Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 AUTO-IMUNIDADE Uma das propriedades essenciais do Sistema Imune é sua capacidade de discriminar entre antígenos (Ag) próprios e estranhos. Desta forma, os linfócitos (linf) funcionalmente competentes e maduros são capazes de reconhecer e responder a Ags estranhos, mas não conseguem reconhecer/responder a Ags próprios. A falta de reatividade à estimulação antigênica é denominada tolerância imunológica. A tolerância pode ser definida como a incapacidade controlada de responder a Ags, para os quais o individuo tem potencial de resposta. A manutenção da tolerância aos Ags próprios é denominada auto-tolerância. A perda da auto-tolerância resulta em reações imunes contra Ags próprios do individuo ou Ags autólogos (self). Essas reações são chamadas de auto- imunidade e, as doenças que elas causam são chamadas doenças auto-imunes. Geralmente não se encontra em um organismo uma resposta imune contra os constituintes próprios, isto é, os auto-antígenos. Durante muito tempo se acreditou que nos organismos normais este fato ocorresse pela incapacidade de reconhecimento e reatividade contra os auto-antígenos. Sabe-se hoje que existe uma reatividade normal dirigida aos constituintes normais do corpo e que tal rea- tividade desempenha um papel fisiológico. Na realidade, acredita-se que a capacidade de reconhecimento do próprio constitua a base da resposta imune e que a produção de células e anticorpos auto-reativos seja fundamental para a manutenção do equilíbrio do sistema. Assim, o baço apresenta sempre um pequeno número de linfócitos autoreativos que normalmente estão suprimidos de modo a de- senvolver uma resposta muito discreta (geralmente não-detectável pelos métodos usuais de investigação). A estimulação destas células por mitógenos ou antígenos não-específicos como endotoxinas bacterianas pode provocar o aparecimento transitório de auto-anticorpos no soro, que embora reajam com tecidos normais geralmente não têm efeitos prejudiciais ao organismo. Ocasionalmente a supressão de células auto- reativas pode ser quebrada e clones de células inativas podem crescer e gerar grandes quantidades de auto-anticorpos ou células T auto- reativas, desenvolvendo o fenômeno de auto- imunidade ou doença auto-imune. MECANISMOS DE AUTO-TOLERÂNCIA Nas células, na circulação e tecido conjuntivo de todos os indivíduos estão presentes Ags potencialmente imunogênicos. Esses Ags são prontamente acessíveis aos linfócitos de cada individuo, ainda que estes não reajam contra seus próprios Ags. A auto-tolerância é um processo ativamente adquirido, no qual os linfocitos potencialmente auto-reativos são impedidos de se tornarem funcionalmente responsivos aos Ags próprios, ou são inativados quando encontram esses Ags. A tolerância ao próprio é induzida depois que os receptores antigênicos são expressos e é na realidade uma conseqüência do reconhecimento de Ags próprios por linfócitos específicos, sob condições especiais. A auto- tolerância resulta da deleção ou inativação de linf que reconhecem os Ags próprios, via Imunoglobulina de superfície na cel B (BCR) ou TCR na célula T. Durante a maturação, nos órgãos linfóides centrais, todos linf passam por uma fase na qual o encontro com o Ag leva à tolerância e não à ativação. Linfócitos imaturos são mais sensíveis a indução de tolerância que celulas maduras. O estado de tolerância é mantido por reconhecimento continuo do agente tolerogênico, pelos linf imaturos que são gerados constantemente. A tolerância aos Ags próprios tem como ponto fundamental a seleção dos linfócitos que compõem o repertório de cels imunocompetentes. Esta seleção ocorre durante o processo de maturação dos linf e, portanto, tem lugar no timo (linf T) e na medula óssea (linf B), que são os órgãos linfóides primários no homem. Nestes órgãos, os linf imaturos encontram somente Ags próprios durante sua maturação e, os clones de linf cujos receptores podem ser específicos para esses Ags tornam-se tolerantes. Esse processo foi denominado tolerância central. Dessa forma, a auto-tolerância é um processo de seleção de repertorio de linfócitos, baseado no reconhecimento de Ags próprios. O processo de seleção é responsável pela sobrevivência apenas dos linf T que expressem TCR úteis, isto é, aqueles que serão capazes de reconhecer peptídeos em associação com o MHC próprio. Para isso, ocorrem no timo, uma seleção positiva seguida de uma seleção negativa dessas cels. A seleção positiva é um processo no qual os timocitos cujos TCR se ligam ao complexo MHC – peptídeo próprio sobrevivem e todos aqueles que não tem afinidade com o TCR próprio, morrem. Após esta etapa, permanecem viáveis tanto as cels capazes de reconhecer Ags estranhos (associados a MHC próprio) quanto as cels que reconhecem auto-Ags associados ao MHC próprio, e que podem trazer prejuízo para o hospedeiro. Durante a seleção negativa, clones de timocitos cujos TCR se liguem com alta afinidade ao conjunto peptídeo-MHC (auto-Ag) são eliminados por deleção clonal ou inativados por 2 anergia clonal. Após esta etapa, os únicos timocitos funcionais são aqueles que reconhecem o MHC próprio associado a peptídeos não- proprios e, que irão sofrer maturação e se transformar em linfócitos T (restritos ao MHC e auto-tolerantes). Os linf auto-reativos que escapam a esse processo de seleção e saem dos OL centrais, podem ser posteriormente inativados em decorrência do encontro com os Ags próprios, sob condições que favoreçam a tolerância e não a ativação. Esse processo ocorre nos tecidos periféricos e é denominado tolerância periférica. Acredita-se que essa tolerância seja um mecanismo que mantém a tolerância, mesmo que alguns linf T auto-reativos escapem da seleção negativa do timo, amadureçam e entrem nos tecidos periféricos. A tolerância periférica pode ser o principal mecanismo para tolerância dos linf T a Ags que não estejam presentes no timo. Os mecanismos da tolerância periférica aos Ags próprios são provávelmente semelhantes aos da tolerância periférica a Ags estranhos. Assim, é provável que ags próprios induzam anergia clonal dos linf T porque são apresentados por cels APC com deficiência de fatores co- estimulatorios. Ex: APC não profissionais, que não expressam constitutivamente moleculas MHC classe II ou não estão ativadas, não expressam fatores de co-estimulaçao como molecula B7, importante para a transdução de sinais de ativação da cel T, pela ligaçao a molec CD28 da cel T. Lesão tecidual e inflamação podem ativar APC residentes, levando a aumento da expressão de fatores co-estimuladores, perda da auto-tolerancia e reações auto-imunes locais. De acordo com esse conceito, as condições de ativação das APC dos tecidos são importantes determinantes para ocorrência de tolerância periférica ou auto-imunidade. Alguns linf T auto-reativos podem não ser deletados ou tornados anérgicos, mas suas atividades podem ser inibidas por outras cels. Uma hipótese propõe que os linf T com maior potencial para causar lesão tecidual sejam cels Th1, mediadoras da reação de hipersensibilidade tardia. Os efeitos prejudiciais dessas cels Th1 auto-reativas podem ser bloqueados e mantidos reprimidos pela ativação concomitante de cels Th2 especificas para os mesmos Ag próprios, porque as citocinas produzidas pelas cels Th2 inibem a produção e as funções efetoras das citocinas derivadas de Th1. MECANISMOS DE "QUEBRA" DE TOLERÂNCIA ou indução de auto-imunidade Múltiplos fatores contribuem para o desenvolvimento da auto-imunidade. Estes incluem: 1) falha na tolerância central; 2) falha da tolerância periférica; 3) exposição a antígenos próprios ocultos ou seqüestrados; 4) mimetismomolecular; 5) falha no mecanismo de células reguladoras; 6) predisposição genética. 1) falha da tolerância central – A tolerância central é um mecanismo de seleção de linfócitos imaturos auto-reativos, que deleta cels com receptores de alta afinidade para Ags proprios. Embora, a hipótese de que a auto-imunidade resulte de um defeito nesse processo de seleção, há pouca evidencia formal suportando essa hipótese. De fato é possível que mesmo se a tolerância central falhar, os mecanismos de tolerância periférica são adequados para manter a tolerância a muitos Ags proprios. 2) Falha na tolerancia periférica - A tolerância de linf T maturos a Ag self específicos é mantida por anergia funcional, deleção por apoptose e supressão por cels reguladoras. A expressão aumentada de fatores de co- estimulação (B7) nos tecidos pode resultar na quebra da anergia de cels T e em reações auto- imunes tecido-especificas. Cels APC em repouso, deficientes em fatores co-estimulatorios (B7) podem apresentar Ags autologos para cels T auto-reativas, numa forma que induza anergia a essas cels. Condições que ativam essas cels, como infecções e inflamação, aumentam a expressão de moléculas co-estimulatórias e secreção de citocinas pelas APC, resultando na quebra da tolerância. Como conseqüência, cels T autoreativas podem proliferar e diferenciar em cels efetoras que causam as lesões teciduais das reações auto-imunes. 3) Exposição de antígenos normalmente ocultos. - Existem algumas áreas do corpo que estão normalmente protegidas de contato com o sistema imune. Assim, o tecido do sistema nervoso central, o tecido ocular e o tecido dos testículos não são drenados pela circulação linfática, não entrando em contato com as células imunocompetentes. Se o cérebro ou testículos forem lesados, por trauma ou por infecção, a quebra das barreiras vasculares pode permitir que antígenos presentes nestes tecidos alcancem a circulação e sejam reconhecidos por células imunocompetentes, desencadeando uma resposta imune. EX de Ags seqüestrados: proteínas do cristalino; espermatozóides; proteínas cardíacas – após infarto do miocárdio. 4) Mimetismo Molecular - Alguns microrganismos como bactérias e vírus induzem a formação de anticorpos (Ac) que reagem cruzadamente com auto-antígenos. Isto ocorre porque esses microrganismos possuem determinantes antigênicos que são idênticos ou similares aos componentes da célula normal do hospedeiro. Esse fenômeno é denominado mimetismo molecular e tem sido sugerido como um dos mecanismos que leva à auto-imunidade. Um dos melhores ex. desta reação auto-imune é 3 a encefalite pós-vacinação anti-rabica a qual é desenvolvida em alguns indivíduos que receberam vacina anti-rábica. No passado o vírus da raiva era cultivado em culturas de células de cérebro de coelho e as preparações da vacina continham os antígenos celulares da cultura de células de cérebro de coelho. Nas pessoas vacinadas essas proteinas de coelho induziam a formação de anticorpos e células T ativadas, que reagiam cruzadamente com as células do cérebro do indivíduo vacinado, causando encefalite. Reação cruzada também parece ser a causa de danos no coração, na febre reumática, que pode ocorrer depois de uma infecção por estreptococos beta hemolítico. Os Ac são formados contra a proteína M do estreptococo e reagem cruzadamente com fibras musculares cardíacas. Infecções virais também desencadeiam resposta de anticorpos que podem reagir com antígenos próprios. 5. Falha no mecanismo de células reguladoras. Defeito na supressão mediada por células T, contribui para auto-imunidade. Alguns Ags self induzem o aparecimento de células T reguladoras que produzem citocinas imunossupressoras, como IL-10 e TGF-beta, que mantém a auto-tolerância. Perda dessas cels podem permitir o desenvolvimento de cels T auto- reativas e resultar em auto-imunidade. 6) Associação MHC e auto-imunidade (predisposição genética) Vários tipos de estudos tem sustentado uma associação entre expressão do um certo alelo do MHC e suscetibilidade à auto-imunidade. As pesquisas têm demonstrado que alguns alelos de HLA ocorrem com maior freqüência entre os indivíduos com doenças auto-imunes do que na população normal. A mais forte associação entre um alelo de HLA e doença autoimune é visto na espondilite anquilosante, uma doença inflamatória de juntas vertebrais. Indivíduos que tem HLA-B27 possuem 90 vezes mais chance de desenvolver a doença do que indivíduos com outros alelos de HLA-B. Outras associações com alelos da região D/DR são: artrite reumatóide, lupus eritematoso, diabetes e esclerose múltipla. DOENÇAS AUTO-IMUNES As doenças auto-imunes apresentam uma incidência de 5 a 7% na população e se manifestam como doença crônica debilitante. As doenças auto-imunes podem ser classificadas em 1) órgão-específicas, apresentando lesões mediadas pela resposta imune celular ou humoral específicas para um determinado órgão ou tecido; ex: tireoidite, (tireoide); anemias hemolíticas (hemácias), diabetes melito insulino-dependente (pâncreas). 2) sistêmicas, que apresentam manifestações em vários órgãos e tecidos. Os danos teciduais são mediados principalmente por anticorpos. Ex: lupus eritematoso sistêmico, artrite reumatóide. MECANISMOS DE AGRESSÃO IMUNOLÓGICA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES A agressão tecidual auto-imune é desencadeada por mecanismos de hipersensibilidade. Nas doenças órgão- específicas, ocorre lesão tecidual direta, mediada por reações citotóxicas da hipersensibilidade tipo II – auto-anticorpos das classes IgG e IgM, fixadores do complemento, levando á lise ou opsonização e fagocitose ou ainda por mecanismo de citotoxicidade celular dependente de anticorpos (ADCC). A lesão também pode ser mediada pela reação de hipersensibilidade tardia (tipo IV) - células T citotóxicas e macrófagos ativados. Nas doenças sistêmicas, a agressão é mediada por hipersensibilidade tipo II (reações citotóxicas) e por hipersensibilidade tipo III (deposição de imunecomplexos nos tecidos e reação inflamatória). ALGUMAS DOENÇAS AUTOIMUNES ENCONTRADAS NO HOMEM 1. Tireoidite de Hashimoto = órgão-específica. Leva a hipotireoidismo, ou diminuição da função da glândula tireóide. Há produção de Ac contra proteínas tireoideanas, como tireoglobulina, e também células T específicas. Sintomas: bócio, apatia, baixo metabolismo, pela menor captação de iodo. 2. Anemias hemolíticas = órgão-específica. Presença de Auto-Ac contra hemácias. Ativação do complemento, levando à lise da hemácia (C1 – C9) ou opsonizaçào e fagocitose (C1 – C3). 3. Diabetes mellitus insulino-dependente = órgão- específica (pâncreas) = Ocorre destruição das células beta do pancreas que produzem insulina, causada por linfócitos T, macrófagos e auto-Ac fixadores do complemento. 4. Miastemia Gravis = órgão especifica. E uma doença autoimune mediada por anticorpos bloqueadores. Um paciente com esta doença produz anticorpos contra receptor de acetilcolina, presente na placa motora dos músculos. A ligação desses anticorpos para os receptores impede a ligação da acetilcolina, inibindo a contração muscular. Os anticorpos também induzem degradação do receptor, mediada por complemento, resultando em um progressivo enfraquecimento do músculo esquelético. 4 5. Esclerose múltipla – é considerada doença sistêmica porque afeta todo o sistema nervoso. Pacientes com essa doença produzem células T autorreativas que participam de lesões inflamatórias ao longo da bainha de mielina das fibras nervosas. O fluido cérebro espinal (líquor) dos pacientes com MS contém linfócitos T ativados, os quais infiltram o cérebro e causamlesões inflamatórias características, destruindo mielina. Uma vez que a mielina isola as fibras nervosas, a destruição da mielina leva a várias disfunções neurológicas. 6. Lupus eritematoso sistêmico = sistêmicas. Tem maior freqüência em mulheres, na faixa etária de 20 a 40 anos. Há produção de Ac anti-DNA, plaquetas, leucócitos. Ocorre comprometimento de articulações, músculos, pele, rins, pulmões e sistema nervoso central. A lesão é causada pela deposição de complexos Ag-Ac em vasos, articulações, tecidos, iniciando reação inflamatória. O paciente apresenta sintomas de febre, fraqueza, artrite e disfunção renal. 7. Artite reumatóide = sistêmicas. Os sintomas de dor nas articulações, inflamação crônica e deformações articulares são causados pela deposição de imunexomplexos nas articulaçòes. Os auto-Ac são dirigidos contra o fator reumatóide, que é uma imunoglobulina da classe IgM, dirigida contra porção Fc da molécula de IgG. Ocorre então a formação de imunecomplexos IgM-IgG que se depositam nas articulações e nos rins. TRATAMENTO O tratamento das doenças auto-imunes consiste na redução dos sintomas, para melhorar a qualidade de vida do paciente. São empregadas drogas imunossupressoras como corticosteroides, azatioprina e ciclofosfamida, para diminuir a proliferação de linfócitos auto-reativos e a gravidade dos sintomas auto-imunes. Por outro lado, esse tratamento imunossupressor pode levar ao risco de desenvolver infecções ou câncer.
Compartilhar