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Discurso de Renúncia à Presidência da URSS. Mikhail Gorbatchov O presidente da União Soviética (URSS) e secretário geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, pediu demissão no começo da noite de 25 de dezembro de 1991. Soldados içaram a bandeira tricolor russa – azul, branco e vermelho –, anterior a da revolução bolchevique de 1917, vermelha, com a foice e o martelo. Caros compatriotas! Concidadãos! Por força da situação gerada com a formação da Comunidade de Estados Independentes, estou encerrando minha atuação como Presidente da URSS, decisão que tomo por razões de princípio. Defendi firmemente a autonomia dos povos da URSS e a soberania das Repúblicas, mas lutei, ao mesmo tempo, pela preservação do Estado soviético e pela integridade do País. Os acontecimentos tomaram outro rumo: prevaleceu uma linha de desmembramento do País e de desintegração do Estado com a qual eu não posso concordar. E mesmo diante das decisões tomadas no encontro de Alma-Ata, minha posição quanto a isso não mudou. Além disso, estou convencido de que tais decisões, em vista de seu amplo alcance, deveriam ter sido ratificadas pela vontade popular. Entretanto, farei todo o possível para que os acordos assinados no encontro conduzam a uma real harmonia na sociedade e facilitem em algum grau a solução da crise e o processo de reformas. Discursando a vocês pela última vez como Presidente da URSS, julgo necessário expressar minha avaliação do caminho percorrido desde 1985, tanto mais que não são poucos, a esse respeito, os juízos contraditórios, superficiais e subjetivos. Quis o destino que já estivesse claro, quando assumi a chefia do Estado, que havia algo de errado com o país. Tudo aqui existia em abundância: terra, petróleo, gás e outras riquezas naturais, bem como inteligência e talento de sobra. Porém, vivíamos muito pior do que nos países desenvolvidos, em relação aos quais nos atrasávamos cada vez mais. A razão disso já era evidente: a sociedade era asfixiada por um sistema de governo autoritário e burocrático. Condenada a servir à ideologia e a carregar o temível fardo da corrida armamentista, ela se encontrava no limite de suas capacidades. Todas as tentativas parciais de reforma, que não foram poucas, terminaram em sucessivos fracassos. O país havia perdido a perspectiva. Não se podia continuar a viver assim. Era preciso mudar tudo drasticamente. Eis por que jamais lamentei não ter aproveitado o cargo de Secretário-Geral para apenas “reinar” por alguns anos, atitude que eu consideraria irresponsável e imoral. Eu compreendia que iniciar reformas de tal amplitude, numa sociedade como a nossa, era uma tarefa dificílima e até mesmo arriscada. Mas ainda hoje sigo convencido da justeza histórica das reformas democráticas iniciadas na primavera de 1985. O processo de renovação do País e de mudanças radicais na comunidade mundial se mostrou muito mais complexo do que se podia supor. Todavia, deve ser atribuído o devido valor a tudo o que foi feito: – A sociedade ganhou liberdade, emancipou-se política e intelectualmente. Essa foi a principal conquista, a qual ainda não assimilamos inteiramente, já que não aprendemos ainda a usufruí-la. Entretanto, foi realizado um trabalho de significado histórico: – Liquidou-se o sistema totalitário que havia privado o País da possibilidade de há muito tempo ter se tornado próspero e florescente. – Realizou-se uma abertura rumo a transformações democráticas, tornando-se uma realidade as eleições livres, as liberdades religiosas e de imprensa, os órgãos representativos de poder e o multipartidarismo. Os direitos humanos foram reconhecidos como o princípio mais elevado. – Iniciou-se a transição para uma economia mista, sendo estabelecidos direitos iguais a todas as formas de propriedade. No âmbito da reforma agrária, o campesinato começou a renascer, surgiram fazendas privadas e milhões de hectares de terra foram distribuídos aos moradores do campo e da cidade. Legalizou-se a liberdade econômica dos produtores e começaram a ganhar força a atividade empresarial, a venda de ações e a privatização. – Vale lembrar que o direcionamento da economia para o mercado está sendo feito em prol das pessoas. Nestes tempos difíceis, tudo deve ser feito para que elas tenham proteção social garantida, especialmente os idosos e as crianças. Nós vivemos num mundo novo: – Deu-se um fim à “guerra fria”, à corrida armamentista e à disparatada militarização do País, a qual havia mutilado nossa economia, nossa consciência pública e nossa moral. Foi liquidada a ameaça de uma guerra mundial. Mais uma vez quero frisar que nesse período de transição, de minha parte, tudo foi feito para que se mantivesse um firme controle sobre o armamento nuclear. – Nós nos abrimos para o mundo e renunciamos à intromissão nos assuntos de outros países e ao emprego de tropas fora de nossas fronteiras, pelo que fomos retribuídos com solidariedade, confiança e respeito. – Nós nos tornamos um dos principais bastiões da reestruturação da civilização moderna sob princípios pacíficos e democráticos. – Os povos e nações soviéticos ganharam real liberdade de optar pela via da autodeterminação. A busca da reforma democrática do Estado multinacional nos deixou, inclusive, à beira de concluir um novo Tratado da União. Todas essas transformações exigiram enormes esforços e uma luta acirrada contra a crescente resistência das forças obsoletas e reacionárias encarnadas na antiga estrutura partidário-estatal e no aparelho econômico, bem como em nossos hábitos, nossos preconceitos ideológicos e nossa psicologia niveladora e parasitária. As mudanças se chocaram ainda com nossa intolerância, com o baixo nível de nossa cultura política e com nosso medo de mudar. Eis por que perdemos tanto tempo: o velho sistema ruiu antes que um novo conseguisse entrar em funcionamento, o que agravou ainda mais a crise social. Eu sei o quanto é insatisfatória e difícil a situação atual e o quanto são duras as críticas às autoridades em todos os níveis e, particularmente, à minha atuação. Porém, mais uma vez quero frisar que mudanças drásticas num país tão vasto, ainda mais com uma herança dessas, não podem se realizar sem tormentos, dificuldades e abalos. O golpe de agosto levou ao limite a crise geral, na qual o colapso da URSS como Estado é o que há de mais nocivo. E hoje me preocupa que nossa população esteja perdendo a cidadania de um grande país, podendo ser as consequências disso muito graves para todos. Penso ser de vital importância conservar as conquistas democráticas dos últimos anos, as quais foram o árduo coroamento de nossa trágica experiência histórica. Não se deve renunciar a elas em nenhuma circunstância, sob nenhum pretexto, caso contrário, todas as nossas melhores esperanças terminarão sepultadas. Falo sobre tudo isso de maneira franca e direta, pois esse é meu dever moral. Quero expressar hoje meu reconhecimento a todos os cidadãos que apoiaram a política de renovação do País e se envolveram na realização das reformas democráticas. Sou grato ainda aos estadistas, políticos, figuras públicas e aos milhões de pessoas no exterior que compreenderam e apoiaram nossos planos e nos dispensaram sua ajuda e sua cooperação sincera. Deixo meu posto com preocupação, mas também com esperança, com fé em vocês, em sua sabedoria e sua força moral. Somos os herdeiros de uma grande civilização, e agora depende de cada um de nós que ela renasça para uma vida nova, moderna e digna. Quero agradecer de todo coração aos que, nesses anos, defenderam junto comigo uma causa justa e boa. Certamente alguns erros poderiam ter sido evitados e muita coisa poderia ter sido feita melhor. Mas estou confiante de que, mais cedo ou mais tarde, nossos esforços conjuntos darão frutos e nossos povos viverão numa sociedade próspera e democrática. Desejo a vocês tudo de melhor.
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