E estas diferenças só são percebidas na interação, na convivência mútua entre indivíduos de uma mesma comunidade, pois, os atos praticados são oriundos da relação mútua entre os indivíduos. Porém, se todos possuem um entendimento acerca do que é justo e acerca do que é injusto então parece que essa concordância geral significa um sentido ideal ou idéia formal de justiça? Ora, a investigação referente à justiça segue o mesmo caminho percorrido para o esclarecimento de outros termos correlatos, como: o Bem, a felicidade, a virtude. Portanto, a exemplo da questão acerca do Bem, no capitulo 6 do livro I de Ética a Nicômaco, também a noção ou definição da justiça em Aristóteles não parte de uma idéia comum, ou de um mundo ideal, cuja definição seria determinada previamente. Isto significaria desconhecer a indeterminação ou mudança do mundo prático como co-participativo na fundamentação do conceito em questão. A justiça, em sendo virtude humana, emerge da própria condição humana nas suas diferentes maneiras de agir no mundo. Ademais, é em função dos julgamentos humanos sobre ações praticadas pelos homens no contexto da vida social que valores como justo, correto, são convencionados. Mas, se tais valores são oriundos da prática dos atos, eles só se tornam valores por estarem em conformidade com uma espécie de norma determinada. Esta norma afigura-se como sendo a própria justiça enquantodeterminante das qualidades de caráter, já que segundo Aristóteles, conforme o 3 Ibid., I, 13, 1103 b, 21. p. 23. 37 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. entendimento geral, „ela torna as pessoas propensas a fazer o que é justo‟. Neste caso, se a justiça exprime-se enquanto norma e se todo homem de certo modo possui uma noção geral acerca do que seja ela, seria então essa norma determinada previamente por natureza? A resposta a essa questão não pode ser outra senão negativa. Ao dizer que todos os homens possuem uma noção comum acerca da justiça, Aristóteles não está querendo dizer com isso que ela já se encontre definida absolutamente por natureza, no sentido de uma realização absoluta e prévia. Não se deve esquecer de que a justiça enquanto virtude aqui diz respeito antes de qualquer coisa ao homem, portanto uma virtude humana. Isto implica dizer: aquilo que concerne à possibilidade humana. Quanto a isso o livro II esclarece: “Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito”4. A justiça, enquanto disposição de caráter se forma mediante o hábito. O que não significa eximir a natureza do seu papel, uma vez que para o indivíduo julgar e praticar atos de justiça deve trazer desde o nascimento as condições apropriadas e estas condições não são originadas apenas pelo hábito. O papel da natureza não é definir a justiça, mas oferecer as condições para que o homem possa, ao longo de sua vida, e através de ações práticas, realizar a virtude da justiça. Mesmo que os homens percebam a existência de um certo ordenamento natural nas coisas, não significa, conseqüentemente, que esta ordem sirva como norma de aplicação irrestrita para a vida humana. O que existe por natureza não forma um hábito contrário a si mesmo. O problema que envolve a justiça, evidenciado na falta de objetividade da sua definição, está vinculado ao fato de que o caráter irregular da natureza humana não possibilita uma apreensão segura e exata do que a própria justiça realiza, enquanto justo e bom. Segundo Gadamer, “o conjunto da ética humana se distingue essencialmente da natureza pelo fato de nela não atuarem simplesmente capacidades ou forças, mas que o homem vem a ser tal como veio a ser somente através do que faz e de como se comporta”5. Isto quer dizer que a natureza humana não possui a regularidade tal qual a (fu/sij), mas que, mesmo na inconstância do seu comportamento frente a um mundo imprevisível, o homem retira, mediante esforço e exercício, algo de constante e 4 Ibid., II, 1, 1103 a, 24. p. 27. 5 GADAMER, op. cit., p. 412. 38 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. estável. A mudança e a indeterminação são as condições pela qual a justiça, a virtude e o bem, podem ser qualificados como tais. O justo é essa estabilidade que se revela na própria indeterminação do mundo; na ambigüidade de que pode ser diferente do que é. Perceber uma ordem natural, ou seja, um principio determinante do que é justo nas coisas naturais não quer dizer, conseqüentemente, tomar e aplicar esse princípio como regra incondicional de conduta para a vida humana. Isto equivale a dizer que, mesmo que haja certa norma natural das coisas, para o homem ela representa apenas uma pressuposição ou um reflexo de uma norma distante e não como um fim conhecidamente acabado para aquilo que concerne a sua determinação enquanto homem. Hans Kelsen acrescenta que: A afirmação de que uma conduta humana definida é boa ou má, certa ou errada, justa ou injusta, virtuosa ou viciosa, pressupõe a assunção de que algo deve ser feito. A afirmação que algo deve ser ou deve ser feito é uma norma. É uma maneira de expressar a idéia de que algo é um fim, não um meio para um fim. É um julgamento de valor 6 . Neste caso, pressupor a justiça enquanto norma geral é um modo de o homem expressar que num mundo inacabado algo deve ser feito como forma de garantir a sua existência neste mundo. Está na possibilidade do homem a realização do que está para ser feito. E este fazer não significa simplesmente submeter a realidade humana a uma norma incondicionalmente natural. Mesmo a afirmação de que algo deve ser feito se afigure como uma norma, esta norma nunca revestirá o caráter prévio de uma norma transcendente, imutável e rigorosa. Isto significaria desconsiderar que os homens possuem opiniões diferentes acerca até mesmo do que é justo, belo e bom. A justiça transforma as ações práticas, mas este transformar implica sempre em considerar a especificidade de cada momento. Isto pode ser observado implicitamente no contexto geral de Ética a Nicômaco. Aristóteles revela um caráter flexível da justiça à medida que parece não se poder considerar um caráter normativo de nível máximo de exatidão quando se trata de ajustamento de ação prática, já que cada ação em particular representa um acontecimento único e renovado. É por isso que Aristóteles nas primeiras linhas do livro V diz: “No que toca à justiça e à injustiça devemos 6 KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução de Luiz Carlos Borges. 3ª edição, São Paulo: Martins fontes, 2001. p. 117. 39 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. considerar: com que espécie de ações se relacionam elas; que espécie de meio termo é a justiça; e entre que extremo o ato justo é intermediário”7. Essa ressalva introduzida logo no início do capítulo 1 parece ser um prenúncio da complexidade imanente ao termo, devido aos diversos modos pelos quais a justiça pode ser dita. Na primeira noção acerca do termo ainda no livro V de Ética a Nicômaco, Aristóteles menciona que todos possuem um entendimento comum de que a justiça é uma disposição de caráter, que leva o indivíduo fazer o que é justo. Neste caso, temos apenas uma acepção geral que identifica a justiça como sendo virtude, mas não exaure todo o conteúdo do conceito. Em decorrência dessa compreensão emergem outras de cunho também geral, como por exemplo, a identificação de que todo homem que respeita a lei é justo 8 . Isto resulta na compreensão da justiça vinculada à lei, uma vez que as ações individuais devem visar não só o bem do indivíduo em particular, mas o bem comum. E a lei tem como papel garantir o cumprimento da justiça para todos, a fim de preservar a harmonia e fazer realizável a felicidade da polis 9 . A necessidade do estabelecimento da lei decorre da própria necessidade natural do homem em viver em comunidade. É evidente, também, que toda comunidade em particular, para se manter unida e saudável, deve respeitar os preceitos de outras comunidades. Isto significa cumprir uma norma ou lei mais ampla, ou seja, o respeito ao próximo, não somente no que diz respeito a indivíduos de uma determinada comunidade, mas também a indivíduos de comunidades diversas. Porém, neste caso, este respeito mútuo não torna melhor o cidadão, não tem efeitos diretos na conduta moral do sujeito, funciona apenas como um pacto de não agressão entre as cidades. A lei que se aborda aqui é a que tem o papel deoferecer um parâmetro para julgamento de atos entre homens que vivem num mesmo espaço comunitário. Pois, cada comunidade possui hábitos e costumes próprios que se diferenciam em relação a outras comunidades politicamente constituídas. E em todas elas a justiça aparece como parâmetro de preservação do respeito aos valores de cada um no contexto da polis. Mas, assim como entre indivíduos que dividem o mesmo espaço, a concepção acerca do que é justo difere entre eles; também entre as comunidades, a concepção acerca do 7 ARISTÓTELES, op. cit., V, 1, 1129 a, 1. p. 81. 8 Ibid., V, 1, 1129 a, 34. p. 81. 9 Ibid., V, 1, 1129 b, 19. p. 82. 40 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. bem comum é diferente. Isto pelo fato de que cada povo constrói os seus próprios valores mediante o percurso da sua própria história. A justiça é requisitada em todos os âmbitos da vida prática, seja como regra para o bem agir individualmente, isto é, a prática de ações particulares, seja como norma geral de uma comunidade estabelecida, seja como lei natural do viver em geral, isto é, da vida humana no seu todo. E é na perspectiva da junção, particular-geral, que a justiça se apresenta para Aristóteles como sendo a virtude completa. Ele diz: “ela é a virtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exercício atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também sobre o próximo...”10. O sentido de justiça em Aristóteles está, portanto, sempre na base da definição de virtude. Mas é preciso entender dois aspectos que ficam à margem dessa relação. Primeiro, que a justiça é uma virtude moral inerente ao homem e, neste caso, ela se mostra como uma disposição individual. O segundo aspecto decorre de uma das passagens finais do capitulo 1 do livro V. Depois de concordar com Eurípides de que a justiça é a mais completa de todas as virtudes, e de concordar com Platão de que dentre todas as virtudes a justiça pode ser verdadeiramente considerada o bem do próximo 11 , Aristóteles faz uma ressalva na questão apontando uma diferença entre justiça e virtude. Ele diz: O que dissemos põe a descoberta a diferença entre a virtude e a justiça neste sentido: São elas a mesma coisa, mas não o é a sua essência. Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude 12 . Justiça e virtude, portanto, são a mesma coisa, porém diferem em essência. É preciso que isto seja esclarecido, pois em principio parece marcar um paradoxo. O que Aristóteles está entendendo aqui por essência? Em primeiro lugar, analisemos o complemento da passagem: „aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude‟. Podemos encontrar aqui dois sentidos para o termo justiça: um irrestrito e o outro restrito. O sentido irrestrito parece exprimir o caráter absoluto da questão. É quando Aristóteles diz que a justiça é uma determinada disposição de caráter e em si mesma. 10 Ibid., V, 1, 1129 b, 30. p. 82. 11 Ibid., V, 1, 1129 b, 30 e 1130 a, 4. p. 82. 12 Ibid., V, 1, 1130 a, 11. p. 83. 41 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. Isto quer dizer que a justiça é atividade de todo homem virtuoso, que age deliberadamente, discernindo o que é bom do que é mal e agindo conforme um meio termo em relação às ações práticas, isto é, nem excesso, nem falta. A justiça, neste caso, aparece como virtude absoluta, pois não se trata de norma instituída por um grupo de indivíduos, mas um modo de ser próprio de todo homem consideradamente virtuoso. É aquilo que todo homem busca para si mesmo no intuito de se tornar virtuoso e não com vistas ao interesse de algo mais, ou seja, no interesse de utilizar para outros fins. Porém, é necessário precisar o sentido de absoluto, conotado na passagem mencionada como o caráter em si da virtude. Numa das passagens do livro I, quando está se referindo sobre a natureza do bem para o homem, Aristóteles nos dá uma dimensão do que se pode entender por absoluto. Ele diz: “chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa”13. Assim como o bem humano ou felicidade (eu¹daimoni¿a), a virtude que se toma aqui como absoluto também é a virtude humana. E deste modo seria estranho considerar apenas o desejo como fator exclusivamente determinante para aquisição da virtude. A virtude requer algo mais para sua efetivação. O sentido de absoluto aqui, vinculado ao sentido irrestrito da virtude, deve ser compreendido, no que tange à virtude humana, como algo que tem seu valor possivel e não incondicional. Isto se justifica pelo fato de que a virtude humana requer relação com o mundo da práxis. Como pode nos ratificar Aubenque, “a virtude depende do mundo, tanto quanto de suas condições de existência, e este mundo não depende de nós”.14 Com isso não significa também que pelo fato de o mundo não depender do homem a virtude tenha necessariamente que ser procurada ou determinada fora da convivência humana. Mesmo que esse mundo não possa ser apreendido na sua inteireza pelo homem, não obstante, a realização da virtude humana é algo que está no poder do homem. O mundo humano é o mundo da contingência e por isso requer intervenção do sujeito, no sentido de poder fazer realizar aquilo que só ele pode alcançar, a saber: a virtude que lhe é própria. Isto posto, o sentido de absoluto inerente à virtude humana não diz respeito a algo simplesmente estático e incondicional, mas algo que está sempre na iminência do possível, dada a indeterminação do mundo a que ela se vincula. A virtude é 13 Ibid., I, 7, 1097 a, 34. p. 15. 14 AUBENQUE, op. cit., 135. 42 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. disposição de caráter de todo homem que age conforme o que é justo. E, para tanto, todo homem traz consigo a disposição para a virtude. Este é o sentido da virtude enquanto irrestrita, ela em si mesma é disposição da alma humana. Porém, o homem não realiza a virtude simplesmente por saber que traz consigo a tendência para o que é virtuoso e por desejar ser virtuoso. A efetivação da virtude depende tanto das condições trazidas no nascimento, como da experiência de vida. Experiência que se faz na convivência mútua com outros indivíduos na polis. Neste sentido, a virtude requer, para se efetivar, reconhecimento do outro. Isto quer dizer que o homem necessita do outro assim como necessita de si próprio. Encontramos uma confirmação disso na Política quando Aristóteles enfatiza a necessidade do viver em comunidade; ele diz: “...um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade, por ser um animal ou um deus”15. Na comunidade emerge a expressividade da natureza propriamente humana. Mas só emerge porque nela se pode verdadeiramente reconhecer a virtude de cada um. Um reconhecimento que se manifesta mediante os modos como os indivíduos interagem entre si. É nesta interação que a justiça aparece como a norma davida em comum. Como os julgamentos acerca do que seja bom e justo diferem de homem para homem, há uma necessidade de um acordo em comum, pois do contrário, os objetivos se chocariam destruindo a harmonia da comunidade. E tal acordo pressupõe respeito mútuo, isto é, agir com justiça para com o próximo. Neste sentido, a justiça se mostra como virtude propriamente dita. Ela é virtude de fato por ser o exercício prático da virtude irrestrita. E é restrita porque a virtude tem um objetivo que é ser almejada com o intuito de resguardar o bem do próximo, isto é, quando o homem pratica uma ação virtuosa com vistas ao bem do próximo. Como conseqüência disso, temos que uma comunidade necessita de leis próprias a fim de oferecer aos seus cidadãos um paradigma do que é justo dentro de seu convívio. Porém, as leis em si mesmas não tornam mais justos os homens. Estes necessitam sempre da atuação da sua disposição interior, a qual se manifesta sempre através dos atos. É através dos atos que o homem manifesta seu afeto pelo que é justo. Deste modo, praticar a justiça para com o próximo requer tanto a observância das leis de uma determinada comunidade, quanto o desejo despretensioso de cada indivíduo ao praticá-la. Em outras palavras, não basta que o 15 Idem., Política, I, 1, 1253 a. p. 15. 43 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. homem se disponha a respeitar o que manda a lei, é preciso que ele assim o faça por vontade própria e observando se o seu ato acarretará na efetivação do que é justo para com o próximo, ou no descumprimento dessa obrigação. E esta questão é justificável pela indeterminação da realidade a que está exposto cada cidadão no seu convívio diário na comunidade. Agora podemos retomar o início da passagem que implicou na análise da justiça enquanto virtude irrestrita e restrita, e buscar esclarecer o sentido pelo qual Aristóteles diz que a essência de ambas não é a mesma 16 . Pelo que expusemos, ainda que de modo breve, ficou patente que a justiça é virtude. Mas em que sentido Aristóteles está entendendo essa diferença quanto à essência? É preciso entender aqui o aspecto do termo essência como o âmbito relativo à aplicação do termo justiça, e não marcando uma cisão com a virtude. A justiça se diferencia da virtude no aspecto de aplicação, ou seja, ela é a virtude almejada e exercida com a intenção de atingir o bem do próximo. Com essa especificidade o termo parece se mostrar como uma parte da virtude. Porém, Aristóteles enfatiza que a justiça é virtude no pleno sentido. Isto significa que ela atualiza uma ação do indivíduo consigo mesmo e do indivíduo em relação ao próximo. Em relação aos efeitos produzidos no âmbito da comunidade política, a justiça e a virtude são idênticas. Pois, se a virtude leva o sujeito em particular à prática do que é justo, a justiça, expressada na lei de uma comunidade politicamente constituída, faz os indivíduos agirem e desejarem o que é justo. Disso tudo podemos entender que a diferença essencial entre justiça e virtude não significa conseqüentemente dissociação genérica dos termos. Os dois termos são a mesma coisa. Ora, é preciso entender que se a justiça expressa à virtude completa é pelo fato de que ela se acha implicada ao homem. É atividade de todo homem que utiliza a virtude, enquanto sabedoria prática. A justiça é uma ampliação desse sentido de sabedoria prática (fro¿nhsij), enquanto disposição de caráter particular, na relação com o próximo. As características da sabedoria prática se assemelham ao que se entende por justiça no âmbito de uma comunidade. E é nessa perspectiva que em uma das passagens do livro VI de Ética a Nicômaco, Aristóteles diz: 16 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 1, 1130 a, 11. p. 83. 44 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. A sabedoria política e a prática são a mesma disposição mental, mas sua essência não é a mesma. Da sabedoria que diz respeito à cidade, a sabedoria prática que desempenha um papel controlador é a sabedoria legislativa, enquanto a que se relaciona com os assuntos da cidade como particulares dentro do seu universal é conhecida pela denominação geral de “sabedoria política” e se ocupa com a ação e a deliberação, pois um decreto é algo a ser executado sob a forma de um ato individual 17 . Assim pode-se entender que a justiça, enquanto sendo virtude, é virtude no sentido de sabedoria prática (fro¿nhsij). A diferença que se mostra aqui na relação entre sabedoria política e sabedoria prática, bem como as características comuns entre ambas, é análoga a relação apresentada até aqui entre justiça e virtude. Nesse sentido, a justiça representa a efetivação da disposição individual em todos os âmbitos da vida prática, já que ela é disposição de caráter que leva os homens a agirem justamente. E é neste sentido que a justiça se mostra como a virtude enquanto sabedoria prática. Se a justiça é a maior das virtudes, ela assim o é por está implicada na virtude da parte intelectiva da alma racional, isto é, na sabedoria prática, e por ser exercida com o intuito de realizar o bem do próximo. A sabedoria prática requer interação, hábito formado na vida em comum. Quanto a essa relação Aristóteles diz: “Do que se disse fica bem claro que não é possível ser bom na acepção estrita do termo sem sabedoria prática, nem possuir tal sabedoria sem virtude moral”18. Assim, a justiça enquanto virtude, que se mostra individualizada no homem em particular, tem o sentido de sabedoria prática, e enquanto relativa ao bem do próximo é o exercício pleno dessa sabedoria. Dessa vinculação conceitual podemos extrair o aspecto geral do sentido de justiça. É preciso observar que no primeiro capitulo do livro V de Ética a Nicômaco, Aristóteles se detém a falar do aspecto geral da justiça. É na perspectiva de buscar fazer justiça para com o próximo que encontramos nesse aspecto geral, a sua implicação nas leis. Pois, segundo Aristóteles: “O justo é, portanto, o respeitador da lei e o probo, e o injusto é o homem sem lei e ímprobo”19. Mas isso não identifica a lei com o sentido geral de justiça. É certo que a lei manda que se pratique todas as virtudes e proíbe a prática de todo vicio, mas isso não significa determinar a justiça de modo 17 Ibid.,VI, 8, 1141 b, 23. p. 107. 18 Ibid., VI, 13, 1144 b, 30. p. 113. 19 Ibid.,V, 1, 1129 a, 35. p. 81. 45 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. incondicional, acabada. Pois apesar de o ímprobo ser ilegítimo, não se pode dizer categoricamente o inverso, isto é, que tudo que é ilegítimo é ímprobo 20 . Isso mostra que o sentido de justiça não se reduz ao dispositivo legal. E por dois motivos: primeiro pelo fato de que a lei tem um caráter universal. E o segundo motivo decorre do fato de que a própria lei é fruto da criação humana, sendo, portanto, passível de vícios. Em Política, Aristóteles diz: “...é impossível haver lei abrangendo casos ainda sujeitos a deliberação, e não se nega que cabe ao homem julgar tais casos, mas argumenta-se que o julgamento não deve caber a um único homem, e sim a muitos”21. Assim, quando da insuficiência da lei, a responsabilidade pela determinaçãodo que é justo cabe ao julgamento particular ou coletivo dos homens. Este aspecto revela o caráter da justiça enquanto sabedoria prática. Na falta do dispositivo legal, cabe o julgamento do fronimo¿j estabelecer o que é justo, ou seja, o julgamento do homem de saber prático. No livro V este sentido de justiça enquanto sabedoria prática aparece implicada no sentido de justiça enquanto equidade (e)pieikeia). A equidade é a virtude do homem que interpreta a lei e que a corrige. E esta correção se mostra como uma flexibilização da justiça frente ao dispositivo legal, pois este, devido ao seu caráter universal quando aplicado de modo rígido, pode vir a ocasionar um ato de injustiça. E o erro, nos diz Aristóteles, “não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza”22. Assim, o sentido de justiça não se reduz a um dispositivo legal. A justiça se manifesta na própria atitude humana frente a uma realidade inconstante. Com isso não assistimos em Aristóteles a uma absolutização da justiça, mas a uma flexibilização de seu sentido, pelo fato de ser antes de tudo uma virtude referente à práxis humana. Por fim, essa flexibilização implicará na multiplicidade de sentidos que se pode atribuir ao termo. REFERÊNCIAS 20 Ibid., V, 2, 1130 b, 12. p. 84. 21 Idem.,, Política, XI, 1287 b. p. 116. 22 Cf. ARISTÓTELES, op. cit., V, 10, 1137 b, 16. p. 96. 46 OLIVEIRA, F. V. A. O conceito de justiça na Ética a Nicômaco de Aristóteles. Construindo Direito. Serra Talhada. Vol. 2, n. 2, Dez 2010. pp. 34-46. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e G. Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção os Pensadores). _____________. Política. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1992. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. [La prudence chez Aristote]. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003. _________________. El Problema del ser em Aristóteles. Trad. Vidal Peña. Madrid: Taurus, 1974. DÜRING, Ingemar. Aristóteles Exposición e Interpretación de su Pensamiento. Trad. e edición de Bernabé Navarro. 2º edición, México: Universidad Nacional Autônoma de México, 1990. GADAMER, Hans-Geog. Verdade e Método I. Tradução de Flávio Paulo Meure. 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 2004. JAEGER. Werner. Aristóteles. Tradução de José Gaos. 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