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Sexualidade, (bio)poder e resistência: Preciado leitora de Foucault MONTENEGRO, Francisco Valberdan Pinheiro Como se aproximar do sexo enquanto objeto de análise? Que dados históricos e sociais intervêm na produção do sexo? É com essas, dentre outras, indagações que Beatriz Preciado ou, para ser mais atual, Paul Beatriz Preciado inicia o seu Manifesto Contrassexual. Essas perguntas me parecem fundamentais antes de esboçar qualquer coisa. Elas se interpõem a qualquer início e fazem minha escrita vacilar. É neste momento que lembro das palavras de Foucault na sua aula inaugural no Collège de France: Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter de começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso sem ter de considerar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrível, talvez de maléfico (FOUCAULT, p. 6, 2013). No entanto, é preciso começar. Nesse texto me interessa formular um conjunto de notas (bastante imprecisas e talvez confusas, devo avisar) sobre as relações entre o pensamento de Preciado e o pensamento de Foucault no que se refere ao biopoder, ao dispositivo de sexualidade e às possibilidades de resistência aos agenciamentos biopolíticos que tomam por ponto privilegiado a sexualidade. O texto constitui uma tentativa de mapear as apropriações singulares que Preciado faz das teorizações foucaultianas sobre poder, sexualidade e biopolítica. Para esse exercício, elegi dois textos principais são eles: “Manifesto Contrassexual” (2014) e “Multidões Queer: notas para uma política dos anormais” (2011). Apesar de meu principal instrumento neste trabalho ser a leitura não quero fazer aqui uma exegese de nenhum desses pensamentos. Essa é uma pesquisa eminentemente teórica, sendo assim, a principal metodologia empregada será a leitura dos textos. “Leitura como gesto, como obra, como prática” (PAIVA, grifos do autor, p. 18, 2000). Não é meu objetivo esgotar as possibilidades dessa discussão, muito pelo contrário, penso que são notas pueris o que escrevo. Leitura enquanto exercício cartográfico Isto quer dizer reconstituir o pensamento de Foucault no conjunto dos textos no entorno da História da sexualidade, mas não simplesmente repeti-lo, comentá-lo, mas utilizá-lo como ferramenta para agitarmos nossas próprias questões, nossos fragmentos, nosso carnaval, na superfície do texto de Foucault, estabelecendo-se um movimento de torsão, de entrelaçamentos na leitura (PAIVA, grifos do autor, p. 19, 2000). A cartografia me aparece aqui como possibilidade de multiplicidade na abordagem dos textos. Como método capaz de agenciar uma leitura singularizante dos pensamentos, conceitos e proposições escolhidos. Sem a intenção de esgotar ou definir com precisão o que seja cartograr ou a cartografia mesma cunho as palavras de Suely Ronilk para orientar meu traçado metodológico: “a cartografia - diferentemente do mapa: representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (p. 23, 2011b). Antes de traçar certas linhas penso que é preciso demarcar de onde fala Preciado. Não se trata de uma classificação categórica uma vez que esta é uma tarefa suspeita e pouco relevante para o que se quer aqui. Trata-se de reunir um apanhado geral sobre o que tem caracterizado a trajetória intelectual do nosso interlocutor. O pensamento de Preciado se inscreve num movimento que tem sido chamado de pós-feminismo (e aqui pós não é contra). Esse movimento, por sua vez, é tributário da concepção foucaultiana de poder e das propostas que dela derivam em matéria de crítica local dos regimes de produção da identidade. Mais preocupado em promover ações de resistência aos efeitos totalizadores da norma, mais articulado à noção de diferença/margem que à noção de identidade. É, em síntese, uma torção nas políticas de identidade e uma problematização do sujeito. Uma nova racionalidade política: um poder que gere a vida Por muito tempo, nos conta Foucault, uma das prerrogativas do poder soberano fora o poder de matar ou deixar viver, o poder de vida e morte. Este é um poder que se exerce em determinadas sociedades históricas como instância confisco, mecanismo de subtração. O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la (FOUCAULT, p. 148, 2012). A partir da idade clássica, no entanto, conhecemos no Ocidente uma transformação desses velhos mecanismos de poder. O confisco passou a não ser mais a forma de exercício do poder por excelência mas, apenas mais uma peça nas engrenagens de um poder mais destinado a produzir forças, a ordená-las, a fazê-las crescer do que a destruí-las ou barrá-las. Apresenta-se então um poder que se exerce positivamente sobre a vida, “que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto” (FOUCAULT, p. 149, 2012). Trata-se não mais de um poder que funciona a partir das premissas de matar ou deixar viver, mas sim, de fazer viver ou devolver à morte. A velha potência de morte dá lugar à uma gestão calculista da vida, nos diz Foucault. “Abre-se, assim, a era de um 'bio-poder'” (FOUCAULT, p. 152, 2012). Um poder que investe a vida de cima à baixo. Assim, de modo bastante geral o conceito de Biopoder serve para visibilizar todo um campo composto por tentativas, mais ou menos, racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência humana (RABINOW, 2006). No que diz respeito à biopolítica Foucault não teve muito tempo para alargar suas problematizações, assim, o projeto de uma genealogia do biopoder resultou num conjunto de pistas ainda pouco exploradas. E, enquanto Foucault é de algum modo impreciso em seu uso dos termos no campo do biopoder, podemos usar o termo ‘biopolítica’ para abarcar todas as estratégias específicas e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes (RABINOW, p. 28, 2006). É na tentativa de explorar as possibilidades de uma analítica do biopoder que seguem os estudos de pensadores contemporâneos tais como Preciado. Suas apropriações desse estudo transitório são singulares e não assimilativas, uma vez que, não é sem contestação que nosso interlocutor toma os conceitos de Foucault. O Dispositivo de Sexualidade O dispositivo de sexualidade pode ser entendido, visto que falamos a partir de uma visada arqueogenealógica, em seus efeitos. Sendo um dispositivo de poder ele atua produzindo e regulando um poder-saber (FOUCAULT, 2013b) sobre o sexo, construindo condutas sexuais normais e as anormais. As sexualidades normais e as periféricas. Desta forma, o dispositivo de sexualidade produz tecnologias que agem como forma dominante de normalização do sexo. É importante demarcar o que estamos chamando de dispositivo: um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, p. 364, 2014). Nas suas problematizações sobre a sexualidade Foucault objetivou golpear as relações que o ocidente, através de relações de poder históricas, construi entre sexo e verdade. Nessa leituraé o dispositivo de sexualidade mesmo que forja o sexo como ponto ideal necessário ao seu funcionamento. O sexo, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade. O sexo, ficção política pela qual todos devemos passar para termos acesso à nossa própria inteligibilidade. “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”, pergunta Foucault (p. 1, 1983). Sobre as relações entre sexo e sexualidade ele nos alerta: Não se deve imaginar uma instância autônoma do sexo que produza, secundariamente, os efeitos múltiplos da sexualidade ao longo de toda a sua superfície de contato com o poder. O sexo é, ao contrário, o elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais interior, num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres (FOUCAULT, p. 169, 2012). Multidões Queer e Biopolítica: a sexopolítica A partir da noção foucaultiana de biopolítica enquanto uma gestão calculista da vida Preciado cunha o termo sexopolítica a fim de forjar uma ferramenta para analisar certas formas de ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com a sexopolítica também o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e os códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida (PRECIADO, 2011). Na leitura particular que faz da biopolítica foucaultiana, entretanto, Preciado recusa qualquer discipulado, pois, sua apropriação é singular e questionadora: A noção de sexopolítica toma Foucault como ponto de partida, contestando, porém, sua concepção de política, segundo a qual o biopoder não faz mais do que produzir as disciplinas de normalização e determinar as formas de subjetivação. Ao nos inspirarmos nas análises de Maurizio Lazzaroto, que distingue o biopoder da potência de vida, podemos compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências políticas, e não simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo. Isso significa que à história da sexualidade iniciada por Foucault devemos acrescentar vários capítulos (PRECIADO, p. 12, 2011). Ante a contestação de Preciado me surgem questões sobre as possibilidades de resistência – na teorização de Foucault - às formas regulatórias e normalizantes do exercício do poder através do dispositivo de sexualidade. Considerando que o poder encerra possibilidades de resistência desde dentro, que formas ela pode assumir no dispositivo de sexualidade? Que lugar tem o corpo na biopolítica tal como pensada por Foucault? O poder investe o corpo e, no entanto, o que pode um corpo ante tal investimento? Os agenciamentos biopolíticos exigem engajamento dos corpos na produção e gestão da vida? Se sim, como pode este corpo ser apenas superficie de incidência do biopoder? Ao propor a afirmação de um corpo, de uma multidão de anormais (proposta como uma desterritorialização da heterossexualidade) Preciado parece apontar para agenciamentos que tomam como centro e ponto de partida a própria sexualidade anormal constituída como tal pelos efeitos do próprio dispositivo de sexualidade. Me parece um convite à afirmação e proliferação das sexualidades periféricas engendradas como nos diz Foucault a partir de um dispositivo histórico que empreendeu uma naturalização do sexo e da sexualidade - fossem elas heterossexuais ou não. Seria efetivamente um uso estratégico da identidade ou identidade sexual? Preciado faz parecer que sim, afinal sua escrita se empenha numa desontologização do sujeito. Recorre à noção de tecnologia para escapar da querela essencialismo X construtivismo. Essa escolha conceitual é também uma alternativa para pensar a questão da materialidade pouco considerada numa tradição teórica que aposta na performatividade, tendo em Butler seu maior expoente. Tecnologias do sexo, tecnologias do gênero, tecnologias de si. Preciado segue sua proposição de agenciamentos a partir do dispositivo de sexualidade em Manifesto Contrassexual. Neste livro a maior aposta é o conceito de contrassexualidade, esta seria “não a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é mais o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos a outros”. Aparentemente contratualista, a contrassexualidade me parece mais um modo irônico de dinamitar certas tecnologias da sexualidade hegemônicas. Mais uma vez sua escrita remonta a Foucault: O nome contrassexualidade provém indiretamente de Foucault para quem a forma mais eficaz de resistência à produção disciplinar da sexualidade em nossas sociedades liberais não é a luta contra a proibição (como aquela proposta pelos movimentos de liberação sexual antirrepressivos dos anos setenta), e sim a contraprodutividade, isto é, a produção de formas de prazer-saber alternativas à sexualidade moderna. As práticas contrassexuais que aqui serão propostas devem ser compreendidas como tecnologias de resistência, dito de outra maneira, como formas de contradisciplina sexual (PRECIADO, p. 22, 2014b). A contrassexualidade concebe, seguindo Foucault, a sexualidade como produto de tecnologias positivas/produtivas. Conforme Preciado a análise da construção dos dispositivos de sexualidade pertenceria à zona do social tal como pensada por Deleuze e Donzelot. É relevante destacar que a tecnologia neste caso não se trata de um artifício para modificar uma natureza dada mas sim produção mesma dessa natureza. Ao se apropriar da noção foucaultiana de tecnologia Preciado tece a seguinte consideração: A força da noção foucaultiana de tecnologia reside em escapar à compreensão redutora da técnica como conjunto de objetos, instrumentos, máquinas, ou outros artefatos, assim como escapar à redução da tecnologia do sexo às tecnologias implicadas no controle da reprodução sexual. Para Foucault, uma técnica é um dispositivo complexo de poder e saber que integra os instrumentos e os textos, os discursos e os regimes do corpo, as leis e as regras para amaximização da vida, os prazeres do corpo e a regulação dos enunciados de verdade (Preciado, p. 154, 2014b). Essa noção será fundamental para a teorização de Preciado sobre o gênero e a sexualidade. Ambos se inscrevem enquanto tecnologias integradas à experiência plástica que é o corpo. A partir daí falará num gênero prostético e não meramente performativo. A contrassexualidade parece apostar, portanto, num sujeito situado historicamente, produto de relações de poder específicas. Generificado ou genericizado e sexuado conforme estruturas de poder historicamente datadas e localizadas. Recusa as dualidades do cartesianismo e de metanarrativas como o marxismo. Essa rejeição têm por efeito político, na verdade, rejeitar categorias com as quais as “ciências humanas” têm operado há mais de um século: homem/mulher, masculino/feminino, objetivo/subjetivo, heterossexual/homossexual. Me parece que a contraasexualidade e todas as suas práticas indicadas por Preciado de forma irônica se inscrevem numa tentativa de fazer resistência ao capital ou ao biopoder (ou mesmo à sexopolítica) de forma a saturar o dispositivo de sexualidade. Fazê-lo funcionar no seu limite. […] são movimentos que partem da sexualidade, do dispositivo de sexualidade no interior do qual nós estamos presos, que fazem com que ele funcione até seu limite; mas, ao mesmo tempo, eles se deslocam em relação a ele, se livram dele e o ultrapassam (FOUCAULT, p. 350, 2014). Usando de seus artefatos mesmos para esta resistência: a pornografia, a masturbação, o vibrador etc. Cabe perguntar,no entanto, se em seus efeitos este modo de ação constitui uma resistência às formas mainstream da sexualidade no contemporâneo. A hipersexualização do corpo proposta pela contrassexualidade pode encerrar formas menos normalizadoras da tecnologia sexual? Essa hipersexualização do corpo aliada à afirmação da multidão dos anormais na tentativa de golpear a heteronormatividade não pode constituir, por sua vez, uma homonormatividade? Saturar é dinamitar? É possível se livrar do dispositivo de sexualidade sendo ele um dispositivo de poder? Se não, o que pode uma política dos anormais? É possível que Preciado esteja propondo uma forma de resistência que opere a partir de uma antropofagia dentro do dispositivo de sexualidade? Por fim, a pergunta que se faz aqui é: Contra que, dentro do dispositivo de sexualidade, se insurgem as práticas contrassexuais? Referências FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2013. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014. PAIVA, Antonio Crístian Saraiva. Sujeito e laço social: a produção de subjetividade na arqueogenealogia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1, 2014b. PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos "anormais". Rev. Estud. Fem., Florianópolis , v. 19, n. 1, p. 11-20, Apr. 2011 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100002&lng=en&nrm=iso>. access on 10 Nov. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2011000100002. ROLNILK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011b.
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