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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DEPSI - CURSO DE PSICOLOGIA ANTROPOLOGIA DAS SOCIEDADES COMPLEXAS - TURMA A PROF. PAULO RENATO GUERIOS ALEX SANDRO BARÊA - GRR20175189 Resumo crítico: ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p.451-470, maio-agosto 2012. A introdução parte da problematização ética que atravessa a atual “Guerra ao Terrorismo”, justificada enquanto tentativa de libertação das mulheres muçulmanas que, segundo a autora Abu-Lughod (2012), se configurou numa obsessão rasa pelo sofrimento dessas, acabando por deturpar o olhar sobre os reais interesses por trás das pautas político-econômicas ocidentais, e principalmente, estadunidenses. A autora também sinalizou para a necessidade do feminismo fazer um recorte cultural, e assim, que o debate sobre um “feminismo transnacional” se dê de maneira séria e comprometida. Há um apontamento da antropologia enquanto disciplina que busca “entender e gerenciar as diferenças culturais”, apesar do posicionamento crítico a ser cúmplice dessa disciplina “na reificação da diferença cultural”. É posta em questão a tentativa simplista de compreender eventos como o 11 de setembro de 2001, ou como as intervenções estadunidenses no território afegão, em que o discurso ocidental faz uso única e parcialmente de recursos culturais. Assim, expõe-se a fragilidade dessa suposta busca por entendimento da questão afegã, reduzindo o debate a temas sobre alguns aspectos da vida das mulheres e da religiosidade, ignorando a história local, o desenvolvimento de regimes opressivos e, inclusive, o envolvimento dos Estados Unidos com estes. Dessa maneira, as interconexões globais são negligenciadas assim como suas consequências, recriando o imaginário geográfico através de uma divisão artificial do Ocidente em oposição ao Oriente. Nesse sentido, o discurso midiático dos “povos civilizados” se traduz num compadecimento soberbo pelas mulheres e crianças afegãs, elaborando ideias superficiais sobre um conflito territorial complexo, e produzindo imagens deturpadas nas quais os “talibãs-e-os-terroristas” (compreendidos em uníssono) se tornam monstros culturais que tentam se impor ao mundo (ABU-LUGHOD, 2012). “Homens brancos salvando mulheres marrons de homens marrons” (SPIVAK, 1988 apud ABU-LUGHOD, 2012). A análise da autora traz à tona a comicidade trágica da contradição que perpassa esse tipo de discurso, pois ao mesmo tempo que o Ocidente faz críticas ao fundamentalismo religioso ou à imposição de modos de vida, ignora seu passado colonialista, sua presente atuação através do imperialismo cultural ou, mesmo, através das gritantes evidências de intervenção politico-territorial por interesses de domínio mercadológico. Do passado colonialista ocidental, a autora aponta casos similares de apelo à pauta feminina como tentativa de justificar o domínio de povos, a exemplo temos o colonialismo francês e a questão da Argélia, no qual a libertação do véu é análoga à libertação da burca, símbolos entendidos como a mais significativa opressão. Fixam-se ícones culturais sobre narrativas político-históricas desordenadas, e a libertação chega acompanhada por bombardeios e tropas militares. Segundo Abu-Lughod (2012), o uso de burca, ou de outras formas de vestimenta igualmente vistas como opressivas, deve ser compreendido na sua totalidade enquanto produto histórico-cultural localizado geograficamente. Um dos diversos grupos étnicos que compõem o território afegão é o Pashtun, do qual a burca é uma convenção que simboliza a respeitabilidade da mulher, sua associação à casa e à família, e seu pertencimento à um modo particular de vida moral, no qual as famílias são o centro da organização comunitária. De acordo com Hanna Papanek (1982), citada por Abu-Lughod (2012), a burca seria uma “reclusão portátil”, já vista como libertária, no sentido de que permitiu as mulheres ocuparem “espaços masculinos” sem que desrespeitassem seus princípios morais básicos. Da mesma maneira, as sociedades ocidentais também possuem códigos de vestuário atravessados por questões morais, econômicas e culturais. As pessoas são guiadas por padrões sociais compartilhados, e a menos que exista a intenção de transgredi-los, se vestirão de forma apropriada à sua comunidade. Ademais, a problemática cultural do regime Talibã se faz enquanto imposição de somente um costume em consequência da supressão de outros, mas que mesmo assim segue dentro de um espectro de semelhança cultural (ABU-LUGHOD, 2012), diferente da intenção estadunidense supostamente libertária, que situa somente a noção ocidental de liberdade como correta. Para a autora, o debate sobre o vestuário enquanto opressão perpassa uma grande problemática político-ética da maneira que lidamos com os “outros” culturais. As inúmeras culturas encontradas ao redor do mundo são resultado de longas interações históricas, e não deviam ser submetidas à imposição de transformações violentas e seletivas que sequer atingem o cerne da opressão. Apesar disso, o contexto não deve ser encarado através do relativismo cultural, que negligencia as opressões, mas compreender a possibilidade da diferença, respeitando e reconsiderando as concepções de liberdade e igualdade de um sujeito construído e localizado histórica e geograficamente (ABU- LUGHOD, 2012). As reflexões postas por Abu-Lughod (2012) se fazem essenciais na contemporaneidade, e certamente não se limitam somente ao debate sobre as mulheres muçulmanas, debate, esse, que evidencia como não se superou o olhar protetivo análogo ao tido com os “bons selvagens” indígenas. A dominação de povos por interesses econômicos atravessa a história da humanidade, se mantém e se regula de acordo com as dinâmicas sociais, econômicas e culturais vigentes; a nova ordem dos processos de comunicação globalizada, e o avanço dos movimentos políticos de grupos oprimidos (mulheres, LGBTs, negros, …) estabeleceu a necessidade de que o apagamento das culturas não-hegemônicas, ação sempre norteada pelo interesse capitalista, se dê sob a égide do discurso progressista e libertário. Abu-Lughod (2012) coloca em termos teóricos, e de maneira precisa, a vigilância que se deve ter em não confundir pautas político- estatais com movimentos genuinamente libertários, assim como se deve ter o cuidado de que as pautas não permaneçam no superficial de uma “problemática” elaborada através da lente ocidental, mas de fato objetivem mudanças estruturais. Apesar da antropologia ter academicamente superado o etnocentrismo, não se pode estender essa superação à toda a sociedade, visto que a construção de identidades sempre se dá por oposição, e o status quo mantido pelo colonialismo cultural ocidental tem etnia, cor, classe social, gênero, sexualidade e língua.
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