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Annabel Lee Edgar Allan Poe Foi há muitos e muitos anos já, Num reino de ao pé do mar. Como sabeis todos, vivia lá Aquela que eu soube amar; E vivia sem outro pensamento Que amar-me e eu a adorar. Eu era criança e ela era criança, Neste reino ao pé do mar; Mas o nosso amor era mais que amor — O meu e o dela a amar; Um amor que os anjos do céu vieram a ambos nós invejar. E foi esta a razão por que, há muitos anos, Neste reino ao pé do mar, Um vento saiu duma nuvem, gelando A linda que eu soube amar; E o seu parente fidalgo veio De longe a me a tirar, Para a fechar num sepulcro Neste reino ao pé do mar. E os anjos, menos felizes no céu, Ainda a nos invejar… Sim, foi essa a razão (como sabem todos, Neste reino ao pé do mar) Que o vento saiu da nuvem de noite Gelando e matando a que eu soube amar. Mas o nosso amor era mais que o amor De muitos mais velhos a amar, De muitos de mais meditar, E nem os anjos do céu lá em cima, Nem demônios debaixo do mar Poderão separar a minha alma da alma Da linda que eu soube amar. Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos Da linda que eu soube amar; E as estrelas nos ares só me lembram olhares Da linda que eu soube amar; E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado, No sepulcro ao pé do mar, Ao pé do murmúrio do mar. Uivo Allen Ginsberg Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura… … famélicos histéricos nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer na fissura de um pico, hipsters de cabeça ardendo pela ancestral conexão com um dínamo estrelando na maquinaria da noite, que pobreza e farrapos e ocos olhos loucos se sentaram fumando na escuridão sobrenatural de apartamentos sem aquecimento flutuando pelos telhados das cidades contemplando o jazz, que desnudaram cérebros para o céu sob o viaduto e viram anjos muçulmanos cambaleando nos telhados dos cortiços iluminados, que passaram pelas universidades com serenos olhos radiantes alucinando Arkansas e tragédias Blake-iluminados entre os mestres da guerra, que foram expulsos das academias por pirarem & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se encolheram de cueca em quartos descasados, queimando seu dinheiro em cestos de lixo e ouvindo o Terror através das paredes, que foram revistados nos pentelhos voltando por Laredo com um cinturão de fumo para Nova York, que engoliram fogo em hotéis vagabundos ou beberam terebintina em Paradise Alley, morte, ou flagelaram seus torsos noite após noite com sonhos, com drogas, com pesadelos despertos, álcool e paus e fodas sem fim. Aviso aos náufragos Paulo Leminski Esta página, por exemplo, não nasceu para ser lida. Nasceu para ser pálida, um mero plágio da Ilíada, alguma coisa que cala, folha que volta pro galho, muito depois de caída. Nasceu para ser praia, quem sabe Andrômeda, Antártida Himalaia, sílaba sentida, nasceu para ser última a que não nasceu ainda. Palavras trazidas de longe pelas águas do Nilo, um dia, esta pagina, papiro, vai ter que ser traduzida, para o símbolo, para o sânscrito, para todos os dialetos da Índia, vai ter que dizer bom-dia ao que só se diz ao pé do ouvido, vai ter que ser a brusca pedra onde alguém deixou cair o vidro. Não e assim que é a vida? Repenso o mundo Wilawa Szymborska Repenso o mundo, segunda edição, segunda edição corrigida, aos idiotas o riso, aos tristes o pranto, aos carecas o pente, aos cães botas. Eis um capítulo: A Fala dos Bichos e das Plantas, com um glossário próprio para cada espécie. Mesmo um simples bom-dia trocado com um peixe, a ti, ao peixe, a todos na vida fortalece. Essa há muito pressentida, de súbito revelada, improvisação da mata. Essa épica das corujas! Esses aforismos do ouriço compostos quando imaginamos que, ora, está só adormecido! O tempo (capítulo dois) tem direito de se meter em tudo, coisa boa ou má. Porém — ele que pulveriza montanhas remove oceanos e está presente na órbita das estrelas, não terá o menor poder sobre os amantes, tão nus tão abraçados, com o coração alvoroçado como um pardal na mão pousado. A velhice é uma moral só na vida de um marginal. Ah, então todos são jovens! O sofrimento (capítulo três) não insulta o corpo. A morte chega com o sono. E vais sonhar que nem é preciso respirar, que o silêncio sem ar não é uma música má, pequeno como uma fagulha, a um toque te apagarás. Morrer, só assim. Dor mais dolorosa tiveste segurando nas mãos uma rosa e terror maior sentiste ao som de uma pétala caindo no chão. O mundo, só assim. Só assim viver. E morrer só esse tanto. E todo o resto — é como Bach tocado por um instante num serrote. Folhas da Relva (trecho) Walt Whitman EU CELEBRO a mim mesmo, E o que eu assumo você vai assumir, Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você. Vadio e convido minha alma, Me deito e vadio à vontade . . . . observando uma lâmina de grama do verão. Casas e quartos se enchem de perfumes . . . . as estantes estão entulhadas de perfumes, Respiro o aroma eu mesmo, e gosto e o reconheço, Sua destilação poderia me intoxicar também, mas não deixo. A atmosfera não é nenhum perfume . . . . não tem gosto de destilação . . . . é inodoro, É pra minha boca apenas e pra sempre . . . . estou apaixonado por ela, Vou até a margem junto à mata sem disfarces e pelado, Louco pra que ela faça contato comigo. A fumaça de minha própria respiração, Ecos, ondulações, zunzuns e sussurros . . . . raiz de amaranto, fio de seda, forquilha e Minha respiração minha inspiração . . . . a batida do meu coração . . . . passagem de O aroma das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das rochas marinhas de cores videira, sangue e ar por meus pulmões, escuras, e do feno na tulha, O som das palavras bafejadas por minha voz . . . . palavras disparadas nos redemoinhos do vento, Uns beijos de leve . . . . alguns agarros . . . . o afago dos braços, Jogo de luz e sombra nas árvores enquanto oscilam seus galhos sutis, Delícia de estar só ou no agito das ruas, ou pelos campos e encostas de colina, Sensação de bem-estar . . . . apito do meio-dia . . . . a canção de mim mesmo se erguendo da cama e cruzando com o sol. Dois macacos de Bruegel Wislawa Szymborska É assim meu grande sonho sobre os exames finais: sentados no parapeito dois macacos acorrentados, atrás da janela flutua o céu e se banha o mar. A prova é de história da humanidade. Gaguejo e tropeço. Um macaco, olhos fixos em mim, ouve com ironia, o outro parece cochilar — mas quando à pergunta se segue o silêncio, me sopra com um suave tilintar de correntes.cruzando com o sol. Bela Adormecida Adélia Prado Estou alegre e o motivo beira secretamente à humilhação, porque aos 50 anos não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, aprender a nadar como se deve. No entanto, não sei se é por causa das águas, deste ar que desentoca do chão as formigas aladas, Atitude ou se é por causa dele que volta e põe tudo arcaico, como a matéria da alma, se você vai ao pasto, se você olha o céu, aquelas frutinhas travosas, aquela estrelinha nova, sabe que nada mudou. O pai está vivo e tosse, a mãe pragueja sem raiva na cozinha. Assim que escurecer vou namorar. Que mundo ordenado e bom! Namorar quem? Minha alma nasceu desposada com um marido invisível. Quando ele fala roreja quando ele vem eu sei, porque as hastes se inclinam. Eu fico tão atenta que adormeço a cada ano mais. Sob juramento lhes digo: tenho 18 anos. Incompletos. AtitudeCecília Meireles Minha esperança perdeu seu nome... Fechei meu sonho, para chamá-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala. O último passo do destino parará sem forma funesta, e a noite oscilará como um dourado sino derramando flores de festa. Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes. E um campo de estrelas irá brotando atrás das lembranças ardentes A Máquina do Mundo Carlos Drummond de Andrade E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos, convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas. Soneto da Fidelidade Vinícius de Moraes De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. A Terra Desolada T. S. Eliot Abril é o mais cruel dos meses, germina Lilases da terra morta, mistura Memória e desejo, aviva Agônicas raízes com a chuva da primavera. O inverno nos agasalhava, envolvendo A terra em neve deslembrada, nutrindo Com secos tubérculos o que ainda restava de vida. O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten, Tomamos café, e por uma hora conversamos. Big gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch. Quando éramos crianças, na casa do arquiduque, Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó. E eu tive medo. Disse-me ele, Maria, Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos. Nas montanhas, lá, onde livre te sentes. Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno. Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham Nessa imundície pedregosa? Filho do homem, Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos, E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas Uma sombra medra sob esta rocha escarlate. (Chega-te à sombra desta rocha escarlate), E vou mostrar-te algo distinto De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando; Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó. Tabacaria Fernando Pessoa Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo. que ninguém sabe quem é ( E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Hugh Selwyn Mauberly Ezra Pound Vai, livro natimudo, E diz a ela Que um dia me cantou essa canção de Lawes: Houvesse em nós Mais canção, menos temas, Então se acabariam minhas penas, Meus defeitos sanados em poemas Para fazê-la eterna em minha voz Diz a ela que espalha Tais tesouros no ar, Sem querer nada mais além de dar Vida ao momento, Que eu lhes ordenaria: vivam, Quais rosas, no âmbar mágico, a compor, Rubribordadas de ouro, só Uma substância e cor Desafiando o tempo. Diz a ela que vai Com a canção nos lábios Mas não canta a canção e ignora Quem a fez, que talvez uma outra boca Tão bela quanto a dela Em novas eras há de ter aos pés Os que a adoram agora, Quando os nossos dois pós Com o de Waller se deponham, mudos, No olvido que refina a todos nós, Até que a mutação apague tudo Salvo a Beleza, a sós. Poema XLIV Pablo Neruda Saberás que não te amo e que te amo pois que de dois modos é a vida, a palavra é uma asa do silêncio, o fogo tem a sua metade de frio. Amo-te para começar a amar-te, para recomeçar o infinito e para não deixar de amar-te nunca: por isso não te amo ainda. Amo-te e não te amo como se tivesse nas minhas mãos a chave da felicidade e um incerto destino infeliz. O meu amor tem duas vidas para amar-te. Por isso te amo quando não te amo e por isso te amo quando te amo. Blues Fúnebres W.H. Auden Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra Parem todos os relógios, calem o telefone, Impeçam o latido do cão com um osso para a fome, Silenciem os pianos e com tambores chamem A vinda do caixão, deixem que os desconsolados clamem. Que aviões circulem no alto, um voo torto, Rabiscando no céu a mensagem: ele está morto. Que se coloque nos brancos pescoços de pombas coleiras pretas, E os guardas de trânsito usem luvas de algodão negras. Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste, Minha semana de trabalho, um domingo campestre, Meu meio-dia, meia-noite, minha fala, minha canção; Eu pensava que o amor duraria para sempre: eu não tinha razão. Não me importam mais as estrelas; tirem-as da minha frente, Empacotem a lua, desmantelem o sol quente, Despejem o oceano, tirem as florestas de perto: Pois agora nada mais pode vir a dar certo. Funeral Blues W.H. Auden Stop all the clocks, cut off the telephone, Prevent the dog from barking with a juicy bone, Silence the pianos and with muffled drum Bring out the coffin, let the mourners come. Let aeroplanes circle moaning overhead Scribbling on the sky the message “He is Dead”. Put crepe bows round the white necks of the public doves, Let the trafficpolicemen wear black cotton gloves. He was my North, my South, my East and West, My working week and my Sunday rest, My noon, my midnight, my talk, my song; I thought that love would last forever: I was wrong. The stars are not wanted now; put out every one, Pack up the moon and dismantle the sun, Pour away the ocean and sweep up the wood; For nothing now can ever come to any good. Ulisses Alfred, Lord Tennyson De nada serve a um rei ficar inerte, No lar quieto, em meio à rocha infértil, Unido a esposa idosa, eu doo e imponho Iníquas leis a um bando de selvagens Que soma, e dorme, e engorda, e não me vê. Estou inquieto: Sorverei da vida A última gota: Sempre gozei muito, Sofri muito, com todos que me amaram, E só; em terra firme, ou arrastado Por negras correntezas irritadas Pelas Híades: Transformei-me em nome; Errante sempre, com ardente impulso Muito vi e conheci; cidades de homens E costumes, conselhos, climas, regras, E a mim mesmo, por todos sempre honrado. Traguei da pugna o gozo junto aos meus, Longe na Troia dos ventantes plainos. Sou parte, enfim, de tudo que encontrei; A experiência é um arco pelo qual Vislumbro um mundo inexplorado, cuja Margem se afasta sempre ao meu mover. Que tolice o parar, o dar um fim, Enferrujar assim, sem uso e brilho! Como se respirar fosse viver. Quão pouco, vidas sobre vidas! Desta, Pouco resta: mas cada hora é salva Do que é silêncio eterno, um algo além, Arauto do que é novo; vil seria Guardar-me, agrisalhando por três sóis, A alma cinzenta ardendo por seguir O saber como um astro que se afoga, Além do limiar do pensamento. Este é o meu filho, meu fiel Telêmaco, Para quem eu relego o cetro e a ilha – Meu bem-amado, hábil a cumprir Esse labor, prudente domador De um povo rude, e mansamente, aos poucos, Vai sujeitá-los ao que é bom e útil. Irreprochável, centra-se na esfera Dos deveres comuns, decente para Sutis ofícios, prestará tributos De justa adoração aos nossos deuses Quando eu me for. Ele obra o dele, eu o meu. Lá jaz o porto; O barco estufa as velas: Ensombram grandes mares. Meus marujos, Almas que lutam, sofrem junto a mim – Que, jubilosas, acolheram sempre Trovão e sol ardente, opondo frente E fronte livres – nós estamos velhos; Na velhice, persiste a honra e a luta; A morte é o fim: mas antes, algum feito Notório e nobre está por se fazer, Sem impróprios conflitos com os Deuses. Luzes estão a cintilar nas rochas: O dia míngua: a lua ascende: o abismo Gemendo em muitas vozes. Venham, homens, Não tarda a busca por um novo mundo. Partam, em ordem todos, e fulminem As sonoras esteiras; Meu intento É navegar além-poente, e sob Estrelas do ocidente, até morrer. Talvez vorazes golfos nos devorem, Ou então, nas Afortunadas Ilhas, Vejamos grande Aquiles, caro a nós; Mesmo perdendo muito, há muito à frente, Ainda que como antes não movamos A Terra e o Céu; O que nós somos, somos; O mesmo heroico peito temperado, Fraco por tempo e fado, mas forte a Lutar, buscar, achar, e não ceder. comer com dois garfos Carla Diacov eu gosto muito de você você tem um rosto bom dois olhos no lugar correto a boca que se movimenta quando é perguntada seu nariz tem a pontinha toda luminosa suas maçãs são rosadas e no tamanho perfeito para o seu tipo de rosto perfeito seus ombros me dizem coisas bonitas o espaço entre eles é bonito e cabível gosto quando você separa os joelhos só para juntar os joelhos de volta seu pé esquerdo é inquieto e o direito foi contaminado pelo esquerdo parece em sapatos corretos isso é perfeitamente contornável seus mindinhos são tortos mas isso é tão bonito quanto as luvas que te dei sua memória é seletiva mas conto com sua boca dócil gosto de você assim e assim porque assim você é linda porque você é linda porque você é meiga porque cabe atrás da minha orelha da minha história do meu casaco da minha mãe do meu currículo do meu retrato na escolinha tia Shush porque cabe atrás da minha orelha como um cigarro como uma menina com uma flor Nesta noite ninguém pode deitar-se: lua cheia. Matsuo Basho Relvas de verão sob as quais os guerreiros sonham. Matsuo Basho craquelada Natasha Felix tenho habitado muitos riscos. o baiacu inchado na garganta insiste em me competir o ar. como trepar em montevidéu e acordar no jaguaré: genealogia do deslocamento – me abstenho de maiores explicações. li piva como quem toma chá de camomila com canela assim descobri que o erro é um bacanal lotado de ex marido. não dá pra ler piva antes do dejejum de uma segunda-feira do mesmo jeito que não dá pra esperar o baiacu sair da garganta por vontade divina. tenho ficado muito quieta & no silêncio a evidência me expõe: a memória das sereias do tejo, essa eu invejo; das prostitutas da Mongólia tenho os mesmos dentes vermelhos. não sei onde guardei as fotos da ultima ida ao mercadão de são paulo. onde deixei o molho de chave, onde foi parar aquele gozo na páscoa de 98, o jornal pra embalar os cacos de vidro, não sei onde. o baiacu espinha minha glote, me impede a distância. mesmo assim eu e o que restou das minhas lembranças tombadas – nebulosas e uruguaias como você – no ringue, lutando contra o peixe, eu. A mulher é uma construção Angélica Freitas a mulher é uma construção deve ser a mulher basicamente é pra ser um conjunto habitacional tudo igual tudo rebocado só muda a cor particularmente sou uma mulher de tijolos à vista nas reuniões sociais tendo a ser a mais mal vestida digo que sou jornalista (a mulher é uma construção com buracos demais vaza a revista nova é o ministério dos assuntos cloacais perdão não se fala em merda na revista nova) você é mulher e se de repente acorda binária e azul e passa o dia ligando e desligando a luz? (você gosta de ser brasileira? de se chamar virginia woolf?) a mulher é uma construção maquiagem é camuflagem toda mulher tem um amigo gay como é bom ter amigos todos os amigos tem um amigo gay que tem uma mulher que o chama de fred astaire neste ponto, já é tarde as psicólogas do café freud se olham e sorriem nada vai mudar - nada nunca vai mudar - a mulher é uma construção POESIA: "words set to music" (Dante via Pound), "uma viagem ao desconhecido" (Maiakóvski), "cernes e medulas" (Ezra Pound), "a fala do infalável" (Goethe), "linguagem voltada para a sua própria materialidade" (Jákobson), "permanente hesitação entre som e sentido" (Paul Valéry), "fundação do ser mediante a palavra" (Heidegger), "a religião original da humanidade" Novalis), "as melhores palavras na melhor ordem" (Coleridge), "emoção relembrada na tranqüilidade" (Wordsworth), "ciência e paixão" (Alfred de Vigny), "se faz com palavras, não com idéias" (Mallarmé), "música que se faz com idéias" (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), "um fingimento deveras" (Fernando Pessoa), "criticism of life" (Mathew Arnold), "palavra-coisa" (Sartre), "linguagem em estado de pureza selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to inspire" (Bob Dylan), "design de linguagem" (Décio Pignatari), "lo impossible hecho possible" (García Lorca), "aquilo que se perde na tradução" (Robert Frost), "a liberdade da minha linguagem" (Paulo Leminski)..." Receita para um dálmata Gregório Duvivier Pegue um papel, ou uma parede, ou algo que seja quase branco e bem vazio. Amasse-o até que tome forma de um animal: focinho, corpo, patas. Em cada pata ponha muitas unhas e em sua boca muitos dentes. (Caso queira, pinte o focinho de qualquer cor que pareça rosa). Atrás, na bunda, ponha um fiapo nervoso: será seu rabo. Pronto.Ou quase: deixe-o lá fora e espere chover nanquim. Agora dê grama ao bicho. Se ele rejeitar, é dálmata. Se comer (e mugir), é uma vaca que tens. Tente outra vez. Um vestido longo Gertrude Stein O que é a corrente que faz maquinaria, que a faz crepitar, que é a corrente que apresenta uma longa linha e uma cintura necessária. Que é esta corrente. O que é o vento, o que é ele. Onde está a serena extensão, está lá e um lugar escuro não é um lugar escuro, só um branco e vermelho são preto, só um amarelo e verde são azul, um rosa é escarlate, um laço é toda cor. Uma linha a distingue. Apenas uma linha a distingue. Belo Horizonte Ana Martins Marques [1] Um dia vou aprender a partir vou partir como quem fica [2] Um dia vou aprender a ficar vou ficar como quem parte O paradoxo Sarah Kay Quando eu estou aqui dentro, escrevendo Só consigo pensar que devia estar lá fora, vivendo. Quando estou lá fora vivendo Só consigo pensar em tudo que dá para escrever. Quando eu leio sobre amor, acho que devia estar por aí, amando. Quando eu amo, eu acho que devia ler mais. Estou tropeçando, procurando graça Eu caço a paciência com fervor. Nas manhãs quando os músculos cansados do meu irmão agarravam-se ao travesseiro, meu pai costumava dizer para ele, Para cada momento que você não está jogando basquete Alguém está na quadra praticando. Eu gasto a maior parte do tempo imaginando Se eu devia estar em outro lugar. Então aprendi a formar as palavras “muito obrigado” Com a primeira respiração da manhã, e na última a cada noite. Quando minha hora chegar, pelo menos eu vou saber que eu fui grata por todos os lugares onde eu tinha certeza que não deveria estar. Todos aqueles lugares aonde cheguei, todos amores que tive, todas palavras que escrevi. E mesmo que seja por apenas um momento, Estarei exatamente onde eu deveria estar. Conceição Evaristo Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes – agora – o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo. Gertrude Stein Bandeiras vermelhas a razão para bandeiras bonitas. E laços, Laços de bandeiras E material de vestir, Dar prazer. Me dê as regiões. As regiões e a terra. As regiões e as rodas. Todas rodas são perfeitas. Entusiasmo. Um cervo ferido pula mais alto Ray Kurtweil´s Cybernetic Poet Um veado ferido pula mais alto, Eu ouvi o narciso Eu ouvi a bandeira hoje Eu ouvi o chamado do caçador; Nada mais é que o êxtase da morte, E quando o intervalo está quase no fim, E o amanhecer tão próximo, O amanhecer tão próximo, Que podemos tocar o desespero E a esperança frenética de todas as eras.
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