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Sérgio Silva EDITORA ALFA-ÔMEGA São Paulo 1ª Edição – 1976 5ª Edição – 1981 Formatação – 2017 Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil 5ª Edição Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil Durante os últimos anos, foram publicados vários trabalhos que criticam a tese (predominante nos textos clássicos sobre a formação econômica brasileira) segundo a qual a industrialização surge e avança nos momentos em que o setor exportador está em crise. Entre os estudiosos da economia brasileira fortaleceu-se inclusive uma tendência em favor da tese contrária: os primeiros passos da indústria estariam diretamente ligados aos progressos do setor exportador, isto é, ao café. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil coloca questões diferentes das que conduziram às teses opostas nesse importante debate. Ao longo do livro, destaca-se a natureza contraditória das relações café-indústria, de tal modo que a expansão, cafeeira determina, ao mesmo tempo, o nascimento da indústria e os limites da industrialização. Entretanto, a contradição entre café e indústria está subordinada ao fato de que ambos fazem parte da acumulação de capital cujo núcleo é formado pelo capital cafeeiro. Assim, os aspectos contraditórios da unidade café-indústria (em geral considerados como “obstáculos” à industrialização ou ao desenvolvimento) são analisados como contradições próprias ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A forma de acumulação que tem como núcleo o capital cafeeiro é considerada também como modo de inserção do Brasil na economia mundial em formação. As especificidades dessa acumulação, no seio da qual nasce a indústria, definem as especificidades do desenvolvimento em um país que ocupa uma posição subordinada na economia mundial. Dessa forma as relações de subordinação internacionais aparecem como elementos constitutivos da própria economia brasileira. Sumário NOTA DA EDITORA ................................................................ 5 SOBRE O AUTOR ...................................................................... 6 NOTA DO AUTOR .................................................................... 7 I. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA ........................ 8 1. O café e a indústria ............................................................... 9 2. Industrialização e capitalismo .............................................. 10 3. Industrialização e transição .................................................. 14 4. Transição e economia mundial ............................................ 17 II. CONDIÇÕES HISTÓRICAS DA EXPANSÃO CAFEEIRA.. 22 1. Condições externas .............................................................. 22 1.1. Do mercado mundial à exportação de capitais ............... 22 1.2. Alguns dados sobre os investimentos britânicos .............. 31 2. Condições internas .............................................................. 33 2.1. Capital ......................................................................... 35 2.2. Torça de trabalho .......................................................... 37 III. ECONOMIA CAFEEIRA .................................................... 46 1. Plantações ........................................................................... 47 1.1. Trabalho assalariado ..................................................... 47 1.2. Mecanização ................................................................ 52 1.3. Estradas de ferro ........................................................... 54 2. Capital cafeeiro ................................................................... 57 2.1. Diversos aspectos e aspecto dominante do capital cafeeiro ........................................................................................... 59 3. Desenvolvimento da Economia cafeeira no início do século XX .............................................................................................. 62 3.1. Superprodução ............................................................. 62 3.2 Valorização ................................................................... 67 EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 4 4. A questão da terra e da abundância de terras ........................ 72 IV. ORIGENS DA INDÚSTRIA ................................................ 81 1. O crescimento da indústria................................................... 81 2. O crescimento da grande indústria ....................................... 85 3. Origens da burguesia industrial ............................................ 96 4. Aspectos contraditórios das relações café-indústria .............. 104 5. Contradições do desenvolvimento baseado na economia cafeeira ................................................................................. 113 6. O capital industrial ............................................................ 119 BIBLIOGRAFIA ...................................................................... 126 NOTA DA EDITORA Com Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil, de Sérgio Silva, a Editora Alfa-Ômega está iniciando a sua coleção de Economia, da Biblioteca Alfa-Ômega de Ciências Sociais. Para dirigi- la, foi convidado o prof. João Manuel C. de Mello, da Universidade de Campinas. A Alfa-Ômega pretende, com esta série, oferecer ao público universitário brasileiro o que de mais recente se tem produzido nas nossas Universidades e divulgar a produção intelectual de nossos economistas que, de forma geral, raramente encontram oportunidade para publicar seus trabalhos. Objetiva, também, formar uma biblioteca especializada, com obras de autores preocupados com os problemas teóricos e práticos da Economia, voltada essencialmente para a realidade brasileira e as necessidades econômicas nacionais. Na sequência desta nova série da Alfa-Ômega está programado o livro Capitalismo tardio, de João Manuel Cardoso de Mello, que aborda os problemas cruciais da transição da economia brasileira para o modelo capitalista. Outros trabalhos estão sendo selecionados para a coleção, sempre dentro do critério de levar ao público trabalhos de real importância na. formação de nossa cultura e na discussão de nossos problemas. SOBRE O AUTOR Sérgio Silva economista, fez os seus estudos universitários em Paris, como bolsista do governo francês, no Institut d’Etudes du Développement Economique et Social da Universidade de Paris I (Sorbonne) e na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Paris X (Nanterre). Ainda em Paris, fez o curso de pós-graduação da Ècole Pratique des Hautes Etudes, cujo diploma obteve com o mémoire “Le café et 1’industrie au Brésil”, apresentado à banca examinadora formada pelos professores Pierre Vilar, Ignacy Sachs e Charles Bettelheim. Retornou ao Brasil, em 1973, e passou a lecionar no Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, Em 1974, transferiu-se para o Departamento de Economia e Planejamento Econômico do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, onde trabalha atualmente. Participou da XXVII Reunião Anual da. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (Belo Horizonte, julho de 1975), com o trabalho “Sobre as Origens da Indústria no Brasil”, e do III Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia (Garanhuns, novembro de 1975), com “Desenvolvimento Econômico e Agricultura no Brasil”. Expansão cafeeira e origens da Indústria no Brasil é seu primeiro livro. NOTA DO AUTOR Essetexto foi preparado dentro do quadro definido por um conjunto de pesquisas realizadas no Departamento de Economia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em convênio com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. Nele procuro desenvolver teses indicadas em trabalho apresentado anteriormente na École Pratique des Hautes Études (Le café et l’industrie au Brésil, 1880-1930. Paris, 1973), sob a orientação de Charles Bettelheim. Aproveito para destacar aqui as minhas dívidas para com os colegas que participaram do mesmo convênio de pesquisas, analisando o mesmo tema, com as mesmas preocupações, como João Manuel Cardoso de Mello (O capitalismo tardio, Campinas, 1975) e Wilson Cano (Raízes da concentração industrial em São Pauto, Campinas, 1975). A ausência de citações desses trabalhos deve-se ao fato de que foram elaborados simultaneamente com o presente texto. Devo ainda agradecer a colaboração de Luiz Carlos Cintra (Auxiliar de Pesquisas do IFCH-Unicamp) e ao estímulo das discussões realizadas com diversos amigos da Escola de Administração de Empresas de São Paulo e da UNICAMP, em particular, Décio Saes e Ligia Silva. Campinas, 1976. I. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA O objetivo principal desse trabalho é o estudo das origens da industrialização no Brasil. A maior parte de suas páginas são contudo consagradas ao exame da economia cafeeira. Isso se explica, inicialmente, pela impossibilidade de examinar nos limites desse trabalho as diferentes regiões do Brasil: dadas as fortes desigualdades econômicas entre essas regiões, um estudo sobre as origens da industrialização em todo o Brasil implicaria uma série de análises regionais. A escolha da economia cafeeira deve-se ao fato de que ela foi o principal centro da acumulação de capital no Brasil durante o período. É na região do café que o desenvolvimento das relações capitalistas é mais acelerado e é aí que se encontra a maior parte da indústria nascente brasileira. Finalmente, a razão fundamental da posição ocupada pela análise da economia cafeeira está em sua importância para explicar as características da indústria nascente brasileira. Toda a análise da economia cafeeira fundamenta o estudo das relações entre economia cafeeira e indústria nascente. O aprofundamento do estudo das relações economia cafeeira- indústria nascente está apoiada em uma problemática onde a industrialização aparece como a última fase do período de transição capitalista. A indústria nascente é então considerada como resultado de um desenvolvimento capitalista prévio. O estudo relativamente detalhado da economia cafeeira, mesmo se por momentos parece afastar-nos do assunto principal, constitui um momento indispensável à compreensão das características da indústria nascente brasileira, porque ele é o estudo das formas dominantes do capital durante o período em questão. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 9 1. O café e a indústria O café já era o principal produto brasileiro de exportação na década de 1840; mas na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir das décadas de 1860 e 1870, a produção cafeeira passou por transformações profundas. A história dessas transformações é a história da formação de novas relações de produção não somente na economia cafeeira mas no conjunto da sociedade brasileira. No seu conjunto, o período da história econômica brasileira aqui estudado caracteriza-se pelo desenvolvimento e a crise da economia cafeeira; mas esse é também o período da substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, do desenvolvimento do mercado, da rápida expansão das estradas de ferro, da aparição das primeiras indústrias. Esse período precede e cria condições necessárias à industrialização no Brasil. A passagem à industrialização não se faz automaticamente, pelo simples jogo das pretendidas leis naturais da economia. Ela é resultado de um sistema complexo de contradições sociais. Representa uma ruptura com o passado (inclusive o período imediatamente anterior à industrialização), que é a consequência de um conjunto de lutas econômicas e, sobretudo, lutas políticas e ideológicas. São justamente as formas dominantes de luta política e ideológica pela “industrialização” e pelo “desenvolvimento”1 que, a 1 Mais precisamente, a posição dominante da ideologia desenvolvimentista nos meios intelectuais brasileiros. A figura central dessa ideologia está na identificação entre desenvolvimento capitalista e desenvolvimento econômico em geral. A industrialização aparece aí como uma fase do desenvolvimento econômico em geral e não como uma fase do desenvolvimento capitalista. Enquanto tal, a industrialização pode ser oposta a todos os períodos que a precedem, sendo estes caracterizados pela predominância da agricultura. Em contrapartida, os ideólogos anti-industrialistas ou antidesenvolvimentistas se preocupavam em demonstrar que o Brasil era um país “de vocação agrícola”. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 10 meu ver, conduziram a obscurecer os verdadeiros laços existentes entre a expansão cafeeira e a industrialização e a ressaltar de uma maneira unilateral a ruptura entre economia primário-exportadora e indústria. A partir do exame do conceito de indústria (e de industrialização), espero poder contribuir para o esclarecimento desses laços e ao mesmo tempo, colocar o período estudado aqui dentro de quadro teórico preciso, onde a expansão cafeeira e a industrialização aparecem como dois estágios da transição capitalista no Brasil. Para melhor precisar essa problemática, torna-se necessário indicar certas características particulares à transição capitalista no Brasil; características que se explicam fundamentalmente pela ascensão do modo de produção capitalista a seu estágio supremo, e a constituição de uma economia capitalista mundial. 2. Industrialização e capitalismo A industrialização tem sido objeto de numerosos trabalhos de sociólogos e economistas que estudaram bastante esse problema, especialmente sob seus aspectos sociais. Mas, na sua grande maioria, esses estudos examinam as consequências sociais da industrialização: trata-se então de analisar as “vantagens” e os “inconvenientes” de um certo tipo de industrialização, multas vezes com o objetivo de orientar esse processo em direção determinada. O importante é que se trata de orientar a industrialização e não mudar sua natureza mesma. Essa é uma consequência do fato de que, nesses estudos, a industrialização em si mesma é considerada unicamente como progresso das forças produtivas ou, para empregar os termos correntes nesses estudos, como progresso técnico, aumento da produtividade. Nesse contexto, o estudo dos aspectos sociais da industrialização INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 11 é reduzido à questão: como os frutos da industrialização são repartidos? Ou mais precisamente, quais são as relações existentes entre tal ou tal tipo de industrialização e tal ou tal tipo de distribuição de renda. Em outros termos, trata-se de saber se um perfil determinado da demanda, resultado de um dado tipo de industrialização, não constitui, em última análise e a mais ou menos longo prazo, um obstáculo ao próprio prosseguimento da industrialização2. Sem negar que essas análises possam produzir – e que produzam efetivamente – conhecimentos sobre a sociedade brasileira e as formações sociais “subdesenvolvidas” em geral, é necessário notar que elas se limitam ao quadro ideológico resultante da industrialização.Ou seja, na medida em que a industrialização em si mesma, além de não ser posta em questão, permanece sendo o alvo a atingir, socialmente falando, então o objetivo final dessas análises é a identificação dos “obstáculos” à industrialização e dos meios de superá-los. Para abandonar essa problemática – e os objetivos que são obrigatoriamente os seus – é necessário considerar a industrialização em si mesma (isto é, a industrialização enquanto progresso das forças produtivas) como um processo social, e mais precisamente como o aspecto técnico do desenvolvimento de relações de produção determinadas, como uma forma do desenvolvimento das forças produtivas adequada a relações de produção determinadas, no caso as relações de produção capitalistas. O que equivale dizer que é necessário considerar que o desenvolvimento das forças produtivas toma as formas adaptadas à reprodução das relações de produção 2 Um exemplo de uma questão dessa problemática: a utilização de técnicas capital- intensive e suas consequências sobre um mercado de trabalho fortemente marcado pelo desemprego. A esse propósito, ver por exemplo Celso Furtado, Um projeto para o Brasil, Editora Saga, 1969. Cf. especialmente pp. 37-58. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 12 dominantes. O desenvolvimento das forças produtivas sob a dominação do capital não é somente desenvolvimento das forças produtivas; é também desenvolvimento das relações sociais capitalistas. Em outras palavras, o reforço da dominação do capital sobre o trabalho. Os dois processos estão intimamente ligados, de modo que um não existe sem o outro. Não há desenvolvimento das forças produtivas, senão sob relações sociais de produção dadas. Todo desenvolvimento de relações de produção implica um tipo específico de desenvolvimento das forças produtivas e portanto a transformação3 das relações técnicas de produção correspondentes às antigas relações de produção. A industrialização representa essa transformação (revolucionarização) do processo de trabalho pelas relações de produção capitalistas. “Na manufatura e no artesanato — diz Marx — o trabalhador se serve de sua ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimento do instrumento de trabalho parte dele; aqui ele não faz mais do que o seguir. Na manufatura, os trabalhadores formam os membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, eles são incorporados a um mecanismo morto que existe independentemente deles”4. E mais além: “Em toda produção capitalista, na medida em que ela não cria somente valores de uso mas ainda a mais-valia, as condições de trabalho dominam o trabalhador, bem longe de estarem a ele submetidas, entretanto, é a máquina que primeiro faz dessa 3 O termo “transformação” é fraco. Não se trata, na verdade, de simples mudança nas formas, mas da revolução das formas de produção. O mais adequado seria empregar o termo: revolucionarização. 4 Cf. K. Marx, Le capital, Ed. Sociales, 1957, T. III, p. 20. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 13 transformação uma realidade técnica”5. Nessa mesma ordem de ideias, é interessante examinar os resultados de pesquisas da equipe do Instituto de Sociologia da Universidade Católica de Milão. Elas ressaltam a ligação existente entre desenvolvimento “técnico” e desenvolvimento “social”: “As características essenciais do processo de industrialização são, de um lado, a extensão e o alargamento da divisão do trabalho no interior de um mesmo grupo produtivo, e de outro lado a obrigação dos produtores humanos se conformarem ao ritmo e ao movimento do processo mecânico. Esse deslocamento técnico do centro de gravidade do processo tem os efeitos socioeconômicos seguintes: a dependência crescente do trabalho frente ao capital e o papel sempre maior do capital enquanto força de coerção e de disciplina frente aos produtores humanos dentro da série de suas operações particulares”6 E ainda: “... o advento e a generalização do sistema de fábrica representa com uma evidência particular o ponto culminante da ascensão ao poder da burguesia capitalista na Europa Ocidental”.7 A noção de industrialização indica, portanto, a revolucionarização das forças produtivas pelas relações capitalistas. Mas, tal qual é empregada em um grande número de estudos, a noção de industrialização esconde o verdadeiro conteúdo do processo, fazendo-o passar por processo de desenvolvimento neutro (socialmente neutro) das formas produtivas. 5 Ibid., T. II, p. 104 6 Manoukian e Romagnoli, “Rivoluzione industriale e sistema di fabbrica”, Studi di sociologia, IX, nº 3/4. Milão, Julho-dezembro 1971, p. 250. Esse artigo define o campo teórico de uma pesquisa sobre o desenvolvimento do capitalismo na Itália, da unificação nacional à primeira guerra mundial. 7 Ibid., p. 257. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 14 Ao nível de uma formação social dada, o que muitos economistas e sociólogos denominam nível ou grau de industrialização indica, de fato, o nível ou o grau de desenvolvimento do capitalismo. A relação entre o valor da produção industrial e o do produto nacional bruto, por exemplo, pode ser um índice do desenvolvimento do capitalismo, na medida em que essa relação nos dá uma ideia quantitativa da produção em que a dominação do capital é já uma “realidade técnica”. As relações desse tipo constituem, portanto, nos limites da problemática que as engendrou, os índices das formas de dominação do capital sobre o conjunto da economia em uma formação social dada. 3. Industrialização e transição A industrialização é o estágio final de uma fase mais longa do modo de produção capitalista: o período de transição8. No início, o capital subordina o trabalho nas condições técnicas dadas pelo desenvolvimento histórico anterior. Essas condições técnicas implicam a unidade do trabalhador e do meio de trabalho, ao nível do processo de trabalho, enquanto que a dominação do capital implica a dissociação formal do trabalhador e do meio de trabalho. “Essa não correspondência é abolida em seguida, pela revolução industrial, cujo desenvolvimento precisamente tomou-se possível pela subordinação formal do trabalho ao capital9. Mas a transição da subordinação formal, à subordinação real do 8 Sobre a problemática da transição, ver Charles Bettelheim, La transition vers l’économie socialiste, p. 9-28 e 153-174. 9 Charles Bettelheim, ob. cit., p. 23. Em lugar de “subordinação”, para sermos mais fiéis ao autor, deveríamos falar de subsunção. Em português esse é também o termo mais preciso. O termo subordinação entretanto parece-me suficientemente rigoroso para os objetivos em questão. Além disso, sua maior divulgação certamente facilita a compreensão do texto. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 15 trabalho ao capital não segue um desenvolvimento linear. O desenvolvimento do capitalismo em sua fase de transição – assim como o desenvolvimento do capitalismo em geral – é o resultado de um conjunto de contradições. Isso é muitas vezes indicado pela noção de resistência do antigo modo de produção dominante. Para recolocar essa questão na problemática que tento expor, é necessário, em primeiro lugar, distinguir os problemas da resistência do velho modo de produção dominante antes e durante a fase de transição. Esses problemas são evidentemente ligados, mas também são qualitativamente diferentes porque o modo de produção dominante não é o mesmo, nos dois casos. Se no primeiro caso a noção de resistência pode ser justificada, no segundoela deve ser afastada. Isso, pelas mesmas razões que levaram Bettelheim a afastar noções tais como “sobrevivência”, isto é, porque o que se indica por resistência é, de fato, um resultado do conjunto das relações que constituem a estrutura de transição. O fato de que essa estrutura seja entendida enquanto combinação de vários modos de produção não justifica o emprego dessa noção. A estrutura de transição não é uma simples justaposição de modos de produção diferentes. Os diferentes modos de produção em presença – digamos, “combinados” – se encontram modificados. Os modos de produção dominados, pelo fato mesmo de sua dominação, “são outros que não em sua pureza... o que é verdadeiro para os modos de produção dominados é verdadeiro, reciprocamente, para o modo de produção dominante cujas características são também em parte modificadas pelo fato mesmo de seu papel dominante”10. Os conhecimentos que possuímos sobre os modos de produção não podem constituir mais que um ponto de partida para o estudo das 10 Ibid., p. 13. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 16 contradições próprias à estrutura econômica da transição. A presença das relações pré-capitalistas, a predominância dessas relações em certos setores ou mesmo em certas regiões de uma formação social em que o modo de produção capitalista é o modo de produção dominante, não podem ser corretamente explicados por uma “resistência” dessas relações às relações capitalistas, porque a própria existência dessas relações é o resultado de uma forma determinada de dominação do capital. A presença de relações pré-capitalistas pode assegurar, por exemplo, que uma parte mais ou menos importante dos bens que entram na reprodução da força de trabalho não entre no preço dessa força de trabalho, os trabalhadores dispondo de um pedaço de terra que cultivam eles mesmos ou com a ajuda de sua família; ou ainda – caso mais geral – os preços dos produtos alimentares não incluem a reprodução da força de trabalho dos trabalhadores agrícolas, que asseguram eles mesmos sua subsistência. Esses sistemas, assegurados pela existência das relações pré- capitalistas, podem ser indispensáveis à reprodução do capital. Nesse caso, a transformação das relações pré-capitalistas não depende simplesmente de uma resistência dessas relações mesmas, mas implica a transformação das formas da dominação do capital. As relações pré-capitalistas não existem, então, senão enquanto relações articuladas-subordinadas às relações dominantes. O que nos interessa não são essas relações em geral, mas seu modo de articulação na transição capitalista, isto é, as formas específicas de dominação das relações de produção capitalista. Em última análise11, são essas formas que explicam as contradições próprias à transição capitalista e portanto o processo de criação das condições à 11 “Em última análise” porque o desenvolvimento do capitalismo é também o resultado das contradições políticas e ideológicas, cuja importância não deve ser subestimada. INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 17 industrialização. 4. Transição e economia mundial A fase de transição do capitalismo no Brasil se realiza quando o capitalismo já é dominante em escala mundial. Seu estudo coloca problemas novos, pois essa fase de transição apresenta contradições novas. A dominação das relações capitalistas mundiais supõe um desenvolvimento anterior do modo de produção capitalista e, particularmente, a sua existência sob formas já bastante avançadas de um mercado mundial. A dominação internacional das relações de produção capitalistas significa que a reprodução ampliada do capital não se realiza mais somente ao nível nacional, mas ao nível internacional. Esse fato já é indicado na tese sobre a predominância do movimento de capitais sobre o movimento das mercadorias ao nível das relações internacionais. A dominação das relações capitalistas em escala internacional significa também a submissão do desenvolvimento de cada economia nacional, isto é, da reprodução do capital em escala nacional à reprodução internacional do capital. É a partir desse momento que podemos falar de economia mundial, na medida em que ela supõe obrigatoriamente um todo estruturado e não uma simples justaposição de partes desconexas12. Nos países em que o capitalismo é ainda fracamente deenvolvido – os países que se encontram na fase de transição capitalista, os países em vias de industrialização ou em vias de desenvolvimento 12 Sobre esse conceito de economia mundial, ver Charles Bettelheim, “Remarques théoriques”, in A. Emmanuel, L’échange inégal, Maspero, Paris, 1969, pp. 296-341, especialmente pp. 318-325. Esse texto está na base da problemática exposta aqui. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 18 (capitalista) – o desenvolvimento do capitalismo apresenta contradições particulares devidas à posição subordinada que eles ocupam no seio da economia mundial. Essas contradições aparecem em um primeiro momento da análise como “obstáculos” ao desenvolvimento do capitalismo nesses países13. Essa noção é perigosa, na medida em que ela faz pensar em “fatores” exteriores a esse desenvolvimento. O que se indica pela noção de “obstáculo” é de fato um resultado desse desenvolvimento mesmo, isto é, da transição capitalista nas condições dadas pela economia mundial. Mais precisamente, esses “obstáculos” constituem um dos aspectos do desenvolvimento capitalista nos países dominados. O outro aspecto – sem o qual a noção de obstáculo perderia todo o sentido – é o desenvolvimento das relações capitalistas. Sobre esse ponto, é necessário ir ainda mais longe e afirmar o que é indicado (e escondido ao mesmo tempo) pela própria noção, de “obstáculo”: o desenvolvimento do capitalismo é o aspecto dominante. Esse duplo aspecto é melhor indicado pela fórmula segundo a qual o imperialismo é ao mesmo tempo “obstáculo” e “elemento motor” do desenvolvimento capitalista nos países dominados. Ainda uma vez, desse ponto de vista também, o aspecto dominante é o desenvolvimento. Se vamos ao extremo do raciocínio descritivo autorizado pela noção de “obstáculo”, veremos que o “obstáculo” não pode ser pensado senão como um momento do desenvolvimento: o capitalismo encontra um obstáculo em seu desenvolvimento. 13 A noção de obstáculo remete também às contradições próprias à transição capitalista, que examino na parte precedente deste capítulo da crítica da noção (aliás mais precisa) de “resistência” do velho modo de produção dominante. Em suas “Remarques théoriques” sobre a troca desigual, Charles Bettelheim apresenta uma crítica da noção de obstáculo (Cf. a propósito da noção de “blocage” das forças produtivas, pp. 314-318). INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 19 Finalmente, esses obstáculos não existem senão porque o capitalismo se desenvolve. Sendo assim, a noção de obstáculo indica um fenômeno bem real: as desigualdades do desenvolvimento das forças produtivas nas diferentes formações sociais. O desenvolvimento desigual é uma característica fundamental do modo de produção capitalista que se manifesta de uma maneira particularmente aguda quando ele se toma dominante ao nível internacional. No seio da economia mundial, as diferentes economias “nacionais” são ligadas por relações de subordinação-dominação. As leis que asseguram a reprodução ampliada do capital em escala mundial asseguram ao mesmo tempo “uma forma determinada de dominação-subordinação das diferentes formaçõessociais, a reprodução do sistema das posições correspondentes a essas relações de dominação-subordinação, os ritmos desiguais de desenvolvimento que resultam dessas posições e as condições de troca que delas resultam”14. Ao nível da formação social, obstáculos e elementos motores são efeitos contraditórios de uma mesma estrutura, a estrutura econômica própria à formação social em via de desenvolvimento capitalista à época da dominação das relações capitalistas em escala mundial, 14 Cf. Charles Bettelheim, loc. citado, p. 321. A dominação das relações capitalistas mundiais e as relações de subordinação-dominação correspondentes, se impõem através de uma divisão internacional do trabalho desfavorável ao desenvolvimento dos países dominados. Ao nível da prática capitalista, essa divisão do trabalho se manifesta no mercado, mais precisamente como diferenças entre os preços do capital (considerado aqui enquanto mercadoria) e da força de trabalho nos países “avançados” e nos países “atrasados”. Nas análises econômicas feitas ao nível do mercado (das relações de troca), tende-se a privilegiar um desses dois aspectos do problema. O “fator trabalho” aparece como uma preocupação central nos estudos de A. Emmanuel (A troca desigual, explicada pelo nível dos salários nos países dominados) ou de Celso Furtado (a questão da distribuição das rendas, in Um projeto para o Brasil). EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 20 É necessário ainda explicar como essas contradições que remetem às relações de dominação-subordinação no seio da economia mundial, podem ser consideradas, como contradições próprias ao desenvolvimento do capitalismo nos países dominados. A explicação deve ser encontrada na própria natureza das novas relações que caracterizam a economia mundial capitalista. Essas relações, apesar de implicarem em formas de dominação políticas e ideológicas tão violentas quanto às da época colonial, apoiam-se fundamentalmente sobre relações econômicas. As relações de dominação-subordinação internacionais que caracterizam o mundo a partir do final do Século XIX são o resultado – ou melhor, uma manifestação – da dominação e reprodução das relações capitalistas em escala mundial. Além disso – e esse fato é particularmente importante para o presente trabalho – essas relações econômicas internacionais estão inscritas nas estruturas econômicas nacionais, de acordo com a posição ocupada por cada nação no seio da economia mundial, enquanto formas especificas de reprodução do capital capazes de assegurar (não de modo homogêneo, mas através de um conjunto de contradições) a própria reprodução internacional do capital. Por essa razão, essas contradições aparecem, ao nível de cada formação social, sob formas específicas a essas formações sociais, como contradições próprias às suas estruturas econômicas. Por essa razão, também, a mudança das formas de dominação do capital em um pais dominado, a passagem a uma nova fase de desenvolvimento do capital em um desses países, geralmente põe em questão as formas vigentes de dominação internacional e, em todo caso, implica em uma mudança dessas formas. As características específicas da transição capitalista nos países que ocupam uma posição subordinada na economia mundial, esta é a problemática que sustenta esse estudo sobre a economia brasileira INTRODUÇÃO SOBRE A PROBLEMÁTICA 21 do final do Século XIX à crise de 1929/193015. 15 Também é impossível traçar uma linha de demarcação histórica e dizer: aqui termina o colonialismo, aqui começa a economia mundial capitalista e as relações de dominação-subordinação internacional que a caracterizam. As formas concretas de dominação não são jamais “puras”. II. CONDIÇÕES HISTÓRICAS DA EXPANSÃO CAFEEIRA 1. Condições externas Na segunda metade do século XIX, o comércio mundial cresceu num ritmo sem precedentes. O crescimento do comércio internacional teve uma grande influência sobre a economia dos países onde o desenvolvimento do capitalismo ainda era muito fraco. Ele criou condições favoráveis a esse desenvolvimento. No que se refere ao Brasil, e em particular à economia cafeeira brasileira, essas condições foram especialmente favoráveis. As cotações internacionais do café, estagnadas ou em baixa desde a independência de 1822, apresentam-se em alta a partir dos anos 18501. O aparecimento dos navios a vapor no Atlântico Sul deu um novo impulso ao comércio de longas distâncias e em particular veio favorecer as relações comerciais entre o Brasil, de um lado, e a Europa e os Estados Unidos, de outro lado. 1.1. Do mercado mundial à exportação de capitais A importância da expansão do comércio para a formação e o desenvolvimento do modo de produção capitalista foi assinalada pela maioria dos estudiosos do problema. Marx destaca que: “...o prazer e a subsistência dependam mais da venda do que do consumo direto dos produtos. Desse modo ele desagrega as antigas condições. Ele aumenta a circulação de dinheiro. Ele não se limita simplesmente a se apoderar do excedente da produção, mas pouco a pouco ele ataca a própria produção e coloca sob a sua dependência 1 Sobre esse ponto, Cf. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil¸ Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1964 (6ª edição), p. 139. ECONOMIA CAFEEIRA 23 setores inteiros da produção”2. O desenvolvimento do comércio é indicado então como uma condição histórica para o desenvolvimento do capitalismo: “Não é nada difícil compreender porque o capital mercantil aparece como forma histórica do capital muito antes que o capital tenha dominado a própria produção. Sua existência e seu desenvolvimento a um certo nível são eles mesmos a condição histórica para o desenvolvimento do modo de produção capitalista...”3. Do mesmo modo, a existência de um mercado mundial e seu desenvolvimento até um certo nível constituem condições históricas para as transformações das relações econômicas internacionais no final do Século XIX. Entretanto, aqui também o que devemos destacar nessas transformações não é o próprio desenvolvimento do comércio internacional, mas justamente o fato que o comércio deixa de ser o aspecto principal das relações econômicas internacionais. A passagem do capitalismo a um estágio superior do seu desenvolvimento, se caracteriza precisamente, nesse nível de análise, pelo papel dominante que a partir dessa época passa a ser desempenhado pelas exportações de capitais4. Existe uma diferença fundamental entre um simples crescimento do comércio internacional – por mais importante que seja esse crescimento – e um crescimento do comércio dominado pelas exportações de capitais. Essa diferença está na própria natureza das relações econômicas internacionais; no fato que, na época em que as 2 Ob. cit., t. VI, p. 339. 3 Ibid., p. 335. 4 A importância das exportações de capitais para a caracterização da economia mundial capitalista é destacada por V. Lenin. Cf., em particular, L’impérialisme, stade suprême du capitalisme, Ed. du Progrès, Moscou, 1967, p. 79. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 24 exportações de capitais tornam-se dominantes, o desenvolvimento da produção capitalista realiza-se em escala mundial. O comércio internacional tem uma influência importante, como já destacamos, sobre a evolução econômica dos diferentes países nele envolvidos. Mas essa influência é sempre uma influência externa, enquanto o comércio continua como o aspecto principal das relações econômicas internacionais. O comércio,em si mesmo, não muda as relações de produção sob o domínio das quais são produzidas as mercadorias que ele transfere de um local, de uma região ou de um país para outro. As condições de produção dessas mercadorias são, elementos fixados previamente e independentemente do comércio, como destacava Marx5. A partir da segunda metade do século XIX, o capital não se limita mais, ao nível internacional, à troca de produtos; ele se apropria da própria produção ao nível mundial. A partir desse momento, o desenvolvimento do comércio internacional torna-se apenas uma parte (aspecto subordinado) do desenvolvimento capitalista (da produção capitalista) em escala internacional. É aliás por essa razão que o comércio mundial passa a desenvolver-se num ritmo sem precedentes: “As trocas internacionais de mercadorias... são o produto da penetração do “capital” em todos os modos de produção em escala mundial; capital que organiza pela sua própria extensão a corrente de trocas”6 São essas transformações ao nível das relações econômicas internacionais que são indicadas na tese sobre o papel dominante 5 Sobre esse ponto, cf. ob. cit., t. VI, Capítulo XX (“Aperçu historique sur le capital marchand”), notadamente p. 334. 6 Cf. Christian Palloix, “Critica dell’economia politica e teoria dell’imperialismo”, Problemi del socialismo, nº 5/6, setembro-dezembro 1971, p. 696. ECONOMIA CAFEEIRA 25 exercido pelas exportações de capitais no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, muitas vezes a questão da exportação de capitais é analisada de um ponto de vista puramente quantitativo ou, digamos, contábil. É impossível compreender a exportação de capitais deste ponto de vista porque ele conduz à desfiguração do próprio conceito de capital. O capital é uma relação social que pode assumir diferentes formas. Do ponto de vista quantitativo ou contábil é impossível considerá-lo desse modo. Quando o economista examina o movimento internacional de capitais do ponto de vista da contabilidade nacional (estudando as balanças de pagamento de diferentes países, por exemplo), ele não pode senão captar, de passagem, uma das formas assumidas pelo capital durante o seu movimento. O próprio movimento não é levado em consideração. Ou, o que é ainda mais grave, ele tende a desaparecer dentro do raciocínio que o confunde com uma de suas formas. A partir de estudos sobre balanços de pagamentos de vários países, através da comparação da entrada e saída de capitais nos países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, muitos economistas chegam à conclusão de que a exportação de capitais não existe ou, pelo menos, não existe mais, concluem que, na verdade, os países “subdesenvolvidos” são os verdadeiros exportadores de capitais. Essa tese é muito importante porque, pelo menos implicitamente, ela conduz à negação do principal elemento que – ao nosso modo de ver – caracteriza a economia mundial capitalista em formação. Por essa razão, ela é o objeto de inúmeros debates. Em relação a A. Emmanuel, que defende a tese sobre exportações de capitais que criticamos aqui, o economista francês G. Dhoquois afirma: “...Emmanuel ignora o capital financeiro e, por exemplo, quando EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 26 ele estuda as exportações de capitais segundo Lenin, as reduz ao simples saldo, ativo ou passivo, dos balanços de pagamentos, enquanto Lenin, apesar de algumas imprecisões de linguagem, considerava a circulação do conjunto de capitais em escala mundial, da qual o saldo do balanço de pagamentos representa somente um dos momentos que, ademais, não é o momento mais importante”7. A crítica de Dhoquois parece-nos inteiramente fundada. Entretanto, para encontrar o núcleo errôneo da tese em questão é insuficiente colocar o problema ao nível do conjunto da circulação do capital em escala mundial, a menos que consideremos a circulação como o local para o estudo do conjunto da reprodução do capital. Se a análise ficar ao nível estrito da circulação, ela levará simplesmente (emprego os próprios termos de Dhoquois) ao conhecimento de outros “momentos” da reprodução, mais uma vez sem captar o movimento real do capital8. Em outros termos, mesmo se a noção de exportação de capitais refere-se à circulação de capitais, a análise do problema não pode ficar restrita a esse nível. Para compreender o movimento real, é necessário deslocar a análise para a reprodução do capital. Nesse nível, podemos entender o capital como uma relação de produção e colocar a questão indicada pela noção de exportação de capitais sob luzes totalmente diferentes. Para evitar longos desenvolvimentos teóricos que fogem ao quadro limitado desse trabalho, tentarei ilustrar essa nova 7 Cf. G. Dhoquois, “Il contributo di Arghiri Emmanuel”, Problemi del socialismo, nº 5/6, setembro-dezembro 1971, p. 817. 8 Por movimento de capital entendemos o conjunto do processo de reprodução do capital, que inclui não somente a circulação mas ainda os processos de produção e distribuição. Esse conceito não deve portanto ser confundido com a noção de movimento de capitais, tal como ela é empregada, por exemplo, nas Contas Nacionais (em particular no Balanço de Pagamentos) e que representa apenas um momento do movimento (reprodução) do capital ao nível da circulação. ECONOMIA CAFEEIRA 27 problemática a partir de um exemplo prático sobre a economia brasileira: o caso dos empréstimos públicos, uma das primeiras formas de exportação de capitais e a forma dominante no Brasil durante o período que estudamos. O empréstimo, por definição, deve ser reembolsado com juros. No fim de um certo período mais ou menos longo, o país que tomou o empréstimo deve devolver todo o dinheiro emprestado e, além disso, uma certa quantia como pagamento de juros e comissões; isto é, de deve devolver uma quantia maior do que a recebida inicialmente. No quadro seguinte, apresentamos os dados relativos ao serviço da dívida e aos novos empréstimos contraídos pelo Brasil durante o período 1851-1900. A comparação entre duas séries, parece fundamentar a conclusão de que nada ficou no Brasil, que, durante esse período, foi o Brasil que “exportou” capitais. Ao nível das contas do Brasil com o exterior, essa conclusão parece correta. Ela choca-se, entretanto, com a impossibilidade de explicar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, em particular as transformações capitalistas da economia cafeeira, se não consideramos o papel fundamental desempenhado pelos empréstimos externos. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 28 I. BRASIL – SERVIÇO DA DÍVIDA EXTERNA E NOVOS EMPRÉSTIMOS 1851-1900 (em milhões de mil-réis ou 1000 contos) Anos Serviço das dívidas Novos empréstimos 1851-1860 5,3 4,1 1861-1870 12,0 10,1 1871-1880 16,7 9,3 1881-1890 30,5 38,1 1891-1900 57,4 63,3 Fonte: Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1963 (3ª ed.), p. 262. Na verdade, esses empréstimos serviram, direta ou indiretamente, para o financiamento da imigração massiva de trabalhadores – e, portanto, para a organização de um mercado de trabalho no Brasil – , para a construção de numerosas estradas de ferro, para a implantação de vários outros serviços públicos e industriais, tais como a eletricidade, o gás, os transportes urbanos etc., sem falar na própria construção e consolidação do Estado. Esse é o verdadeiro movimento (apenas indicado aqui) do capital em escala mundial; movimento impossível de entenderse nos situamos unicamente ao nível do balanço de pagamentos ou mesmo ao nível estrito da circulação. Ao destacar que o resultado líquido dos fluxos de capitais entre países “desenvolvidos” e “dependentes” é, em geral, desfavorável a esses últimos, o estudo empírico tem um mérito indiscutível. Ele conduz à demonstração de caráter errôneo das teses segundo as quais esses fluxos resultam diretamente em uma poupança adicional para os países “dependentes”. No caso específico do Brasil, durante o período estudado aqui, deve-se destacar que à importância das entradas de capital estrangeiro ECONOMIA CAFEEIRA 29 somos obrigados a associar a importância das saídas desses capitais, sob diversas formas e, em particular, sob a forma de serviços da dívida. Se considerarmos o período no seu conjunto, devemos destacar o peso do serviço da dívida externa, que estrangulava financeiramente o país, apesar dos saldos significativos da balança comercial brasileira (Cf. tabela abaixo). EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 30 II. BALANÇO COMERCIAL – SALDOS (em contos) BRASIL – 1851-1928 Anos Saldos1 Anos Saldos 1851/18602 (-11,6) 1908 138,5 1861/1870 18,9 1909 423,7 1871/1880 34,3 1910 233,6 1881/1890 30,9 1911 209,2 1891 62,4 1912 148,4 1892 194,9 1913 (-25,7) 1893 53,2 1914 193,9 1894 (-15,6) 1915 459,3 1895 37,5 1916 326,1 1896 (-20,1) 1917 354,4 1897 164,9 1918 147,7 1898 78,0 1919 844,4 1899 89,0 1920 (-325,0) 1900 205,4 1921 19,9 1901 412,4 1922 679,5 1902 254,8 1923 1.029,9 1903 256,1 1924 1.074,0 1904 263,8 1925 645,2 1905 230,5 1926 485,0 1906 300,4 1927 371,0 1907 216,0 1928 275,8 Notas: 1 Os saldos negativos indicam um excedente das importações sobre as exportações. 2 Para as quatro primeiras décadas, o quadro apresenta saldos anuais médios Fontes: Para as quatro primeiras décadas, Werneck Sodré, ob. cit., p. 262. De 1891 a 1928, J. F. Normano, Evolução Econômica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939, p. 256. Dessas observações podemos concluir que, empiricamente, os dados sobre o crescimento dos investimentos estrangeiros – por ECONOMIA CAFEEIRA 31 exemplo – são bem mais significativos do que os saldos do balanço de pagamentos. Mas mesmo esses dados só adquirem toda a sua significação quando examinados do ponto de vista da reprodução do capital em escala mundial; porque é somente a esse nível que podemos explicar os efeitos contraditórios do desenvolvimento do capital internacional. Ao nível da circulação, as saídas de capitais dos países “subdesenvolvidos” parecem anular o movimento inverso, ao qual faz referência a noção de exportação de capitais. Na verdade, exportação de capitais e saldos negativos para os países subdesenvolvidos são dois aspectos do movimento do capital cm escala mundial e, entre esses aspectos, a exportação de capitais é o aspecto dominante. 1.2. Alguns dados sobre os investimentos britânicos Durante o período analisado nesse trabalho, os investimentos britânicos eram largamente predominantes9, representando mais da metade do total de investimentos estrangeiros no Brasil. 9 Empregamos a noção de investimento ao seu sentido mais largo, tal como ele é, aliás, usado nas publicações da época. Nesses investimentos estão incluídos, além dos investimentos diretos, os financiamentos, que predominavam durante o período. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 32 III. AMÉRICA LATINA – BRASIL INVESTIMENTOS BRITÂNICOS 1825-1913 (em milhões de libras) Ano América Latina Brasil 1825 24,6 4,0 1840 30,8 6,9 1865 80,9 20,3 1875 174,6 30,9 1885 246,6 47,6 1895 552,5 93,0 1905 688,3 122,9 1913 1.177,5 254,8 Fonte: Irving Stone, “La distribuzione geografica degli investimenti inglesi nell’America Latina. 1825-1913”, in Storia Contemporanea, Roma, 1971, pp. 496 e 50010 Em geral, eles predominavam da mesma forma em quase todos os países latino-americanos. Os dados relativos ao período 1825-1913 demonstram o rápido crescimento dos capitais britânicos na América Latina e, em particular, no Brasil, sobretudo a partir da década de 1860. Para termos uma ideia da importância relativa desses investimentos na economia brasileira durante a segunda metade do 10 J. F. Rippy apresenta cifras um pouco inferiores, mas a tendência é a mesma, como se pode notar na tabela abaixo (Cf. British investments in Latin-America. 1822-1949. A case study on the operation of private enterprises in retarded regions, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1959, pp. 25, 37, 68, 75 e 150-158). INVESTIMENTOS BRITÂNICOS 1825-1913 (em milhões de libras) Ano América Latina Brasil 1880 179,5 38,8 1890 425,7 68,6 1900 - 90,6 1913 999,2 223,8 1928 1.211,0 287,3 ECONOMIA CAFEEIRA 33 Século XIX, podemos compará-los ao valor das exportações no mesmo período, expostos na tabela seguinte. IV. BRASIL – EXPORTAÇÕES (milhões de libras) Ano Exportação 1850 8,1 1860 13,4 1870 15,5 1880 21,2 1890 30,0 1900 33,5 Fonte: Quadro construído a partir das séries sobre exportações (em contos) e sobre cotações médias do mil-réis em relação à libra, apresentadas em J. F. Normano, Evolução econômica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939, pp. 256- 261. Os resultados das transformações correspondem às estimativas de Mircea Buescu, no que se refere aos anos de 1850 e 1900. Cf. História econômica do Brasil – Pesquisas e análises, APEC, Rio de Janeiro, 1970, p. 284. Para os anos de 1850 e 1900, Mircea Buescu estima o produto interno líquido brasileiro em 22,08 e 132,93 milhões de libras, respectivamente11. Podemos então dizer que o valor total dos investimentos ingleses no Brasil elevava-se já em 1900 a, aproximadamente, três vezes o valor das exportações e mais de dois terços do produto interno líquido. 2. Condições internas O desenvolvimento das relações capitalistas em escala mundial é muito desigual. As desigualdades desse desenvolvimento aparecem, 11 Ob. cit., p. 284. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 34 por exemplo, quando consideramos a direção das exportações de capitais. A distribuição dos capitais ingleses investidos no estrangeiro é bastante desigual. Como mostra a tabela seguinte, a partir do final do Século XIX, somente o Brasil e a Argentina recebem cerca de 60% dos investimentos britânicos aplicados na América Latina. V. INVESTIMENTOS BRITÂNICOS NO BRASIL E NA ARGENTINA EM RELAÇÃO AO CONJUNTO DA AMÉRICA LATINA 1825-1913 Ano Argentina (% ) Brasil (%) 1825 4,8 16,2 1840 3,2 22,3 1865 3,4 25,1 1875 12,9 17,7 1885 18,6 19,3 1895 34,6 16,8 1905 36,8 17,9 1913 40,7 21,6 Fonte: Irving Stone, art. cit., p. 500. A existência dessas desigualdades decorre das características fundamentais do próprio modo de produção capitalista; a profundidade dessas desigualdades entre as nações é uma das características fundamentais do modo de produção capitalista dominante em escala mundial. Entretanto, como a economia capitalista mundial não existe em abstrato, as suas desigualdades explicam-se fundamentalmente pelas características das diferentes economias nacionais que a compõem. Em particular, quando se trata de explicar o desenvolvimento do capitalismo em um país determinado, é necessário pôr em evidência e examinar as suas contradições particulares, sem perder de vista, é claro, que essedesenvolvimento faz parte do capitalismo internacional (o que ECONOMIA CAFEEIRA 35 determina inclusive as especificidades desse desenvolvimento). 2.1. Capital Após 1808, com a chegada ao Brasil do príncipe regente português que fugia das tropas napoleônicas, são assinados importantes decretos que garantem a abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” (concretamente, o fim do monopólio colonial português) e a transformação do Brasil em parte do Reino Unido de Portugal e Algarves e sede deste Reino (concretamente, o fim do estatuto colonial). O Brasil adquire então uma autonomia de fato. Como se sabe, a independência política de direito é proclamada em 1822, após o retorno à Lisboa do Governo real e, em particular, diante da ameaça recolonizadora da revolução liberal portuguesa de 1820. O processo que conduz à independência do Brasil está inserido em um quadro internacional preciso, caracterizado, fundamentalmente, pela revolução industrial, pela “decadência” do capital mercantil, pela ascensão das potências industriais, como a Inglaterra, e em particular pela crise do antigo sistema colonial português. Ele não pode, entretanto, ser entendido sem que consideremos especificamente a crise do sistema colonial português no Brasil, de cuja aceleração as numerosas revoltas de Minas Gerais (1789), Rio de Janeiro (1794 e 1797), Bahia (1798) e Pernambuco (1801 e 1817) são manifestações contundentes12. A abertura dos portos (1808) e a independência política (1822) são as datas magnas da burguesia comercial brasileira13. O fim do 12 Uma análise de conjunto desse processo é apresentada por Emília Viotti da Costa, “Introdução ao estudo da emancipação política”, Brasil em perspectiva, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1973 (4ª ed.), pp. 64-125. 13 Isso não implica em considerar que o processo de independência política do Brasil realiza-se entre essas duas datas. A independência, entendida como um processo complexo de lutas sociais, estende-se praticamente até a abdicação de Pedro I, em EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 36 monopólio comercial português e o fim do estatuto colonial determinam o acesso dos comerciantes brasileiros (no caso, não necessariamente nascidos no Brasil) ao setor central de uma economia ainda colonial: o grande comércio de importação-exportação. A partir dessas datas, a burguesia comercial brasileira desenvolve-se rapidamente graças, sobretudo, à consolidação e expansão das fazendas de café, que essa burguesia organiza juntamente com a aristocracia fundiária local. Durante a primeira metade do século XIX, as plantações de café foram desenvolvidas sobre a base do trabalho escravo. Os fazendeiros do café encontravam os escravos necessários ao desenvolvimento das plantações graças, em parte, às migrações internas, isto é, graças à compra de escravos vindos do Nordeste e sobretudo de Minas Gerais, onde havia um número relativamente importante de escravos “disponíveis”, dado o declínio das atividades das minas de ouro muito desenvolvidas nessa Província durante o Século XVIII. Mas a África foi sem dúvida a principal fonte de escravos para o café. Furtado estima que o número de escravos que entraram no Brasil durante a primeira metade do século XIX foi superior a 750.000 e inferior a 1.000.000, isto é, entre 15 e 20.000 em média por ano. O tráfico externo era muito importante porque a população escrava local, em razão de suas condições de vida e de trabalho, decrescia14. A produção de café desenvolve-se sobre essas bases ao longo da primeira metade do Século XIX, até tornar-se, na década de 1840, responsável pelo primeiro produto brasileiro de exportação, representando sozinho mais de 40% do valor total das exportações15. Em consequência, na década de 1860 já existe no Brasil uma classe 1831. 14 Cf. Celso Furtado, op. cit., pp. 141-142. 15 Ibid. p. 137. ECONOMIA CAFEEIRA 37 de capitalistas comerciais bastante rica para aproveitar as condições favoráveis do mercado internacional. 2.2. Torça de trabalho Contudo as possibilidades de expansão sobre a base do trabalho escravo eram muito limitadas. Após a independência de 1822, a Grã- Bretanha exigiu que o governo brasileiro interditasse esse tráfico. Um acordo assinado entre os dois países estipulava mesmo uma data para essa interdição: 1830. Este acordo não foi cumprido. Em 1845, o Parlamento britânico adota um projeto de lei autorizando a marinha de seu país a fiscalizar qualquer navio suspeito de participar do tráfico de escravos e, eventualmente, prender os responsáveis para submetê- los ao julgamento da justiça militar britânica, sob a acusação de crime de pirataria. Em 1851, com a adoção pelo parlamento brasileiro da Lei Euzébio de Queiróz, a interdição do tráfico de escravos tornou-se efetiva no Brasil16. Essa lei marca o início de um processo onde diferentes leis e decretos representam diferentes momentos ou simples – mas não inúteis – reafirmações do princípio da abolição progressiva da escravidão no Brasil17. Entretanto, a produção continuava apoiada fundamentalmente sobre o trabalho escravo. Segundo uma pesquisa cujos resultados foram apresentados no Relatório do Presidente de São Paulo à Assembleia Legislativa, em 1855, em 2.618 plantações de café dessa Província havia 55.834 escravos para 62.216 trabalhadores18. A 16 Para um estudo detalhado dessa questão, ver. L. Bethell, The abolition of the Brazilian Slave Trade, Cambridge University Press, 1970. 17 Ver, sobre essa questão, P. Beiguelman, A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos, São Paulo, Livraria Pioneira, Editora, 1968. 18 A pesquisa foi realizada em 1854. Cf. A. d’E Taunay, História do café no Brasil, DNC, Rio de Janeiro, 1939-1943, vol. III, p. 134. Os outros trabalhadores eram: 1) os EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 38 compra de escravos fora das regiões do café não podia assegurar a mão-de-obra necessária à expansão cafeeira. Entre 1840 e 1851, vieram da África 371.625 escravos, isto é, cerca de 31.000 por ano, enquanto que de 1852 a 1859, a entrada de novos escravos, reduzida às compras no país, foi de 3.430 por ano19. As possibilidades de encontrar a força de trabalho no Brasil mesmo eram muito reduzidas. Onde a produção não estava apoiada no trabalho escravo, predominava um sistema que retinha o trabalhador à terra. Nessas regiões, em geral no interior do país, fora das plantações escravagistas situadas sobretudo no litoral, a agricultura e a pecuária eram organizadas sobre a base de vastas propriedades fundiárias em geral exploradas por um modo extensivo. Esses eram os latifúndios. Este sistema estava apoiado na autossubsistência. Aquele que poderíamos chamar de o camponês brasileiro, devia assegurar ele próprio a sua subsistência, explorando por seus meios as terras que lhe eram concedidas pelo latifundiário. Em contrapartida, devia trabalhar para o latifundiário, recebendo por esse trabalho uma retribuição mínima e, em geral, in natura (uma parte da colheita ou uma certa porcentagem do gado que ele havia criado, conforme o proprietário dedicasse as suas terras à agricultura ou à criação). Assim, apesar do fato que esses “camponeses” não eram proprietários é de que viviam bastante pobremente, eles permaneciam muito ligados ao latifúndio, porque ele assegurava sua subsistência. Não é senão com o desenvolvimento da agricultura comercial e na medida em que esse desenvolvimento conduz o latifundiário aagregados, nome sob o qual se designa em geral no Brasil aqueles que trabalham em uma fazenda principalmente contra o direito de explorar um pedaço de terra para sua subsistência; 2) os colonos: trabalhadores imigrados, que eram em geral, nessa época, submetidos ao sistema de parceria. 19 Cf. A d’E Taunay, ob. cit., vol. IV, pp. 152-153. ECONOMIA CAFEEIRA 39 retomar (no todo ou em parte) as terras que os camponeses exploram eles próprios, que esses trabalhadores serão levados a abandonar os latifúndios. A inexistência de uma rede de comunicação ligando as diferentes regiões do Brasil e a dispersão dos latifúndios, reforçavam os laços entre os trabalhadores e o latifúndio20. Em resumo, esses trabalhadores, apesar de não disporem de terras e não contarem senão com a sua força de trabalho para viver, não constituíam um verdadeiro mercado de trabalho para as plantações de café. Os pequenos proprietários, não muito numerosos, eram encontrados, principalmente, nas regiões meridionais, atingidas pela imigração de origem europeia estimulada após a Independência. A maior parte deles vivia, também, praticamente da autossubsistência em um isolamento quase total21. Como encontrar a força de trabalho necessária à rápida expansão das plantações (e, por conseguinte, à acumulação de capital)? Essa era uma das preocupações principais, ou mesmo a preocupação fundamental, dos fazendeiros e grandes comerciantes22, que não podiam partilhar das ilusões recentes sobre a abundância da mão-de- obra criada pelos modelos econômicos de “oferta ilimitada de mão- de-obra”23. Nessas condições, os “pioneiros” do café voltaram-se 20 Sobre o latifúndio no Brasil, ver especialmente: Alberto Passos Guimarães, Quatro séculos de latifúndio, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968; e M. Vinhas, Problemas agrário- camponeses do Brasil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. 21 Sobre esse ponto, ver Pierre Dennis, Le Brésil au XXème siècle, Armand Colin, Paris, 1909, notadamente caps. X e XI, pp. 207-250. 22 Essa preocupação aparece praticamente em todos os relatórios dos Presidentes da Província de São Paulo, entre 1850 e 1880, comentados por Taunay, Cf. ob. cit., vol. III, caps. XVII a XXI, pp. 101-221. 23 Para uma crítica dessas ilusões, apoiada na análise concreta do processo complexo de transição para o trabalho assalariado, ver João Manuel Cardoso de Mello, O capitalismo tardio, Unicamp, 1975 (mimeo.), pp. 69-89. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 40 pouco a pouco para a imigração, vista corno o único modo de resolver esse problema crucial. As primeiras experiências nesse sentido datam, com efeito, da década de 185024. Elas estavam baseadas no seguinte sistema: de um lado, para arcar com as despesas relativas à viagem e aos gastos de instalação dos trabalhadores imigrados, o fazendeiro obtinha financiamento do Estado; de outro lado, os imigrantes se comprometiam a reembolsar o fazendeiro com o seu trabalho futuro. Os trabalhadores eram contratados como parceiros. Eram então pagos unicamente em função da colheita, que era comprada pelo próprio fazendeiro. Esse sistema conduziu o trabalhador a uma situação próxima à da escravidão. Segundo Denis, os trabalhadores imigrantes eram vendidos nos mercados: podia-se comprá-los pagando suas dívidas com os seus antigos patrões25. Muito bem adaptado à mentalidade escravista das classes dominantes brasileiras, um tal sistema apresentava contudo um inconveniente maior: não era capaz de provocar uma imigração massiva, e essa era uma condição para o crescimento rápido das plantações de café. Uma vez que a realidade do “paraíso brasileiro” foi conhecida na Europa, a imigração foi entravada. Certos governos chegaram até a interditar a imigração para o Brasil. Foram necessários mais de 10 anos para que os fazendeiros de café, obrigados pelas exigências da acumulação de capital, se decidissem a abandonar seus métodos pré-capitalistas e oferecer aos trabalhadores condições de trabalho baseadas em contratos salariais, facilitando assim a imigração. Finalmente, os braços necessários ao desenvolvimento do café foram encontrados na Europa, mais precisamente na Itália. O povo 24 Cf., por exemplo, Nelson Werneck Sodré, ob. cit., pp. 250-251. 25 Cf. Pierre Dennis, ob. cit., pp. 121-124. ECONOMIA CAFEEIRA 41 italiano, sobretudo o povo do sul da Itália passava por dias particularmente difíceis após a Unificação Nacional. Os trabalhadores italianos, sobretudo os do Mezzogiorno, vieram, então, por dezenas de milhares em cada ano, povoar as terras de São Paulo. Eles constituíram a grande maioria (cerca de 65%) dos imigrantes que chegaram ao Brasil nos dois últimos decênios do século XIX26. Após 1870, o governo da Província de São Paulo tomou a seu cargo todas as despesas relativas à imigração: pagamento da viagem dos trabalhadores e de suas famílias, criação de um organismo encarregado de dirigir a imigração, através de agencias fixadas em vários países da Europa (sobretudo na Itália). A partir dos anos 1880, a imigração tornou-se massiva. Entre 1887 e 1897, 1.300.000 imigrantes chegaram ao Brasil. A título de comparação entre 1890 e 1900, a população do Brasil aumentou cerca de 3.000.000 de pessoas, passando de 14 a 17 milhões. A maioria dos imigrantes foi para São Paulo: 909.417, entre 1887 e 1900 (essa cifra corresponde a 82% do crescimento demográfico desse Estado no mesmo período)27. Foi fundamentalmente graças a essa imigração massiva de trabalhadores de origem europeia que o mercado de trabalho formou- se e desenvolveu-se no Brasil até a década de 1920. E nesse mercado de trabalho, formado pelos trabalhadores imigrados, se abasteceram não somente os fazendeiros de café, más também os primeiros industriais brasileiros, como veremos no capítulo consagrado à indústria 2.2.1. Efeitos contraditórios da abolição progressiva A escravidão não foi totalmente proibida em todo o território nacional senão em 1888, isto é, quando a imigração já se tornava 26 Cf. dados apresentados por Dennis, ob. cit., pp. 131. 27 Cf. Azis Simão, Sindicato e Estado, Domminus, São Paulo, 1966, p. 32. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 42 massiva e o trabalho assalariado já havia podido mostrar as suas vantagens em relação ao trabalho escravo. Antes disso, dois golpes parciais foram desferidos contra a escravidão pelo Governo do Império, de modo que a abolição foi progressiva e seguiu, de fato, o desenvolvimento do mercado de trabalho. Em 1871, uma lei proibiu que os filhos de escravos nascidos a partir desse momento fossem reduzidos à condição de seus pais. Em 1884, uma outra lei declarou “homem livre” todo escravo com mais de 60 anos de idade. Mas em 1888 havia ainda cerca de 700.000 escravos no Brasil28. A eficácia das medidas governamentais que compõe o processo progressivo de abolição da escravidão pode ser discutida. A abolição do trabalho escravo para os sexagenários, além de tardia, não deveria atingir um número relativamente elevado de pessoas, tendo em vista as condições de vida dessa parte da população brasileira. Em relação à “lei do ventre livre”, pode-se imaginar a liberdade de que dispunham os filhos de escravos nas fazendas dos proprietários de seus pais. Nem a abolição progressiva da escravidão nem mesmo sua proibição total em 1888 foram suficientes para assegurar o rápido desenvolvimento do mercado de trabalho. Isso deve ser explicado fundamentalmente por razões ideológicas, ligadas a um certo estágiode desenvolvimento do capital. Para que o trabalhador venda sua força de trabalho ao capital, é necessário que ele não possa viver senão da venda de sua força de trabalho, isto é, que ele seja despossuído de todo meio de produção. Essa condição material é uma condição primeira do desenvolvimento do capital. Mas é necessário ainda que o trabalhador esteja disposto (ideologicamente) a vender sua força de trabalho e que ele não prefira, à condição de assalariado, a miséria e a mendicidade. Ora, dado que os fundamentos ideológicos e políticos da produção capitalista são ao 28 Cf. Werneck Sodré, ob. cit., pp. 251-252. ECONOMIA CAFEEIRA 43 mesmo tempo condições e resultados da reprodução do capital, nas origens da produção capitalista a coação e a violência ocupam sempre uma posição determinante29. Os antigos escravos, cuja exploração implicava um recurso sistemático e direto à violência, estão entre os trabalhadores menos adaptados ideologicamente às formas superiores de dominação do capital. Nos países como o Brasil, dadas as possibilidades mais ou menos grandes de viver em autossubsistência ou integrar-se a formas pré-capitalistas de produção predominantes no campo, os antigos escravos “escapavam” mais ou menos facilmente ao trabalho assalariado. Mesmo os antigos escravos que estavam nas cidades das regiões mais desenvolvidas e aí permaneciam, submetiam-se dificilmente à disciplina própria à produção capitalista30. Sabe-se que os preconceitos raciais encontram, muitas vezes, as suas origens na escravidão. As dificuldades da passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado, em particular a resistência do ex-escravo à disciplina capitalista do trabalho, esta certamente ligada à manutenção de tais preconceitos. Para entender as contradições particulares do desenvolvimento 29 Sobre essa questão, K. Marx, O capital, Livro Primeiro, Oitava Seção (A acumulação primitiva), especialmente caps. XXVII e XXVIII, Cf. ob. cit., vol. III, pp. 157-183. 30 Não se trata, contudo, de uma contradição própria unicamente ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Outros países, onde o capitalismo também é parte da economia colonial, essa contradição está presente; muitas vezes, inclusive, sob formas ainda mais violentas. Em um estudo sobre a Guiana francesa, M. J. Jolivet afirma: “Todos os países que conheceram a escravidão, conheceram igualmente uma crise econômica e social após a emancipação. Nas Guianas vizinhas, a crise econômica foi resolvida por uma política de imigração intensiva: no Suriname e, sobretudo, na Guiana, a numerosa mão-de-obra necessária à manutenção das grandes plantações de cana-de-açúcar que os escravos haviam abandonado foi buscada nas Índias Orientais. ” Cf. “Une approche sociologique de la Guyane française – crise et niveau d’unité de la société créole”, Cahiers de PORSTOM, Série Sciences Humaines, vol. VIII, nº 3, XX, 1971, p. 293. EXPANSÃO CAFEEIRA E ORIGENS DA INDÚSTRIA NO BRASIL 44 do capitalismo nas condições históricas determinadas pela economia colonial, é necessário dar o devido destaque ao fato de que a manutenção do trabalho escravo constitui um obstáculo fundamental ao desenvolvimento do mercado de trabalho. A passagem ao trabalho assalariado requer a abolição da escravidão. Não se examina neste trabalho a passagem de uma economia escravista antiga para uma economia capitalista. O capital já domina a economia colonial. Trata-se, portanto, de uma passagem a novas formas de dominação do capital. A especificidade dessa passagem consiste na necessidade da destruição das relações de produção escravistas, em lugar da sua simples subordinação. O processo concreto da abolição da escravidão no Brasil – a chamada “abolição progressiva” – implica em uma contradição particular. Essa contradição pode ser notada com destaque na análise de Celso Furtado, onde ela aparece como uma contradição formal31. Após destacar o “nível mental reduzido do escravo” e suas “consequências negativas para o desenvolvimento econômico”, Celso Furtado afirma, de um lado, que a abolição da escravidão “foi uma medida mais política do que econômica”, incapaz de provocar uma “modificação importante na forma de produção” e, de outro lado, que a manutenção da escravidão durante o Século XIX foi um fator de estagnação econômica32. Se, de um lado, a “abolição progressiva” evitava que o valor da massa de escravos desaparecesse de um dia para outro, de outro lado ela mantinha o quadro escravista e retardava a passagem ao trabalho assalariado, inclusive e em particular a transformação dos homens livres e ex-escravos em trabalhadores assalariados. 31 Uma contradição formal não significa um simples erro. Muitas vezes ela indica – como é o caso aqui – a contradição real. 32 Cf. Celso Furtado, ob. cit., Cap. XXIV, pp. 162-167. O parágrafo onde se encontram as afirmações citadas está na página 167. ECONOMIA CAFEEIRA 45 Em outros termos, a “abolição progressiva” não implicava em uma “introdução progressiva” do trabalho assalariado; e na medida era que isso não acontecia, ela retardava na mesma proporção o desenvolvimento do capitalismo. Desse modo, ao, defender as antigas formas da sua dominação – formas que lhe garantiram uma acumulação primitiva necessária – as classes dominantes retardavam a própria acumulação. Em conclusão, as classes dominantes encontraram um meio tão formidável para amortecer o golpe da abolição que, no final das contas, a própria abolição parece não ter em si mesma efeitos econômicos positivos... Mas, evidentemente, os seus representantes políticos não deixaram de culpar os brasileiros livres ou libertados pelos atrasos na passagem ao trabalho assalariado: deputados e dirigentes rurais não se cansavam de denunciar a preguiça, a irresponsabilidade e a indisciplina dos trabalhadores livres da economia escravista brasileira, com os quais lhes parecia impossível levar adiante um bom negócio e constituir o mercado de trabalho que tanto desejavam. III. ECONOMIA CAFEEIRA A produção brasileira de café cresceu muito rapidamente durante todo o século XIX. No começo da segunda metade do século, ela toma proporções muito importantes: a cifra se aproxima de 3 milhões de sacas em média por ano. A partir da década de 1870, e sobretudo a partir de 1880, quando a produção média anual ultrapassa os 5 milhões de sacas por ano, o café torna-se o centro motor do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. I. BRASIL – PRODUÇÃO DE CAFÉ – 1821-1900 (em milhões de sacas) Anos Produção 1821-1830 0,3 1831-1840 1,0 1841-1850 1,7 1851-1860 2,6 1861-1870 2,9 1871-1880 3,6 1881-1890 5,3 1891-1900 7,2 Fontes: A. d’E Taunay, ob. cit., vol. IX, pp. 16-17, e Pierre Dennis, ob. cit., p. 176. O rápido crescimento da produção cafeeira nas décadas de 1870 e 1880 é acompanhado por um deslocamento do centro geográfico dás plantações: durante a década de 1880 a produção de São Paulo ultrapassa a produção do Rio de Janeiro, os planaltos de São Paulo praticamente substituem o Vale do Paraíba. Em 1852-1857, o porto de Santos não escoava mais que 6% da produção nacional do café, enquanto que o do Rio de Janeiro era responsável por 92% das exportações desse produto. Em 1867-1872, é ainda o porto do Rio de Janeiro que escoa 81% da produção cafeeira brasileira. Mas a partir da década de 1870, a Província de São Paulo é de longe a principal ECONOMIA CAFEEIRA 47 responsável pela expansão cafeeira. Se tomamos como base de cálculo
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