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Espetacularização do humano

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"E sem dúvida o nosso tempo... prefere a 
imagem à coisa, a cópia ao original, a 
representação à realidade, a aparência ao 
ser... O que é sagrado para ele, não é senão a 
ilusão, mas o que é profano é a verdade. 
Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à 
medida que decresce a verdade e que a ilusão 
aumenta, de modo que para ele o cúmulo da 
ilusão é também o cúmulo do sagrado" 
(Feuerbach, prefácio à segunda edição de A 
essência do cristianismo). 
 
 
REAL & VIRTUAL 
A espetacularização do humano 
 
 
 
FRANCISCO PERNA FILHO 
 
A cultura fragmentada, possibilitada pela variedade de caminhos da internet, embora 
contenha ética e valor próprios de grupos e nichos diversos coloca em xeque um dos 
elementos fundamentais para a autonomia dos indivíduos: a responsabilização pelas 
próprias escolhas. 
Se verdadeira ou não esta constatação, o certo é que ela nos inquieta e nos conduz a uma 
discussão mais aprofundada sobre o assunto e a alguns questionamentos: de que forma 
isso vem afetando o homem deste século? Como as tecnologias midiáticas estão 
influenciando na configuração desse novo homem? Que respostas podemos esperar 
desses novos tempos em que todos são produtores e consumidores ao mesmo tempo? 
Quais recursos serão utilizados para atrair esse novo consumidor/leitor? 
Tais indagações nos surgem como norteadoras para as reflexões apresentadas neste 
estudo, cujo objetivo é discutir o espaço virtual como palco de audiência, do espetáculo, 
em que cada um tenta disputar o seu quinhão de importância e fama, utilizando-se de 
expedientes e recursos diversos, muitas vezes sem o menor compromisso com a 
preservação da ética. 
Para esta discussão, tomaremos como base alguns teóricos (Adorno, 1995; Anderson, 
2004; Debord, 2003; Dines,2009; Hall, 2005; Negroponte, 2003; Palácios, 2008) e 
analisaremos algumas passagens do filme Sem Vestígios (Untraceable - direção de 
Gregory Hoblit – EUA, 2008), que traz à tona uma discussão se não nova, muito 
interessante: a guerra pela audiência a qualquer preço. 
Apesar de se tratar de um filme, portanto ficção, a análise da obra possibilita reflexões 
sobre as transformações tecnológicas e a construção de novas formas de relação e 
interação social. O filme apresenta uma trama em que uma divisão do FBI, dedicada à 
investigação e condenação de criminosos que atuam através da Internet, depara-se com 
um assassino perito em Internet que exibe seus assassinatos em seu website, bem como 
a agonia das suas vítimas, cujo destino fica nas mãos dos internautas: quanto mais 
visitas o site recebe, mais rápido as vítimas morrem. E por incrível que pareça, as 
vítimas morrem muito rápido. 
A trama apresentada no filme, juntamente com algumas reflexões teóricas, nos traz 
questionamentos e nos incita a refletir sobre as relações que perpassam o ambiente 
virtual e sobre a interatividade que é construída entre os sujeitos leitores/navegantes, 
ativos e passivos de um processo ou história construída em um ambiente virtual/real a 
partir da globalização e do advento da Rede Mundial de Computadores, o que provocou 
uma revolução só comparada à Revolução Industrial, no século 18. 
Mundo, mundo, vasto mundo 
Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnologia e referenda o seu 
desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, 
quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto 
"mundo". Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e 
interagir – na ilusão de sua virtualidade – com outros mundos tão "reais" quanto o seu. 
Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar-lhe os códigos, as 
várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. 
Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar 
pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, 
prontos para atacar o incauto navegador aventureiro. 
Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limites, qualquer 
desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a 
pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber onde pisar, para não ser 
tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e 
ciberilusão. 
Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o 
embate da jornada; é preciso ter pleno conhecimento das vias a serem percorridas, para 
isso o viajante deve munir-se de bússola e mapas, é preciso não confundir as 
sinalizações, pois como disse o poeta Fernando Pessoa, citando Pompeu, general 
romano: "Navegar é preciso, viver não é preciso", mas essa precisão pode ser relativa, 
caso o navegante desconheça os códigos. 
Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o percurso a ser 
seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer internauta/cidadão, colocamo-nos 
nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até 
então inimaginados, à procura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples 
curiosidades. 
Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos 
hipertextualmente nessa vastidão digital de convivências nem sempre amistosas, mas 
necessárias, como podemos presenciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera 
e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a 
outra: pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida. 
O que antes era espaço privilegiado da mídia, de quem detinha o poder econômico, 
passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer como o são as 
revistas eletrônicas, os blogs, que vêm crescendo no grau de importância e passam a ter 
status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes 
jornais do país, atraindo cada vez mais leitores, quando não, webespectadores, que, se 
conscientes ou não, passam a interagir com esta nova realidade. 
Esta gama de produtos e opções culturais, de informações e lazer, de produtos e 
oportunidades, surgidos com a Internet, de certa forma mudaria a nossa forma de olhar o 
mundo, quando os espaços são vários, e cada um "sabe" que caminho trilhar, já que a 
ele todas as vias são facultadas, momento em que os receptores de uma comunicação 
massiva dão um salto de "liberdade" e passam a caminhar com os próprios pés e a ter 
vez e voz, aquilo de que fala Cris Anderson no seu livro A Cauda Longa (The Long 
Tail): 
Cauda Longa é nada mais que escolha infinita. Distribuição abundante e barata significa 
variedade farta, acessível e ilimitada – o que por sua vez, quer dizer que o público tende 
a distribuir-se de maneira tão dispersa quanto as escolhas. Sob a perspectiva da mídia e 
da indústria do entretenimento dominantes, essa situação se assemelha a uma batalha 
entre os meios de comunicação tradicionais e a internet. Mas o problema é que, quando 
as pessoas deslocam sua atenção para os veículos on-line, elas não só migram de um 
meio para outro, mas também simplesmente se dispersam entre inúmeras ofertas. 
Escolha infinita é o mesmo que fragmentação máxima (Anderson, 2006, p.179, grifo 
meu). 
Como aponta Anderson (2006), o advento da internet possibilitou às pessoas que a ela 
recorreram que também se dispersassem nessa babel de escolhas. Segundo ele, ao 
mesmo tempo em que se configurou como um manancial de oportunidades, gerou uma 
fragmentação máxima do mercado, na medida em que cada um passou a buscar aquilo 
que lhe convinha. Fato que ele comparou como uma batalha entre os meios de 
comunicação tradicional e a internet. 
A citação de Anderson (2006), ao argumentar sobre a fragmentação do mercado, acaba 
por abordar também a fragmentação da cultura, característica do quese denominou 
"pós-modernidade", uma vez que a segmentação do mercado (ponto de vista dos meios 
de comunicação de massa e do entretenimento) arrastou consigo o homem nele inserto. 
Se até pouco tempo só tínhamos o rádio, a televisão e o jornal, agora temos os blogs, o 
YouTube, o ciberjornalismo, todos convivendo lado a lado. Se antes a comunicação se 
dava de "um para todos", agora ela se nos apresenta como de "todos para todos", um 
espaço "democrático", que vem se consolidando a cada dia, causando uma verdadeira 
revolução na busca pela audiência. 
2.0 Ecos digitais 
Na corrida sem volta pela audiência, muitos jornais, ao longo dos vinte anos de 
existência da rede mundial de computadores, puderam sentir a força dessa nova 
plataforma e as modificações dela advindas, o que os forçou a também buscar o seu 
quinhão na virtualidade, sob pena de perderem audiência e espaço nesse universo de 
possibilidades, como testemunha Dines, (2009) no seu artigo "www, 20 anos - Daily Me 
versus Daily We", veiculado na página on-line do Observatório da Imprensa, quando 
aponta as diferenças básicas entre o jornalismo impresso e o jornalismo digital: 
"Não existe conflito entre o periódico impresso e a internet, são 
rigorosamente complementares. Existe, sim, um conflito entre o 
jornalismo impresso e o jornalismo virtual. Este conflito não pode ser 
ignorado e não se resume ao meio (medium) que empregam (papel ou 
ciberespaço). Trata-se de um confronto conceitual: o jornalismo virtual é 
uma opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o 
jornalismo impresso" 
(http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ00
1 - grifo meu). 
E acrescenta: 
"Quando um jornal como o Seattle Post-Intelligence, com 
146 anos de existência, anuncia a sua migração para a 
web não está fazendo uma simples opção de formato e 
tecnologia, está mudando de finalidade. Deixa de ser o 
protagonista de um processo social de massas para 
transformar-se em coadjuvante de um processo 
individual multiplicado, o Daily Me, o `Eu Diário’ 
(segundo definição de Nicholas Negroponte, do MIT, 
mencionado por Nicholas Kristof no Estado de S. Paulo 
(23/3). Um Daily We esmerado e engajado tem outras 
exigências" 
(http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?c
od=530IMQ001 - grifo meu). 
Como vimos, ao argumentar sobre os possíveis conflitos existentes entre o jornalismo 
impresso e o jornalismo virtual, mas não entre o periódico impresso e a internet, que, 
segundo o autor, são rigorosamente complementares, Dines (2009) se refere ao 
jornalismo virtual como opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do 
que o jornalismo impresso, e, logo em seguida, cita o caso do jornal americano Seattle 
Post-Intelligence, que ao migrar para a modelo virtual (internet), sai de um "processo 
social de massas", ou seja, deixa de ser protagonista de um processo social de massas 
para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado. 
A colocação de Dines (2009) é muito importante, pois corrobora com a nossa discussão, 
uma vez que trata das mudanças empreendidas pelos jornais, rádios e TVs, que ao 
migrarem para a plataforma digital, não o fazem somente porque está na moda, pelo 
contrário, o fazem porque se não procederem desta forma, correm o risco de ficarem 
para trás na concorrência cada vez mais acirrada e diversa. E aí, cada um buscará a 
maneira mais adequada para buscar os seus "leitores/webespectadores". 
São inúmeras as possibilidades ao alcance do internauta, vídeos e imagens; atrativos de 
toda ordem, sem falar na interatividade, já que a perspectiva é de co-autoria, de "todos 
para todos" e não mais de "um para todos", como no jornal impresso. Acrescente-se a 
isso, ferramentas importantíssimas de que se vale o ciberjornalismo ou jornalismo 
virtual, como a subversão da noção espacial, a desterritorialização, não mais há 
necessidade de se estar no local onde o jornal é impresso para lê-lo, só basta um clique, 
uma conexão. O tempo e o espaço são subvertidos, além de tudo isso, há ainda a 
memória à disposição do leitor, ali, permanentemente, hipertextualmente, como 
instrumento de reforço da notícia, dando a ela maior credibilidade, como podemos ler 
em Palacios (2008): 
"É bastante claro que as crescentes possibilidades abertas para a 
recuperação de Memória, a partir da sofisticação das bases de dados na 
produção jornalísticas têm efeitos que podem e devem ser avaliados: a) 
Nas rotinas produtivas nas Redações, com a crescente facilidade de 
consultas e apropriação de informações em bases de dados internas e 
externas ao veículo; b) Nos modelos de negócios, com uma vasta gama 
de possíveis incorporações de elementos de Memória como parte do 
negócio estabelecido para os jornais online;c) Na produção de formas 
narrativas diferenciadas, com distintas formas de incorporação de 
Memória (background, contexto, contraposição, etc);d) Nas formas de 
interação com o Usuário, que passa a dispor de recursos para investigar, 
no próprio site do jornal, aspectos históricos em torno do material de 
Atualidade que lhe é oferecido, bem como eventualmente personalizar 
sua Memória em espaços do próprio site jornalístico que utiliza" 
(http://cencib.org/simposioabciber/conferencias.htm) 
Assim como o jornalismo, que se vale dos mais variados recursos, como a memória, 
para chamar a atenção dos seus leitores, como foi citado acima, os blogs, as páginas 
especializadas em diversos assuntos, estão ali, prontos para lançarem os seus apelos, 
suas armadilhas, disputando em pé de igualdade os seus "eleitos", e aí, basta um clique 
para ser transportado para uma nova dimensão, para uma nova realidade. 
3.0 Ficção e realidade – a noção de co-autoria 
Imerso nessa nova realidade, o indivíduo está livre para ir e vir, subir e descer, 
transgredir, quebrar os interditos da vida real, trair ou ser traído, morrer ou matar. Como 
no filme Sem Vestígios (Untraceable), direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008, que traz 
uma trama que ressalta a guerra pela audiência a qualquer preço. A banalização do 
humano, que transforma o sofrimento alheio em números de audiência, de ibope. Um 
mundo que, à medida que se virtualiza, mais real e próximo se torna. Um mundo de 
imagens cada vez mais apelativas, muitas vezes, a depender do gosto do navegante, 
beirando a escatologia, o absurdo. A vida que imita a própria vida na sua barbárie 
imaginativa, daquilo que nos fala Debord (2003): 
"Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social 
efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo 
que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba 
materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em 
si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva 
está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a 
realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação 
recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente" (Debord, 
2003, p.10). 
Esta afirmação do autor ilustra bem a sociedade do espetáculo na qual estamos insertos 
num mundo sem fronteiras, sem escrúpulos, sem nenhum dono, onde a ética passa 
distante, em que os métodos para se alcançar a audiência chegam aos mais bizarros, 
como o foram o caso do jornalista americano Daniel Pearl, correspondente do Wall 
Street Journal, sequestrado e morto (decapitado) no Paquistão, em 2002. O assassinato 
foi filmado e divulgado no mundo todo pela mídia tradicional e pela internet. Pearl tinha 
38 anos e sua mulher, Mariane, estava grávida de sete meses. Outros exemplos foram os 
ataques suicidas às torres gêmeas; a guerra entre Iraque e Kuait, transmitidas em tempo 
real, posteriormente a guerra tecnológica dos Estados Unidos e Iraque, culminando com 
o enforcamento de Saddam Hussein, que também foi mostradanas duas mídias: 
tradicional e Internet, e tantas outras barbáries, que se nos revelam em tempo real, e 
que, de certa maneira, nos fazem partícipes desse perigoso jogo interativo para lá de 
real, como no filme Sem Vestígios. 
Evocar o filme Sem Vestígios é um caminho para discutirmos e buscarmos uma 
compreensão desses novos tempos, dessa tecnologia – internet – que a muitos conecta e 
que a muitos insere. Pois ele nos mostra, a despeito de qualquer falha de roteiro ou 
julgamento estético, a capacidade humana de não mais se indignar com a violência 
crescente e globalizada, quando, por meio da rede de computadores, da blogosfera, 
produzem, em tempo real, o sofrimento dos seus pares, a espetacularização de crimes. 
Para implementarmos esta discussão, atentemos mais uma vez ao que diz Debord 
(2003): 
"A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o 
resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: 
quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-
se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua 
própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo 
em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já 
não são seus, mas de um outro que lhes apresenta. Eis porque o 
espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo 
está em toda a parte" (Debord, 2003, p.19). 
A trama do filme nos mostra uma divisão do FBI dedicada à investigação e condenação 
de criminosos que atuam através da internet, tendo à frente da divisão do cibercrime, a 
Agente Especial Jennifer Marsh (Diane Lane) e Griffin Dowd (Colin Hanks). Após 
investigarem e prenderem inúmeros criminosos virtuais (reais), os agentes se deparam 
com algo até então inédito: assassinatos transmitidos ao vivo, da forma mais bizarra 
possível, com a participação massiva dos webtelespectadores, que, pelo número de 
acessos, determinam a velocidade com que a vítima deve morrer. 
O site denominado MATECOMIGO.COM, no primeiro momento lança convites on-
line para que os internautas participem do jogo macabro, ou que se tornaria macabro, 
com a seguinte frase "Uma gata numa ratoeira, não é irônico?", e, posteriormente a gata 
é morta. Os agentes fazem de tudo para rastrear o IP do computador do criminoso, mas 
não conseguem, o site está hospedado num domínio russo. 
Depois de ter matado a gata, um homem é capturado e morto ao vivo, com requintes de 
crueldades. A vítima foi amordaçada, amarrada pelos punhos e pelas canelas, em pé, 
com os braços voltados para o alto. No seu peito fora gravado, com alguma coisa 
cortante, o nome do site MATECOMIGO.COM, à esquerda do vídeo aparecia um 
contador de acessos e um calibrador químico. Uma caixa que regulava a injeção de 
fluidos da vítima, os cabos ligados ao computador, e umas bolsas contendo 
anticoagulante. A droga chama-se Heparina, a dose certa, salva; a errada deixa a vítima 
hemofílica. Quanto mais acessos, mais dose é injetada e mais rápido ele sangra. Os 
acessos são muitos e a dose injetada foi de 3.80 cc, o homem morre. A vítima chama-se 
Hebert Miller, 54, de Sellwood, piloto de avião, trabalhava para Burnside Charter. 
O telespectador, webespectador, da sua condição supostamente passiva, passa a 
interagir com o assassino, por meio dos seus acessos, e passa a ser ativo, tornando-se 
co-autor dessa narrativa bárbara. Quando falamos em ser passivo, apesar da participação 
como agente de uma escolha desse mundo fragmentado: Internet, já que os programas e 
sites são eletivos, é interessante atentar para o conceito de autonomia em Adorno(1995): 
"O que a psicologia profunda denomina superego, a consciência moral, é 
substituída no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, 
sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com 
muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. 
Porém, justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando 
exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui 
aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a 
recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem 
mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente 
estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio 
de Auschwitz seria a autonomia, para usar expressão kantiana; o poder 
para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação" (Adorno, 1995, 
p.124-125). 
O pensamento de Adorno (1995) nos remete a vários questionamentos e apresenta-se 
fundamental neste estudo, pois o conceito de autonomia nos leva a refletir sobre qual é o 
papel do indivíduo que atua livremente na internet e que percorre várias possibilidades 
de caminhos, valendo-se de interesses e busca por oportunidades diversas. Uma vez que 
a nossa discussão busca uma reflexão sobre a cultura fragmentada em oposição à 
massificação, à cultura de massa, à indústria cultural, estamos diante de uma realidade 
interessante, principalmente quando discutimos o papel do indivíduo a percorrer 
livremente as infovias, esse oceano de possibilidades de des/aprendizado, quando o 
universal se nos apresenta, e a noção de espaço e tempo são subvertidos. Quem acessa 
um site, o acessa por livre e espontânea vontade, a despeito de qualque link ou 
hipertexto que o atraia. 
No caso do filme, em particular, quando os webespectador se conecta ao cibercriminoso 
(que também é um criminoso real, já que os crimes são reais e são praticados num 
espaço físico, que, apesar de "distante", tornam-se próximos do webespectador), em vez 
de refletir sobre as consequências do seu clique, apenas tem a ilusão da interatividade 
"ativa", porquanto a sua participação é conduzida pelo algoz, sem que tenha capacidade 
de refletir sobre sua (ir)responsabilidade perante o fato. Desconhece qualquer 
autonomia, no conceito adorniano, de auto-reflexão, de auto-determinação ou mesmo de 
não-participação. 
Como estamos falando agora de ficção, numa perspectiva de que o sujeito é "destituído" 
de autonomia nas suas escolhas, revelando-se, apesar da identidade que jura trazer 
consigo, um sujeito inconsequente ao interagir com seus pares num espaço de 
dimensões imensuráveis como o é a Internet, conforme mostra o filme Sem Vestígios, 
principalmente por esse espaço não se configurar mais como pertencente a uma nação 
específica, cidade ou lugar, cabe evocar aqui o pensamento de Hall (2005), numa 
compreensão de que a Internet acelerou e nos trouxe o verdadeiro sentido da 
globalização: 
"(...)Que impacto tem a última fase da globalização sobre as identidades 
nacionais? Uma de suas características principais é a "compressão 
espaço-tempo", a aceleração dos processos globais, de forma que se 
sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos 
em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e 
lugares situados a uma grande distância" Stuart (2005, p.69-70). 
Como nos fala Stuart (2005), o espetáculo se caracteriza pela instantaneidade do 
acontecimento, quando os espaços são suprimidos e não mais são empecilhos para que 
um extremo se aproxime do outro, para que as partes se encontrem, para que os 
fragmentos se unam, na ilusão de uma identificação coletiva, quando na verdade o 
ponto de aproximação é apenas o espetáculo, como podemos constatar no filme Sem 
Vestígios, quando o assassino, usando de recursos extremamente sofisticados, um site 
com streaming de origem fantasma e irrastreável, convida o mundo para ajudá-lo a 
matar quem ele quiser e ninguém pode fazer nada para impedi-lo. O que se tem são 
pessoas que, atendendo ao apelo do criminoso, por curiosidade ou por deleite, atendem 
ao chamado e tornam-se co-partícipes daquele espetáculo macabro, ou seja, submetem-
se ao jogo sem se dar conta da gravidade do ato praticado, como podemos ler em 
Debord (2003):"O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a 
economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a 
economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção 
das coisas, e a objetivação infiel dos produtores" (Debord, 2003, p. 12-
13). 
No filme, muitas outras pessoas são assassinadas, seguindo a mesma dinâmica do jogo, 
ninguém resiste aos apelos do algoz e assiste impavidamente o dilaceramento de uma 
sociedade extremamente fragmentada a ruir mais ainda, sem ter como recompor-se 
dessas tragédias diárias, mostradas ao vivo e em cores para todo mundo. 
Uma passagem do filme muito interessante, para não dizer macabra, é quando ao 
investigar o passado do assassino, a agente do FBI descobre que o pai dele se suicidara 
com um tiro, em cima da ponte principal da cidade, despencando lá de cima, batendo a 
cabeça na marquise do restaurante que ficava logo abaixo, despedaçando o cérebro, o 
qual foi encaminhado para o legista, enquanto que os óculos do suicida ficaram intactos 
e foram achados por um funcionário do restaurante, que os colocara à venda on-line, 
que, para a surpresa de todos, fora vendido em tempo recorde. Acrescente-se a isso o 
fato de que a televisão, cujo repórter cobriu essa tragédia (o suicídio), e que também 
fora vítima dele (o terceiro a ser assassinado com transmissão ao vivo pela Internet) - na 
época transmitiu a cena do suicídio em tempo real e, depois, reprisou-a várias vezes 
para compensar a perda de audiência que vinha sofrendo. 
"A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão 
gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a 
abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do 
conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser 
concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo 
representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais 
do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores 
não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que 
mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o 
enquanto separado" (Debord, 2003, p.18. grifo meu) 
O pensamento de Debord (2003) mais uma vez nos ajuda a pensar estes novos tempos, 
tempos de fragmentação, tanto da cultura como do ser humano, quando as pessoas 
imersas nos seus desejos, nos seus dramas, segmentadas nos seus gostos, caminham em 
várias direções, às vezes conduzidas por forças que desconhecem, são colocadas nos 
mesmos espaços, sejam eles reais ou virtuais, não porque têm os mesmos gostos, mas 
pelo fato de alimentarem no espetáculo que presenciam a ilusão da potência que lhes 
falta, configuram-se como parte de um todo que não existe, são apenas seres 
fragmentados que marcham em busca de uma identidade. 
Considerações finais 
Os tempos são outros, todos nós o sabemos, mas com eles caminhamos, somos 
conduzidos, esperneamos, resistimos, nos indignamos, mas não tem jeito, o futuro está 
aqui, diante dos nos olhos, na ponta dos nossos dedos, nas nossas digitais, na nossa Iris, 
sentimos os seus efeitos, também somos futuro. 
Vivemos a era digital, as tecnologias pululam, dão as cartas, os homens a elas se unem, 
fazem delas a extensão dos seus corpos, como disse Marshall McLuhan, ficam 
fascinados com tamanha transformação e facilidades, mas também se inquietam com os 
abusos, pirataria, roubos e crimes de toda ordem, como já previra em 1995 Nicholas 
Negroponte: 
"Na próximas década, veremos casos de abuso de propriedade intelectual 
e de invasão de nossa privacidade. Enfrentaremos o vandalismo digital, a 
pirataria de software e o roubo de dados. E, pior do que isso: 
testemunharemos a perda de muitos empregos para sistemas totalmente 
automatizados, que em breve vão mudar o local de trabalho dos 
colarinhos-brancos na mesma medida em que transformaram a paisagem 
nas fábricas. A noção do emprego vitalício numa única empresa já 
começou a desaparecer" (Negroponte, 2003, p.215). 
Negromonte estava certo, assim como no filme Sem Vestígios em que bandidos invadem 
páginas e computadores alheios e conseguem acionar dispositivos que matam. Na vida 
real, é cada vez mais ousada a atitude dos hackers, como os que agora invadiram site do 
Pentágono e roubaram projeto do avião F-35 Lightning II, avaliado em US$ 300 bi, 
segundo o Wall Street Journal, Ex-oficiais do governo americano disseram que os 
ataques partiram da China, mas que não poderiam precisar a identidade dos hackers. 
Com tudo isso, estamos vivendo uma época em que a ficção se repete no nosso 
cotidiano, em que virtual e real se fundem, se completam, como acreditou e acredita 
Nicholas Negroponte: "A vida digital é outra coisa. Não estamos esperando por uma 
qualquer invenção. Ela está aí. Agora. E quase genética em sua natureza, pois cada 
geração vai se tornar mais digital do que a anterior." E assim como ele, também 
acredito nestes novos tempos, comungo desta nova era, mas sempre atento para não 
sucumbir nas armadilhas dessas largas bandas da digitalidade. 
 
 
 
 
 
Bibliografia 
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995 
ANDERSON, Cris. A Cauda Longa. Do mercado de massa para o mercado de nicho. 
Tradução: Afonso Celso da Cunha Serra. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 2006. 
DEBORD, Guy. A Sociedade Espetáculo. 
http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html. 2003 
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