Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Ano I – vol. I – n º. 5 – agosto de 2001 – Salvador – Bahia – Brasil REPENSANDO A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL∗∗∗∗ Prof. Inocêncio Mártires Coelho Professor de Direito Constitucional. Presidente do Instituto Brasiliense de Direito Público. I - Compreensão e pré-compreensão. Memórias jurídicas e pós- compreensão profissional Um dos mais ricos achados da hermenêutica filosófica contemporânea foi a descoberta de que a compreensão do sentido de uma coisa, de um acontecimento ou de uma situação qualquer pressupõe um pré-conhecimento daquilo que se quer compreender. Disso resulta que toda interpretação é guiada pela pré-compreensão do intérprete, como afirmou Martin Heidegger, em lição que nos parece definitiva: “A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia”.1 ∗ Exposição realizada em Salvador, no dia 3/08/2001, por ocasião da aula inaugural da quarta turma do Curso de Especialização em Direito Público da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenado pelo Prof. Paulo Modesto. 2 Aceito esse ponto de partida, de que o ser do intérprete − como o de todo homem −, é o seu existir ou o seu modo de estar no mundo, um dado de realidade que limita a nossa cosmovisão, tornando-a necessariamente parcial, porque restrita à nossa perspectiva no momento da compreensão; e se isso for verdadeiro, como nos parece que o seja em linha de princípio, então acreditamos que uma análise realista do processo de interpretação e aplicação do direito − como, de resto, do processo cognitivo em geral − exige uma reflexão sobre os elementos ou fatores constitutivos da personalidade e do modo de ser dos sujeitos da interpretação, desses animais interpretativos cuja realidade radical, que tudo condiciona, é a sua própria vida, do jeito que ela é tocada em cada lugar, em cada hora. Nessa ordem de preocupações, começaríamos lembrando, com Ortega y Gasset, que o Eu do intérprete, de qualquer intérprete, é uma síntese que integra e supera os elementos que o constituem, i.e., o eu originário de cada um e o seu entorno ou circunstância, o mundo real em que todos se inserem e levam a sua vida, nessa complexa interação do que no homem é biografia e biologia, do que nele é história e natureza, como dizia com elegância o saudoso Daniel Coelho de Souza em suas aulas seminais de Filosofia do Direito, na Universidade Federal do Pará. 2 Ainda com o autor das Meditaciones del Quijote, recordaríamos que o ponto de vista individual é o único ponto de vista a partir do qual nós podemos verdadeiramente olhar o mundo, porque a realidade − precisamente por ser realidade e se achar fora das nossas mentes individuais − se nos apresenta tão-somente em perspectivas e só pode chegar até nós multiplicando-se em mil faces.3 Por isso, para não nos iludirmos e não tomarmos o todo pela parte − um pecado elementar que estamos condenados a cometer até nos darmos conta de que não possuímos o divino dom ubiqüidade e que a nossa visão das coisas, por mais abrangente que seja, será apenas mais uma entre tantas outras formas de encarar o mundo −, para não incorrermos nesse infantil equívoco existencial, devemos duvidar das evidências não refletidas e humildemente somar à nossa a perspectiva do Outro, pois só assim lograremos apreender a totalidade do real, uma tarefa que há de ser cumprida sob a lógica 1 Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2ª ed., 1988, Parte I, pág. 207; Nota Explicativa 51, pág.23. 2 Para uma visão interdisciplinar do fenômeno da interpretação, ver Jean-Michel Salanskis et all. Herméneutique: textes, sciences. Paris, PUF, 1997. Para uma análise dos fatores − biológicos, psíquicos e socioculturais − e do modo como eles interagem, dando origem à personalidade concreta de cada indivíduo como totalidade relativamente organizada e dinâmica, e para uma compreensão exata da frase de Ortega y Gasset: Yo soy yo y mi circunstancia, ver Luís Recaséns Siches. Tratado General de Filosofia del Derecho. Mexico, Porrua, 1965, págs.127/130 e 257/259 ; e Tratado de Sociologia. Rio, Editora Globo, 1965, trad. João Baptista Pinheiro de Aguiar, vol. I, págs. 143/150. 3 Ortega y Gasset. Verdad y Perspectiva, in El Espectador. Obras Completas, cit., Tomo II, 1963, págs. 18/19. 3 e mesmo a ética da diferença e da busca cooperativa da verdade, como preconiza o mesmo Ortega y Gasset: “La verdad, lo real, el universo, la vida − como queráis llamarlo −, se quiebra en facetas innumerables, en vertientes sin cuento, cada una de las cuales da hacia un individuo. Si éste há sabido ser fiel a su punto de vista, si há resistido a la eterna seducción de cambiar su retina por otra imaginaria, lo que ve será un aspecto real del mundo. Y viceversa: cada hombre tiene una misión de verdad. Donde está mi pupila no está otra: lo que de la realidad ve mi pupila no lo ve otra. Somos insustituíbles, somos necesarios: ‘ Sólo entre todos los hombres llega a ser vivido lo Humano’ − dice Goethe. Dentro de la humanidad cada raza, dentro de cada raza cada individuo, es un órgano de percepción distinto de todos los demás y como un tentáculo que llega a trozos de universo para los otros inasequibles. La realidad, pues, se ofrece en perspectivas individuales. Lo que para uno está en último plano, se halla para otro en primer término. El paisaje ordena sus tamaños y sus distancias de acuerdo com nuestra retina, y nuestro corazón reparte los acentos. La perspectiva visual y la intelectual se conplican con la perspectiva de la valoración. En vez de disputar, integremos nuestras visiones en generosa colaboración intelectual, y como las riberas independientes se aunan en la gruesa vena del río, compongamos el torrente de lo real.”4 ( 0s grifos são nossos ). Se a tudo isso adicionarmos o complicador ideologia, em qualquer dos seus diferentes sentidos e funções5; se iluminarmos esse fator no conjunto dos componentes sociais e culturais da personalidade individual concreta do intérprete-aplicador do direito; enfim, se pusermos os olhos nessa direção, definitivamente nos daremos conta da extrema complexidade que envolve o processo de atualização dos modelos jurídicos, um campo de manobra cheio de ciladas e de armadilhas, via de regra não percebidas pelas suas vítimas, porque ao fim e ao cabo somos todos animais ideológicos, como ideológica é a sociedade em que vivemos.6 4 Op. cit., pág. 19. 5 Sobre as origens sociais do pensamento, Karl Mannheim. Ideologia e Utopia. Rio, Zahar, 1968; Karl Mannheim, Wright Mills e Robert Merton. Sociologia do Conhecimento. Rio, Zahar, 1967; Robert Merton. La Sociologia del Conocimiento, in Sociologia del Siglo XX. Georges Gurvitch & Wilbert E. Moore. Barcelona, El Ateneo, 2ª ed., 1965, Tomo I, págs. 337/373; Franco Crespi & Fabrizio Fornari. Introdução à Sociologia do Conhecimento.Bauru- SP, EDUSC, 2000; Adam Schaff. História e Verdade. São Paulo, Martins Fontes, 4ª ed., 1987; sobre os diversos sentidos e funções de ideologia, Luis Villoro. El concepto de ideologia. México, Fondo de Cultura Económica, 1985; sobre a pré-compreensão na experiência hermenêutica, Hans-Georg Gadamer. Verdad y Método. Salamanca, Sígueme, 1993, págs.331/377; e sobre a impossibilidade antropológica do juiz “asséptico”, Eugenio Raúl Zafaroni. Estructuras Judiciales. Buenos Aires, Ediar, 1994, págs.199/205. 4 Num plano mais elevado, no da filosofia da história, lembraríamos as advertências de Jaspers e Gadamer, a nos dizerem que não existe um ponto arquimédico exterior à história, nem tampouco caminhos que contornem o mundo ou a história, senão caminhos através do mundo e através da história7, um ensinamento que nos alerta para a ingenuidade de pretendermos analisar objetivamente as coisas do espírito, quando tal objetividade não se sustenta sequer entre as ciências exatas.8 Pois bem, se observarmos todos esses “conselhos” também no ensino do direito constitucional, poderemos constatar, desde logo, que a sua compreensão, embora não determinada, será inevitavelmente condicionada9 por fatores aparentemente aleatórios, que dirigem e modelam a nossa visão inicial sobre a matéria, o mesmo valendo, obviamente, para a compreensão do direito, em geral, enquanto instrumento ordenador de situações existenciais que, de alguma forma, já foram vivenciadas por nós e, precisamente por isso, guiarão nossos passos na caminhada da reflexão. No âmbito específico da hermenêutica constitucional, Konrad Hesse nos faz advertência idêntica, ao dizer que o intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um ponto situado fora da existência histórica, por assim dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta em que se encontra, e cuja maturação enformou seus conteúdos de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo. Em suma, o intérprete entende o conteúdo da norma a partir de uma ( pré )-compreensão, que primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece de confirmação, correção e revisão, até que se determine, univocamente, a unidade de sentido, como resultado de permanentes aproximações entre os projetos revisados e o objeto que, por meio deles, se intenta compreender.10 Por isso é que, aderindo aos ensinamentos de Heidegger − para quem todo questionamento é uma procura, que retira do procurado sua direção 6 A propósito, esta instigante provocação de Paul Ricoeur: “ Ora, o que me surpreende nas discussões contemporâneas não é somente − ou não é tanto − o que nelas se diz sobre a ideologia, mas a pretensão de fazê-lo de um lugar não-ideológico chamado de ciência”. Interpretação e Ideologias. Rio, Francisco Alves, 1988, pág. 77; cf., também, Franco Crespi & Fabrizio Fornari, Introdução, cit., pág. 208. 7 Karl Jaspers. Origen y Meta de la Historia. Madrid, Revista de Occidente, 3ª ed., 1965, trad. Fernando Vela, págs.348 e 352; Hans-Georg Gadamer. Verdad y Método, cit., pág. 454. 8 Hilton Ferreira Japiassu. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975, e Introdução ao Pensamento Epistemológico. Rio, Francisco Alves Editora, 1975. 9Viktor E. Frankl. O Homem Incondicionado. Coimbra, Arménio Amado Editor, 1968, trad. Guilherme de Oliveira, pág. 164. 10 Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, págs.61/62. 5 prévia11 −, Miguel Reale observa que qualquer pergunta já envolve, de certa forma, a intuição do perguntado12, enquanto Larenz acentua que o texto nada diz a quem não entenda já alguma coisa daquilo de que ele trata, e só fala ou só responde àquele que compreende a sua linguagem e o interroga corretamente.13 Em termos próprios do vocabulário de Ludwig Wittgenstein14, dir-se-ia que para nos situarmos no mundo do direito e compreendermos o significado dos conceitos jurídicos, para termos acesso a essa esfera do real, devemos participar do seu jogo de linguagem, cuja compreensão, de sua vez, pressupõe certas vivências-chave, até porque o elemento normativo não se pode mostrar de modo palpável, como se mostram os objetos perceptíveis pelos sentidos 15. A propósito do termo jogo de linguagem, que é da maior importância para todos os campos do conhecimento e, precisamente por isso, não deve ser malbaratado, impõe-se atentarmos para esta advertência de Larenz: “A expressão jogo de linguagem não pode ser incorretamente compreendida, como se se aludisse com ela simplesmente a um jogo com a linguagem, a um fazer malabarismos com palavras. Um jogo de linguagem, tal como aqui deve ser entendido, é o modo especial como − adentro de uma determinada linguagem − se fala de determinado setor de coisas ou âmbito de experiência. Tais setores são, por exemplo, a natureza inanimada e a natureza viva, a técnica, a arte, ou mesmo o Direito. Numa linguagem, fala-se sempre sobre algo. A compreensão por intermédio da linguagem é compreensão de uma coisa que é trazida à linguagem. A coisa de que se fala na linguagem normativa da Jurisprudência é a coisa Direito”16. Aplicando esse precioso instrumental hermenêutico ao ensino do direito constitucional – especialmente o achado filosófico da pré-compreensão – Gomes Canotilho assinala que os estudantes chegam à universidade carregados de memórias constitucionais, de lembranças que se traduzem num conhecimento difuso, feito de imagens, representações e idéias, digamos, irracionais, sobre os principais problemas com que se defrontam a teoria e a práxis constitucionais, noções vagas e imprecisas que serão ordenadas ao longo da sua formação acadêmica 17. 11 Idem, idem, pág. 30. 12 Lições Preliminares de Direito. São Paulo, Saraiva, 1986, 13ª ed., pág. 1. 13 Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa, Gulbenkian, 1989, 2ª ed., pág. 377 e 444. 14 Ludwig Wittgenstein. Investigações Filosóficas. Lisboa, Gulbenkian, 1995, pág. 177; Dicionário Wittgenstein. Rio, Zahar, 1998, págs.225/229. 15 Karl Larenz, op. cit., págs.236/239 . 16 Op. cit., pág. 238. 17 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 1998, págs. 23/24. 6 Na mesma linha, desta feita nos domínios da ciência política, essa pré- compreensão institucional foi descrita por Georges Burdeau em linguagem tão sugestiva que não cometeríamos excesso se a reputássemos uma das mais didáticas introduções ao estudo dos problemas Estado: “Ninguém jamais viu o Estado. Não obstante, quem poderia negar que se trata de uma realidade? O lugar que ocupa em nossa vida cotidiana é tão importante, que não poderia ser eliminado dela sem que, por sua vez, se vissem comprometidas nossas possibilidades vitais. A ele atribuímos todas as paixões humanas: é generoso ou ladrão, engenhoso ou estúpido, cruel ou benévolo, discreto ou invasor. E porque o consideramos sujeito a esses movimentos da mente ou do coração humanos, a ele dedicamos os mesmos sentimentos que nos inspiram as pessoas: confiança ou temor; admiração ou desprezo; ódio muitas vezes; porém, em certas ocasiões, um tímido respeito ou uma adoração atávica e inconsciente do poder se misturam com a necessidade de acreditar que nosso destino, embora misterioso, não é um joguete do acaso. Se a história do Estadoresume nosso passado, sua existência atual parece prefigurar nosso futuro. Se às vezes o maldizemos, logo nos damos conta de que, para o bem ou para o mal, estamos ligados a ele”.18 No caso particular dos cursos de especialização, cujos alunos já transformaram a sua pré-compreensão estudantil em pós-compreensão profissional − em verdade uma nova pré-compreensão, embora mais requintada, que lhes balizará os passos seguintes, e assim sucessivamente19 −, nesse contexto ideológico sobe de importância o papel dessas vivências e memórias, porque todos os participantes estão afeitos ao jogo de linguagem do direito, e seus conhecimentos demandam, quando muito, apenas aprimoramentos conceituais e/ou refinamentos teóricos, uns e outros só plenamente alcançáveis na troca de idéias e de experiências entre os diversos interlocutores.20 Por outras palavras, tendo em vista o propósito que inspira os seus protagonistas − questionar seus próprios dogmas profissionais, que espontaneamente se dispõem a colocar sob suspeita − afigura-se indispensável, para torná-los fecundos, que os debates se travem em condições lingüísticas ideais; no âmbito de um auditório que de direito se possa considerar universal 21 e onde todos estejam sinceramente dispostos ao diálogo e à busca cooperativa da verdade; em situações discursivas nas quais os interlocutores sejam tratados como pessoas ou sujeitos livres e iguais; onde 18 El Estado. Madrid, Seminarios y Ediciones, S.A., 1975, pág. 9; Traité de Science Politique. Paris, L.G.D.J., 1980, tomo II, págs. 180/183. 19 Jürgen Habermas. Dialética e Hermenêutica. Porto Alegre, L&PM, 1987, pág. 29. 20 Jürgen Habermas. Teoria de la acción comunicativa. Madrid, Taurus, 1988, Tomo I, pág. 46 . 21 Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca. Tratado da Argumentação. São Paulo, Martins Fontes, 1996, págs.34/39. 7 os argumentos de autoridade e violências afins cedam lugar à persuasão racional; em ambientes nos quais estejam proscritas todas as formas de coação, salvo a coerção sem coerções que exerce o melhor argumento; num espaço, enfim, verdadeiramente aberto, pluralista e democrático − ideologicamente arejado, portanto − onde a busca do consenso não interdite o dissenso, mesmo sabendo-se que esse acordo pragmático, que se alcança exclusivamente pela mediação retórica, poderá ser (des)qualificado, desde logo, como um prejuízo unitário ou um grande preconceito coletivo.22 Trata-se, evidentemente, de um processo puramente formal e fictício – tão imaginário quanto o contrato social, como observa Arthur Kaufmann 23 – mas que nem por isso devemos descartar de plano, em nome de um cínico realismo existencial, que não nos proporciona resultados melhores e acaba legitimando posições de força ou desvios de persuasão. Essa a razão pela qual − conscientes de que o processo do conhecimento, além de uma relação onto-gnosiológica ou subjetivo-objetiva, é também uma atividade inter-subjetiva, que envolve pessoas e gerações; e convencidos, ademais, de que a interação professor-aluno é da essência da aprendizagem como valor compartilhado e mutuamente adquirido24 −, reconhecemos o diálogo e a ética no discurso como formas genuínas de busca da verdade, uma atitude intelectual que, de resto, reflete o ensinamento dos mais importantes pensadores contemporâneos, entre os quais merece destaque a figura de Karl-Otto Apel, de quem registramos esta severa lição: “Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e reconheça o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de que há um campo democrático e de respeito na argumentação sem o qual não existe comunicação. É por isso que afirmo que é um tipo de racionalidade que demanda um outro tipo de binômio cognitivo: sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas modernas. É uma validade epistemológica intersubjetiva e não uma busca de objetividade ingenuamente neutra, como nos propõe uma ciência cega. Os cientistas estão imersos em uma comunidade comunicacional real, do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese ‘acontecer’. Se um grupo de pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata de uma ‘adesão’ volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a 22 Fritjof Haft, apud Norbert Hoerster, in En Defensa del Positivismo Jurídico. Barcelona, Gedisa Editorial, 1992, pág.106. 23 Filosofia del Derecho. Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 1999, pág. 487. 24 Earl V. Pullias & James Douglas Young. A Arte do Magistério. Rio, Zahar, 1970, pág. 196: “ O professor se expande e aprende à medida que experimenta idéias com estudantes, que, por sua vez, estão-se expandindo sob a influência de novo conhecimento; quando começa a compreender o que os estudantes sabem a respeito dos objetos e conceitos e percebe o quanto eles diferem em compreensão, seus próprios conceitos serão ampliados com idéias que não lhe tinham ocorrido antes”. 8 argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo democrático de respeito, toda fala é blablablá... É a argumentação que deve ser o modelo transcendental (sentido kantiano) para a fundação de uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um mundo pós-metafísico, sem Deus e cheio de almas mortais que se inter- relacionam não mais dentro de esquemas culturais grupais fechados (que sustentavam a ética solidária no passado), mas por meio de gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais.”25 Com esse propósito aqui estamos para trocar idéias com todos quantos se disponham a fazê-lo sem preconceitos, inclusive discutindo os modelos e o papel da jurisdição constitucional, enquanto derradeira e privilegiada instância de leitura da constituição. II −−−− A distinção entre princípios e regras e sua importância para a interpretação constitucional Das mais relevantes para prática do direito, sobretudo em âmbito constitucional, essa distinção tem como base a estrutura normativo-material dos preceitos que integram a parte dogmática das constituições, com enormes reflexos na sua interpretação e aplicação, como se verá adiante. Inicialmente, embora nos desobrigando de discutir uma como que diferença ontológica entre regras e princípios, até porque essa suposta ontologia não resiste ao teste da experiência nos diferentes quadrantes do mundo jurídico26, dispensando-nos desse esforço essencialista, afirmaremos, com Marcel Stati, que “aquilo que caracteriza particularmente o princípio − e isto constitui sua diferença com a regra de direito (...) − é, de um lado, a falta de precisão e, de outro, a generalização e abstração lógica...” 27 Sob perspectiva um tanto diversa, Josef Esser distingue aquelas duas espécies normativas dizendo que “os princípios jurídicos, diferentemente das normas [regras] de direito, são conteúdo em oposição a forma, embora o uso dessas categorias aristotélicas − adverte − não nos deva induzir a pensar que a forma seja o acessório de algo essencial”, até porque “ histórica e efetivamente, a forma, entendida processualmente como meio de proteção do direito ou materialmente como norma, é sempre o essencial, o único que pode conferir realidade e significação jurídica àquele conteúdo fundamental ainda não reconhecido como ratio.” 28 25 Entrevista a Luiz Felipe Pondé, Caderno Mais!, da “Folha de S.Paulo”, ed. de 26/9/99. 26 Cf., por todos, Josef Esser. Principio y norma en la elaboración jurisprudencialdel derecho privado. Barcelona, Bosch, 1961, especialmente as págs.113/179. 27 Le Standard Juridique. Paris, LJAM, 1927, pág. 56 28 Princípio y norma, cit., pág.65. 9 Se, por outro lado, adotarmos o critério de Ronald Dworkin, diremos que a diferença entre regras e princípios é de natureza lógica e que decorre dos respectivos modos de aplicação29. Com efeito, em razão da sua estrutura normativo-material − se A, deve ser B −, as regras são aplicadas à maneira de proposições disjuntivas, isto é, se ocorrerem os fatos descritos na sua hipótese de incidência e se elas forem normas válidas, de acordo com a regra de reconhecimento30 do sistema a que pertencem, as suas prescrições incidirão necessariamente sobre esses fatos, regulando-os na exata medida do que estatuírem e afastando − como inválidas − outras regras, que, eventualmente, possam concorrer ou entrar em conflito com elas. Noutras palavras, em se tratando de regras de direito, sempre que a sua previsão se verificar numa dada situação de fato concreta, valerá para essa situação exclusivamente a sua conseqüência jurídica, com o afastamento de quaisquer outras que dispuserem de maneira diversa, porque no sistema não podem coexistir normas incompatíveis. Se, ao contrário, aqueles mesmos fatos constituírem hipótese de incidência de outras regras de direito, estas e não as primeiras é que regerão a espécie, também integralmente e com exclusividade, afastando-se − por incompatíveis − as conseqüências jurídicas previstas em quaisquer outras regras pertencentes ao mesmo sistema jurídico. Daí se dizer que, na aplicação aos casos ocorrentes, disjuntivamente as regras valem ou não valem, incidem ou não incidem, umas afastando ou anulando as outras, sempre que as respectivas conseqüências jurídicas forem antinômicas ou reciprocamente excludentes. Como o Direito, pelo menos enquanto ordenamento ou sistema, não tolera antinomias ou contradições, ao longo dos séculos de interpretação das leis a jurisprudência foi elaborando algumas regras, de aceitação generalizada, para resolver os conflitos entre normas, pelo menos aqueles simplesmente aparentes, já que as antinomias reais permanecem insolúveis ou têm a sua resolução confiada ao poder discricionário do intérprete, como assinala Norberto Bobbio.31 29 Los derechos en serio. Barcelona, Ariel, 1995, pág. 74 e segs. 30 Herbert Hart. El concepto de Derecho. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1968, págs. 117/118. 31 Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília, Editora da UnB/Polis, 1989, pág.100. Embora formulada em contexto diverso, merece registro esta observação de Manuel Calvo García sobre a racionalidade das leis: "Frente a uno de los postulados más característicos de la concepción metodológica tradicional, las teorías de la argumentación defienden que el legislador real no es racional o, lo que es igual, que no hace leyes perfectas que prevean soluciones claras y no contradictorias para cualquier caso hipotético que pueda producirse, y que, por lo tanto, quines tienen que ser racionales son los juristas, quienes interpretan y aplican la ley." Los fundamentos del método jurídico: una revisión crítica. Madrid, Tecnos, 1994, pág. 217. 10 Fruto desse trabalho jurisprudencial, a que não faltou suporte doutrinário, são os chamados critérios cronológico, hierárquico e da especialidade, usualmente enunciados em latim − lex posterior derogat priori; lex superior derogat inferiori; lex specialis derogat generali −, em verdade simples regras técnicas que, na generalidade dos casos, ao serem utilizadas dão-nos a nítida sensação de que resolveram falsos problemas. É que, efetivamente, a incidência de uma norma afasta a incidência da outra, de tal sorte que, no mais das vezes, as chamadas regras de solução de conflitos são invocadas pelos aplicadores do direito, menos para resolver do que para declarar inexistentes supostos defeitos lógicos nos ordenamentos em que operam. Afinal de contas, parece-lhes intuitivo que aquelas regras, precedendo a promulgação das normas jurídicas, previnam ou evitem o surgimento de contradições entre elas, as quais, precisamente por isso, podem ser descartadas como simplesmente aparentes. Esse procedimento seria correto se − contra toda a evidência − existisse de fato o legislador racional32 e os sistemas jurídicos, fruto do seu trabalho, fossem logicamente consistentes ou imunes à ocorrência de conflitos reais, de situações em que duas normas (i) pertencentes ao mesmo ordenamento, (ii) dotadas de igual hierarquia, (iii) editadas simultaneamente e (iv) possuindo idêntico âmbito de validade, ainda assim estabelecem para um mesmo caso soluções que − pelo menos aos olhos do intérprete ! − parecem mutuamente incompatíveis.33 Por isso, nesses casos modelares de contradições entre normas − hipóteses que Alf Ross aponta como de inconsistência total-total ou de incompatibilidade absoluta, no âmbito dos problemas lógicos de interpretação do Direito34 −, não se encontram soluções manejando os critérios cronológico, hierárquico e da especialidade, até porque eles são congenitamente insuficientes; podem entrar em contradição mútua; e, afinal, só “resolvem” mesmo os conflitos aparentes de normas. No campo da aplicação dos princípios, ao contrário, a maioria entende que não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas 32 Sobre a ficção do legislador racional, ver Carlos Santiago Nino. Consideraciones sobre la Dogmática Jurídica. México, UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974, págs. 85/101. 33 Carlos Santiago Nino. Notas de introducción al derecho, cit., pág.58; Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., págs. 86/91. A propósito − para ressaltar a dificuldade na identificação das antinomias − registre-se a auto-crítica de Roberto J. Vernengo no sentido de que ainda são relativamente pobres os instrumentos de investigação semântica de que dispõem os juristas para testar o rigor dos seus métodos, e de que não existem critérios razoavelmente confiáveis de que se possam utilizar para dizer quando duas expressões normativas ordenam ou prescrevem um mesmo comportamento. La interpretación literal de la ley. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1971, pág. 6. 34 Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires, Editorial Universitária de Buenos Aires, 4ª ed., 1977, págs.124/125. 11 espécies normativas − por sua própria natureza, finalidade e formulação − como que não se prestam a provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do direito. Daí esta precisa observação de Humberto Bergmann Ávila sobre a natural inapetência dos princípios para entrar em conflito quando manejados pelos seus intérpretes e aplicadores: “A própria idéia de “conflito” deve ser repensada. Ora, se o conteúdo normativo de um princípio “depende” da complementação (positiva) e limitação (negativa) decorrente da relação dialética que mantém com outros princípios, como conceber a idéia de “colisão”? Tratar-se-ia de um conflito aparente e não-uniforme, já que a idéia de conflito pressupõe a identidade de hipóteses e campos materiais de aplicação entre as normas que eventualmente se contrapõem, o que no caso dos princípios é previamente inconcebível: os princípios são definidos justamente em função de não possuírem uma hipótese e uma conseqüência abstratamente determinadas. O problema que surgena aplicação reside muito mais em saber qual dos princípios será aplicado e qual a relação que mantêm entre si”. 35 É que, diferentemente das regras, que possuem hipóteses de incidência fixas e conseqüências jurídicas determinadas − por isso elas estão sujeitas a conflitos e recíproca exclusão − os princípios não se apresentam como imperativos categóricos nem como ordenações de vigência, apenas enunciando motivos para que se decida num ou noutro sentido. Em palavras de Karl Larenz, diríamos que, em si mesmos, os princípios não são − ou ainda não são − regras suscetíveis de aplicação direta e imediata, mas apenas pontos de partida ou pensamentos diretores, que apontam para a norma a ser descoberta ou formulada pelo intérprete-aplicador à luz das exigências do caso.36 Sem imporem aos seus operadores uma única decisão correta e justa (one right answer), eles admitem convivência e conciliação com outros princípios, igualmente válidos e eventualmente concorrentes, que ofereçam razão para soluções em sentido diverso, tudo isso num complexo jogo concertado que só se desenrola mediante complementações e restrições recíprocas; ou, se preferirmos, num processo essencialmente dialético, que se inicia no instante mesmo em que o intérprete-aplicador esboça a aplicação dos princípios às situações da vida, e que se conclui quando, logrando concretizá- 35 A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade, in Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 215:151-179, jan.mar.1999 ( Nota 48, à pág. 162 ). 36 Derecho Justo. Fundamentos de Ética Jurídica. Madrid, Civitas, 1993, trad.Luis Díez- Picazo, págs.33. 12 los, ele dá fiel cumprimento a esses mandatos de otimização recebidos do legislador.37 A sua gênese e o modo como são positivados nos textos constitucionais evidenciam, por outro lado, que os princípios jurídicos possuem, igualmente, uma importante dimensão institucional, como fatores de criação e manutenção de unidade política, à medida que, nos momentos constituintes, por exemplo, graças à amplitude e à indeterminação do seu significado, eles viabilizam acordos ou pactos de convivência sem os quais as disputas ideológicas seriam intermináveis, e os conflitos delas resultantes não permitiriam a promulgação consensual das leis fundamentais. É o que se recolhe em Vital Moreira, ao descrever o processo decisório − do qual participou como constituinte −, em torno dos princípios fundamentais que sintetizam a Constituição Portuguesa de 1976: “Mas os Princípios Fundamentais são uma imagem da Constituição ainda num outro sentido: é que, tal como a Constituição global, também eles configuram um compromisso entre as principais forças políticas que geraram a Constituição. Nos Princípios Fundamentais nenhum dos partidos que participaram na elaboração da Constituição se poderá rever integralmente, mas todos eles − naturalmente uns mais do que outros − contribuíram com algo de seu para o compromisso constitucional que naqueles se reflecte. Disso, aliás, se teve consciência durante a sua elaboração. Em declaração de voto relativa ao projecto que continha os futuros princípios fundamentais, o deputado Medeiros Ferreira (PS) afirmou na Assembleia Constituinte: 'Pode afirmar-se que os princípios fundamentais garantem a coabitação, numa mesma ordem constitucional, das várias correntes políticas, verdadeiramente representativas do povo português presentes nesta Assembléia' (Diário da Assembleia Constituinte, p. 607). Isso mesmo resulta também das respectivas votações na Assembléia. Assim, o projecto global não teve votos contra de qualquer dos quatro maiores partidos − apenas o PCP se absteve − e a quase totalidade dos artigos foi aprovada na especialidade sem votos contra desses partidos”.38 A propósito da dimensão polissêmica dos princípios, da sua múltipla funcionalidade e do modo como se desenvolve o jogo da sua aplicação, o Supremo Tribunal Federal, numa decisão que se pode considerar paradigmática, deixou assentado que em face da Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência com os princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social − valores que seriam 37 Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa, Gulbenkian, 1989, págs. 88/99; Karl Larenz. Metodologia, cit, 1989, pág.579: “É decisivo, por outro lado, que o pensamento não procede aqui ‘linearmente’, só num sentido: o princípio esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela sua união perfeita com o princípio”. 38 Revisão Constitucional e “Princípios Fundamentais”, in Constituição e revisão constitucional. Coimbra, Editorial Caminho, 1980, pág. 73. 13 inconciliáveis, se fossem tomados em sentido absoluto − diante disso tudo pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.39 Trata-se, portanto, nunca é demasiado insistir, de uma espécie de convivência necessariamente amistosa − um jogo concertado −, que admite e até mesmo exige conciliações, menos pela natureza, digamos, pacífica dos princípios, do que pelo fato de as colisões entre eles não serem antinomias jurídicas propriamente ditas, embora possam dar lugar a regras incompatíveis40. Com efeito, na decisão acima referida, acolhendo os argumentos do Relator, a nossa corte constitucional mais não fez do que ponderar e relativizar o peso dos princípios concorrentes e, diante das circunstâncias do caso, legitimar a intervenção legislativa do Estado em determinado setor da atividade econômica, sem que assim decidindo tenha invalidado qualquer dos standards normativos em conflito, os quais, abstratamente considerados, conservaram a sua força normativa, assim como a sua relevância constitucional. Se e quando, à vista de um outro caso concreto, aqueles mesmos princípios voltarem a entrar em estado de tensão − e novamente a depender das circunstâncias −, o tribunal poderá levar a cabo um balanceamento diverso, atribuindo maior peso ao princípio que, na situação anterior, recebera menor ponderação. Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de todos os demais que, prima facie, ele reputa igualmente utilizáveis como norma de decisão, nesse momento o intérprete fará uma ponderação entre os standards concorrentes − obviamente se todos tiverem igual validade, pois só princípios válidos podem entrar em colisão41− optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, e segundo a sua prudente avaliação, deva ter um peso relativamente maior em termos de otimização da justiça. Porque se trata de um método de ponderação de bens no caso concreto, é intuitivo que, pelo menos sob esse prisma, não exista uma hierarquia fixa, abstrata e apriorística, entre os diversos valores e/ou princípios constitucionais, ressalvada – porque axiologicamente fora de cotejo − a dignidade da pessoa humana como valor-fonte de todos os valores, valor fundante da experiência ética ou, se preferirmos, como princípio e fim de toda ordem jurídica.42 39 ADIn 319/DF, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 149/666-692. 40 Norberto Bobbio. Teoria General del Derecho. Bogotá, Temis, 1987, pág.190; Josef Esser, Princípio y norma, cit.,págs. 55/56. 41 Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pág. 89. 42 Cf., sobre a transcendentalidade do valor pessoa humana, Battista Mondin. A metafísica da pessoa como fundamento da Bioética, in Questões atuais de Bioética, Stanislav 14 Considerando, como acentuamos acima, que em função do contexto a avaliação dos princípios pode mudar de sinal, o fato de se atribuir maior importância a um deles, em determinada situação, não invalida nem desqualifica a pauta que se deixou de aplicar, porque a sua preterição terá decorrido exclusivamente da análise das circunstâncias do caso, não valendo, por isso mesmo, sequer como precedente. É que, ao contrário das regras de direito –que se caracterizam como mandatos de realização – os princípios jurídicos são mandatos de otimização e, por isso, podem e devem ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação43. Nesta última característica – a de serem mandatos de otimização – é que ao ver de Alexy reside o atributo fundamental dos princípios jurídicos, permitindo-lhe afirmar que se trata de normas qualitativamente distintas das regras de direito: “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandatos de otimização, caracterizando-se pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida do seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito dessas possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. As regras, ao contrário, só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Por conseguinte, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra, ou é um princípio.”44. A despeito da grande aceitação que mereceu da doutrina, não são poucos os autores de expressão que opõem resistência a esse critério diferenciador, seja acentuando que não somente os princípios, mas também as regras, seriam mandatos de otimização, seja afirmando que não apenas as regras, mas também os princípios, podem entrar em colisão total, de sorte que, num caso concreto, a aplicação de determinado princípio afastaria os outros, eventualmente colidentes, como não pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico. 45 Ladusãns (Coord.). São Paulo, Edições Loyola, 1990, págs.147/174, e Definição filosófica da pessoa humana. Bauru-SP, EDUSC, 1998; Miguel Reale. Pluralismo e Liberdade. São Paulo, Saraiva, 1963, págs. 70/74, e Filosofia do Direito. São Paulo, Saraiva, 1982, págs. 211/214; Gregorio Peces-Barba. Los Valores Superiores. Madrid, Tecnos, 1986, págs. 112 e 121; Joaquín Arce y Flórez-Valdés. Los principios generales del Derecho y su formulación constitucional. Madrid, Civitas, 1990, págs. 144/151; e Edilsom Pereira de Farias. Colisão de Direitos. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1996, págs.21/55. 43 Robert Alexy. Derecho y razón práctica. México, Fontamara, 1993, págs. 12/14. 44 Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., págs.86/87. 45 Humberto Bergmann Ávila, op. cit., págs. 163/164. 15 Por isso, a idéia de mandato de otimização ao invés de servir de fundamento para uma diferença qualitativa entre regras e princípios, antes representaria uma simples técnica de argumentação, utilizável não somente na aplicação dos princípios, mas também na concretização de todo e qualquer standard normativo.46 Apontando as diferenças usualmente indicadas entre regras e princípios, observa Gomes Canotilho tratar-se de uma tarefa particularmente complexa, mas que pode ser cumprida com base nos seguintes critérios: • grau de abstração: os princípios jurídicos são normas com um grau de abstração relativamente mais elevado do que o das regras de direito; • grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (e.g. do legislador ou do juiz), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta; • caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (e.g. os princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (e.g. o princípio do Estado de Direito); • proximidade da idéia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; • natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.47 Vistas as coisas sob essa perspectiva, impõe-se reconhecer que a chamada interpretação especificamente constitucional, pelo menos enquanto hermenêutica diferenciada, está restrita à parte dogmática das constituições, àquele capítulo em que se compendiam os direitos fundamentais, e na exata medida em que os seus enunciados se apresentam como princípios, em linguagem aberta, indeterminada e polissêmica, carente portanto de concretização antes que de interpretação. Numa palavra, só podemos falar em interpretação especificamente constitucional com relação a princípios jurídicos e não também com referência a simples regras de direito, pois uma coisa é aplicar preceitos que possuem hipóteses de incidência e conseqüências jurídicas bem determinadas, e outra − 46 Luis Prieto Sanchís. Sobre Princípios y Normas. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales. 1992, págs.44/50. 47 Direito Constitucional , cit., págs. 1034/1035. 16 muito diversa − é emprestar força normativa a enunciados que não comportam aplicação direta, antes apenas mediatizada pelos operadores jurídicos, em razão da latitude e da fluidez com que essas pautas axiológicas aparecem nas constituições modernas. Dada, por outro lado, a singular dificuldade desse trabalho de concretização − e nisto, insista-se, consiste a interpretação especificamente constitucional − a doutrina e a jurisprudência desenvolveram os métodos e princípios adequados à matéria com que trabalham, de resto uma exigência epistemológica elementar, pois todo objeto impõe o método adequado à sua abordagem, em qualquer domínio do conhecimento. III - Métodos e princípios da interpretação constitucional Em primeiro lugar − citando o mesmo CANOTILHO − devemos salientar que, atualmente, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas ( filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, o que realça o caráter unitário da atividade interpretativa, em geral.48 Tais métodos, como referidos pelo ilustre constitucionalista português, são o jurídico ou clássico; o tópico-problemático; o hermenêutico-concretizador; o científico-espiritual; eo normativo-estruturante, cujos traços mais significativos podem ser resumidos nos termos seguintes: a) método jurídico: a Constituição é uma lei e, como tal, pode e deve ser interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se, para revelar-lhe o sentido, os elementos filológico, lógico, histórico, teleológico e genético; b) método tópico-problemático : o caráter prático da interpretação constitucional, assim como a estrutura normativo-material aberta, fragmentária ou indeterminada da constituição, impõem se dê preferência à discussão dos problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o que, afinal, transformaria a interpretação constitucional num processo aberto de argumentação; c) método hermenêutico-concretizador : a leitura de um texto constitucional, assim como a de qualquer outro texto normativo, inicia-se pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de uma situação histórica igualmente concreta; a interpretação, que assim se obtém, realçará os aspectos subjetivos e objetivos da atividade hermenêutica − a atuação criadora do intérprete e as circunstâncias em que se desenvolve − relacionando texto e contexto e transformando o ato interpretativo “em movimento de ir e vir”, o chamado círculo hermenêutico; 48 Direito Constitucional, cit., pág. 1084. 17 d) método científico-espiritual : a interpretação constitucional deve levar em conta a ordem ou sistema de valores subjacente à constituição, assim como o sentido e a realidade que esta possui como elemento do processo de integração comunitária; e) método normativo-estruturante: na tarefa de concretização da norma constitucional, o intérprete-aplicador deve considerar tanto os elementos resultantes da interpretação do programa normativo, quanto os decorrentes da investigação do domínio normativo, a que correspondem, na doutrina tradicional, respectivamente, a norma propriamente dita e a situação normada, o texto e a realidade social que o mesmo intenta conformar. Finalmente, a título de conclusão, merecem referência os chamados princípios da interpretação constitucional, os quais − à semelhança dos métodos acima apontados − também devem ser aplicados conjuntamente, como condição indispensável a que o ato de interpretação constitucional se revele em toda a sua extensão e complexidade. Tais princípios, para a generalidade dos autores, são fundamentalmente os seguintes: a) princípio da unidade da constituição: as normas constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de regras e princípios; b) princípio do efeito integrador : na resolução dos problemas jurídico- constitucionais deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política, porque essa é uma das finalidades primordiais da constituição; c) princípio da máxima efetividade : na interpretação das normas constitucionais devemos atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior eficácia ou efetividade; d) princípio da conformidade funcional : o órgão encarregado da interpretação constitucional não pode chegar a resultados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido, como o da separação dos poderes e funções do Estado; e) princípio da concordância prática ou da harmonização : os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto; f) princípio da força normativa da constituição : na interpretação constitucional devemos dar primazia às soluções que, densificando as suas normas, as tornem eficazes e permanentes; 18 g) princípio da interpretação conforme a constituição: em face de normas infra-constitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, deve-se dar prevalência à interpretação que lhes dê sentido compatível e não conflitante com a constituição, não sendo permitido ao intérprete, no entanto − a pretexto de conseguir essa conformidade − contrariar o sentido literal da lei e o objetivo que o legislador, inequivocamente, pretendeu alcançar com a regulamentação. Apresentados assim − ou, digamos, meramente enunciados − esses princípios revelam pouco ou quase nada do alcance, praticamente ilimitado, de que se revestem para a solução dos problemas que, a todo instante, são colocados aos aplicadores da Lei Maior por uma realidade constitucional em permanente transformação. IV −−−− A jurisdição constitucional e a interpretação da constituição Sobre a jurisdição constitucional já se disse praticamente tudo, seja para defendê-la, seja para criticá-la. Para o bem ou para o mal, parece que não podemos viver sem ela, pelo menos enquanto não descobrirmos alguma fórmula mágica que nos permita juridificar a política sem ao mesmo tempo, e em certa medida, politizar a justiça. Se o Estado é a forma por excelência de manifestação do poder político, e a Constituição o seu estatuto fundamental, então onde quer que se institucionalizem relações de mando, alguém terá que arbitrar os inevitáveis conflitos entre os fatores reais de poder. Integram esses embates políticos, obviamente, as permanentes contendas entre o Governo, que precisa implementar seus programas e assim cumprir as promessas de campanha, e a Oposição, que tendo perdido a disputa eleitoral, a todo instante bate às portas da Justiça na esperança de obter a sua ajuda para estorvar a ação governamental, que desde logo denuncia como atentatória aos preceitos da constituição. Relembrando palavras de Radbruch − porque de toda a pertinência para esta exposição − diríamos que no âmbito da sociedade política, se ninguém pode dizer o que é justo, é preciso que alguém defina, pelo menos, o que é jurídico, até porque a esta altura da história parece incogitável abandonar-se o Estado de Direito ou retornar-se à lei do mais forte. Quem decide, afinal, pouco importa, porque essa é uma questão de escolha nos diferentes ordenamentos jurídicos; o importante é que alguém decida por último e que essa decisão seja acatada por todos.49 Todo ordenamento, por outro lado, é duplamente finito, porque não regride sem parar, nem progride indefinidamente. Num extremo, a norma 49 Gustav Radbruch. Filosofia do Direito. Coimbra, Arménio Amado, 1961, vol. I, pág.210. 19 fundamental, no outro a coisa julgada, a fecharem o sistema por necessidade lógica e mesmo axiológica 50. Logicamente, porque não seria concebível a sua construção sem começo, nem fim; do ponto de vista axiológico, porque sem um mínimo de segurança e de previsibilidade quanto ao desfecho dos conflitos humanos, seria de todo impossível a convivência social. Entre os dois pólos − a dinamizar o sistema − os órgãos e autoridades legitimados a dizer o direito, se necessário utilizando-se de sanções socialmente organizadas. Assim funciona o direito como técnica de organização social, independentemente do conteúdo das suas normas e de quem esteja habilitado a executá-las em nome de todos. Vistos os ordenamentos sob essa perspectiva − que não impede, antes recomenda, conceberem-se as constituições como sistemas abertos de regras e princípios que se movimentam e se atualizam a cada aplicação −, então a escolha fundamental reside em saber a quem atribuir a últimapalavra nesse universo normativo, uma opção politicamente dramática porque, ao fim e ao cabo, quer se queira, quer não, o poder de interpretar envolve o poder de legislar. É que o verdadeiro legislador, para todos os fins e propósitos − como dizia o bispo Hoadly, e foi relembrado por Kelsen51 − é aquele que dispõe de autoridade absoluta para interpretar quaisquer normas jurídicas, escritas ou faladas, e não a pessoa que por primeiro as escreveu ou transmitiu verbalmente, uma opinião de resto bem próxima daquela externada por Thomas Hobbes ao dizer que o legislador não é aquele por cuja autoridade as leis foram editadas inicialmente, mas aquele por cuja autoridade elas continuam a ser leis.52 Se isso tudo for é verdadeiro − e a história parece não desmentir esses dois pensadores − então a escolha de quem falará por último, até por uma questão de bom senso, haverá de se fazer à luz da experiência histórica, como aconteceu na fundação da república norte-americana, quando os construtores da nacionalidade − principalmente Hamilton − invocando as lições do passado, lograram convencer os seus concidadãos de que eles estariam mais bem protegidos se os seus juizes fossem efetivamente independentes e se a eles fosse confiada a guarda da constituição.53 Como se tratava de uma prerrogativa soberana − lembremos que Blackstone, por exemplo, chegou a dizer que era absoluto e despótico o poder do parlamento para fazer, confirmar, ampliar, restringir, rechaçar, revigorar e 50 Sebastián Soler. Interpretación de la Ley. Barcelona, Ariel, 1962, págs. 95/96. 51 Hans Kelsen. Teoría General del Derecho y del Estado. México, UNAM, 1969, págs. 182/183. 52 Leviatán. México, Fondo de Cultura Económica, 1996, 7ª reimpressão, pág.220. 53 Alexander Hamilton. Os juizes como guardiões da Constituição. O Federalista. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1984, págs. 575/582. 20 interpretar as leis 54−, então essa escolha naturalmente acabou recaindo nos menos perigosos, naqueles agentes políticos que não empunham a espada, nem controlam a bolsa, precisamente nos juizes, muito embora, é verdade, o problema da guarda da constituição não tenha sido objeto de manifestação expressa dos convencionais de Filadélfia, nem exista no texto constitucional uma palavra sequer apontando nessa direção.55 Daí a importância de que se reveste, no particular, uma leitura atenta, senão dos próprios documentos da Convenção − que, encerrados os trabalhos, foram colocados “à disposição do Congresso, se esse chegasse a ser formado, de acordo com a Constituição”56 − pelo menos, e com certeza, de O Federalista 57 onde foram reunidos os célebres artigos de jornal que, sob o comum pseudônimo de Publius, Hamilton, Madison e Jay escreveram em defesa da Constituição. Escritos de circunstância, produzidos no calor dos debates com os adversários da proposta constitucional submetida à ratificação dos Estados, nem por isso esses textos de catequese política caíram no esquecimento. Muito ao contrário, pela profundidade com que analisaram aquela Carta e pelas verdadeiras regras de interpretação, que deles emergiram, esses panfletos até hoje são valiosos para a compreensão da lei fundamental dos Estados Unidos, e a tal ponto se integraram na sua história que muitos os consideram “quase como uma parte da própria Constituição”.58 Mais ainda, como observa Benjamin Fletcher Wright, embora não pretendesse ser um tratado sistemático sobre filosofia política e constitucional, O Federalista − considerada a sua época − apresenta uma análise de suas idéias políticas e constitucionais melhor do que qualquer outro livro escrito na América.59 Para ilustrar a relevância daqueles escritos na construção do edifício constitucional norte-americano, destaquemos algumas das reflexões de Alexander Hamilton − seguramente o mais destacado dos federalistas − sem que isso implique juízo de menor relevância sobre as idéias, também importantes, de James Madison e John Jay. Sobre a supremacia da constituição e a sua guarda pelo Judiciário, por exemplo, Hamilton ministrou lições que se tornaram definitivas não apenas em seu país, mas em todos quantos, igualmente inebriados pela filosofia da Ilustração e, mais especificamente, pelo constitucionalismo, deram-se constituições escritas e rígidas, nelas cristalizaram as suas decisões políticas fundamentais e, afinal, incumbiram os seus juizes de protegê-las contra a miopia das maiorias ocasionais. São desse pregador entusiasmado as palavras 54 Apud Christopher Wolfe. La transformación de la interpretación constitucional. Madrid, Civitas, 1991, pág.130. 55 Christopher Wolfe, op. cit. pág. 135. 56 Carl Van Doren. O Grande Ensaio. História da Constituição dos Estados Unidos da América. Rio de Janeiro, Pongetti, 1952, pág. 118. 57 O Federalista. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1959. 58Carl Van Doren, op. cit., pág. 123. 59 O Federalista. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Introdução, pág. 20. 21 transcritas a seguir, que imediatamente repercutiram na Suprema Corte dos Estados Unidos − relembre-se o raciocínio de Marshall nos casos Marbury v. Madison e Mac Culloch v. Maryland − e mais tarde se espalharam pelo mundo como língua materna das democracias ocidentais: “Não há proposição que se apoie sobre princípios mais claros que a que afirma que todo ato de uma autoridade delegada, contrário aos termos do mandato segundo o qual se exerce, é nulo. Portanto, nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto eqüivaleria a afirmar que o mandatário é superior ao mandante, que o servidor é mais que seu amo, que os representantes do povo são superiores ao próprio povo e que os homens que trabalham em virtude de determinados poderes podem fazer não só o que estes não permitem, como, inclusive, o que proíbem. ........................................................................................... Não é admissível supor que a Constituição tenha tido a intenção de facultar os representantes do povo para substituir a sua vontade à de seus eleitores. É muito mais racional entender que os tribunais foram concebidos como um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a finalidade, entre várias outras, de manter esta última dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é própria e peculiarmente da incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de fato, uma lei fundamental e assim deve ser considerada pelos juizes. A eles pertence, portanto, determinar seu significado, assim como o de qualquer lei que provenha do corpo legislativo. E se ocorresse que entre as duas existisse uma discrepância, deverá ser preferida, como é natural, aquela que possua força obrigatória e validez superiores; em outras palavras, deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a intenção do povo à intenção de seus mandatários. Esta conclusão não supõe de nenhum modo a superioridade do poder judicial sobre o legislativo. Somente significa que o poder do povo é superior a ambos e que onde a vontade da legislatura, declarada em suas leis, se acha em oposição com a do povo, declarada na Constituição, os juizes deverão ser governados pela última de preferência às primeiras. Deverão regular suas decisões pelas normas fundamentais e não pelas que não o são.”60 Pois bem, já no ano de 1803, quando do julgamento do caso Marbury v. Madison, John Marshall começará o seu voto dizendo que a questão de saber- se se uma resolução da legislatura incompatível com a Constituição pode tornar-se lei do país era uma questãoprofundamente interessante para os Estados Unidos, mas felizmente não apresentava nenhuma dificuldade proporcional à sua magnitude, bastando para resolvê-la o reconhecimento de certos princípios que foram longa e otimamente estabelecidos. E passa a expô- los didaticamente. 60 O Federalista, cit., pág. 314. 22 “Que o povo tem direito originário de estabelecer para o seu futuro governo os princípios que se lhe antolharem mais concernentes a sua própria felicidade, são os alicerces sobre que se assenta o edifício americano. O exercício desse direito originário representa uma grande soma de esforços; não pode, não deve ser freqüentemente repetido. Os princípios assim estabelecidos são, pois, reputados fundamentais. E como é suprema a autoridade de onde eles dimanam, e raras vezes obra, são destinados a ser permanentes. A vontade originária e suprema organiza o governo e assina aos diversos departamentos seus respectivos poderes. E pode contentar-se com isso ou fixar certos limites para que não sejam ultrapassados por esses departamentos. Pertence a última classe o governo dos Estados Unidos. Os poderes da legislatura são definidos e limitados; e para que esses limites não possam se tornar confusos e apagados, a Constituição é escrita. ........................................................................................... É uma proposição por demais clara para ser contestada, que a Constituição veta qualquer deliberação legislativa incompatível com ela; ou que a legislatura possa alterar a Constituição por meios ordinários. Não há meio termo entre estas alternativas. A Constituição ou é uma lei superior e predominante, e lei imutável pelas formas ordinárias; ou está no mesmo nível conjuntamente com as resoluções ordinárias da legislatura e, como as outras resoluções, é mutável quando a legislatura houver por bem modificá-la. Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então não é lei a resolução incompatível com a Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então as constituições escritas são absurdas tentativas da parte do povo para delimitar um poder por sua natureza ilimitável. Certamente, todos quantos fabricaram constituições escritas consideraram tais instrumentos como a lei fundamental e predominante da nação e, conseguintemente, a teoria de todo o governo, organizado por uma constituição escrita, deve ser que é nula toda a resolução legislativa com ela incompatível. ........................................................................................... Assim, se uma lei está em oposição com a Constituição; se, aplicadas elas ambas a um caso particular, o Tribunal se veja na contingência de decidir a questão em conformidade da lei, desrespeitando a Constituição, ou consoante a Constituição, desrespeitando a lei, o 23 Tribunal deverá determinar qual destas regras regerá o caso. Esta é a verdadeira essência do Poder Judiciário.”61 Como visto, essa opção judiciarista não decorreu de nenhuma construção teórica, nem tampouco de nenhum projeto de engenharia política, antes consolidou-se ao sabor da própria experiência constitucional, num processo tão aleatório quanto o da formação do governo de gabinete na Inglaterra, por exemplo, que o sensitivo André Maurois atribuiu ao tempo, ao acaso, ao bom senso e ao compromisso.62 E tão naturalmente foi se impondo esse governo dos juizes − vencidas algumas resistências iniciais, como as de Jefferson e Madison, por exemplo 63− que hoje em dia, salvo umas poucas opiniões em contrário, todos parecem concordar em que os norte-americanos vivem sob uma constituição, mas que essa carta política é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é, uma conclusão abonada pelas sucessivas viragens de jurisprudência, que o tribunal conscientemente tem assumido nos seus mais de duzentos anos de leituras e releituras desse grande ensaio. Graças a essa atitude, de resto facilitada pela textura aberta dos seus enunciados, cumpriu-se a profecia de Marshall64 − a constituição norte- americana atravessou os séculos, adaptou-se às várias crises dos negócios humanos e, afinal, possibilitou a construção de um grande país, em que pese a opinião dos que encaram os Estados Unidos como o Leviatã do terceiro milênio. Devaneios ou exageros à parte, essas novas leituras da constituição − as chamadas mutações constitucionais65 − resultam não apenas da peculiar estrutura das normas constitucionais − especialmente daquelas em que se definem os direitos fundamentais − mas também e sobretudo da natureza e das funções inerentes à jurisdição constitucional como instância privilegiada de interpretação das cartas políticas. Com efeito − acentua Cappelletti − situadas fora e acima da tradicional tripartição dos poderes estatais, as cortes constitucionais não podem ser 61 Decisões Constitucionais de Marshall. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1903, págs.24/26. 62 André Maurois. Histoire d’ Angleterre. Paris, Arthème Fayard et Cie, Éditeurs, 1937, pág. 523. 63 Cf. Christopher Wolfe, op. cit., págs. 129/166. 64 Mac Culloch v. Maryland, in Decisões Constitucionais de Marshall, cit., pág. 115. 65 Cf. Georg Jellinek. Reforma e Mutación de la Constitución. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pág. 7: “ Por reforma de la Constitución entiendo la modificación de los textos constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación.” (destaques nossos). Ver, também, Uadi Lammêgo Bulos. Mutação Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1997, e Anna Cândida da Cunha Ferraz. Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo, Max Limonad, 1986. 24 enquadradas nem entre os órgãos jurisdicionais, nem entre os legislativos, nem muito menos entre os órgãos executivos. É que, prossegue o mestre italiano, a elas pertence de fato uma função autônoma de controle constitucional, que não se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos poderes tradicionais, mas se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi- los, quando necessário, à rigorosa obediência às normas constitucionais.66 A toda evidência, essa arbitragem consubstancia prerrogativa essencialmente política − de nítido teor constituinte, aliás − porque, embora disfarçadas em trajes hermenêuticos, essas novas interpretações implicam também novas tomadas de decisão, de resto com eficácia erga omnes e efeito vinculante, sobre os espaços que os membros da corte − e não os que fizeram a constituição − venham a considerar adequados àqueles poderes. De outra parte, como que a facilitar a crescente expansão dessa prerrogativa excepcional, as normas com que trabalha a jurisdição constitucional − notadamente os princípios da constituição −, ao contrário dos preceitos jurídicos em geral, apresentam-se em fórmulas lapidares, numa linguagem tão aberta, indeterminada e plurissignificativa, que o ato de concretizá-las a rigor não conhece limites e só com extrema boa vontade − à Konrad Hesse, por exemplo − poderíamos dizer que isso ainda seja interpretação.67 Daí a crítica, sempre repetida, de que em verdade essas cortes, que não dispõem de legitimidade para tanto, acabaram se transformando em terceira câmara dos parlamentos, em verdadeiras constituintes de plantão, como dizem os seus opositores mais ferrenhos. Mais ainda, os métodos e princípios de que se utilizam− as chamadas regras hermenêuticas − de contornos indefinidos, como que potencializam essa abertura e essa liberdade, e em tão larga medida, que não seria demasiado dizermos que nesse terreno, aparentemente imune a voluntarismos, também aí os sujeitos manipulam o objeto da interpretação. Afinal de contas, para que servem ou o que significam, objetivamente, expressões tais como unidade da constituição, concordância prática, exatidão funcional ou máxima efetividade, com que se rotulam os diferentes princípios da hermenêutica constitucional, se também essas locuções estão sujeitas a conflitos de interpretação? O que dizer, então, do multifuncional princípio da proporcionalidade, essa espécie de vara de condão com que as cortes constitucionais − e não apenas elas − operam verdadeiros milagres hermenêuticos, ministrando remédios para todos os males do comércio 66 Mauro Cappelletti. O controle de constitucionalidade das leis no sistema das funções estatais. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, Saraiva, 1961, vol.3, pág. 38 67 Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 421. Jürgen Habermas. Direito e Democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, págs. 303/304. 25 jurídico?68 O que fazer, enfim, com a velha tópica jurídica, se não existe acordo sequer sobre o que significam os tópicos e se todos os que a utilizam parecem fazê-lo na exata medida em que para qualquer problema ela contém enunciados contrapostos?69 Por essas e outras é que Alexander Pekelis, diante da latitude do texto constitucional norte-americano e da conseqüente liberdade para interpretá-lo, chegou a dizer que os Estados Unidos, a rigor, não tinham uma constituição escrita. São desse jurista as palavras transcritas seguir, que se tornaram clássicas em tema de interpretação constitucional: “Devemos recordar que em certo sentido os Estados Unidos não têm uma constituição escrita. As grandes cláusulas da Constituição americana, assim como as disposições mais importantes das nossas leis fundamentais, não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência daqueles a quem é confiada a responsabilidade da sua aplicação. Dizer que a compensação deve ser justa; que a proteção da lei deve ser igual; que as penas não devem ser nem cruéis nem inusitadas; que as cauções e as multas não devem ser excessivas; que as investigações ou as detenções hão de ser motivadas; e que a privação da vida, da liberdade ou da propriedade não se pode determinar sem o devido processo legal, tudo isso outra coisa não é senão autorizar a criação judicial do direito, e da própria Constituição, pois a tanto eqüivale deixar que os juizes definam o que seja cruel, razoável, excessivo, devido ou talvez igual.”70 Para ilustrar essa liberdade de (re)elaboração constitucional, lembremos que entre nós, não faz muito tempo, por decisão consciente do legislador − Leis 9.868/99 e 9.882/99 − conferiu-se ao STF a prerrogativa excepcional de graduar os efeitos das declarações de inconstitucionalidade e de descumprimento de preceito fundamental da constituição, sempre que, a juízo da corte, razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social − conceitos abertos a mais não poder − venham a justificar a sobrevida, temporária e anômala, de atos ou normas incompatíveis com a constituição, 68 Xavier Philippe. Le contrôle de proportionnalité dans les jurisprudences constitutionnelle et administrative françaises. Paris, Economica, Presses Universitaires D’Aix – Marseille, 1990; Georges Xynopoulos. Adele Anzon et al. Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale – Riferimenti comparatistici. Milano, Giuffrè, 1994. Le contrôle de proportionnalité dans le contentieux de la constitutionnalité et de la légalité. Paris, L.G.D.J, 1995. 69 Theodor Viehweg. Tópica y Jurisprudencia. Madrid, Taurus, 1964, e Tópica y Filosofía del Derecho. Barcelona, Gedisa, 1991; Juan Antonio Garcia Amado. Teorías de la Tópica Jurídica. Madrid, Civitas, 1988, pág. 119/138; e José Luis Villar Palasí. La Interpretación y los Apotegmas Jurídico-Lógicos. Madrid, Tecnos, 1975, pág.151. 70 Alexander Pekelis. La tecla para una ciencia jurídica estimativa. El actual pensamiento jurídico norteamericano. Buenos Aires, Editorial Losada, 1951, pág. 125. 26 uma prerrogativa evidentemente política, mas que nem por isso é desprovida de razoabilidade, como registramos em estudo dedicado ao tema.71 Em suma, quando se afirma que o sentido dessas constituições, conquanto se deva presumir objetivo, em verdade é aquele fixado pelas cortes constitucionais, o que se está a dizer, em verdade, é que nesses sistemas jurídicos, porque os tribunais constitucionais trabalham com fórmulas lapidares ou enunciados abertos e indeterminados; porque estão situados fora e acima da tradicional tripartição dos poderes estatais; e , afinal, porque desfrutam de singular autoridade, os juizes que os integram, enquanto intérpretes finais da constituição, acabam positivando ou constitucionalizando a sua própria concepção de justiça − rigorosamente a sua ideologia − que outra não é senão aquela da classe social, hegemônica, que eles integram e representam. No Brasil, há precisos sessenta anos, Francisco Campos expressou opinião semelhante, ao discursar na abertura dos trabalhos do STF, em 2 de fevereiro de 1941: “Juiz das atribuições dos demais Poderes, sois o próprio juiz das vossas. O domínio da vossa competência é a Constituição, isto é, o instrumento em que se define e se especifica o Governo. No poder de interpretá-la está o de traduzi-la nos vossos próprios conceitos. Se a interpretação, e particularmente a interpretação de um texto que se distingue pela generalidade, a amplitude e a compreensão dos conceitos, não é operação puramente dedutiva mas atividade de natureza plástica, construtiva e criadora, no poder de interpretar há de incluir-se, necessariamente, por mais limitado que seja, o poder de formular. O poder de especificar implica margem de opção tanto mais larga quanto mais lata, genérica, abstrata, amorfa ou indefinida a matéria de cuja condensação há de resultar a espécie.” 72 Na Alemanha − após destacar a proximidade que existe entre as tarefas da jurisdição constitucional e as funções de direção e configuração políticas − o respeitado Konrad Hesse assinalou que essa jurisdição extraordinária tem de decidir questões com teor e alcance políticos em número muito maior do que as afetadas às jurisdições ordinárias; que as suas decisões podem acarretar conseqüências políticas de grande monta; que, muitas vezes, elas se avizinham de decisões políticas, na medida em que, regularmente, podem ser tomadas com base em critérios amplos e indeterminados da constituição; e que, enfim, a execução das suas decisões é de todo distinta do modo como se executam as decisões das outras jurisdições.73 71 Inocêncio Mártires Coelho. As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n° 137, jan/mar 1998, págs.157/164. 72 O Poder Judiciário na Constituição de 1937. Direito Constitucional. Rio, Forense, 1942, pág. 367. 73 Elementos, cit., págs. 420/421. 27 Dado o possível déficit de legitimidade democrática inerente a esse monopólio judiciarista de interpretação autêntica da constituição − uma carência congênita
Compartilhar