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Texto 3 Aplicabilidade de Evidências sobre Terapia

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Aplicabilidade de Evidências sobre Terapia: Princípio da 
Complacência 
 
 Luis Correia 
 
 
 
Na série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia, abordamos os tópicos veracidade e 
relevância da eficácia terapêutica em várias postagens prévias (1, 2, 3, 4). Agora chega a 
hora de abordarmos o último tópico, a aplicabilidade da evidência. 
 
É evidente que nosso pensamento tem sido bastante rígido nas análises de veracidade e 
relevância, muitas vezes contradizendo opiniões mais entusiasmadas em relação a certas 
formas de tratamento. Esta rigidez do pensamento baseado em evidências se justifica pela 
preocupação em não gerar falsas verdades, o que é pode ser bastante prejudicial 
(princípio da hipótese nula). Por outro lado, na análise de aplicabilidade, vocês 
perceberão que chega a hora da medicina baseada em evidências assumir uma postura 
mais complacente. É o princípio da complacência. 
 
 
Após concluirmos que uma evidência é verdadeira e relevante, devemos pensar em 
sua aplicabilidade. O ideal é que ela seja aplicada a um maior número de pessoas 
possível. Isso justifica a maior complacência na análise de aplicabilidade. Por outro 
lado, não podemos extrapolar demais. 
 
A decisão a respeito da aplicabilidade requer maior maturidade científica e clínica, 
pois não é uma avaliação tão objetiva como as análises de veracidade e relevância. Isto 
faz com que muitas vezes indivíduos decidam não aplicar terapia quando deveriam 
aplicar ou extrapolar demais uma evidência, como se ela fosse verdadeira em qualquer 
circunstância. 
 
Isto passa pelos conceitos de validade interna e validade externa do trabalho. 
Observem, validade interna é o mesmo conceito da análise de veracidade, que se faz nas 
circunstâncias internas do estudo em questão, ou seja, a veracidade de uma eficácia 
exatamente nos paciente estudados e exatamente como o tratamento foi aplicado. Já a 
validade externa descreve até que ponto podemos extrapolar os resultados de um estudo 
para uma população diferente da avaliada ou para uma forma de aplicação um pouco 
diferente da realizada no estudo. 
 
Aplicabilidade da terapia se refere a 3 aspectos: em quem esta será aplicada, como será 
aplicada, onde será aplicada. 
 
Vamos iniciar pelo problema mais comum: em quem será aplicada. Por exemplo, quase 
todos os conhecimentos básicos sobre eficácia terapêutica em cardiologia foram 
provenientes de ensaios clínicos realizados em países de primeiro mundo, no final do 
século passado (benefício da trombólise ou angioplastia primário no IAM, 
antitrombóticos nas síndromes coronarianas agudas, inibidor da ECA ou beta-
bloqueadores em ICC e inúmeros outros exemplos de uma grande lista). Estes estudos 
não avaliaram o típico paciente brasileiro, de raça miscigenada. Então podemos aplicar 
estes conhecimentos no brasileiro? Nossa decisão histórica foi que poderíamos aplicar, ou 
seja, julgamos que a validade externa daqueles estudos envolvia nossa população. 
Observe que se fôssemos rígidos demais privaríamos nossos pacientes destes benefícios. 
Desta forma, a maior complacência da medicina baseada em evidências na análise de 
aplicabilidade permite que um maior número de pessoas se beneficie dos tratamentos. É 
por isso que utilizamos tratamentos em pacientes octagenários, embora eles não sejam 
bem representados por ensaios clínicos. 
 
Por outro lado, não podemos ser totalmente complacentes, essa deve ser uma análise caso 
a caso. Devemos aplicar tudo isso em uma paciente de 104 anos? Tenho minhas dúvidas 
... Devemos ponderar melhor nestes casos extremos. 
 
Então, como fazer esta análise a partir de um ensaio clínico? 
 
Em primeiro lugar, observamos cuidadosamente de quem se trata a amostra estudada, 
lendo a tabela de características clínicas. Lá teremos acesso à média de idade, sexo, raça, 
gravidade da doença naquela amostra (fração de ejeção na ICC, escore GRACE na 
síndrome coronariana aguda) e presença de co-morbidades (função renal, diabetes). Vale 
salientar que os critérios de inclusão do estudo nem sempre refletem a amostra estudada. 
Por exemplo, você pode ter como critérios a inclusão de paciente de 18 a 75 anos, mas 
aquela doença é rara em jovens e praticamente não há ninguém com idade < 30 anos. 
Sendo assim, temos que nos condicionar a contemplar bastante a tabela de características 
clínicas, usualmente a tabela 1 em artigos científicos. 
 
Uma vez conhecendo exatamente quem foi avaliado no ensaio clínico, vamos saber que é 
neste tipo de paciente que o estudo tem a validade ideal. Vamos agora à validade externa. 
Quando nos depararmos com um paciente diferente da amostra estudada, devemos nos 
perguntar: existe alguma forte razão para aquele benefício se perder neste tipo de 
paciente; ou para surgir um efeito adverso grave. Ou como diz David Sackett, “nosso 
paciente é tão diferente daqueles do estudo de forma que os resultados não se apliquem a 
ele?” 
 
Por exemplo, o clássico estudo SOLVD demonstrou que enalapril reduz mortalidade em 
pacientes com ICC, cuja média de fração de ejeção foi 25% e não tinha ninguém com 
fração > 35%. Vamos supor um paciente sintomático, com fração de ejeção de 40%. 
Devemos usar enalapril? Existe alguma forte razão para aquele benefício se perder neste 
tipo de paciente? A resposta é não. Portanto nós costumamos usar inibidor da ECA em 
pacientes com disfunção moderada ou até disfunção leve. 
 
 
Evidências sobre tratamento de hipertensão é outro grande exemplo. Todos os ensaios 
clínicos que demonstram redução no risco de eventos cardiovasculares com o tratamento 
são realizados em amostras de hipertensos pelo menos moderados e de alto risco 
cardiovascular. Isto é feito para que a incidência de desfechos seja grande o suficiente 
para oferecer o poder estatístico necessário. Mesmo assim, nós extrapolamos estas 
evidências para pacientes com hipertensão leve e de baixo risco. Ou seja, qualquer 
paciente que se mantenha hipertenso apesar de medidas não farmacológicas serão 
colocados em tratamento medicamentoso. É mais um exemplo do princípio da 
complacência. 
 
Ao extrapolar, devemos ter em mente que a magnitude do benefício tente a ser menor 
(para uma mesma redução relativa do risco, o NNT aumenta na medida em que o risco 
absoluto diminui). Ou seja, se um hipertenso de baixo risco tiver sintomas de hipotensão 
postural com a droga, uma eventual suspensão não lhe deixará tão vulnerável quando um 
paciente de alto risco. 
 
Na verdade, quando extrapolamos para amostras de baixo risco (fração de ejeção maior, 
pressão arterial menor), devemos recalibrar o NNT, a partir da incidência de eventos 
esperada na população em questão. É só aplicar a redução relativa do risco (que tende a 
ser relativamente constante) no risco absoluto esperado daquele tipo de população sem 
tratamento. Isso nos dará a redução absoluta do risco esperada, que permitirá o cálculo do 
NNT na amostra de baixo risco (100/RAR). 
 
Este tipo de raciocínio também se baseia no fato de que interação qualitativa entre o 
efeito da droga e o tipo do paciente é um fenômeno muito raro em medicina. Mais 
comum é interação quantitativa. O que quer dizer isso? Interação qualitativa é uma 
droga ser benéfica em um subgrupo de paciente e maléfica em outro subgrupo (a 
qualidade do efeito da droga muda). Isso quase nunca ocorre, em se considerando o 
mesmo desfecho nas duas análises. Interação quantitativa é quando a magnitude do 
efeito da terapia muda com o tipo de paciente, ou seja, o paciente com fração de ejeção 
maior vai ter menor benefício ou na pior das hipóteses não vai ter benefício. É pouco 
provável que na presença de benefício em pacientes com fração muito baixa, haja 
malefício nos de fração mais alta. Esta observação de como as evidências se comportam é 
a base científica para o princípio da complacência na análise de aplicabilidade. 
 
 
Este mesmo raciocínionos induz a utilizar inibidor da ECA em pacientes com 
miocardiopatia chagásica, nos quais esta terapia não foi suficientemente testada. Já 
quanto ao uso de beta-bloqueador em chagásicos, acho que esta análise deve ser mais 
criteriosa e individualizada, pois estes pacientes possuem mais predisposição a 
bradiarritmia (menor validade externa). No outro extremo, a aplicabilidade das evidências 
de desfibrilador implantável (CDI) pode ser pequena nos chagásicos. O número de 
choques nestes pacientes é muito alto, podendo até ser prejudicial, causar lesão 
miocárdica e agravamento da função ventricular. Este tópico é discutido de forma 
provocativa por Anis Rassi Jr., em artigo publicado no J Cardiovasc Electrophysiol em 
2007. Por este motivo, será realizado no Brasil o ensaio clínico CHAGASIC, idealizado 
por este autor e financiado pelo Ministério da Saúde. 
 
Enoxaparina foi demonstrada eficaz para o tratamento de SCA, mas pacientes com 
disfunção renal severa não fizeram parte dos estudos. Neste caso, há razão para que a 
droga cause problema nestes pacientes, pois a disfunção renal pode provocar aumento da 
ação anticoagulante, causando sangramento. Portanto não devemos extrapolar para estes 
pacientes. 
 
E assim vai, são múltiplos os exemplos e nós devemos pensar, refletir caso a caso. 
Observem que nesta situação, não há uma medida específica (valor de P, NNT, RR, RA). 
É um pensamento criterioso que deve avaliar o grau de extrapolação da validade interna 
de um estudo, ou seja, a validade externa. Gosto de denominar isso de limiar de 
validade externa, o qual varia com cada situação. 
 
Até aqui comentamos da validade de uma evidência para o tipo de paciente. Mas também 
devemos pensar sobre validade em relação à forma como a terapia é aplicada. Vejamos. 
Imagine que um estudo mostra benefício da atorvastatina 80 mg versus placebo. Mas isso 
é uma terapia de alto custo. Podemos então aplicar a evidência utilizando atorvastatina 10 
mg se isto for suficiente para trazer o LDL-colesterol para níveis ótimos? Parece-me que 
sim. Na pior das hipóteses teríamos uma redução da magnitude do benefício, que 
possivelmente não será grande se 10 mg for suficiente para atingir um LDL-colesterol de 
70 mg/dl. 
 
Percebam que muitas vezes precisamos variam um pouco a forma de tratamento para 
torná-lo factível. Até um certo ponto, isso é aceitável. Usar uma droga mais cara na fase 
aguda e depois mudar para uma droga de custo mais baixo para o uso crônico pode ser 
aceitável, se não houver uma grande razão para isso causar problema. Por exemplo, em 
pacientes com síndromes coronarianas agudas de alto risco, Ticagrelor ao invés de 
Clopidogrel pode ter um NNT que justifique seu uso da fase aguda, mas esta é uma droga 
de alto custo e, a depender do paciente, pode ser razoável fazer a transição para 
Clopidogrel no uso de longo prazo. 
 
 
Diferentemente do que alguns pensam, medicina baseada em evidências não é copiar 
com exatidão a conduta de ensaios clínicos na prática. 
 
Um ensaio clínico é feito para testar uma hipótese. Sendo assim, a especificidade da 
amostra estudada e outros aspectos de seu desenho existem para evitar vieses ou 
maximizar o contrate de resultado entre intervenção e controle, aumentando seu poder 
estatístico. Uma vez provada a hipótese, a tradução disso para a prática clínica pode 
sofrer certa variação a fim de que se torne realidade. Isso não é infringir a evidência, é 
valorizá-la a ponto de criar condições para que esta seja aplicada ao maior número de 
pacientes. 
 
 
Por fim, onde será aplicada a terapia. Este item diz respeito a terapias que dependem da 
habilidade da equipe médica. Ou seja, procedimentos invasivos ou cirurgias. 
Transcatheter Aortic-Valve Implantation (TAVI) é uma forma percutânea de corrigir 
doença da valva aórtica, em pacientes que queremos evitar cirurgia. Esta forma foi 
validada pelo ensaio clínico PARTNER, que mostrou redução de mortalidade quando 
comparado ao tratamento clínico de pacientes com impossibilidade clínica de cirurgia. 
No entanto, devemos antes analisar se nossa equipe de clínicos, intervencionistas, 
ecocardiografistas está suficientemente treinada para reproduzir os resultados deste 
estudo. 
 
Um segundo aspecto que diz respeito ao onde será aplicada é a questão de custo. Uma 
terapia pode ser eficaz, porém não custo-efetiva, fazendo um país de medicina racional e 
socializada decidir pela não implementação generalizada daquele tratamento. 
 
Ao falar deste assunto, devemos mencionar os guidelines de aplicabilidade de terapia, os 
quais classificam o nível de evidências das recomendações em A, B ou C. Nesta 
classificação, há com frequência violação dos princípios da medicina baseada em 
evidências. Nível A é aquela situação em que há comprovação da veracidade do 
tratamento, ou seja, um ensaio clínico randomizado de boa qualidade, demonstrando 
benefício em desfecho clínico; nível C é ausência de evidência, quando a recomendação 
ocorre por consenso de especialista. Este só se justifica em situações de plausibilidade 
extrema (paradigma do para-quedas). Muitos têm feito estas recomendações em outras 
situações, de forma bastante inadequada. E o nível B, quando se aplica? Exatamente nas 
situações que estamos discutindo nesta postagem. Ou seja, em situações em que a 
evidência não diz respeito àquele tipo específico de população, mas há uma evidência de 
qualidade em outra população que se decide extrapolar. Ou seja, afirmar que devemos 
utilizar IECA em pacientes com fração de ejeção de 45% não é apenas consenso de 
especialistas, é uma recomendação baseada evidências de pacientes com fração de ejeção 
de 25%. Nível B não se aplica a evidências de veracidade questionável, tais como estudos 
com vieses importantes ou que avaliam desfechos substitutos. Estes devem gerar 
hipóteses, mas não recomendar terapias. 
 
Sendo assim, após ler o artigo (rígida análise de veracidade e relevância), devemos 
refletir sobre em quem, quando e onde aplicaremos aquela terapia. Nesta postagem 
procuramos traçar uma sequência de pensamento, que aborda os aspectos que necessitam 
ser avaliados neste tipo de pensamento que requer maturidade científica e julgamento 
clínico. 
 
O princípio da complacência na análise de aplicabilidade de evidências potencializa o 
impacto positivo de uma evidência que julgamos ser verdadeira e relevante. Esta é a 
hora de sermos mais contemplativos.

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