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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Jorge Antonio Tavares Peixoto CARTOGRAFANDO AS SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS PELA EMPREGABILIDADE EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA DA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA JOVEM EM UM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE. Rio de Janeiro 2017 1 JORGE ANTONIO TAVARES PEIXOTO CARTOGRAFANDO AS SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS PELA EMPREGABILIDADE EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA DA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA JOVEM EM UM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Processos Psicossociais, Históricos E Coletivos, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Francisco Teixeira Portugal Co-orientador: Prof. Dr. Fernando José Gastal de Castro Rio de Janeiro 2017 2 3 FOLHA DE APROVAÇÃO A Dissertação “CARTOGRAFANDO AS SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS PELA EMPREGABILIDADE EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA DA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA JOVEM EM UM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE”, elaborada por JORGE ANTONIO TAVARES PEIXOTO e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Programa de pós- graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA Rio de Janeiro, 24 de maio de 2017. BANCA EXAMINADORA _________________________________ Dr. Francisco Teixeira Portugal (PPGP/UFRJ – orientador) _________________________________ Dr. Fernando José Gastal de Castro ( PPGP/UFRJ – Co-Orientador) _________________________________ Dr. João Batista Ferreira (PPGP/UFRJ) _________________________________ Dra. Ana Heloisa da Costa Lemos (PUC-Rio) Suplentes: __________________________________ Cristal Moniz De Aragão ( UFRJ) __________________________________ Cirlene De Souza Christo (UFRJ) Rio de Janeiro 2017 4 À Lucia Maria Tavares de Brito (in memoriam) À Nilo Roberto Rodrigues Peixoto (in memoriam) Aos meus filhos Yuri, Lucia Helena e Sophia. 5 AGRADECIMENTOS À minha família, especialmente a minha esposa e parceira Cristiane Alves de Almeida Peixoto, no apoio para que eu continuasse o trabalho e o concluisse. Meus filhos Yuri e as gêmeas Sophia e Lucia, por aceitarem estar privados de minha presença e deixar de estar algumas vezes em suas brincadeiras e obrigações escolares, coisas que desejo compensar, finalizando este trabalho. À família extensa: A Antonio Jorge Rodrigues Peixoto, o “Jorjão”, e a meu irmão, Renan Tavares Peixoto. E aos sogros Vera Lucia e José Carlos. À todas as tias e primos, que são tantos, e que fizeram e fazem parte da minha historicidade pessoal, e de todos aqueles suportes no dia-a-dia. A meu orientador professor Francisco, por sua generosidade ímpar como ser humano e um companheirismo tão necessário em momentos dificeis, em dúvidas e esclarecimentos. Fez muito mais que eu pudesse imaginar que um orientador pudesse fazer, disponibilizando recursos e criando possibilidades concretas diante de problemas surgidos, para que essa dissertação acontecesse. Sempre disponivel, indicava livros e trazia questões que respeitavam meu pensamento. Dedicado e com críticas honestas, sempre em prol de um melhor desenvolvimento deste trabalho. A meu outro orientador, Professor Fernando, por sua presença marcante na composição e na percepção das questões que envolviam parte que cabia-lhe orientar do trabalho. Mostrou-se para mim, de uma humildade e sensibilidade singulares e uma personalidade forte, foi sempre muito próximo e disponível em ouvir as idéias e ajudar. Em nossas orientações em grupo, ele, junto com professor Francisco, trouxeram-me questões que foram cruciais para mim, partilhando em trio a aposta de fazer esta dissertação. Ter duas pessoas na minha construção acadêmica, foi um privilégio que levarei por toda a vida na possibilidade de me tornar professor universitário. À vocês dois, minha Gratidão. Aos membros da Banca: Professores João, Ana Heloisa, Cristal e Cirlene, pela valiosa contribuição e gentileza em estarem avaliando esse trabalho. Agradecimentos à : Karoline Ruthes, Myrna Boechat, Pedro Legey, Alexandra Amorim, Carolini Cunha, Mariana Fiore. E sou grato especialmente pelas contribuições feitas por Juliana Silva, Daniel Maribondo, Romulo Ballestê e Mariana Gonçalves. Agradeço também ao “Grupo Techné”: Felipe Lemos Josué; Fernanda Rodrigues Mota; Natália Neira; Olívia de Melo Heleno, Raquel Rosa . Um agradecimento especial à contribuição de Rodrigo da Luz Araújo e Melina Alvarez especialmente no apoio na revisão do trabalho. Agradeço à amiga Patricia do Socorro Campos da Silva pela contribuição. A todos os participantes e associados da Associação Amigos do Paraíso e aos colegas do CRAS Novo Eldorado: Caio Macedo; Mardele Eugenio; Aparecida Santos; Rosane Silvestre e a Monica Nascimento pelo apoio e compreensão ao trabalho a ser feito. 6 RESUMO O trabalho realizou uma pesquisa qualitativa com dez jovens desempregados e empregados formalmente, residentes num município da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro e participantes de projetos sociais de uma iniciativa popular local. Buscou-se conhecer as subjetividades produzidas na inserção e não inserção nas políticas públicas da cidade, especialmente à de Intermediação de Mão de Obra. Elegeu-se mapear essas relações através das lógicas do conceito da Empregabilidade, buscando conhecer essas relações com conceitos de produção de subjetividade de Félix Guattari e de a sociologia clínica de Vicent Gaulejac. A aposta é que os fatores sócio-históricos que legitimam o desemprego pela empregabilidade, trazem um modelo de sujeito “empregável”, construindo quadros de referências que produzem uma relação de culpabilidade, segregação e infantilização, e trazendo-os para a pessoa, desconsiderando a influência do meio social. Os jovens participantes se concebiam como os únicos responsáveis por sua inserção no mercado de trabalho; por estarem fora ou por se manterem nele. Assim, o presente trabalho aponta a necessidade de entender melhor os efeitos dessas relações na produção subjetiva e seus efeitos na psiquê do sujeito e na sua relação com o social, numa perspectiva integrativa dessas duas dimensões, tidas para nós como indissociáveis. Como pesquisa-intervenção, interessou-se também em reconhecer que potencialidades - em projetos sociais mantidos por pessoas de uma associação local - tinham para criar micropolíticas que procuram transversalizar o ordenamento estabelecido tanto nas questões insconscientes quantos na ética dos acontecimentos. Tais ações possibilitam a criação de modos de estar-no-mundo e de buscar mais cidadania para os sujeitos da pesquisa. Palavras-Chave: Políticas públicas, Sociologia Clínica, Emprego e Renda, Empregabilidade; Produção de subjetividade ; Análise Institucional ; Juventude 7 ABSTRACT The work carried out a qualitative research with ten unemployed and formally employed young subjects, residents in a municipality of Baixada Fluminense in Rio de Janeiro and active members in social projects of a local popular outreach program. It was sought to know the subjectivities produced in the use or not of the public policies of the city, especially to the Intermediation of Manpower. It was chosen to map these relations through the logistics of the employability concept, seekingto know these relations with Felix Guattari's subjectivity and Vicent Gaulejac's socio-clinical concepts. The point is that socio-historical factors, that legitimize unemployment through employability, carry a model of the "employable" subject, constructing frames of references that produce a relationship of guilt, segregation and infantilization, and bringing them to the person disregarding therefore the influence of the social environment. It was seen that young people saw themselves as being the only ones responsible for their insertion in the job market, whether they were outside of it or remaining in it. Thus, the present work points out to the need to better understand the effects of these relationships among subjective productions and its effects on the psyche of the subject and their relation to society, in an integrative perspective of these two dimensions, considered to be inseparable. As an intervention research, it was interesting to recognize that the potentialities - in social projects maintained by people of a local association - had to create micro-policies that seek to conventionalize the order established both in the unconscious issues and in the ethics of events. Creating other possibilities of being-in-the- world and of seeking greater citizenship for the research subjects. 8 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................13 1- UM BREVE HISTÓRICO DAS POLÍTICAS DE EMPREGO E RENDA........................25 1.1 O RETORNO DA HEGEMONIA DOS PRINCÍPIOS LIBERAIS, A ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E A CONSTRUÇÃO E APROPRIAÇÃO DO OPERÁRIO POLIVALENTE PARA O CAPITALISMO MUNDIAL INTEGRADO........................................................................25 1.2 ALGO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO E RENDA E A CONSTITUI ÇÃO BRASILEIRA: O CONFLITO DO MODO DE GESTÃO DE EMPRESAS COMO FORMA DE GOVERNAR.................................................................................................27 1.2.1 UM PEQUENO MAPEAMENTO DO PANORAMA ORGANIZATIVO DO SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO, TRABALHO E RENDA (SPETR) NO BRASIL.......................32 1.2.2 A POLÍTICA DE EMPREGO E RENDA NO BRASIL PÓS-2001 - OS GOVERNOS LULA E DILMA..................................................................................................................34 2. A EMPREGABILIDADE COMO ANALISADOR DE UMA PRODUÇÃO SUBJETIVA: SOBRE A CULPABILIZAÇÃO, INFANTILIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO DO TRABALHADOR JOVEM..................................................................................................38 2.1 A PRODUÇÃO DA CULPA E INFANTILIZAÇÃO DO TRABALHADOR INAPTO OU NÃO-QUALIFICADO: “O QUE VOCÊ SERÁ QUANDO CRESCER?”...............................43 2.2 A EMPREGABILIDADE COMO ELEMENTO DE SEGREGAÇÃONA INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA: “HÁ VAGAS. MAS É PREFERÍVEL TER O NÍVEL MÉDIO OU SUPERIOR, EXPERIÊNCIA E QUALIFICAÇÃO.”..........................................52 3. METODOLOGIA OU O “HÓDOS-METÁ” : SEGUINDO AS PISTAS, DESCOBRINDO AS METAS E (RE)INVENTANDO DISPOSITIVOS NO PROCESSO DE PESQUISA......57 3.1 O PESQUISADOR, A PESQUISA E A CIDADE - UMA ANÁLISE DE IMPLICAÇÃO..60 4. CARTOGRAFANDO O TERRITÓRIO: BUSCANDO PISTAS DE COMO SE OPERACIONALIZAM AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERMEDIAÇÃO DE RENDA NUM MUNICÍPIO DA BAIXADA........................................................................................65 4.1 O TERRITÓRIO: SEUS POTENCIAIS E IMPOTÊNCIAS LOCAIS PARA INTERMEDIAR EMPREGO A SUA POPULAÇÃO.............................................................65 4.2 O POSTO SINE MUNICIPAL......................................................................................69 4.2.1 SOBRE AS VAGAS OFERECIDAS..........................................................................70 4.2.2 A CARACTERIZAÇÃO DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO............................................................................................................................71 4.2.3 AS CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO.................................................................71 4.2.3.1 VINCULO DOS SERVIDORES E O CLIENTELISMO DE CAMPANHAS ELEITORAIS.......................................................................................................................71 4.2.3.2 FUNCIONAMENTO IRREGULAR E INTERMITENTE...........................................73 10 4.2.4 DESARTICULAÇÃO ENTRE AS POLÍTICAS...........................................................73 4.2.5 DESARTICULAÇÃO ENTRE OS SERVIÇOS OFERECIDOS NO SINE-RJ.............74 4.3 O SERVIÇO MUNICIPAL DE INTERMEDIAÇÃO DE EMPREGO E RENDA...............................................................................................................................76 5 OS ENSAIOS DE SINGULARIDADE E AS NARRATIVAS DOS ENCONTROS...........77 5.1 DOS PROCESSOS SUBJETIVOS E SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS: CINCO RELATOS DE JOVENS DESEMPREGADOS....................................................................79 5.1.1 PRIMEIRA NARRATIVA: BIANCA.............................................................................79 5.1.2 SEGUNDA NARRATIVA: ROBERTA.........................................................................81 5.1.3 TERCEIRA NARRATIVA: FERNANDA......................................................................83 5.1.4 QUARTA NARRATIVA: KÁTIA...................................................................................84 5.1.5 QUINTA NARRATIVA: CLÁUDIO...............................................................................85 5.1.6 – INTER-RELATOS: ALGUMAS DAS QUESTÕES DA EMPREGABILIDADE E OUTROS ANALISADORES QUE EMERGEM ATRAVESSANDO AS NARRATIVAS DOS JOVENS DESEMPREGADOS...........................................................................................89 A)ATRIBUIÇÃO EXTERNA A CONDIÇÃO OCUPACIONAL...............................................89 B)SOBRE O SERVIÇO PÚBLICO DE INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA.................91 C)SOBRE AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM A LÓGICA DA EMPREGABILIDADE E SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS.....................................................................................91 D)O SUPORTE FAMILIAR..................................................................................................94 E) OS SENTIMENTOS SUSCITADOS PELA CONDIÇÃO DE DESEMPREGADOS.........94 5.2 PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES EM JOVENS EMPREGADOS E OUTRAS NARRATIVAS: IVAN, CARLOS E DALILA..........................................................................96 5.3 INTER-RELATOS DOS JOVENS EMPREGADOS: QUANTO VALE O TEMPO?.....100 6 A “FORMALIZAÇÃO” DA EMPRESA DE SI MESMO: O CASO JAQUELINE..........104 6.1 SINTESE COMPREENSIVA.......................................................................................109 7 ENSAIOS DE RESISTÊNCIAS E LINHAS DE FUGA: O CASO AMPARA..................113 7.1 EPISÓDIO I: A FORMAÇÃO DE UM COLETIVO DE RESISTÊNCIA......................113 7.2 EPISÓDIO II: AS AÇÕES INICIAIS DE PROJETOS RELACIONADOS...................115 A) O CURSO PREPARATÓRIO PARA CONCURSOS COMUNITÁRIO...........................116 B) A OFICINA DE ARTESANATO E A CONDIÇÃO DE SE ENCONTRAR E SE SOCIALIZAR.....................................................................................................................117 11 C) PROJETO SUCEJA - CONEXÃO COM DISPOSITIVOS PÚBLICOS DE ESCOLARIZAÇÃO FORMAL E BUSCA POR AUTONOMIA DO SUJEITO.....................117 7.3 CENAS DE UM PRÓXIMO CAPÍTULO: UTOPIA, VIAS POSSÍVEIS, CONSTRUÇÕES DIÁRIAS, INTERVENÇÕES NO INCONSCIENTE, PENSAMENTO CRITICO E AUTOCRÍTICO NA PROMOÇÃO DA VIDA...................................................1208 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS ….........................................................................121 9 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 124 10 APÊNDICES................................................................................................................129 10.1 APÊNDICE 1: PROPOSTA DE ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA INDIVIDUAL......................................................................................................................129 10.2 APÊNDICE 2: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.............132 10.3 APÊNDICE 3: FOTOS DE PROJETOS DA ASSOCIAÇÃO AMIGOS DO PARAÍS.............................................................................................................................134 12 INTRODUÇÃO “Não importa o que fizeram de mim. Mas o que eu faço do que fizeram de mim” Jean Paul Sartre Quando se nasce em um bairro modesto de um município pobre da Baixada Fluminense, como é o meu caso, acostuma-se a não ter muitas referências. Meu pai, um motorista de ônibus, e minha mãe, uma dona de casa, se esforçavam ao máximo para que minha vida fosse a melhor possível. Lembro-me da preocupação constante por uma educação “boa” o que impulsionou meus pais a tentar e conseguir, uma bolsa de estudos em escola privada durante todo o nível fundamental. No Ensino Médio, fui para uma escola pública estadual onde só havia duas opções de curso: O Normal destinado à formação de professores da educação infantil e a Formação Geral que era uma opção mais generalista, não-profissionalizante. Na época, escolhi a segunda opção, pois não achava que poderia ser professor, muito menos ensinar crianças. Concomitantemente, trabalhava, no contra turno, num bar de um amigo do meu pai. Podemos dizer que foi minha primeira experiência de trabalho. Não era grande coisa, mas garantia-me uma certa autonomia para sair aos finais de semana e para comprar coisas pessoais, enquanto não tinha dezoito anos. Ao terminar o Ensino Médio, meu desejo era fazer uma faculdade, desejo este plantado e alimentado pelos professores da escola e incentivado por amigos próximos que já estavam na graduação, o que me parecia interessante. No entanto, eu não fazia a mínima ideia do que queria fazer na faculdade. Apesar de ter amigos já formados e graduandos, esta realidade parecia um pouco distante, embora permanecesse mais como uma “meta em si mesma”. Naquele ano tentei vestibular em várias universidades públicas e outro vestibular numa universidade privada. Como não obtive aprovação nas universidades públicas, a universidade particular parecia ser uma boa ideia. “Análise de sistemas”. Soava bem. Era também o ano que obrigatoriamente eu deveria me apresentar às Forças Armadas. A contragosto, fui incorporado ao Exército Brasileiro e não pude seguir com os estudos. Foi um ano de experiências extremas: de despersonalização (virei um número), de privações (às vezes de comida, de água, de diversão, mas principalmente de viver) e 13 de muitos outros sentimentos confusos próprios de um período de semi-internato e de uma experiência institucional até então inédita para mim. Ainda assim, curiosamente, minha raiva por estar naquele lugar foi interpretada por superiores como destaque positivo para ser um bom soldado. Aceitei fazer o curso de cabo do exército (o CFC), convencido por colegas que me ajudaria mais tarde. Ao final daquele ano, fui convidado a ser Sargento temporário ou sair na primeira “baixa” da turma. Amigos diziam: “aproveite a chance” ou “lá fora, 'tá difícil emprego”. Balancei. Mas pensei como seria viver mais vários anos como aquele, ainda que numa posição melhor. Não era pra mim. Ao final dessa jornada, tinha certeza de algo: Não iria ser militar. Eis meu ganho. Ao sair do serviço militar, eu estava desempregado, realidade comum aos que cumprem o Serviço obrigatório, cuja principal ou a única qualificação é o manuseio de armas. Alguns colegas tornaram-se policiais, vigilantes ou foram empregados em meios ilícitos como o crime organizado. Não segui nenhum desses caminhos e também não tive mais notícias de nenhum deles. Ainda morava com meus pais e prestes a completar dezenove anos aceitei um subemprego de ajudante de caminhão numa distribuidora de vidros. Não havia direitos. Nem carteira assinada. Nos períodos de folga estudava para concurso e num desses, fui aprovado para ser agente postal dos Correios. No último dia de trabalho na distribuidora, um vidro enorme caiu sobre mim e por pouco não me feriu com mais gravidade. Um dos colegas me puxou e só tive arranhões leves, mas meu pulso e cabeça sangravam bastante. Fiquei com medo de perder o movimento dos braços e dedos, que no final, isso não aconteceu. Mas, por alguns momentos, pensei na possibilidade de minha vida terminar na juventude. Percebi que sou finito. A gente às vezes se esquece e age como se fosse viver para sempre e seus amigos e familiares também. Eis meu novo ganho para a vida: a percepção da finitude. Trabalhei nos Correios do Brasil por quatro anos. Nos meus primeiros três meses na empresa foi deflagrada uma greve. Aderida por grande parte dos trabalhadores. Não sabia se poderia aderir (acho que a vida militar ainda estava em mim – como se fosse 14 preciso permissão) mesmo receoso por estar em período de experiência no trabalho (o correio é uma empresa pública regida pela CLT), acabei sendo convencido pelos colegas a aderir ao movimento. Mais que isso: eu entrei de cabeça na causa. Fazia “piquetes”, dormia nas portas dos Centros de Distribuição, na frente de caminhões, participava de assembleias diárias, encontros com a Tropa de Choque da Polícia Militar, etc. e sentia que realmente fazia parte do grupo de resistência que exigia aumento de salários e melhores condições de trabalho. Pouco tempo depois fui eleito representante dos trabalhadores na minha unidade, experimentando na pele as contradições que se estabelecia entre as questões do trabalhador e as produções de adesões à lógica do capital e controle. Creio que isso aconteceu (eu ser visto como uma liderança por meus pares) após participar da denúncia do ambiente insalubre que estávamos vivendo ao Ministério Público e à Vigilância Sanitária. Ou o episódio de, com ajuda da gráfica do Sindicato, participar de uma ação de entrega de milhares de panfletos com várias denúncias com relação ao trabalho precarizado que estávamos submetidos em cada residência, junto com outros colegas que também queriam reagir a tais condições. O movimento surtiu efeito. Tivemos uma reforma no lugar de trabalho e a chefia foi afastada. Tive pela primeira vez a sensação real que é possível fazer diferença, se trabalhadores se unem de forma organizada. Durante esse período, participava de todas as greves, testemunhando aperda gradativa de sua força e seus esvaziamentos constantes. O sindicato estava sendo esvaziado e perdendo cada vez mais a sua representação. O discurso legítimo, de melhores condições salariais e de trabalho, parecia não fazer mais diferença frente aos trabalhadores cada vez mais reféns das políticas internas e externas da empresa. Do marketing da adesão. Da formação e construção do operário “colaborador”. No uso de palestras, “workshops” com direito a finais de semana em sítios em Petrópolis. Da nomeação de lideranças dos trabalhadores a cargos de supervisão e a sensível mudança do discurso destes, contaminados com uma chance de “subir” na empresa. Na última greve que participeinos Correios, com pouquíssima adesão, resolvi radicalizar: após receber a informação de que teríamos um aumento irrisório, enquanto diretores quase dobravam o salário no acordo coletivo, expus a informação do jornal recebido na assembleia com o contracheque de diversos diretores vazados e distribuídos numa das assembleias, no mural público da unidade. Isso causou um grande incômodo na chefia, a 15 ponto de ser chamado a prestar depoimento para a inspetoria dos Correios e de tentar ser “incriminado” por quebra de privacidade ou qualquer coisa parecida. Eu havia pegado as informações numa das assembleias no centro da cidade – na verdade nem sabia que se tratava de um material “underground”. A diferença é que nenhum dos delegados que também recebeu, havia dado essa exposição na unidade em que trabalhava. Logo, eu fui o único. Foi um dos momentos que agradeci que a tortura tivesse sido proibido no país, porque acho que se fosse possível, era o próximo passo dos Inspetores da Empresa e a Polícia Federal para que eu falasse como tinha conseguido tal informação. O processo não foi adiante, mas tive meu “momento de preso político”. Sem dizer como consegui tais informações. Não foi porque tinha “informações privilegiadas” ou era um grande ativista político sindical. Eu não sabia mesmo, fui até certo ponto ingênuo e idealista até no depoimento que dei. Fui, por fim, liberado em seguida pelo inspetor. Comecei a perceber a perda de sentido de estar naquele lugar, acho que um ciclo havia se fechado pra mim. Passei a estudar a área de informática (segmento que crescia em 2001), me profissionalizando e me qualificando melhor no setor. Também fazia cursos preparatórios para outros concursos, visando sair daquela ocupação que as pessoas pareciam já ter se acostumado. Ao mesmo tempo que viver essas experiências me agregara a necessidade de travar lutas coletivas, de estudar mais, de conhecer um pouco melhor as relações que se estabelecem no trabalho, vinha junto um desânimo por parecer que eu era um dos poucos resistentes ao pensamento de que devíamos agradecer a empresa a “oportunidade”. “Afinal, será que esse cara não entendeu? Eles venceram!” Tendo em vista que eu também parecia ter sido vencido pela impossibilidade de continuar naquele trabalho, pedi para que me demitissem no lugar de uma pessoa que precisava mais daquele emprego do que eu. Um colega com idade avançada e próximo da aposentadoria. Havia certa resistência pelo fato de como delegado sindical gozar de certa “imunidade” legal, mas o fato é que realmente queria sair. Mais uma vez estabeleceu-se um impasse: decisões difíceis de serem tomadas numa ocupação, afinal, eu tinha imunidade e um “emprego certo”. Mas acreditava que era possível outro trabalho, e novamente, tinha o suporte familiar. Pesou o fato de ainda estar bem jovem e solteiro e tinha a crença que estava mais qualificado que antes, eu acreditava que conseguiria logo um novo emprego na área e/ou tentaria outro concurso público, acreditava nas diversas 16 possibilidades que se abririam. Assim, junto com outros amigos, resolvi montar um negócio próprio no setor de informática. Parecia promissor e comecei uma experiência como “empreendedor”. Na prática, por diversos fatores que incluem questões pessoais, o empreendimento não foi adiante. Mais um aprendizado sobre mim: não sei ser “patrão” ou explorar trabalho alheio. No entanto, a experiência e os contatos que eu havia feito no período de consultoria rendeu-me um novo emprego como instrutor de Informática numa Organização Não Governamental sem fins lucrativos (onde também iniciei o curso de pré- vestibular comunitário, afinal continuava com a ideia de fazer faculdade) e logo depois numa empresa privada. Nesta mesma ONG, iniciei um pré-vestibular comunitário e mantinha vivo o sonho da Universidade, dessa vez mais maduro na escolha. Em 2003, recebo a notícia de um amigo que eu havia passado para Psicologia para Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Precisava fazer uma nova escolha muito difícil: 1) Optar pelo curso de Psicologia (curso integral); para isto seria necessário deixar meu emprego. 2) Optar pela pedagogia; haveria uma relação com meu trabalho de professor de informática, porém o curso não era minha principal opção. Eu também levava em consideração os custos que eu teria com os cursos e principalmente com a vida de recém casado. Mais uma vez o suporte da família e de amigos me possibilitou fazer a escolha mais difícil, porém a mais desejada por mim. Eu iria fazer psicologia. E em tempo integral. Mas só faria isso na condição de ter a tal “bolsa-auxílio”, uma então nova política da faculdade de manutenção dos alunos. Não era muito, mas me permitiria custear principais gastos. Eu faria serviços de informática, me viraria. Quisera o destino que a tal “bolsa-auxílio” fosse concedida. Na época, minha esposa estava trabalhando também, o que também facilitou a decisão. “Vai dar”- pensei. E fui. * * * Pessoalmente, enfrentava uma rotina implacável para quem estuda na Zona Sul do Rio de janeiro, morando na Baixada Fluminense: tudo fica longe. Passa-se muito tempo em translados, em trânsito. As poltronas dos ônibus e trens viram carteiras de estudo e leitura. Ou a cama. 17 Ao mesmo tempo trabalhava como operador de telemarketing (esse era um dos poucos empregos que me permitia trabalhar de 18:00 às 00:00h) para sustentar uma família, que já crescia (com um filho já vindo). Além disso, eu era monitor bolsista do laboratório de informática do Instituto de Psicologia e mantinha a bolsa-auxílio concedida pela faculdade. Destas formas eu conseguia me manter no curso integral e os gastos domésticos, já que a essa altura, eu era o único provedor. No trabalho, após seleção interna na empresa de telemarketing que trabalhava, passei a fazer parte do setor administrativo. O cargo vinha acrescido de um aumento considerável de salário e possuía atribuições que lidavam diretamente com questões financeiras e resoluções de conflitos. O que aparentemente parecia uma boa oportunidade, mas se tornou um pesadelo. O aumento do nível de pressão e estresse vividos por mim, além de políticas internas muito questionáveis e ilegais me causavam um mal-estar pessoal por compor o quadro de funcionários de uma empresa que lesava descaradamente a população. O sindicato (diferente da experiência que tive nos Correios) era mantido distante e sem força para ouvir reivindicações ou mesmo dar prosseguimento a denúncias de assédio. Pouco se falava da entidade representativa ou permitia-se contato para além da homologação. Por outro lado, dessa vez, eu não dispunha de tempo e identificava aquele emprego apenas como algo temporário, até terminar a faculdade. Essas constatações me fizeram adoecer, literalmente. Principalmnete após ser promovido. Para tentar sobreviver e resistir aos desmandes institucionais – afinal, tinha um filho vindo - passei a agir de forma ética à revelia dessa política e de acordo com a lei e dos direitos do consumidor. Certa vez uma supervisora arbitral disse que eu iria mudar de horário. Ela sabia que eu estava ali especialmente pelo horário da faculdade. “Sai da faculdade! Não quer trabalhar? A escolha é sua”. Diante disso, mais uma vez, saio de um trabalho e correndo o risco de ficar desempregado. Com um agravante dessa vez: Não estou sozinho. Converso com a família. “Vai dar, a gente consegue!”. Peço então demissão. De novo, um pulo no escuro. Novamente escolhi viver. Basicamente minharenda familiar era custeada pelas duas bolsas que recebia da Universidade, que obviamente era insuficiente. Espalhava currículos, fui a várias entrevistas. Já conhecia as perguntas que os selecionadores faziam e as respostas “desejáveis” e previsíveis. Quando conseguia algo, esbarrava na impossibilidade de 18 conciliar com meus estudos. Diversas vezes pensei em largar a Faculdade. O problema é que eu tinha ido muito longe para “morrer na praia”. Por outro lado, eu tinha minha própria família para sustentar com um filho recém-nascido. A situação parecia se agravar com a possível perda de uma das bolsas (a de monitoria) pela impossibilidade de renovação. Paralelo a tudo isso, ainda no ano de 2006, me encontrava em plena militância em Pré-Vestibulares Comunitários para Jovens advindos de famílias de baixa renda. Acreditava (e ainda acredito) que o projeto de pré-vestibular, era uma alternativa viável e era uma boa causa para se engajar. Considerava a ação como uma espécie de resistência daqueles que, como eu, não se conformam com os meios desiguais de seleção e oportunidades; e buscando tentar rompê-los e mais tarde contribuir depois para que outros venham, num ciclo. Uma oportunidade de poder dar suporte e outras possibilidades a aqueles que não teriam condições financeiras para arcar com cursinhos preparatórios e que ainda assim, gostariam de estudar em uma universidade pública. Nesta época, esse movimento já não se tratava de nenhuma novidade e em muitos lugares em diversas partes do país, havia muitos grupos semelhantes organizados. Havia adesão de Sindicatos, Igrejas, ONG´s, movimentos comunitários etc. Já fazia inclusive parte de temas comuns em muitos artigos acadêmicos e trabalhos de conclusão de curso. A novidade para mim era estar contribuindo com essa ação em minha cidade, na minha região, com rostos familiares e do meu cotidiano. Minha principal motivação em participar desse movimento era exatamente porque eu próprio já havia sido um produto dessa iniciativa. Sentia-me de certa forma retribuindo e ao mesmo tempo de alguma forma na parte operacional, ajudava a iniciativa acontecer. E buscava ânimo para que eu também não desistisse. Sem muita formalidade nós, os voluntários - em sua maioria universitários - íamos nos envolvendo em ajudar a tirar dúvidas de matemática, química, biologia. Até que me dei conta que eu era o único universitário que estudava psicologia e poderia fazer algo que pudesse contribuir com o conhecimento que eu trazia. Como já havia feito a disciplina na universidade optei por tentar montar um projeto de Orientação Profissional. Aos poucos, essa iniciativa ia ganhando corpo e novos voluntários se juntavam a nós. A cada ano, percebíamos aumentar o número de interessados em participar do pré-vestibular, em sua maioria jovens entre 16 a 24 anos. 19 Mesmo ainda não tendo muita experiência com Orientação Profissional me dispus a estudar e a optar por uma estratégia de trabalho em grupo de reflexão com os jovens do projeto e me debrucei sobre o tema “trabalho e emprego”, dentro de uma linha psicossocial sócio-histórica (BOCK, 2001; FERRETI, 1992) e de forma interativa. Não sabia fazer de forma diretiva (hoje agradeço muito essa falta de habilidade da época) e não poderia usar os famosos “Testes” (expectativa de alguns dos participantes), já que não era ainda formado, nem tinha conhecimento e nem certeza da utilidade do emprego desses instrumentos. No entanto, me aproximar da realidade de outros voluntários me fez perceber que eu fazia parte de um grupo que se percebia como referência para outros jovens, isto me trouxe uma responsabilidade imensa de concluir meu curso e ser coerente com tudo que havia vivido até então. “Mas como?” - pensava. Graças a essa experiência, fui selecionado para uma equipe de estagiários bolsistas de um projeto de extensão na UFRJ, dando novo fôlego financeiro para me manter estudando. Nesta ocasião, fui apresentado à proposta do projeto “Análise do Vocacional” desenvolvido no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Essa proposta se mostrou para mim bem interessante e diferente do que eu já havia visto até então. Foi a oportunidade de unir o trabalho que já vinha realizando com a orientação que eu ainda não possuía e a possibilidade de trocar experiências e conhecimento com outros estagiários do projeto. A ideia era mapear analisadores da suposta individualização do sujeito no processo de escolha de uma profissão e da política intrínseca na ideia do desejo, trazida por leituras que fazíamos de Michel Foucault, Félix Guattari, e Gilles Deleuze, especialmente. Seria apresentado ao conceito de produção de subjetividade apresentada pela análise institucional, que mudaria , naquele momento, a perspectiva de pensar a minha própria atuação como profissional. Mais tarde, iniciei num estágio formal em Psicologia em uma escola Técnica Federal no município de Nilópolis, que me aproximou ainda mais das questões vividas por jovens da Baixada Fluminense que buscam se estabelecer no mercado de trabalho através de um curso profissionalizante. Junto com uma equipe multidisciplinar, composta por pedagogos, assistentes sociais e psicólogos, eu já vivenciava a tentativa de atuar de forma multiprofissional, que em si já era uma bagagem a mais que o estágio trazia. Penso que todas essas vivências agregaram em mim grande valor e deixaram várias impressões que acabaram sendo objeto do meu trabalho de conclusão de curso da 20 graduação, em 2012. Entre empregos formais e informais, bolsas e “free-lancers” e etc., terminei a graduação em psicologia no curso integral da UFRJ em oito anos, ao invés dos regulares cinco anos. Em 2011, sou chamado para integrar uma equipe de coordenação pedagógica de ensino médio numa escola privada. Sou imerso num sistema de gestão que coloca a educação como mercadoria e que destoa em muito do que eu entendia ser o trabalho do psicólogo na escola. Meu trabalho estava atrelado a “treinar” alunos para que estes passassem na universidade e professores para que eles se mantivessem focados nestas aprovações, ensinando em suas disciplinas os principais assuntos que caíam no vestibular. Apesar de não negar imediatamente essa demanda, que justificaria minha contratação, passei a trabalhar conjuntamente projetos que pudessem despertar consciência crítica e dar mais voz aos que faziam a escola acontecer: professores e alunos. Durante a minha passagem por essa coordenação pedagógica, procurei ouvir todos e me mostrar sempre acessível. Projetos fora de sala de aula, oficinas culturais, “assembleias de aula” - onde alunos e professores falavam dos conflitos e das questões institucionais que sentiam. Parecia que estávamos construindo juntos com a equipe de professores, algo para além do serviço concreto de montar simulados e fazer o trabalho de “coaching” que a direção esperava. Talvez por esse motivo, comecei a ser pressionado por resultados imediatos e números que justificassem os investimentos feitos no segmento do Ensino Médio que então coordenava. Apesar de ter havido vários ganhos perceptíveis (estímulos a projetos multidisciplinares, espaços para dar voz e incentivar protagonismos dos estudantes e etc.) percebi que estava trazendo mais problemas para a direção da escola do que resultados pretendidos por ela. Pois os alunos e os professores mais esclarecidos das relações institucionais, passara a cobrar mais da coordenação e, consequentemente, da direção da escola. Era questão de tempo para eu serdemitido. Comecei a sofrer de assédio moral em meu trabalho, onde os relatórios e todo trabalho que eu realizava era boicotado ou era exposto ao ridículo em público, aparentemente sem causa clara por parte da minha chefia direta. Eu acabei me dando conta que estava realizando um trabalho semelhante o que tinha feito na minha passagem pela educação pública, sendo que na educação privada e ainda: com a mesma ética. Obviamente, eu sabia que os interesses de gestão eram 21 diferentes. Mas não me furtei em sempre que fosse possível, implementar projetos com professores e alunos, embora isso tivesse um custo pessoal. Antes que o inevitável acontecesse, recebi um telegrama de convocação para assumir um cargo de um concurso público da UFRJ no qual fui aprovado. Cargo modesto de ensino médio. Pouco tempo depois meu anteprojeto de mestrado também foi aprovado. Dessa vez, um pouco mais tranquilo e um pouco mais aliviado, porque estava indo para o serviço público, mais uma demissão pedida. Após quase dois anos trabalhando como assistente em administração na Universidade Federal do Rio de Janeiro pedi exoneração para tomar posse como Psicólogo no município de Queimados, onde eu resido e me propus a pesquisar. Este é o trabalho que executo atualmente e que vem trazendo desafios que se entrelaçam direta e indiretamente com essa pesquisa. **** O objetivo desse trabalho é entender como são as relações dinâmicas que se estabelecem entre os mecanismos de funcionamento das políticas públicas de intermediação de mão de obra local e as subjetividades produzidas nos jovens participantes da pesquisa, em sua inserção e/ou segregação no mercado de trabalho formal. Assim, considerando a complexidade dessas relações que se entende estabelecer entre os sujeitos e sua trajetória na atividade laboral formal ou sua exclusão dela, para além de questões vinculadas ao sentimento de pertencimento à cidade e suas particularidades, foi escolhido para esta proposta este município na Baixada Fluminense, como território cartográfico dessa investigação e recorte para esse trabalho de pesquisa. No capítulo primeiro, estabelecemos um pequeno panorama sobre as ideias das políticas de emprego e suas relações com as ações desta no mundo e, especialmente no Brasil, em sua organização. Entendeu-se muito influenciada pelo viés da ideia de “Empregabilidade” e polivalência do trabalhador moderno e em relação com o modelo pós-fordista e com a acumulação flexível. No segundo capítulo, discutimos dentro do escopo e limites do trabalho, o sujeito produzido por uma “Economia subjetiva” e por uma, ainda atual, “produção de 22 subjetividade”, na perspectiva de Félix Guattari. Faremos isso tendo como base os conceitos de Culpabilização, Infantilização e Segregação trazidos por este autor. Fizemos também a discussão crítica do “modo gerencialista” de viver a vida, trazidas principalmente por Vicent Gaulejac. Nossa aposta neste capítulo é que conversando com esses dois autores, dentro desses referenciais teóricos, propor ao leitor um estranhamento das concepções já enraizadas em nosso cotidiano. Especialmente, em relação às fórmulas para ser bem-sucedido e autoempreender-se. E assim, refletir como tornar visíveis alguns dos mecanismos, de caráter social, em que todos nós estamos imersos, e que nos afeta diretamente em nossa subjetividade, por entendermos que essas duas dimensões estão intrinsicamente ligadas. O humano como produto e produtor (Castro, 2012; Gaulejac, 2014). No terceiro capítulo, tratamos mais da metodologia e da inserção em campo do pesquisador, suas implicações e a opção de investigar o campo que ele próprio habita, com todas suas contradições e atravessamentos. Trata-se do relato do mapeamento dos contornos desse funcionamento na prática local e de como essa atravessa as condições de preparação do trabalho, desterritorizando-o e impelindo para a construção de novas estratégias diante das realidades que o campo apresentava. No quarto capítulo buscamos perseguir o modo de funcionamento local da politica de Emprego e renda e seus principais atores, bem como as potências e impotências percebidas na imersão no território. Estas, trazidas sejam por elementos da política local e/ou pelas influências diretas na efetivdade da própria política pública de emprego de forma geral. No quinto capítulo, reservamos para as falas dos participantes, tentando potencializá-las através dos dispositivos empregados na percepção de como se veem frente aos desafios de se conseguir um emprego formal e como veem suas possibilidades reais de produzirem alternativas viáveis e dignas para seu sustento, mesmo diante de cenários pintados como desfavoráveis para eles. A proposta foi fazer uma análise transversal dos conteúdos trazidos pelos participantes nas entrevistas, baseada na metodologia da historicidade e história pessoal da sociologia clínica (GAULEJAC, 2015). No sexto capítulo, será dado um destaque a umas das conversas em separado, num estudo do caso. Tal ênfase se justifica pela força da narrativa e seu caráter ilustrativo 23 em todo seu conteúdo foi possível perceber alguns dos efeitos dessas lógicas da Empregabilidade, na forma de se reconhecer ou se negar quadros de referência e idealizações vindas, principalmente, da proximidade das idéias e da natureza do emprego da entrevistada . É possível reconhecer na fala, a experiência do desamparo de não poder contar com as políticas públicas de emprego e renda, por um lado; e a potência de poder enxergar novas alternativas por outro meios e coletivos. Expõem-se, entretanto, a condição cínica de alguns empregadores de usar e de fazer do trabalhador literalmente uma empresa – através de uma fraude e um dible jurídico - aceito pela trabalhadora, diante da necessidade de se manter e seguir adiante. Finalmente, no sétimo capítulo, falemos da proposta de montagem de um coletivo na perspectiva de ilustrar situações de resistências na criação e implementação de projetos feito de forma autogestionária, democrática e com a participação efetiva da comunidade em sua implementação e manutenção. Iniciativas que visam, de alguma forma concreta, porporcionar a todos os participantes uma experiência de rede, de trocas comunitárias e singulares, de experiências cooperativas e menos individualistas. Ao final, teceremos algumas considerações sobre trabalho que procurarão contribuir para uma melhor compreensão das possibilidades e do melhor entendimento dessa subjetividade produzida e seus efeitos nos sujeitos, dentro de uma perspectiva da Sociologia Clínica e da Análise institucional. 24 CAPÍTULO I 1- UM BREVE HISTÓRICO DAS POLÍTICAS DE EMPREGO E RENDA (...)Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros.(...) (Manoel de Barros, 1998, p.79) 1.1 - O RETORNO DA HEGEMONIA DOS PRINCÍPIOS LIBERAIS, ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E A CONSTRUÇÃO/APROPRIAÇÃO DO OPERÁRIO POLIVALENTE PARA O CAPITALISMO MUNDIAL INTEGRADO. Com o enfraquecimento da política keynesiana e do “Welfare State”, diante das questões colocadas a partir da Crise dos anos 70, as forças do Capital precisavam se reorganizar para que pudessem dar novas respostas ao mundo do trabalho. Assim, o que se viu adiante, foi o retorno dos princípios do liberalismo como a saída. Mas não exatamente da mesma forma: novos arranjos e propostas foramestabelecidas e atravessadas às constantes mudanças nos processos de trabalho, embora os pilares permaneçam os mesmos. Uma nova matriz tecnológica e produtiva surgiu para dar sustentação a esse novo processo de trabalho: O Toyotismo, como forma de acumulação flexível pós-fordismo. (…) Os trabalhadores tinham se mostrado capazes de controlar diretamente não só o movimento reivindicatório, mas o próprio funcionamento das empresas. Eles demonstraram, em suma que não possuem apenas força bruta, sendo dotados também de inteligência, iniciativa e capacidade organizacional. Os capitalistas compreenderam então que, em vez de se limitar a explorar a força de trabalho muscular dos trabalhadores, privando-as de qualquer iniciativa e mantendo-os enclausurados nas compartimentações estritas do Taylorismo e do Fordismo, podiam multiplicar seus lucros explorando-lhes a imaginação, os dotes organizativos, a capacidade de cooperação, todas as virtualidades da inteligência. (MÉSZÁROS, 1986 apud ANTUNES, 2000, p.45) Os trabalhadores compatíveis com esse modelo deveriam então ser diferenciados do fordismo/taylorismo por exigirem uma capacitação “mais qualificada”, isso tendencialmente dispensa demais trabalhadores que não se “adaptam” ao processo, gerando um alto desemprego estrutural, já que seus postos de trabalho são 25 “enxugados”. Ao contrário do princípio fordista que uma empresa com muitos funcionários era característica de sucesso; ter uma “empresa enxuta”, que produz lucro, é tido nesta concepção como sinônimo de boa gestão nesta nova matriz tecnológica. A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego “estrutural" (em oposição ao “friccional"3), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais (...) e o retrocesso do poder sindical - uma das colunas do regime fordista. (HARVEY, 2008 p.141) Outras novidades trazidas pelo Toyotismo são a incorporação do trabalho de equipe, a transferência de responsabilidades de elaboração e o controle de qualidade de produção, que antes era uma função gerencial, nesta forma são feitas pelos próprios trabalhadores. Embora o contexto oriental nem sempre seja incorporado de forma satisfatória no ocidente (fracassos na General Motors em Detroit, por exemplo), este teve uma boa aceitação e assimilação na Europa. Sendo que “ a transferibilidade do Toyotismo, ou de parte do seu receituário, mostrou-se de enorme interesse após a crise do início dos anos 70” (ANTUNES, 2000 p.42) Chamamos a atenção para esse ultimo modo de produção contemporâneo. Ele tem basicamente todos os serviços executados em outras células terceirizadas e onde a mão de obra barata ou a precarização do trabalho possa garantir uma maior taxa de lucratividade da empresa, ligada diretamente à eliminação de postos de trabalho. Ainda assim, o surgimento do ideário otimista que se constrói do “funcionário Toyotista polivalente” abre caminho para um novo modelo de trabalhador para o mercado, aquele que se tornaria parte do capital da empresa. Um “capital Humano”: A Teoria do Capital Humano ressurge das cinzas, só que desta vez vem acompanhada de todo o substrato que dá sustentação à produção flexível, bem como das recomendações de eficiência e produtividade presentes no referencial neoliberal. (…) Contudo, uma vez que estas mudanças provocam, de imediato, o aumento do empobrecimento da população, procura-se ativar todas as formas de inculcação ideológica, procurando fazer crer que a única saída para uma melhoria da qualidade de 26 vida será a diminuição do Estado. (OLIVEIRA, 2007 .) Com o humano se tornando parte dos recursos disponíveis na empresa, uma série de produções são desenvolvidas para que a subjetividade desse trabalhador esteja a serviço desta nova forma de desenvolvimento capitalista. Sob o ponto de vista das gestões públicas elas também começam a ditar a forma como essa política precisa se desenvolver, a partir de então. Sua fluidez chega a relação familiar e avaliações de custos e benefícios de “fabricar” um profissional. “As teorias do capital humano ilustram perfeitamente a prevalência da abordagem gestionária para tratar de tudo aquilo que se refere à vida dos homens e das mulheres. Elas aparecem nos anos de 1960, ao mesmo tempo que as técnicas de “racionalização das opções orçamentárias”. Podemos, desse modo, calcular o custo de vida humana a partir de investimentos necessários para produzir tal ou tal indivíduo. A este respeito, a fabricação de um médico ou de um engenheiro custa para sociedade muito mais que a de um operário especializado ou de um caixa de supermercado. Nessa perspectiva, cada indivíduo pode ser objeto de uma avaliação “objetiva” sobre aquilo que custa e aquilo que produz para a sociedade” (GAULEJAC, 2007 p.182/3) Essa teoria alinhada a nova reorganização capitalista chega ao Brasil de forma mais hegemônica especialmente na década de 1990, após a abertura de mercados no país. Ela encontrou um Estado recém saído da ditadura com uma nova Constituição advinda de negociações com diversos setores da sociedade. Entrou em conflito direto com os ideais de direitos sociais bem definidos nos artigos da nova Carta Magna e com as regulações dos deveres do Estado na promoção de políticas para a população. 1.2. ALGO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO E RENDA NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA BRASILEIRA E O CONFLITO COM O MODO GERENCIALISTA NEOLIBERAL DE GOVERNAR. “(...) São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (CF-88, Capítulo II, art. 6º -Grifo nosso). A ideia de que o Estado deva garantir o direito social ao trabalho está expressa no Capítulo II, art. 6º de nossa Constituição Federal e podemos dizer que é uma herança direta de uma proposta reformista do Estado-providência e de ganhos de forças de redemocratização. Não seria leviano afirmar que os ganhos sociais que a constituinte fez 27 constar na lei magna se deve a acordos entre as posições políticas de esquerda e um “centro” negociador. Porém, como qualquer dispositivo legal, ela não é fixa e nem dada de forma imutável; vai sendo burlada, modificada, revista ou até mesmo ignorada no seu cumprimento conforme os diversos acontecimentos e as novas conjunturas que se estabelecem na sociedade brasileira desde então, refletindo-se nas casas legislativas, no Judiciário e no Executivo. No Brasil, a exemplo do que acontecia em toda a América Latina especialmente a partir da década de 1990, começou a ser construído várias possibilidades de maior controle social e governança (sistema de conselhos de políticas públicas e de direitos nas três esferas de governo; Conferências; fóruns etc.). A população via a consolidação de vários desejos de democracia e de um sufrágio universal que haviam sido negados no período que vigoravam a então recente ditadura civil-militar. Além disso, houve avanços muito significativos em diversos segmentos e nas garantias de direitos pelo Estado nas leis específicas. A Lei de Diretrizes Básicas (LDB) e o Sistema Único de Saúde (SUS) são dois exemplos de leis nascidas já sob o princípio de controle social, uma proposta de descentralização da esfera pública e cidadania participativa. Contudo, junto a esse desejo por uma maior participação popular, viu-se também no Brasil, especialmente durante a década de noventa, uma maior abertura para o endividamentocom o capital estrangeiro; capitaneadas pelas privatizações de diversas empresas públicas, além de outras ações requisitadas pelos órgãos financeiros internacionais. Essas instituições, condizentes com os interesses da lógica gerencialista e neoliberal, tinham em seu cerne a desobrigação do Estado na manutenção desses mesmos direitos recém-conquistados para a população. Nas palavras de Oliveira (2003): “(…) Os grandes conglomerados internacionais, ao relacionarem-se com governos que priorizam o mercado como lócus definidor das relações políticas e econômicas de cada nação, minimizam a democracia. Essa subsunção da democracia às relações de mercado põe em questão a própria possibilidade de existir alguma forma de justiça política e social.” (Oliveira, 2003 p. 251) A título de exemplo: o artigo 239 no seu parágrafo 4º, preconizava que “O financiamento do seguro-desemprego receberá uma contribuição adicional da empresa cujo índice de rotatividade da força de trabalho superar o índice médio da rotatividade do setor, na forma estabelecida por lei. Tal fato nunca ocorreu e nunca foi criado nenhuma lei que regulamentasse esse parágrafo. Pode-se reconhecer os méritos da luta para que se 28 constasse essa responsabilização das empresas nesses princípios constitucionais; mas infelizmente, a correlação de forças que se estabelece em determinado momento, faz com que seja apenas uma das menções na lei que não foi efetivada. Esse é um dos principais conflitos e cenários que se colocam. A grosso modo, temos por um lado o legalmente estabelecido, um Estado que deveria prover e garantir uma gama de direitos à população (Saúde, Educação e Seguridade Social etc.), especialmente para os menos favorecidos. Por outro lado, a lógica neoliberal de governar, condizentes com os interesses de agências internacionais do Capital, de defender a princípio que o país deva ser menos financiador das chamadas políticas públicas e mais preocupado com as questões primordialmente econômicas e do mercado financeiro mundial. O deslocamento da ideia de trabalho como direito social coletivo, dá lugar a uma política que tem como base que esses direitos devam ser amalgamados à economia e a lógica econômica disciplinadas por um “livre” mercado. Tal crença tem produzido consequências graves à população em geral, particularmente para a problemática do emprego e da geração de renda. Constitui, e até contribui, em parte, a um aprofundamento do desemprego estrutural na medida que sem uma regulação e sem a promoção e incentivo ao emprego que deveria ser “dever do Estado”, é delegado chamado mercado “autorregulador”, segregando ainda mais aqueles que não se enquadram em seus arbítrios. (…) Ao criticar enfaticamente a interferência política na esfera social, econômica e cultural, o neoliberalismo questiona a própria noção de direito e a concepção de igualdade que serve (ao menos teoricamente) como fundamento filosófico da existência de uma esfera de direitos sociais nas sociedades democráticas. Tal questionamento supõe, na perspectiva neoliberal, aceitar que uma sociedade pode ser democrática sem a existência de mecanismos e critérios que promovem uma progressiva igualdade e que se concretizam na existência de um conjunto inalienável de direitos sociais e de uma série de instituições públicas nas quais tais direitos se materializam. (GENTILI, 1999, p.6) Ademais, a questão social do desemprego, passa a ser justificada pelas ideias que pregam a responsabilização plena do sujeito, e deixam ser definidas primordialmente por estratégias de combate às tais questões estruturais, e do próprios problemas gerados pela busca incessante por lucro em detrimento da dignidade humana e pela democracia ativa. Os debates são feitos de forma superficial, não se atrevendo a se questionar as próprias bases que sustentam o modus operandi dos interesses que são pilares desse modelo econômico. 29 Passa-se a seguir, na política pública, por mais processos que visam interesses de “empreendimentos”, lógicas mercantis e menos à contribuições de vozes de outros agentes sociais, “como associações de trabalhadores e setores mais ligados diretamente a estes”. (Oliveira, 2005) (…) O debate político arrisca então a se reduzir a um debate de conselho de administração em torno de problemas orçamentários e financeiros. As considerações econômicas sobredeterminam todos os aspectos da vida social. A abordagem Contábil impõe suas normas aos negócios públicos, a gestão privada se torna referência central para governar os homens. Os homens políticos pensam em fundar a eficácia de sua ação no modelo gerencialista, ao passo que esse modelo desvaloriza a ação pública. (GAULEJAC, 2014 p. 265-266) Neste contexto, a própria organização da Política Pública de Emprego, especificamente na sua relação com o conceito da “Empregabilidade”, são atravessados por tais contradições: estão no campo as relações com as forças dinâmicas de resistência e manutenção de conquistas históricas por um lado, e por outro , a negação e o “desmonte” de direitos sociais estabelecidos em nome do ideário gerencialista. A economia, que deveria se constituir para ser um dos elementos do desenvolvimento social, acaba sendo um fator destrutivo no viés dessa crença empresarial; pois é encarada como o elemento primordial de governo e de tomada de decisões (GAULEJAC, 2014). Ao afirmarem os políticos que, “de um lado, o consumo é um dos motores do crescimento que condiciona o emprego, e do outro, há aqueles que defendem que é preciso recusar a sociedade de mercado” (idem, 2014), estabelece-se aí, as contradições intrínsecas nas complexas relações que se estabelecem entre as leis e a prática política, particularmente para fins desse trabalho, o que diz respeito ao poder exercido na política de emprego e renda para a população. A ideologia gerencialista leva a inverter os valores entre a política e a economia. A política, longe de suscitar amor e consideração tornou-se o lugar do cálculo. Pagar impostos é sentido como cargo e até como tara, escapar a fiscalização é sinal de inteligência e de tino. A imagem do empreendedor que se comprometia a defender o bem público é substituída pelo modelo do estratego que sabe valorizar seus interesses privados. A política é percebida como se colocar a serviço dos interesses dos especuladores. A coisa pública é desvalorizada. (idem, 2014 p.268) Sob o período dos governos de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, a adoção de um modelo econômico liberal e monetarista (Alves, 2009; Cardoso, 2000), o combate ao desemprego, especialmente com influência de economistas nacionais (Barros, 2001; Soares e Gonzaga, 1997; Ramos e Reis, 1997; Alves e Vieira, 30 1997; Amadeo, 1998; Neri, Camargo e Reis, 1999) alinhavam-se as ideias da Teoria do Capital Humano de Schultz, apostando no aumento da escolarização, investimentos em formação e capacitação profissional como principal alternativa de desenvolvimento econômico e redução do desemprego. Os recursos financeiros do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), foram primordialmente destinados a gerar uma maior “empregabilidade” da população brasileira. O governo Fernando Henrique Cardoso em 1995, implementa o Plano Nacional de Qualificação do trabalhador, o PLANFOR, com metas de se qualificar vinte por cento da População Economicamente Ativa. Para que uma meta como essa fosse atingida, apostou-se numa proposta de descentralização por meio de basicamente duasfrentes: os Planos Estaduais de qualificação (PEQ) e ações da Educação Profissional (EP). Deveriam por conseguinte, se capilarizarem por frentes municipais - as REP' s - geridas também pelos respectivos colegiados e conselhos do trabalho; e estabeleceria parcerias locais com instituições públicas e privadas, as PARC's. Essa descentralização proposta no desenho do projeto não se efetivou na prática e o que se viu foi um uso abusivo de recursos públicos injetados na iniciativa privada “atraída pelo montante dos recursos financeiros disponibilizados e pela possibilidade de gestão descentralizada sem interferência direta do governo” (SOUSA , 2007). (…) não houve sintonia entre o processo de implementação e a arquitetura original do PLANFOR. Ao mesmo tempo, ocorreu um estreitamento da noção de trabalho, articulado mais diretamente com a ideia de empregabilidade. (SOUSA, 2007 p. 256) Num trecho de uma entrevista à imprensa, um dos economistas defensores e então Ministro do trabalho, Edward Amadeo, chega a afirmar que “promoveria a empregabilidade” e que “era a favor da flexibilização das leis trabalhistas, entendendo que alguns itens deveriam ser negociados 'livremente' entre as partes” (Jornal do Comércio, 1998). Estava dado o tom de continuidade gerencialista de exercer o poder no Brasil e todos os seus paradoxos na compreensão do trabalho como dimensão humana e direito social do sujeito e sua função limitada a ser meramente produtiva e de consumo para o modelo econômico. Isso se refletirá nos modos de organização que constam na lei e nas práticas instituídas de execução dessas políticas. 31 1.2.1 – UM PEQUENO MAPEAMENTO DO PANORAMA ORGANIZATIVO DO SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO, TRABALHO E RENDA (SPETR) NO BRASIL. As Políticas Públicas de Emprego e renda no Brasil, segundo a carta magna, deveriam se organizar sob o “princípio da universalidade, de justiça e de equidade social” (Brasil, 1988). Neste contexto, o Brasil, em toda a América Latina, passa por um momento de “efervescência da Democracia” e os princípios de descentralização e controle popular põem em acordo tanto projetos de reformas do Estado, quanto os movimentos de redemocratização em busca da construção de instituições democráticas (Souza, 1998). Isso permitiu que esse Sistema de política pública de Emprego e Renda (SPETR), a exemplo das outras políticas públicas que vinham se construindo, fosse organizado por Colegiados tripartites deliberativos (com quatro entidades representantes dos trabalhadores, quatro entidades do poder público e quatro dos empregadores). A proposta de colegiados visaria que dentro do órgão deliberativo, os conflitos de interesses pudessem ser debatidos e buscados através de um equilíbrio de forças que também contemplassem os trabalhadores representados por suas entidades classistas e de categorias. Organizativamente, os colegiados se compõem do Conselho Deliberativo de Fundo de Amparo ao trabalhador (CODEFAT); das Comissões e/ou Conselhos Estaduais e Municipais do Trabalho; e as Secretarias Estaduais e Municipais do Trabalho. Assim, entendemos sua organização em instâncias nas três esferas de governo: Municipal, Estadual e Federal. Desse modo, como maior gerenciador, temos o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que é o responsável pela gestão desta área e da relação da política de emprego à política econômica brasileira. A regulamentação da nova estrutura institucional de financiamento do seguro- desemprego, que veio pela Lei 7.998/90, criou também o Fundo do Amparo ao trabalhador (FAT) – que constitui a principal fonte de recursos para execução das políticas públicas no país, sejam elas ativas ou passivas (DIEESE, 2001, p.267), bem como o Conselho Deliberativo do FAT (CODEFAT). Os fundos do FAT advêm de diversos meios, 32 a saber: a) arrecadação das contribuições do PIS/PASEP das empresas; b) programas de desenvolvimento econômico e retorno de aplicações do BNDES; c) remuneração de depósitos especiais junto a agentes financeiros federais e Banco central (DIEESE, 2001, p.266). Nesse novo esquema de financiamento, o faturamento das empresas consagrava- se como a principal base de incidência do fundo (IPEA, 2006 p.409). No intuito de termos uma noção do leque de políticas de emprego, adotamos a classificação proposta por Barros, Camargo e Mendonça (1994), que compreende a forma adotada pelo viés governamental e que nos serve para o objetivo de termos um panorama dessa organização. São basicamente três os tipos, a saber: a) As Políticas compensatórias; b) As políticas distributivas; e c) as Políticas estruturais. As políticas compensatórias envolvem uma transferência direta de renda para trabalhadores desempregados ou de baixa renda como exemplos dessa política temos: os pagamentos de benefícios; o Seguro-desemprego; o Abono salarial e o FGTS, que visam prover assistência financeira ao trabalhador desempregado em virtude de dispensa sem justa causa e auxiliar os trabalhadores na busca de emprego, promovendo, para tanto, ações integradas de orientação, recolocação e qualificação profissional. As políticas distributivas são as que incidem diretamente, pela regulação do Estado influenciando, através de legislações específicas, sobre uma política de salário mínimo e pisos salariais, com a pretensão de que haja aquecimento da economia pelo consumo de bens “prioritariamente consumidos pelos pobres” (BARROS, COSÍO E TELES, 2001). Enfim, as políticas estruturais são aquelas voltadas para “redução da taxa de desemprego ou para aumento da produtividade e, portanto, dos salários” (idem, 2001). Estariam subdivididas ainda em diretas e indiretas. As Políticas estruturais diretas seriam aquelas voltadas diretamente para treinamento profissional, programa de microcrédito e para intermediação de mão de obra. Já as políticas estruturais indiretas dizem respeito a políticas macroeconômicas que vão, segundo BARROS (2001), “desde investimentos públicos diretos até políticas voltadas 33 para a redução da taxa de juros de mercado ou da provisão de empréstimos a juros subsidiados para investimentos em capital físico produtivo”. 1.2.2 – A política de Emprego e renda Pós-2001 - Os Governos Lula e Dilma Não é nossa intenção nos ater profundamente sobre a análise de cada uma das políticas públicas de Emprego, tendo em vista não ser essa proposta principal desse trabalho. Adiante, ficaremos mais dentro do contexto que nos propomos a investigar, ou seja, mais atentos à chamada política estrutural direta, particularmente no discurso da intermediação e qualificação de mão de obra, buscando entender como esta operacionaliza tal política em um município da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Todavia, queremos voltar a chamar a atenção que nessa proposta de qualificação em massa como enfrentamento ao desemprego, surge por aqui inicialmente sob influência dos debates que ocorriam em parte da Europa e de orientações de organismos internacionais financeiros, como o Banco Mundial (DEDECCA, 1998 apud BALASSIANO, SEABRA E LEMOS, 2005; BANCO MUNDIAL, 1995), e desde então, podemos dizer que começou-se simultaneamente a investir mais na promoção no Brasil dos princípios do auto empreendedorismo e da divulgação dos seus fundamentos para a classe trabalhadora, fundamentando-se na chamada de Políticas de Investimento e acesso ao crédito e valorização do trabalhador, nome usado pelo governo Lula, que se assume posteriormente sob a expectativa de ser um governo mais sensível às questões populares. No que se refere às taispolíticas estruturais diretas, mesmo depois com a ascensão ao poder presidencialista pela primeira vez de um partido de oposição, em 2002, podemos dizer que não são relevantes nenhuma mudança de condução. Embora existam algumas diferenças, com o governo anterior, os princípios fundamentais permanecem sendo feitas apenas algumas “reformas” de caráter superficial, mantendo os fundamentos neoliberais que as legitimam, sem fazer rupturas. A criação das Políticas de Investimento e acesso ao crédito e valorização do trabalhador é o nome que surge para responder as demandas e questões para a política 34 pública de emprego e renda no país. A partir daí, essas políticas passam a ter como principais programas o Plano Nacional de Qualificação (PNQ), o Programa Nacional de primeiro Emprego (PNPE) e o Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO). O Plano Nacional de Qualificação (PNQ) substituiu o Plano Nacional de Qualificação do trabalhador, o PLANFOR. Como dito anteriormente, o PNQ guarda muitas semelhanças com as propostas de seu antecessor, já que visa promover a qualificação de todos os trabalhadores formais e informais. O Programa Nacional de primeiro Emprego (PNPE), que surgiu e permaneceu nos dois mandatos do governo Lula e posteriormente teve continuidade no governo Dilma, tinha como objetivo o combate à pobreza e a integração com as demais políticas públicas de emprego e renda, através do incentivo a empresas que contratassem os jovens que nunca haviam trabalhado antes. A exigência de experiência por parte dos empregadores (e um dos elementos da cartilha da empregabilidade) é considerado um problema para essa faixa etária. O governo com isso buscava incentivar os empregadores a contratar pessoas (especialmente jovens) sem experiência em seus quadros. Esse programa na prática teve uma série de problemas de diversas ordens e não conseguiu seu intento. Ironicamente, num comparativo dos anos de 2000, 2005 e 2009 num estudo feito pelo DIEESE1 sobre o primeiro emprego, o índice percentual em relação ao ano de 2000 foi sempre menor na grande maioria das categorias de trabalho do que nos dois anos posteriores. Excetuando-se as categorias diretamente ligadas ao governo, em destaque a “Administração pública direta e autárquica” - em que são feitos concursos públicos, que foram bastante retomados nessa década, dispensando, na maioria das vezes, a questão da experiência anterior. É possivel que este panorama tenha relação com as formas impositivas que tais políticas foram implementadas, já que vieram sob forma da lei2, de cima para baixo. Pode 1 “A situação do trabalho no Brasil na primeira década do ano 2000”. Dieese, São Paulo, 2012 – Pag. 2 LEI No 10.748, DE 22 DE OUTUBRO DE 2003 revogada posteriormente pela LEI Nº 11.692, DE 10 DE JUNHO DE 2008, que integra ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Projovem, ligado especialmente à Assistência Social, através do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 35 ter também haver relação com o modo como as empresas receberam a proposta frente às exigências rígidas que são feitas ao empregador para que pudessem estar inseridos em tais programas com pouco retorno; ou ainda pode ter haver problemas com relação a própria a operacionalização do programa através do Sistema Nacional de Emprego (SINE). O Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO) contou com objetivos de incentivo aos chamados microempreendedores populares, e teve o papel de “disponibilizar recursos para o microcrédito produtivo orientado, oferecer apoio técnico às instituições que prestam tal serviço, com vistas ao fortalecimento institucional desta para prestação de serviços aos empreendedores populares” (MTE, 2006). Toda essa parafernália organizativa, e mesmo dentro dos diversos impasses e correlações de força que se confrontam, e que se procura calar e reprimir, há um consenso que une o governo, empregadores e até mesmo as entidades de trabalhadores que da organização do SPETR: todos eles participam da crença na ideia de uma “empregabilidade” e autoempreendorismo, e junto a ela, seus princípios de qualificação, capacitação e formação do trabalhador para o Mercado de Trabalho. Particularmente aos representantes dos trabalhadores, temos um fator de enfraquecimento e “pacificação” da representação que passa a não fazer reinvindicações pautando-se no trabalho como direito social e nem se pondo em questão os fatores do conflito entre o capital e o trabalho. Ao não se indisporem com o patronato, comprometem os interesses daqueles que eles representam. Assim, “abrem mão do embate com o empresariado em nome do 'pacto geral' pela manutenção e criação de empregos, aumentando a flexibilização e precarização nas relações de trabalho.” (SOUSA, 2003, p.101) Para além da organização formal e prescrita, o que se percebe é que a forma de operacionalizar cada política tende a ter diferentes modos a cada mudança de governo, podendo ficar restrita apenas à “gestão de caráter técnico” (IDEM, 2007) em detrimento a uma democratização e governança real nos colegiados deliberativos das três esferas. A descentralização organizativa e controle equilibrado das forças quase sempre não se 36 efetivam no plano do território em que a política deve ser implementada, onde é comum ter esses órgãos “emparelhados” com a política local e sob interesses privados. São mantidos convenientemente distantes do acesso à população local e de sua consequente participação; impossibilitando os princípios que foram geridos e existindo muitas vezes para atender e fazer constar às determinações burocráticas e legais, quando muito para os requisitos de repasse de verbas públicas. Em suma, até então são esses basicamente os principais segmentos em que a Política Pública de Emprego se relaciona e se ocupa: do FGTS; da Fiscalização das condições do trabalho; Segurança e Saúde do Trabalhador; Segurança e saúde Ocupacional; Seguro desemprego; Trabalho estrangeiro; Abono Salarial; Trabalho Infantil; Fundo de amparo ao Trabalhador (FAT); Qualificação profissional; Programa de Amparo ao trabalhador; entre outros. * * * Enquanto escrevia estas linhas em Junho/Julho de 2016, o país passava por diversas turbulências políticas, que apontam uma retomada ainda mais incisiva de medidas conservadoras de desmontagem de direitos trabalhistas (entre outros direitos sociais), de Ministérios e de organizações públicas, favorecidas pelo afastamento da então presidente Dilma, mediante um controverso processo de impedimento. Sob a força de um congresso conservador e ligado a políticas neoliberais mais radicais, e sob pretexto de uma nova Crise Mundial. Tem havido portanto, uma série de mudanças, capitaneadas pelas atuais casas legislativas e pelo governo interino e propostas de mudanças nas leis trabalhistas. Em outras palavras, não é difícil pensar que esse desenho do sistema de políticas públicas de emprego em renda, ao término deste trabalho, possa ser outro. CAPÍTULO II 37 A EMPREGABILIDADE COMO ANALISADOR DE UMA PRODUÇÃO SUBJETIVA: SOBRE A CULPABILIZAÇÃO, INFANTILIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO DO TRABALHADOR JOVEM. “(...) Um homem se humilha se castram seu sonho. Seu sonho é sua vida e a vida é trabalho. E sem o seu trabalho, um homem não tem honra. E sem a sua honra, se morre se mata. Não dá pra ser feliz, Não dá pra ser feliz." (Luiz Gonzaga Jr. - Gonzaguinha, “Um homem também chora [Guerreiro menino]”, 1983.) O capitalismo contemporâneo e os modos de produção talvez
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