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o AUTOR CONHECEU BEM CEDO A AlIDADE DA DISCRIMINAÇÃO, A QUAL O CHAMOU DE "SOMBRA DO V~U", LADO SOMBRIO DA SOCIEDADE QUE RGUERA MUROS ENTRE AS GENTES. A ESSA METÁFORA CONDUTORA DE ALMAS DA GENTE NEGRA, lE RETORNA VÁRIAS VEZES, A TRANSFORMA EM PALAVRAS DIGNIDADE PARA O POVO NEGRO: I AM THE SMOKE KING 11 AM BLACK. " As ALMAS DA GENTE NEGRA ~ UM NSAIO LITERÁRIO DATADO DA JUVENTUDE DO LlDER NEGRO EM QUE COMENTADOS OS LONGOS E HOSTIS ANOS DA RECONSTRUÇÃO DO SUL. MOMENTO EM QUE OS NEGROS VIRAM-SE LIVRES, MAS INTEIRAMENTE unoos DA SOCIEDADE QUE, RIMEIRA VISTA, PARECIA TER NTRADO EM NOVOS TEMPOS. A OBRA ESTÁ DIVIDIDA EM 14 CAPfTULOS: 13 ENSAIOS E M CONTO. Ao LONGO DOS ENSAIOS, U BOIS DISCUTE E SOBRETUDO RESENTA DIVERSAS QUESTÕES E lE MAS FUNDAMENTAIS PARA O VO NEGRO; ENTRE ELES, A FUNÇÃO UE 'fERIA UMA UNIVERSIDADE NEGRA PAPEL FEMININO NA SOCIEDADE, NTECIPANDO UMA DAS DISCUSSÕES JCIAIS DAS D~CADAS POSTERIORES. M PROFUNDO CONHECIMENTO DE 111 FMPO, Ou BOIS SENTENCIA: PROBLEMA DO S~CULO XX ROBLEMA RACIAL." W.E.B. Ou BOIS NASCEU EM UMA COMUNIDADE RURAL EM GREAT BARRINGTON, MASSACHUSSETTS, EM 1868, TR~S ANOS APÓS O FIM DA GUERRA CIVIL, E MORREU EM GANA, QUASE UM S~CULO DEPOIS, EXATAMENTE NA V~SPERA DO ATO PELO QUAL FOI DIRETAMENTE RESPONSÁVEL, A GRANDE MARCHA PELOS DIREITOS CIVIS LIDERADA POR MARTIN lUTHER KING JR., EM WASHINGTON. O MOVIMENTO CONDUZIDO PELO JOVEM lUTHER KING, EM 1963, FOI O ANÚNCIO DE NOVOS TEMPOS PARA O POVO NEGRO E RESULTADO DIRETO DA LUTA DE OU BOIs. Ou BOIS, O MAIS INFLUENTE LIDE R POLlTICO DAS PRIMEIRAS D~CADAS DO S~CULO XX, FORMOU, JUNTAMENTE COM FREDERICK DOUGLASS E BOOKER T. WASHINGTON, O TRIO EMBLEMÁTICO QUE LIDEROU OS NEGROS AMERICANOS NA PASSAGEM DA ESCRAVIDÃO PARA UMA FRÁGIL CIDADANIA, QUE PARA Ou BOIS ERA APENAS UMA SEMILlBERDADE. OS ANOS POSTERIORES À GUERRA E À EMANCIPAÇÃO ASSISTIRAM AO SURGIMENTO DE MOVIMENTOS DE PURO TERRORISMO SOCIAL. ORGANIZAÇÕES COMO A Ku KLUX KLAN E OS CAVALEIROS DA CAM~LlA BRANCA, A SERViÇO DA "PUREZA DO SANGUE E DOS VELHOS IDEAIS SULISTAS", FRAGILlZARAM AINDA MAIS A INSERÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA NO TECIDO SOCIAL NORT~-AMERICANO, JÁ BASTANTE DESFIBRADO PELO LONGO CONFLITO ENTRE O NORTE E O SUL. David G. Ou Bois, 1999 Direitos desta edição adquiridos pela Editora Nova Aguilar S.A. Rua Dona Mariana, 105 - casa I Botafogo - 22280-020 - Rio de Janeiro Tel/Fax: (21) 537.7189 - 537.8275 E-mail: novaguilar@netfly.com.br Revisão tipográfica: Helena Mollo Capa: MIL Fotografia da capa: Special Collections and Archives, WE.B. Ou Bois Library, University of Massachusetts Arnherst. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LNROS, RJ. D866Aa Ou Bois, W.E.B. (WiUiam Edward Burghardt), 1868-1963 As almas da gente negra / W.E.B. Ou Bois ; tradução, introdução e notas, Heloísa ToUer Gomes. - Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999 Tradução de: The Souls of Black Folk Conteúdo parcial: Washington & Ou Bois: duas opções de liberdade / por David G. Ou Bois ISBN 85-7384-051-X r. Afro-americanos. 1.Título. 99-1624 CDD 973.0496073 CDU 973(73=96) Sumário Introdução (Heloísa Tolier Gomes) 7 Cronologia 25 Reflexão prévia 49 Sobre as nossas lutas espirituais 5 I II Sobre a aurora da liberdade 63 ITI Sobre o Sr. Booker T Washington e outros 93 IV Sobre o significado do progresso I 17 V Sobre as asas de Atalanta 13 I VI Sobre a instrução dos Negros 143 VII Sobre o cinturão Negro 163 VIII "obre a busca do Velocino de Ouro 189 ~\lIH(' os IIlhos do senhor c do escravo 215 x Sobre a fé dos nossos pais 239 XI Sobre o falecimento do primogênito 257 X II Sobre Alexander Crummell 265 XIlT Sobre a vinda de John 277 As Sorrow Songs 297XVI Reflexão F inal 3 I 3 Posfácio (Oavid G. Ou Bois) 3 I 5 ft JntrodUfão A América seria a América sem o seu povo negro? Ou BOIS \ Â1E.B. Du Bois foi O mais influente líder político negro dos Y Y. Estados Unidos na primeira metade deste século. Mais jo- vem do que Frederick Douglass e Booker T. Washington, ele veio completar, no seio da comunidade afro-americana, o grande trio de liderança histórica na passagem da escravidão a uma frágil e instável cidadania. Os três, apesar das diferenças de geração, temperamentos e ideologias, perseguiram um mesmo objetivo bá- sico: a integração da população negra na sociedade norte-ameri- cana. Nesse trio, Douglass foi o brilhante orador abolicionista, Washington o empresário pragmático afinado aos novos tempos, Du Bois o intelectual requintado, estudioso da sociedade de seu país a partir do interesse apaixonado pelo destino do povo negro. I)os três líderes, foi ele quem revelou mais explicitamente, em sua IIhról escrita, o impacto da opressão racial e seus efeitos devastado- II:.~ 11,\ nascente comunidade dos libertos da escravidão.' \II}:II'I Mcyer desenvolve esses aspectos em seu Negro Thought in America /880 - 1'11 \ Ihe University of Michigan Press, 1987. 7· I k índole combativa e espírito polêmico, por vezes paradoxal, 1)\1 I\OISS('l11rOUadmirações fervorosas e granjeou também ferre- nh,h uumizndcs, inclusive dentro da segregada comunidade negra dI' S('\I \('l11po. I-loje, passadas as contendas imediatas daqueles dias, ,I relevância da vasta obra que deixou e o impulso que deu à luta p('los direitos civis dos afro-americanos e dos povos oprimidos do inundo asseguram-lhe o reconhecimento da posteridade. Esse re- conhecimento foi muito além das fronteiras dos Estados Unidos, ,lIlllgindo outras nações e continentes (seus livros e textos jornalís- \ iros têm sido traduzidos em diversos idiomas, do tcheco e do espanhol ao chinês, do francês e alemão ao japonês, russo, rumeno ( corcano, entre outros). Por vocação historiador e, sobretudo, sociólogo, havia também (111Du Bois as nuances do psicólogo e o rigor intelectual do filóso- 111 prováveis marcas de seu aprendizado, em Harvard, com ( ;\'Ol'g(' Santayanna e com o mestre e amigo William James. A ver- '"lI ti Id,lde marca a sua escrita, tanto na prernência do jornalismo 11111111Cllllenteengajado quanto na reflexão erudita do ensaísmo. \ 1',11'de ampla perspectiva histórica, Du Bois igualmente expressa 11111,1VIS,lOhurnanista que o aproxima da melhor tradição cultural 1111111'.uncricana do oitocentismo. Em seu ideal de auto confiança, 11.1\,"I1II/;1Ç<10dos dons e talentos inatos em prol de um aprimora- 1111'111\1uu irvidual que se abre para o social e para o cósmico, res- un 1I1l1.1~do sentido de harmonia emersoniano e da indepen- III.TII'Xi'llllI 1,11buscada porThoreau. I !('IIIIT ,I~:'II,I~realizações no campo do ensaísmo literário, des- I, il/,ililr '/11 ,~",,'r /I/:~ra, livro de mocidade que lhe conferiu 11111,11'1(111,"11IIII'I'Il,ICional. Quando de sua publicação, im- 11],11111,I."" 1',\/.llIl'ln, William James, Henry James e Max lilp!llldD~~1' 1:,,11111111110,1inrcrmcdiar a sua tradução para 1(1Clol le"I!,'1/ '11111\S,I jóia da literatura norte-americana i! 1','lhliul 10-111/1.11 1IIIgll" portugucsa e chegasse ao Bra- silo As almas da gente negra é o texto privilegiado em que Du Bois combina o ardor do militante político, a bagagem cultural do cien- tista social, a sensibilidade do poeta. Lê-lo não basta para conhecer bem seu autor, mas pode ser um excelente começo para se entender o homem Du Bois, sua luta, frustrações e realizações; e para se compreender melhor a dramática trajetória do negro nos Estados Unidos, da escravidão ao início do nosso século. Nascido na comunidade rural de Great Barrington, Massa- chusetts, em 1868, Du Bois faleceu em Gana, a 27 de agosto de 1963 - precisamente na véspera da grande Marcha pelos Direitos Civis em Washington, presidida por Martin Luther King Jr. Nada mais expressivo do que essa simbólicasucessão de lideranças: o jovem militante negro anunciando seu sonho às multidões, a retira- da de cena do ancião que tanto lutara pelo mesmo sonho e que, do alto de seus noventa e cinco anos e de longe, no continente dos ancestrais, acompanhara o despontar de uma nova era de cidadania para o povo negro nos Estados Unidos. Quando Du Bois nasceu, apenas três anos haviam se passado desde o final da guerra civil que selara, no país, o destino do escra- vismo. Tempos terríveis então se anunciavam, muito particularmen- te para os libertos e seus descendentes. O choque e as conseqüências do assassinato, em 1865, de Abraham Lincoln, cujo talento de esta- dista tamanha falta faria naquela época de corrupção política, tur- bulência social e instabilidade econômica; a desastrosa administra- ~,1Opresidencial de Andrew Johnson, que abriu caminho para a I',mial retomada do poder pela derrotada oligarquia sulista; os doze ,111md,l Reconstrução do Sul, com seus relativos êxitos e tremendos r I,li ,"sos - aliás, magistralmente comentados por Du Bois neste 11'\'1<.1I, depois, principal objeto de análise em seu Black Reconstruction I ()~\S); ,I perplexidade da "gente negra", saindo da escravidão para Illgll"S,1I ('111uma precária liberdade e debatendo-se entre o racismo Iholll/ .111~1I1(' ,I dubiedade não menos racista do Norte. 9 i\pó~ ,I Guerra Civil (conhecida entre nós como Guerra da Se- re~~,lo), o~ antigos proprietários de terras e de escravos, apegados ,1m lkspojos de um passado tornado mito, adaptaram-se, por bem ou 1'01' mnl. <10 modelo capitalista imposto pelo Norte, então já em Vl'I'II~IIIOSOprocesso de industrialização. A população branca do Sul, ressentida e empobrecida, tendeu a atribuir as agruras do pre- sente ,1 população negra cuja recente liberdade política temia e que combateu com variadas armas, dentre as quais a do terrorismo ra- cial. Foi naquela segunda metade do século XIX que surgiram a Ku Klux Klan, os Cavaleiros da Camélia Branca e outras organizações expliciramente racistas, a serviço da pureza do sangue e dos "ve- lhos ideais sulistas". Em outras palavras, o Sul sabia-se derrotado porém afirmava-se vivo, cultivando "suas melhores tradições" - norudarnente, as noções arraigadas de hierarquia racial e a inflexível l rcnça na inferioridade dos não-brancos. O exacerbado ressentimento do Sul tornou-se cada vez mais .ivassalador e paralisante para os libertos à medida que os estados sulistas, amparados pelo princípio constitucional de autonomia est adual, em poucos anos gradualmente neutralizaram, em seus u-rritórios, os direitos de cidadania da população negra, em teoria ~,II,lI1tidos pelas Emendas à Constituição 14 e 15. Surgiram, assim, I10Sestados da antiga confederação separatista, as leis de segrega- "Hllól(inl popularmente conhecidas como "Jim Crow", que vigora- 1,1111uuocadas, em sua grande maioria, até a década de 1960. I:oi nesse ambiente nacional conturbado - porém em Massa- \'! lIlSel1s, longe do Sul- que nasceu e criou-se o menino William I~dwóllll. descendente de africanos e de franceses huguenotes. Pelos fil,is l.ulos, provinha ele de famílias de negros e mestiços livres. Seu I1i~,lvtl111.IIl'rno,Tom Burghardt, nascido nas Antilhas e seqüestra- ík, ILI illf.illll,1 por mercadores de escravos holandeses, lutara como ./.1.1111111,1glllll,1 dn independência dos Estados Unidos e com I~~I\1'011111,11,1lu I," r um certo prestígio. Du Boi~ conheceu nos primeiros anos de vida a pobreza, porém não a miséria. Ainda na infância, segundo conta no pungente capítulo inicial de As almas da gente negra, a "sombra do véu" do preconceito racial e da discrimina- ção abateu-se sobre ele. E a revelação de que ele e os seus habitavam o lado sombrio desse véu, circunscrito por "altas paredes", sendo portanto impedidos de usufruir os benefícios da sociedade e da civilização, marcou toda a sua vida. A metáfora do véu a separar os dois mundos, o branco e o negro, e a toldar a luz do sol para a população dos descendentes dos escravos africanos é um dos moti- vos condutores em As almas da gente negra. Também a sombra, a noite e a fumaça, associadas à própria cor escura, são recorrentes em sua poesia - forte, embora ocasional: "I am the smoke king,/ I am black", escreveu, com característico senso de dignidade, em poema da juventude.ê De temperamento reservado e pouco afeito a expansões emocio- nais, foi contudo com paixão e entrega absoluta de si mesmo que Du Bois dedicou a vida ao grande objetivo que a norte ou: entender e desvendar a experiência dos negros em seu país e no mundo; dis- secar e expor a dramática inserção dos africanos e seus descendentes no traçado histórico dos Estados Unidos, desde o momento em <'lueo primeiro navio negreiro aportou às costas da Virgínia até os tempos modernos; apreender e relatar o peculiar destino de negros c brancos norte-americanos, indissoluvelmente ligados pela Histó- lia porém dramaticamente distanciados em suas. vidas cotidianas e, dessa forma, impedidos de construir um futuro melhor para todos. Nesse sentido, não se cansava de afirmar que os interesses das duas "1.I\ólS" eram essencialmente os mesmos. Ele tendeu, portanto, a IIJIII ,11os ideais separatistas e de "volta à África" que agitaram par- I, c/,I i omunidade afro-americana na primeira metade do século li" ".HI~Ilr lhe Smoke", Black fóius: An Anthology oj Ajro-American Literature. til" '".1.: Ncw Arncrican Library. 1968. li SllIdl'y Graham Ou Bois. A Piaoria! Biography, Chicago: Johnson Publishing ('''Il1I'.lIly. 1978. p. 155. 1.1.1".1" lúú sabilidades que uma história de injustiças escamoteara no passado e cujo patente continuísmo bloqueava o presente, ameaçando o futuro. Denunciava ele, portanto, a dívida postergada da América branca para com seus filhos negros, conduzidos da escravidão à semiliberdade de cidadãos de segunda classe. Seu rigor ético e intelectual não se dirigia apenas à sociedade abrangente, contudo. Reclamava ele também da população negra o engajamento na educação e no trabalho, balizado pela solidarieda- de e pelo orgulho racial, assim como pela conscientização histórica do papel do negro na sociedade. Reconhecendo que as lamentáveis condições de vida da comunidade negra incitavam o sempre laten- te preconceito racial da sociedade dominante, insistia em que o negro lutasse incessantemente por seus direitos e assumisse igual- mente seus deveres, visando à ascensão social da coletividade. Implementava ele sua própria visão de um nacionalismo negro, in- centivando a criação de organizações e a elaboração de métodos de ação social próprios, a partir da consciência de uma experiência única - a da escravidão - e de uma herança específica - a afri- cana - sempre do lado obscuro do "Véu". Foi, assim, o principal idealizador e um dos fundadores do histórico Niagara Movement (1905- I 909), movimento negro dedicado à luta pelos direitos políticos e econômicos da população afrodescendente. Ou Bois não se negava, porém, a participar de iniciativas multiraciais com objetivos afins: caso de sua atuação na NAACP (National Association ]or the Advancement <1 Colored People), associação ainda hoje em ativida- de e da qual ele foi um dos íundadores, em 19 IO. Na defesa dos interesses da comunidade negra, propôs Ou Bois um de seus conceitos mais conhecidos, o da "décima parte talentos a" [talented tenthJ: a afirmação da existência, na população negra, de uma elite intelectual que fazia jus, desde a juventude, a uma formação educacional condizente com seus dotes e capacida- de de liderança, de forma a assumir posteriormente a responsabili- (como os do bombástico Marcus Garvey, de tanto impacto ate me- ados da década de 1920) embora às vezes, especialmente rrn mo mentes de amargura e pessimismo, tenha-se deixado atrair por eles. Durante a maior parte da vida, Ou Bois advogou a coopcraçao intcr- racial no país que era, desde muitasgerações, a pátria comum de negros e brancos. Paradoxalmente ele viria a escolher a Áli'ica como último lar e abrigo para seu derradeiro projeto intelectual: retomar a direção da Enciclopédia cifricana -lamentavelmente, com a sua morte, deixada inacabada mais uma vez. Seu exílio voluntário dos Estados Unidos foi visto por muitos como uma manifestação de protesto pelas perseguições pessoais que sofreu, ainda na idade avançada, e como uma atitude tardia de desafio diante da persistên- cia da discriminação racial no país. Ele, porém, justificou o radica- lismo do gesto com razões de ordem histórica e existencial, ao ex- pressar ao presidente Kwame Nkrumah seu contentamento por ser-lhe conferida a cidadania de Gana: "Meu bisavô, atado a cor- rentes, foi arrancado do Golfo da Guiné. Eu voltei, para que o meu pó se misture ao pó dos meus ancestrais'l.' Percebe-se, ainda, nesse retorno fecundo de Ou Bois às origens - pois que realizando um trabalho e completando a curva de mais um elo, na cadeia do tempo - a noção de ter levado a termo sua missão no país natal e a aceitação do fato de que a liderança afro- americana passava agora, e por direito, às novas gerações: "aquilo (lue eu fiz mal, ou que não pude terminar, passa agora a outras mãos para ser completado pelo tempo afora", escreveu, em mensa- gem de despedida endereçada aos pósteros." Du Bois afirmava que os Estados Unidos só realizariam seu destino histórico e os ideais democráticos afirmados pelos funda- dores da nação quando, e se, seus cidadãos assumissem as respon- 13 dadr maior pelo destino social de toda a comunidade. Mas não era s6 IWI.I valorização (sem dúvida elitisra) de uma minoria inrclcc- uml qUl' Du Bois sublinhava a densidade da contribuição cultural lH'gl'a :10 país. Os negros, afirmava, haviam construido, ao longo da l'xperiência histórica afro-americana, uma cultura riquissima, e a ícrcciam ao pais que, obtusa e cruelmente, insistia em rejeitar sua doação. Ao final de As almas da gente negra, isto se expressa em angus- tiadas perguntas: Nossa canção, nosso trabalho, nossa disposição e advertência têm sido dados a esta nação em irmandade de sangue. Tais dádivas não serão dignas de oferecer? Nem nosso trabalho e empenho? A América seria a América sem o seu povo negro?5 Na leitura de algumas páginas de As almas da gente negra, parecem ecoar, para o leitor brasileiro, belas passagens de O Abolicionismo em lllr<' Joaquim Nabuco, num Brasil ainda imerso na escravidão, tam- hérn se referia eloqüentemente ao que chamava de doação da raça nl'gra: ... a raça negra nos deu um povo. [...] Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habita- ção e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas c correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospi- t.iis, tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resul- r.ulo do trabalho manual, como emprego de capital, como .11 IIIlHII.IÇ;ío de riqueza, não passa de uma doação gratuita da 1.1\.1 '1111' trabalha à que faz trabalhar." W I', lI, 1)11 111118, '1/., \,,,11., .1 Il/ll,k Folk. Tn t» Bois Wrilings, NY: The Library of 1'.1(\,',. .:r'I' \ IV ("Sllhll' ," )orrow SO/(gs"). P: 545 .J!lh'O. U ,1/."/,,,,,,,,,,,,,,, Jlrllúl'0lls: Vozes, 1977, P: 69. 1'1 Tanto pela voz do abolicionista brasileiro, vindo das camadas privilegiadas da sociedade oitocentista, quanto por parte do pensa- dor afro-americano que se definia como "sangue do sangue e carne da carne daqueles que vivem dentro do Véu", ressoa o testemunho do papel fundamental, basilar, do negro na formação histórica e na identidade nacional de seus respectivos países. Mas nesse cruzar de pensamentos que transcende gerações e nacionalidades, cumpre assinalar uma importante distinção: em seu reconhecimento da contribuição do negro brasileiro, Nabuco, como a ampla maioria dos intelectuais da época, passa ao largo da questão cultural. A contribuição negra ao Brasil, segundo ele, é populacional ("a raça negra nos deu um povo") e viabilizou a marcha civilizatória do país através de um árduo trabalho cujos desdobramentos assinala na passagem citada. Du Bois, por outro lado, faz questão de articular as realizações materiais e intelectuais da gente negra: "nossa canção, nosso traba- lho, nossa disposição e advertência". Valoriza ele assim, incansavel- mente, a cultura africana e afrodescendente. É sintomático, portan- to, que o fecho de As almas da gente negra seja uma emocionada homenagem à música dos negros norte-americanos e que esta se destaque nas epígrafes duplas diante de cada capítulo do livro, ilu- minando citações de escritores americanos ou europeus. A simbo- logia dessa construção epigráfica sublinha, inusitadamente para a época, a potencialidade da cooperação inter-racial despida de hie- rarquias que Du Bois propunha e concretizava. I Em seu fértil aprendizado ao longo da vida, foram marcantes as uanslorrnações pelas quais passaram seu pensamento e as formas d\ S('1I l'ngajamento social. Após a imersão no mundo segregado 1\111\111 racialmente afirmativo) da Fisk University, Du Bois in- '11 "1111 110 ambiente universitário solidamente vitoriano de Har- I't"' I I, .1,1 Universidade de Berlim. Em sua autobiografia, Dusk 0/ I },I\I'II (19'10), ele comentaria esse prosseguimento de sua experiên- 15 cia acadêmica, relatando: "estudávamos história c política quase que cxclusivarncruc do ponto de vista de antigos ideais de liberdade ,"el11.1. d,l democracia inglesa e da Nova Inglaterra, e do desenvolvi- ment o dos Estados Unidos", tocando apenas de passagem no que 11I'ill1ordi::tlmcnte o interessava: "o problema da admissão do meu povo 113 liberdade da democracia."? Du Bois admitiu que, não fosse pelo problema racial que cedo o atingiu e absorveu, ele teria provavelmente permanecido "um dócil fiel diante do altar da ordem social e do desenvolvimento econômi- co no interior dos quais nasc[ era]"." Gradualmente, encontrou sub- sídios intelectuais para melhor trabalhar a questão racial. Assim, foi \ com grande emoção que, em I 906, ouviu Franz Boas discursar na I Universidade de Aclanta sobre a importância das culturas ao sul do Saara para o desenvolvimento da civilização antiga.9 À medida que percebia a contradição entre os ideais humanistas e a realidade de conquista e domínio do colonialismo e do imperialismo europeus, roi perdendo a fé nos valores que o fascinaram na juventude. A discriminação racial nos Estados Unidos já não era novidade para ele c, ao ser capaz de vincular a problemática afro-americana e o legado ocidental de exclusão da maior parcela da população mundi- al- os "não-brancos" -, ampliou seu âmbito de interesse, abar- cando os povos do Terceiro Mundo em suas lutas de emancipação. N3 década que se seguiu à publicação de As almas da gente negra, livro em que suas posições políticas mostram-se ainda conservado- rOl'. Du Bois identificou-se crescentemente com o socialismo. As (I ,11lS[ormações em sua forma de pensar são análogas às mudanças dI' r umo do próprio movimento pan-africano (que ajudou a fun- dar), na busca de diretrizes africanas autônomas, com a derrocada dos impérios coloniais, e crescentemente afastado do pensamento liberal europeu.§ 1919, Ou B..ills organizou o Primeiro Con- gresso Pan-Afriçano, em Paris, cujo documento final reivindicava o.--reconhecimento e a proteção dos africanos vivendo sob o domínio _colonial; em 1927, durante o Quarto Congresso Pan-Africano, em Nova York, manifestou-se contra a intervenção americana no Haiti e ~ exploração econômica da Libéria; e no Quinto Congresso Pan- Africano, em Manchester (1945), são já líderes africanos que do- minam o movimento pan-africano, exigindo independência do do- mínio europeu. Ou Bois saudou como promissora a união dos povos de pele escura que antevia parao futuro - os "damnés de Ia terre", na famosa formulação de Franz Fanon -, reconhecendo, no entanto, que tal não se daria sem graves conflitos mundiais. Três vezes, no início de As almas da gente negra, ele afirmou (profeticamente ?): "O problema do século XX é o problema da barreira racial." 10 Almejava ele, neste livro, conscientizar brancos e negros quanto à continuação moderna do jogo de domínio e exclusão, ancorado em escravismo secular. Ao descrever os paradoxos da sociedade norte-americana, ao exibir as condições de pobreza e desamparo da maior parte da população negra, esclarecia didaticamente (grande professor que era) como a sociedade, na manutenção de concepções e práticas racistas e discriminatórias, protegia interes- St'S reacionários de classe e de poder. Daí a importância, sublinha- va, de lutar pela proteção, ampliação e fortalecimento do voto e l't'la educação ampla do povo negro, das escolas primárias ao ensi- IlIl universitário. Ou Bois corretamente percebeu o vínculo entre o lU ,"0 .1 educação e a atividade política significativa.W.I~,I\,I)" Bois, I)usk oJ Dawn: Ali Essay Toward aM Autobiograpby oJ a Raa Concept. In /.)1/ /l.'t\ IllItlll.~.!,N.Y.,The Library of America, 1986, p. 574. 1.1, IJ". 1'. '17.\. "ri' 11,IV,,1 1 rvrllllg lrwis. J1IEB. Du Bois: Biography oJ a Raa, 1868 - 1915. N.Y.: 11(1111' 110.1111111 (llIlIl'.IIlY, 1993, p. 656, .. \ ft ,I\i' surge na "Reflexão Prévia" e, também, na abertura e no final do capoII '",1111' ,\ Aurora da Liberdade"). 11 17 Educação e direitos de cidadania foram os pontos centrais ~a <!iscórdia entre Ou Bois e Booker T. Washington, ~ssunto do capí- tulo III em As almas da gente negra e tema do ensaio do professor Oavid G. Ou Bois, neste volume. Para informação adicional do \ leitor brasileiro, acrescente-se que, na virada do século XX e du- 1:\ rante a sua primeira década, o poder da liderança de Booker T. ,Washington na comunidade afro-americana era imenso, enquanto o prestígio de Ou Bois apenas começava a se firmar. Washington 'controlava então grande parte da imprensa negra, tinha um trânsi- to inusitado entre as autoridades políticas do mundo branco (to- \I'mou um célebre chá na Casa Branca com o presidente Theodore Roosevelt) e dispunha de abundantes verbas governamentais e de 1 entidades assistenciais progressistas, com as quais desenvolveu seu projeto de educação industrial e agrícola sediado no Tuskeg~ nstitute - tão poderoso que foi cognominado por Ou Bois de "A Máquina Tuskegee". Entre seus pares, Washington era conhecido como "the Wizard" [o Feiticeiro] ou como "the Great Accomo- dato r" [o Grande Conciliador], alusão a seu talento ~ gosto por conciliações, segundo seus aliados, ou por acomodações, segundo críticos e oponentes. O professor Oavid Ou Bois desenvolve a tese de que as diferen- ças de origem entre Booker T. Washington (nascido ainda escravo, no Sul) e Ou Bois (nascido livre, no Norte pós-guerra civil) em muito explicam os respectivos desacordos sobre os rumos desejá- veis para os afro-americanos no alvorecer do século XX. Ele afirma que a doutrina de prosperidade material, respeitabilidade social e instrução industrial defendida pelo Washington negro - como se este descendesse espiritualmente de Benjamin Franklin, acrescenta- ríamos nós - ajustava-se como uma luva ao espírito capitalista e materialista da época, daí o seu aparente sucesso. Aparente porque jtJ então, no calor da hora, Ou Bois advertia quanto aos temíveis efeitos dessa política desenvolvimentista. Reivindicava ele uma to- ,li mada de responsabilidade nacional diante da situação sócio-eco- nômica do negro, direitos civis plenos e oportunidades educacio- nais iguais. As intrincadas implicações da divergência entre os dois líderes afro-americanos, assim como as conseqüências, hoje, do rumo prevalecente - que foi o de Washington, não o de Ou Bois - são analisadas no ensaio do professor Oavid Ou Bois, que in- forma e enriquece a leitura de As almas da gente negra em geral e do capítulo III, em particular. As almas dagente negra distribui-se em 14 capítulos - 13 ensaios e um conto. Oito desses textos já haviam sido publicados em peri- ódicos como The Atiantic Monthly, The World's Work, The Dial, The New World e Annals if theAmerican Academy. Um ensaio, "Sobre o Cinturão Negro" (VII), fora encomendado pela McClure's Magazine sem che- gar a ser publicado. Ou Bois reviu todos eles, para a composição do livro. Os cinco capítulos inéditos têm um cunho mais introspecti- vo ou confessional do que os demais, como o comovente depoi- mento sobre a morte do filho pequeno (XI); o ensaio sobre o líder religioso e político Alexander Crummell (XII), texto cuja estrutura narrativa já prepara o caminho da ficção que o segue, a saber, o conto "Sobre a Vinda de John" (XIII); o capítulo final (XIV), "Sobre as Sorrow Songs"; e também "Sobre as Asas de Atalanta" (V), lima das peças mais fascinantes do conjunto. A partir do jogo de sons e de sentidos das palavras Atlanta/ Atalanta, Ou Bois utiliza o mito grego da donzela corredora atraída pelos pomos de ouro de I lipômenes, como alegoria para o crescente espírito de lucro e de '.11"10 material que ele via, temeroso, grassar no novo Sul, branco e Ilrgl'll. Ainda no mesmo ensaio, Ou Bois discute a função da uni- \I I\ld.lde negra. U i usnio inicial do livro reconfigura o conceito da "consciência ,li iJ,l;, ", 1)11 do "eu dividido" - que remonta a dois escritores pre- !tlll.!.,) di' Du Bois, Goethe (no Fausto), e Emerson (em "O Trans- "d,',lI.d,sta") - para evocar a realidade psíquica do negro ame- 19 ricano. Ao lado da metáfora do Véu do preconceito racial, a noção trágica da consciência dupla, sempre em permanente tensão, forma o par de motivos condutores que informam e sublinham o livro. O capítulo seguinte, "Sobre a Aurora da Liberdade" (lI), muda radicalmente de tom. Mais didático do que filosófico, trata da Re- construção no Sul e discute minuciosamente as polêmicas ativida- des do Serviço de Libertos, o Freedmen's Bureau, construí do sobre a devastação do pós-guerra. Um dos ensaios mais bem realizados do ponto de vista literário é "Sobre o Significado do Progresso" (IV), no qual Ou Bois relata sua experiência de jovem mestre-escola nos confins do Tennessee. Pastoral em prosa do Sul rural, o texto dá J conhecer ao leitor o modo de vida e as aspirações da humilde população negra da re- gião. Quando ali discorre sobre a grandeza obscura e o destino abortado da jovem Josie, Ou Bois realiza uma de suas mais belas e convincentes criações de personagens femininas. Em sua sintonia para com a vida frustrada de uma talentos a mulher, nota-se, já en- tão, o germe de suas preocupações feministas acentuadas em sua obra posterior e no ativismo político da maturidade.'! No capítulo VI - onde surge, pela única vez no livro, a expres- são "talented tenth" - Ou Bois volta à questão das escolas indus- triais, prosseguindo na abordagem daquilo que tanto o preocupa- va, a educação. Sugerindo a afinidade do autor com a tradição cultural afro-americana que remonta às antigas slave narratives e aos spirituals, esse ensaio se fecha com a retomada de alusões bíblicas já presentes no capítulo de abertura. Também nos capítulos VII e VIII, de cunho sociológico, Ou Bois convida o leitor a percorrer o Sul rural, tematizando a vida cotidiana de comunidades negras na Geórgia. A mesma questão liga-se à das relações inter-raciais no Sul, abordada especialmente em "Sobre os Filhos do Senhor e do Escravo" (IX). No capítulo X, Ou Bois discute a importância da religião dos negros e das black cburches, e faz um retrospecto de suas transformações desde as lon- gínquas origens africanas, avaliando a força do papel comunitário dessas igrejas na sociedade afro-americana moderna. O conjunto de textos que compõem As almas dagente negra é todo dedicado à "gente negra" cuja pluralidadede "almas" o título res- salta. Nessa sinalização do múltiplo e do diverso, em jogo que en- volve não apenas a interiorização (da gente negra) mas também o olhar (do leitor), está um dos traços da modernidade de Ou Bois. Segundo o crítico Paul Gilroy, neste livro desponta, pela primeira vez, uma perspectiva diaspórica e global diante da política do racis- mo e de sua superação. Diz ele: Os impulsos nacionalistas de Ou Bois coexistiram [em As al- mas da gente negra] com a sua transcendência. [Ali se tece] uma narrativa sistemática das interconexões entre a África, a Euro- pa e as Américas para complicar a narrativa excepcionalista do sofrimento negro e da emancipação nos Estados Unidos. A escravidão internacional forneceu a base racional para essa perspectiva, mas associou-se ao desejo de Ou Bois de demons- trar a situação intrínseca dos negros, firmemente encerrados no interior do mundo moderno que o seu próprio trabalho [orçado viabilizou.V N('I'ICS últimos anos, uma das tendências predominantes nos I'~I'" 111., culturais nas e sobre as Américas (dentre os quais destaca- II Em ensaio de 1920, ele escreveria: "A ascensão da mulher, ao lado do problema da barreira racial e do movimento pela paz, é a nossa maior causa moderna." "Thc damnation of wornen" [A maldição das mulheres J. ln: Du Bois Writings. Op. ru., p.%5. 1'.".1 (;.Jmy. The B!tuk Atlantic: Modernity and Doublt Consciousness. Cambridge, I, . li hu-cus: Harvard University Press, 1993, p. 120-121. '., 21 se a contribuição do próprio Gilroy) tem sido, deixando de lado discursos essencialistas de raça e nacionalidade, atentar para o di- namismo de um legado sócio-cultural híbrido, advindo do cruza- mento histórico de heranças múltiplas que se fragmentam e recom- põem para ressurgir, sucessivamente, em novas configurações. Assim, já desde a violência da travessia do Atlântico, heranças étni- cas foram transportadas para serem reelaboradas através da expe- riência do africano arrancado do continente de origem e de seus filhos que, através das gerações, transformar-se-iam e transforma- riam o Novo Mundo. Consciente dessa multiplicidade e de sua realidade tcnsionada, Ou Bois, bem antes de seus contemporâneos, rasura em sua obra a história oficial, para dela mostrar o avesso. Ele não renega a cultura clássica porém a revisita e reescreve, subvertendo-a por nela enxer- tar a (sua) perspectiva afro-americana. A partir da independência do gesto, florescem novas possibilidades de sentido - como suce- de com o mito do Jardim das Hespérides, na escrita polifônica de As almas da gente negra. No alvorecer do século XX, do interior de uma sociedade toda voltada para o materialismo desenvolvimentista, Ou Bois sintoma- ticamente privilegia, no título de seu livro mais famoso, não o pro- gresso material mas a interiorização (pluralizada) da gente negra - suas "almas". Esse precursor da luta pelos direitos civis das minorias e dos modernos estudos culturais, desconfiando de essencialismos limitadores, transita livremente, modernamente, pelos gêneros literários e combina os saberes das diversas ciências sociais. Quer na recriação literária de um humilde povoado negro no interior do Tennessee ou da Geórgia, quer no tratamento erudi- to das grandes questões sociais da humanidade, sua escrita contun- dente, que jamais neutraliza os conflitos, simultaneamente alerta para a necessidade da cooperação e do conhecimento mútuo entre as diversas famílias humanas. Rompendo com o pensamento liberal da juventude para adotar diversas modalidades de socialismo e identificando-se, no desenro- lar de seu amadurecimento, com um fecundo pacifismo, Ou Bois teve o privilégio de viver longuíssima vida em que lutou por gran- des ideais e, inevitavelmente, deparou-se com suas próprias contra- dições. E, se certas vezes se contradisse - para parafrasearmos seu conterrâneo, o poeta Walt Whitman -, é porque ele era plural, contendo, em si, multidões. Certamente, são muitas as almas da gente negra que se oferece- ram ao leitor de seu tempo e agora a nós, no crepúsculo do século XX, no limiar do século vindouro. Talvez seja esta a maior home- nagem prestada por Du Bois à população negra a que dedicou vida, reflexão e árduo trabalho: reconhecer, nela, a pluralidade, a rnulti- plicidade, a diversidade, em seu país e no mundo - juntamente com o legado responsável de uma humanidade comum. E apontar sempre para a riqueza das trocas. .. 22 23 REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS Fundação de Jamestown. 1607 Chegada dos primeiros negros àB Virgínia. Legalização da escravidão, na 1667 Virgínia, para os negros conver- tidos ao cristianismo. Os casamentos inter-raciais são 1691 banidos na Virgínia. Declaração da Independência - 1776 dos Estados Unidos. Reconhecimento internacional 1783 da independência dos Estados Unidos. Início da emancipação gradual dos escravos, no Norte. Northwest Ordinance proíbe a es- 17871 cravidão nos territórios ao norte do rio Ohio. * A Convenção onstitucional entra em acordo a respeito da escravidão. A primeira lei federal de natura- 1790 lização reserva a cidadania para os brancos. A invenção do descaroçador de 1793 .llgodão fortalece a base econô- mica da escravidão sulista. Fim do tráfico escravista inter8} u.icional nos Estados Unidos. Missouri Compromise estabelece li- 1820 1111.1 divisória entre o território livre e o território escravista. 27 ~ REFER[;NCIAS IIISTÓRICAS W.E.B. DUBOlS REFER~NCIAS HIFÓRICASxV e~tK~ Fiflee~th Amendment protege os di- 1870 reitos eleitorais dos negros. Início da agitação abolicionista 1831 110 Norte. m acordo temporariamente re- 1850 solve a controvérsia sobre a ex- tensão da escravidão nos territó- rios. Fugi/ive Slave Law: escravos fugitivos encontrados nos esta- dos ao norte da Mason Dixon Line (estados livres) devem ser reen- caminhados a seus proprietários sob pena de pesadas sanções. Final da Reconstrução. 1877 Primeira lei estadual segregando 1881 os negros em transportes públi- cos (Tennessee). Exilusion Act proíbe a imigração 1882 de chineses. Dred Scoll Decision anula o Missouri 1857 Compromise ~ga a todos os ne- gros do país o direito à cidada- nia: por decisão da Corte Supre- ma, um negro não pode abrir processo em tribunal federal. Nasce BookerT. Washington. 1858-- A Corte Suprema apóia as leis 1883 fim Crow no Tennessee que san- cionam espaços públicos separa- dos para negros e brancos. Isto anula o Civil Rights Act aprovado pelo Congresso. Ataque de John Brown a Harper's 1859 Ferry. Eleição de Lincoln. * Secessão 18B dos estados sulistas. Início da guerra civil. G\ Proclamação da Libertação. ~ Fim da guerra civil. * Assassina- 1860 I() de Lincoln, * Thirteenth Amend- - mrn! proíbe a escravidão. ~ 11111III d,l Reconstrução. 1~\.. ' 1;l/íl/~r!,tÍ ÁIllfI'/'l/fII/ c~ende aos,~ Nasce William Edward ItI III1m Il~drrcitos de cidadania. -..........J Burghardt Ou Bois em Great Barrington, Massachusetts. Em Chicago é construído o pri- 1884 meiro arranha-céu, de dez anda- res, com estrutura de aço. W.E.B. DUBOIS Aluno do curso secundário, tem vários empregos: recolhe carvão, corta grama, vende jornais. Lê muito, faz um jornalismo inci- piente, joga beisebol. Escreve sobre a comunidade ne- gra de Great Barrington para o periódico New York Globe e, oca- sionalmente, é correspondente para o Springfield Republican. Forma-se no curso secundário, único estudante negro numa tur- ma de treze. Faz discurso de for- matura sobre o abolicionista Wendell Phillips. 1885 Morte da mãe. Ingressa na Fisk University, em Nashville, Ten- nessee. Quase morre de febre ti- fóide. Estuda alemão, grego, la- tim, literatura clássica, filosofia, ética, química e física. Charles Chesnutt, The Goophered 188(/7 Mestre-escola dois verões perto Grapevine, contosem dialeto ne- de Alexandria, Tennessee. Im- gro. Thomas Nelson Page, In ale pressiona-se com a música negra Vzrginia, romance que idealiza o que escuta nas pequenas igrejas Velho Sul. locais. 29 REFER)jNCIAS HISTÓRICAS Mississippi é o primeiro estado a suprimir os direitos eleitorais dos negros através de convenção constitucional. l" W.E.B. DUBOIS REFERÊNCIAS HISTÓRICAS 1888"9 Graduação em Fisk. Profere dis- curso de formatura sobre Bis- marck. É admitido em Harvard. Durante o verão, trabalha como ajudante de garçom em hotéis em Minnesota. Em Harvard, es- tuda filosofia com William James e George Santayana, eco- nomia com Frank Taussig, histó- ria com Albert Bushnell Hart. É recusado no Harvard Clee Club. Nos meses de verão, faz pales- tras para grupos de igrejas. Par- ticipa da vida comunitária negra de Boston, toma parte em gru- pos teatrais amadores. Stephen Crane, The Red Badge oJ 1895 'ourage.* Booker T.Washington, "Atlanta Exposition Address". aso Plessy v. Ferguson: a Corte 1896 Suprema autoriza a segregação em acomodações e serviços pú- blicos, formulando a doutrina "separare but equal". 1890 B.A. cum laude em filosofia. Estu- da Ciências Políticas na Har- vard Graduate School. 1891 M.A. em história, Harvard. 1892 Após árduos esforços, consegue financiamenro (Slater FUnil) para estudar na Alemanha. Aluno da Friedrich Wilhelm Universitât, em Berlim. 1894 O grau de doutor lhe é negado pela universidade alemã em ra- zão do tempo insuficiente de estudo na Alemanha. Não ob- tendo renovação da bolsa, volta aos Estados Unidos. Escreve a instituições negras de ensino em busca de trabalho, e é rejeitado em Fisk, Howard, Hampton, Iuerra Hispano-Americana. Os 1898 Estados Unidos obtêm as ilhas do Havaí, Porto Rico, Filipinas. Â música de Scott [oplin, o 1899 ",,,/;lIIe, torna-se popular no país. W.E.B. DUBOIS Tuskegee. Leciona os clássicos em Wilberforce Universiry, Ohio. Escreve a Booker T.Washington, cumprimentando-o pelo sucesso obtido com o discurso na Atlanta Cotton Exposition. É o primeiro negro a obter o Ph.D. em Harvard. Casa-se com Nina Gomer, estu- dante deWilberforce. The Suppression oJ theAfrican Slave- Trade to the United States oJ America, Z638-Z870, sua tese de doutoramento, é publi- cada. Prepara um estudo socioló- gico sobre a população negra da Filadélfia. 1897 Leciona economia e história na Atlanta University, Expande o âmbito da sua pesquisa socioló- gica que o ocupará, e a um grupo de estudantes voluntários, por mais de dez anos. Recusa-se a freqüentar concertos, teatros, parques e museus segregados, ou a utilizar-se de transportes fim Crow. Nasce o ftlho, Burghardt Gomer Ou Bois. O ftlho morre de disenteria. Es- creve artigos para Atlant« Month/y e The Independent. 31 REFER~NCIAS HISTÓRICAS Booker T. Washington, Up jrom 1900 Slavery. Paul Laurence Dunbar, The Sport 1902 oJ the Gods. ,ç. Thomas Dixon, The Leopard's Spots, considerado o ro- mance racista mais extremista da literatura norte-americana Surge o Niagara Movement, precur- 1905 sor da NAACp, dedicado à con- quista incessante e inflexível dos direitos políticos e econômicos dos negros. Morre, aos 33 anos, o poeta 1906 Paul Laurence Dunbar. Mais de um milhão de imigran- 1907 tes europeus chegam a Ellis Island (Nova York). 32 W.E.B. DUBOIS Condecorado por trabalho apre- sentado sobre o desenvolvimen- to econômico negro, na Exposi- ção de Paris. Acirra-se a divergência entre Ou Bois e Booker T. Washington. Os dois líderes se encontram. Recusa oferta para lecionar em Tuskegee. 19°3 Publicação de The Sou/s oJ Black Folk.O sucesso do livro torna Ou Bois uma figura nacionalmente conhecida. Colabora na organização do Niagara Movement, e é eleito Secre- tário Geral. Inicia correspon- dência com o escritor, advogado e compositor James Weldon [ohnson, também membro do Niagara Movement. 19°9 Publica a biografia John Brown, que é criticada por Oswald Garri- son Villard (pesquisador e jorna- lista, neto de Garrison) como historicamente imprecisa. Traba- lha para a EncyclopediaAfricana, um estudo histórico e sociológico da vida do negro em todo o mundo, IU:FER~NCIAS HISTÓRICAS Fundação da NAACp, em Nova 1910 York: National Association for the Advancement oJ Colored People. James Weldon [ohnson, The 1912 Autobiography oJ an Ex-Coloured Man. Inauguração do Armory Show, 1913 Nova York: primeira grande exi- bição de arte moderna no país. Marcus Garvey funda a Universal 1914 Negro Improvement Association. W.E.B. DUBOIS a ser elaborado por uma equipe internacional sob a supervisão de Ou Bois. O Niagara Movement tem seu 5° encontro - o último _ em Nova Jersey. Eleito Diretor de Publicações e Pesquisa da NAACP, é o único negro da diretoria. Muda-se para Nova York para fundar e trabalhar em The Crisis, revista mensal da NAACP (circulação inicial, 1.000 exemplares). 1911 Presente ao Universal Races Congress, em Londres. Publica seu primeiro romance, The Quest oJ the Silver Fleece, melodrama ro- mântico sobre a exploração da indústria do algodão. Filia-se ao Partido Socialista. Escreve e encena The Star oJ Ethiopia, desfile comemorativo da história negra, apresentado em Nova York para celebrar o 50° aniversário da libertação dos escravos (poste- riormente exibido em Washing- ton, Filadélfia eLos Angeles). A cir-culação de The Crisis já alcança 30.000 exemplares. Defende o voto das mulheres em editorial de The Crisis. Considera as rivalidades imperialistas das 33 j REFER(;NCIAS IIISTÓIUCAS Ku Klux Klan reativada na Geór- gia. * O filme de D.W Griffith The Birth oj a Nation é exibido em Nova York. * Morte de Booker T. Washington. Os Estados Unidos declaram guerra à Alemanha e participam da Primeira Guerra Mundial. Cerca de 400.000 afro-america- nos servem na guerra. Apenas 10% deles participam da frente de combates. * Conflito racial em St. Louis, quando dezenas de negros são massacrados. * Gran- de migração dos negros do Sul para os centros industriais do Norte (auge em 1919). II W.E.B.DUBOIS potências européias a causa prin- cipal da Primeira Guerra Mun- dial; avalia o colonialismo fran- cês e o inglês como preferíveis ao alemão, posicionando-se em fa- vor da vitória aliada. 1915 Faz campanha contra Tbe Birth oj a Nation e sua glorificação da Ku Klux Klan. Protesta contra a ocupação americana do Haiti. Após a morte de Booker T. Wa- shington, faz uma reavaliação equilibrada do líder negro. 1916 Escreve ao presidente Wilson re- clamando dele o cumprimento de promessas passadas para com a população negra do país. 1917 Escreve editorial no número de junho de Crisis, conclamando os negros a buscarem trabalho nas indústrias de guerra se conti- nuassem a ser banidos do serviço militar, argumentando que a aquisição de conhecimento mili- tar e industrial enfraqueceria a dominação racial branca. Parti- cipa de marcha silenciosa (orga- nizada pela NAACP), na 5a Ave- nida, Nova York, em protesto contra o agravamento da violên- cia racial. 1918 É advertido pelo Departamento de Justiça de que poderá ser pro- cessado caso continue a criticar o racismo nas forças armadas. O Departamento de Guerra lhe ItEFER(;NCIAS HISTÓRICAS Mais de 25 grandes conflitos ra- 1919 ciais, em Chicago e outras cida- des. A Ku Klux Klan expande-se, vigorando em 27 estados, e or- ganiza cerca de 200 manifesta- ções contra grupos minoritários, controle de natalidade, pacifis- mo, internacionalismo, darwi- nismo. 70 negros são linchados, dentre os quais oficiais unifor- mizados. Prohibition (Lei Seca): Eighteenth 1920 Amendment. Revogado em 1933. * As mulheres votam: Nineteenth Amendment. W.E.B. DUBOlS oferece comissão como capitão do exército e um posto no servi- ço especial de inteligência mili-tar para assuntos raciais (a acei- tação do convite por Ou Bois é duramente criticada nos meios negros). O duplo oferecimento, porém, não se concretiza. Em- barca para a França em dezem- bro e investiga, para a NAACp, o tratamento de tropas negras. Organiza o Primeiro Pan-African Congress, a realizar-se em Paris. Apesar de interferências inglesas e norte-americanas, compare- cem 57 delegados dos Estados Unidos, Caribe, Europa e Áfri- ca. O Congresso convoca Con- ferência de Paz em Paris para re- conhecer e proteger os direitos de africanos vivendo sob jugo colonial. 1921 Organiza o segundo Pan- Ajrican Congress realizado sucessivamente em Londres, Bruxelas e Paris. As sessões realizadas em Londres, especialmente, criticam o colo- nialismo europeu, conclamando a defesa internacional dos direi- tos africanos. 35 REFERt:N( IAS I IIS rÓIUCAS Je,111 TOO11l('I'. Can« obra prima 1923 d,1 lucr.uur» aíro-amcricana que 11ti IIlll\lrl,O ,\ l larlem Renaissance. Nasce Malcolm X (Original- 1925 mente Malcolm Little). * Alain Lock.e (ed.), The New Negro: An l nterpretation (livro crucial da i larlem Renascence). * Scott Fitzge- rald, Tbe Great Gatsby. *Theodore Dreiser, An American Tragedy. * Manifestação da Ku K1ux K1an em Washington, com 40.000 participantes. Langston Hughes, Tbe Weary 1926 Il/llrs. 1,llllr~ Wcldon Johnson, God~ 1927 '1/ "l/rI'I!I/(I \'rvm Negro Sermons in I}, ,r, I.UIIIII,'( ( 1111111. "/ir Illllllld oJ thr 1928 1J,ll\i'lI (,111 W.E.B. OU BOIS Organiza o terceiro Pan-African Congress, realizado em Londres, Paris e Lisboa. Em dezembro, viaja pela primeira vez à África (Monrovia, Libéria). 1924 Visita. Serra Leoa, Guiné e Se- negaL Define posição contra Marcus Garvey com o artigo "A Lunatic or a Traitor" (número de maio de Crisis). Contribui com o ensaio "The Negro Mind Reaches Out" (so- bre a África contemporânea) para a antologia crítica The New Negro: An Interpretauon. Funda Krigwa Players, um grupo teatral no Harlem, Nova York, dedicado à temática da vida e cultura negra. Visita a União So- viética (cujo regime o impressio- na profundamente), Alemanha, Turquia, Grécia e Itália. Quarto Pan-African Congress, em Nova York. Ou Bois condena a intervenção norte-americana no Haití e a exploração econômica da Libéria. Sua filha Yolande casa-se com o poeta Countee Cullen no Har- lcrn, em cerimônia assistida por I{I'I'I;RÊNCIAS HISTÓRICAS N,ISCCMartin Luther King Jr. 1929 Quebra da Bolsa de Nova York, rnlcio da Grande Depressão. William Faulkner, The Sound and thr Fury. l.unes Weldon [ohnson, Black 1930 Mallhattan. Fundado movimento dos Muçulmanos Negros (Black Mt/slims), em Detroit. Em 1934, ,I seita passará a ser liderada por I:Iijah Muhammad, em Chicago. Nasce Toni Morrison, Prêmio 1931 Nobel da Literatura em 1993. Langston Hughes, The J#!ys oJ 19H White Folh. W.E.B. OUBOIS 3.000 pessoas (o casamento dis- solve-se em um ano). Publicação de Dark Princess: A Romance. 1933 Reavalia, em Tbe Crisis, posição quanto à segregação racial. Preo- cupado com os efeitos da De- pressão e pessimista diante das perspectivas de integração, advo- ga instituições negras separadas e medidas econômicas e sociais de auto-ajuda. Intensificam-se suas divergências com os demais membros da diretoria da NAACP. Renuncia como editor de The Crisis e também da diretoria da NAACP. Designado Chairman do departamento de sociologia da Aclanta University muda-se para Aclanta e viaja pelo Sul, co- letando dados para pesquisa. Recusa-se a freqüentar restau- 37 REFER~NCJAS HJSTÓRICAS W.E.B. DUBOIS rantes racialmente segregados. Dá início ao projeto Encyclopedia oJ tbe Negro, sendo escolhido co- mo editor-chefe. Distúrbios no Harlem, Nova 1935 Publicação de B/ack Reconstruaion. York. * George Gershwin, Porgy and Bess. Ama Bontemps, B/ack Thunder. * 1936 William Faulkner, Absalom, Absalom! Zora Neale Hurston, tu« Eyes 1937 Were Wiltching God. Viagens pela Europa e Oriente: Manchúria, China e Japão. De- nuncia perseguições anti-sernitas como bárbaras e cruéis. John Steinbeck, The Grapes oJ 1939 Publicação de Black Folk, Tben and Wrath. Now. Richard Wright, Native Sono Os Estados Unidos declaram 1942 guerra ao Eixo, integrando as forças dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Nasce Alice Walker (Pulitzer 1944 Prize com o romance The Color Purple, 1982). * A Corte Supre- ma decide que os direitos eleito- rais não podem ser negados aos cidadãos em razão da cor da pele, 1940 Publicação da autobiografia Dusk oJ Dawn. Encontro com o escritor Richard Wright. Primeiro negro a tornar-se membro do National lnstitute oJ Arts and Letters. Visita o Haiti. R Ir h,lI·tI Wright, Black Boy: A 1945 Colabora na organização do RI'i(IIt! 01 Childhood alld Youth. quinto Pan-Ajrican Congress, a rea- (K REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS . banida a segregação nas forças 1948 armadas (governo Truman). wendolyn Brooks, Annie Allen 1949 (poemas). lizar-se na Inglaterra. Encontro com Kwame Nkrumah, Jomo Kenyatta e outros líderes do mo- vimento pari-africano, pela inde- pendência do domínio colonial. 1947 Visita Jamaica, Granada, Trini- dad e Cuba. Vice-Presidente do Council oJ Ajrican Alfairs (até 1956). Come- ça a escrever regularmente para o National Guardian (até 1961). Participa da Cultural and Scientific Corference jor World Peace (Nova York). Preside painel com o es- critores Aleksandr Fadeev, Louis Untermeyer, EO. Matthiessen e Norman Mailer. Participa de congressos pacifistas, em Paris e 110scou. 1950 Como presidente da Peaa Information Center, coleta assina- turas de apoio ao Stockholm Appeal (pela proibição incondicional do uso de armas atômicas). A esposa Nina Gomer Ou Bois morre em Baltimore. Candidata- se ao Senado pelo American Labor Party. 1951 Indiciado, juntamente com qua- tro outros membros do Peaa Information Center, sob alegação de que o Centro funcionava como agência extra-oficial do Comitê do World Congress oJ the Difenders oJ 39 REFER~NCIAS HISTÓRICAS Ralph Ellison, Invisible Man (National Book Award for fiction no ano seguinte). [ames Baldwin, Go Tell it on the 1953 MOHlltain. C;i'O 11,01'.111 v. 130ardoJ Education oJ 1954 '/pl'rk", "01/111\: /I. Cone Suprema .11'1,.Ir. I'IlI' un.mirnidnde, gue a I" W.E.B. DUBOIS REFER~NCIAS HISTÓRICAS Peace e o sucessor deste, o World Peace Council. A pena poderia acarretar cinco anos de prisão e multa de US $ 10.000. É preso e libertado sob fiança. Casa-se com Shirley Graham em cerimô- nia assistida pela filha Yolande e pelo filho de Shirley, David, a quem ele adota. Compra casa (Brooklyn, Nova York) do dra- maturgo Arthur Miller. Rela- ções cada vez mais conflituosas com a NAACP e outros líderes negros. Finalmente absolvido, com os outros réus, por falta de provas de vínculos internacio- nais entre a Peace lrformation Center e quaisquer outras organi- zações estrangeiras. segregação racial em escolas pú- blicas é inconstitucional. Rosa Parks é presa em Mont- 1955 gomery, Alabama (1° de dezem- bro) por violar os regulamentos de segregação em ônibus (re- cusou-se a ceder o lugar a um passageiro branco). Cinco dias depois, começa o movimento de boicote aos ônibus no Alabama, e o reverendo Martin Luther King, Jr. ascende como líder ne- gro no Sul e no país. * James Baldwin, Notes oJ a Native 50n. Decisão da Corte Suprema torna 1956 ilegal segregação em transportes públicos. 1952 Posições políticas de esquerda aumentam seu afastamento de li- deranças afro-americanas. O De- partamento de Estado lhe recusa passaporte, alegando que sua via- gem ao exterior não é de interesse nacional. Elogia Stalin, em National Guardian. Participa da campanha fracassada para salvar Julius e Ethel Rosenberg da execução.É agraciado com o PrêmioInter- national da Paz, pelo World Peace Councii. Nasce Spike Lee. * Congresso 1957 aprova Voting Rights Act, criando omissão de Direitos Civis e am- pliando os poderes do Governo Federal (governo Eisenhower) para proteger os direitos dos ci- dadãos negros. * Tropas federais são enviadas a Little Rock, Arkansas,para controlar distúrbi- os contra a integração racial nas escolas. * Fundação da 50uthern Surpreso com o fim da segrega- ção nas escolas, escreve: "Vi o impossível acontecer:' W.E.B. DUBOIS Envia mensagem de apoio a Martin Luther King, Jr., durante o boicote de transportes públi- cos em Montgomery, Alabama. Convidado a proferir palestras na República Popular da China, é impedido de comparecer por ser-lhe negado o passaporte. De- safiaWilliam Faulkner a debater a segregação no Mississippi. Faulkner se recusa. Convidado por Kwame Nkru- rnah, primeiro-ministro de Gana, para as festas de independência do novo país. Não comparece por não conseguir passaporte. 41 REFERÊNCIAS HIST6RICAS Christian Coriference (SCLC), com Martin Luther KingJr. como pri- meiro presidente. * E. Franklin Frazier, B/ack Bourgeoisie:The rise 0/ a new middle tlass in the United States (publicado anteriormente na França). Lorraine Hansberry, A Raisin in 1959 the Sun. W.E.B. DUBOIS 1958 Comemoração de seu 90° ani- versário, a que comparecem 2.000 pessoas (Roosevelt Hotel, Nova York). Começa a reescre- ver sua autobiografia (a primeira versão, The Autobiography 0/ WE.B. Du Bois, fora publicada em 1968). Obtém finalmente o pas- saporte. Visita diversos países da Europa, inclusive a Alemanha Oriental, onde recebe o Douto- rado Honorário de economia pela Humboldt Universitãt (an- tes Friedrich Wilhelm). Envia discurso à Conferência Africana em Acra, Gana, conclamando os africanos a rejeitarem o capita- lismo ocidental e a aceitarem ajuda da União Soviética e da China. Encontro com Nikita Khrus- chev. Visita União Soviética, China, Suécia e Inglaterra antes de retomar aos Estados Unidos. Recebe o International Lenin Priee. Sit-ins em restaurantes públicos 1960 Visita Gana e Nigéria. segregados, a partir de Greens- boro (Carolina do Norte), logo espalham-se por todo o país. * 41. REFERÊNCIAS HIST6RICAS Ireze novas nações africanas pas- S:1m a fazer parte das Nações Unidas. Protestos multiplicam-se no 1961 Norte contra a segregação legali- zada em restaurantes, lavatórios, salas de espera em estações de ônibus e de trens no Sul. *Mor- te de Frantz Fanon, aos 36 anos. O estudante negro James Mere- 1962 dith matricula-se na University of Mississippi sob proteção das tro- pas federais (governo Kennedy). Quatro crianças negras são mor- 1963 tas em Birmingham, no Alaba- ma, quando segregacionistas bombardeiam a Sixteenth Street Baptist Church. *Marcha pelos di- reitos civis:March on Vftáshingtonfor Jobs and Freedom, a 28 de agosto, com 250.000 participantes, na noite anterior, morte de Ou Bois, em Gana. * O presidente Kennedy envia tropas federais para pressionar a Universidade do Alabama a aceitar o ingresso de dois estudantes negros. * O presidente John Kennedy é as- sassinado em Dallas, Texas (22 de novembro). W.E.B.DUBOIS Publicação de Worlds 0/ Color, úl- timo romance da trilogia The B/ack F/ame. A filhaYolande mor- re em Baltimore. Aceita convite de Nkrumah para mudar-se para Gana, retomando e dirigindo o projeto Encyclopedia Africana. Soli- cita admissão no Partido Comu- nista dos Estados Unidos, pou- co antes de deixar o país. Encontra Charles Chaplin na Suíça. Visita mais uma vez a China. Torna-se cidadão de Gana. Acompanha de longe os prepa- rativos para a marcha pelos direi- tos civis, emWashington. Morre em Acra na véspera do evento, 27 de agosto. Enterrado em Acra, com honras de estado, a 29 de agosto. 43 REFERtNCIAS HISTÓRICAS ivi! Righls Acl proíbe discrimina- 1964 ção em sindicatos e empregos, e estipula acesso igual a lugares e serviços públicos. * Martin Luther King Jr. recebe Kennedy Peace Prize e Prêmio Nobel da Paz. * Intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. * Distúr-bios no Harlem, Nova York. W.E.B. DUBOIS REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS Malcolm X assassinado no Harlem, Nova York. * Distúr- bios raciais em Los Angeles, 1965 Califórnia, com 34 mortes e mais de 3.000 feridos. ", Civil Rights Act: proteção aos direitos eleitorais dos negros no Sul. mais de 100 distúrbios raciais no país. * O Congresso proíbe dis- criminação em vendas e aluguéis, mais especificamente em progra- mas de habitação financiados pelo governo federal. * Robert Kennedy é assassinado em Los Angeles, California. * Publicação da antologia Black Fire, organiza- da por Larry Neal e Amiri Baraka (LeRoi Jones). Corte Suprema exige sistemas 1969 escolares unitários em todas as escolas do país. Fim da segrega- ção nas escolas. Stokely Carmichael (que popu- larizou a expressão black power) li- dera a Student Nonviolent Coordina- ting Committee e reorienta o grupo 1966 no sentido da libertação negra. * É fundado o radical Black Pantber Party. Toni Morrison, Tbe Bluest Eye. * 1970 Maya Angelou, I Know WIry the Caged Bird Sings. aso Loving v. Virginia: A Corte 1967 Suprema declara inconstitucio- nais as leis estaduais proibindo o casamento inter-racial. * Thur- good Marshall torna-se o pri- meiro juiz negro da Corte Su- prema. Distúrbios raciais em Ncwark e Detroit..e em outros ~1'.lnd('s centros. .. M.lrI in Luthcr King Jr. é assassi- 1068 n.u 111 ('111 Mcrnphis, Tennessee. N,I '('1I1.1Il.1s('gllinle à sua morte, \01 45 ~;::: o ~ •..•... ~ co eU ~ U ~ Cc, ~ ~~ eu ~ eU ~ -o•.. ~ ~ 1\iflexão Prévia Aqui estão encerradas muitas coisas que, se lidas com paciência, poderão mostrar o significado estranho de ser negro agora, ao al- vorecer do século xx. Esse significado não é desprovido de inte- resse para ti, Gentil Leitor; pois o problema do século XX é o problema da barreira racial. Peço-te, então, que recebas o meu livrinho com benevolência, examinando comigo as minhas palavras, perdoando os erros e as imperfeições em consideração à fé e à paixão que estão em mim, e buscando o grão de verdade nele escondido. Procurei esboçar neste livro, em linhas vagas e incertas, o mun- do espiritual em que dez milhões de americanos vivem e lutam. Em primeiro lugar, em dois capítulos tentei mostrar o que a Liber- tação significou para eles, e quais foram as suas conseqüências. Em um terceiro capítulo, assinalei o lento desenvolvimento das lide- ranças individuais e critiquei francamente o líder que é, hoje, o principal responsável pelos de sua raça. Em seguida, em dois ou- tros capítulos, fiz um rápido esboço dos dois mundos, dentro e fora do Véu, chegando, assim, ao problema central de instruir os homens para a vida. Aventurando-me em mais detalhes, examinei em dois capítulos as lutas dos milhões de camponeses negros e, em outro capítulo, procurei esclarecer as atuais relações entre os filhos do senhor e os filhos do escravo. 49 Abandonando, então, o mundo do homem branco, caminhei por dentro do Véu, erguendo-o para que o leitor possa vislumbrar seus recessos mais íntimos - o significado da sua religião, a pai- xão das suas dores humanas e a luta das suas maiores personalida- des. Ao final de tudo isso, incluí uma narrativa já bem conhecida, porém raramente escrita. Alguns desses meus pensamentos viram a luz sob outras confi- gurações. Pelo gentil consentimento em republicá-los aqui, em for- ma alterada e aumentada, devo agradecer aos editores de The Atlantic Monthly, The World~ Work, The Dial, The New World e de Annals oJ the American Academy oJ Political and Social Sciena. Antes de cada capítulo, há um compasso das Sorrow Songs - um eco de persistente melodia da única música americana que brotou das almas negras nopassado sombrio. E, finalmente, será preciso acrescentar que eu, que aqui falo, sou o sangue do sangue e a carne da carne daqueles que vivem dentro do Véu? WE. B. DuB. Atlanta, Geórgia, Z' defevereiro de Z903 " Sobre as 'Nossas 1.!!tas Gspirituais Oh água, voz do meu coração, chorando na areia, Derramando, durante toda a noite, um pranto tão triste, Deitado, a escutar, não compreendo A voz do meu coração no peito ou a voz do mar, Oh água, que implora o descanso, serei eu, serei eu? Durante toda a noite escuto a água a chorar. Água incessante, jamais haverá descanso Até que desça a última lua e baixe a maré derradeira, E o fogo do final comece a inflamar o oeste; E o coração, cansado e perplexo, chorará como o mar, Toda a vida chorando sem remédio, Como a água, durante a noite toda, que escuto a chorar. ARTHuR SYMONS pntre mim e o outro mundo paira, invariavelmente, uma G pergunta que nunca é feita: por alguns, por sentimentos de delicadeza; por outros, pela dificuldade de equacioná-Ia cor- retamente. Todos, no entanto, agitam-se em torno dela. Com um jeito um tanto hesitante aproximam-se de mim, olham-me com curiosidade ou compaixão e então, em vez de perguntarem direta- mente: Como é a sensação de ser um problema?, dizem: Na minha cidade, conheço um excelente homem de cor; ou: Também lutei em Mechanicsville;' ou: Esses ultrajes no Sul não fazem seu sangue ferver? Eu então sorrio, ou me interesso, ou reduzo o calor da mi- nha raiva, conforme a ocasião. Quanto à pergunta real: Como é a sensação de ser um problema?, raramente respondo uma palavra sequer. , no entanto, ser um problema é uma experiência estranha _ até mesmo para alguém que jamais foi outra coisa, a não ser talvez na primeira infância, ou na Europa. É nos primeiros dias da in- quieta meninice que a revelação surge subitamente, de uma só vez, por assim dizer. Lembro-me bem de quandoa sombra tomou con---1,1 de mim. Eu era uma coisinha de nada, lá longe nas colinas da 11,11.1111,\d,\ Guerra Civil cravada na Virgínia, a 26 de junho de 1862, nas proximi- ./,1./'" .1,1 ('1.1,).1.' de Mcchanicsville. Nova Inglaterra, onde o escuro rio Housatonic serpenteia entre as montanhas Hoosac e Taghkanic até o mar. Em uma pequenina es- cola de madeira os meninos e as meninas, não sei por quê, tiveram a idéia de comprar - a dez centavos o pacote - deslumbrantes cartões de visita para trocá-Ios entre si. A troca foi alegre até que uma menina alta, recém-chegada, recusou meu cartão. Recusou-o' peremptoriamente, com um olhar. Então me ocorreu, com uma certa urgência, que eu era diferente dos outros; ou talvez semelhan- te no coração, na vida e nos anseios, mas isolado do mundo deles por um imenso véu. Dali em diante, não senti qualquer desejo de rasgar esse véu, de perpassá-lo. A todos do outro lado incluí no mesmo desprezo e vivi acima dele, em uma região de céu azul e de grandes sombras errantes. Esse céu tornava-se mais azul quando eu derrotava meus colegas nos exames ou em uma corrida, ou mesmo quando espancava suas cabeças pegajosas. Ai de mim; com o passar dos anos todo esse belo desprezo começou a empalidecer; pois as palavras pelas 'quais eu ansiava, com todas as brilhantes oportuni- dades que encerravam, eram deles e não minhas. Mas eles não hão de guardar essas recompensas, eu disse; algumas, todas, eu as arran- caria das mãos. De que maneira exatamente isto seria feito, nunca pude decidir: talvez interpretando as leis, ou curando os doentes, ou contando as maravilhosas lendas que pairavam em minha mente - de algum jeito. Com os outros meninos negros, a luta não era tão furiosamente ensolarada: a juventude deles encolhia-se em in- sossa adulação, em silencioso ódio do mundo pálido à sua volta ou em irônica desconfiança de tudo o que fosse branco. Ou perdia-se em um grito amargo: Por que Deus fez de mim um pária e um es- tranho na minha própria casa? As trevas da prisão fechavam-se em torno de todos nós: paredes apertadas e refratárias para os alvís- simos, mas implacavelmente estreitas, altas e incomensuráveis para os filhos da noite, que deveriam labutar sempre e mais no escuro, resignados, ou esmurrar a pedra com suas débeis mãos, ou então 53 com perseverança, à beira do desânimo, contemplar lá em cima no céu a faixa de azul. epois do egípcio e do indiano, do grego e do romano, do teu tão e do mongol, o negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu e aquinhoado com uma visão de segundo grau neste mundo americano -, um mundo que não lhe concede uma verda- deira consciência de si, mas que apenas lhe permite ver-se por meio da revelação do outro mundo. É uma sensação estranha, essa cons- ciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir sua duplicidade - americano, e Negro: duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unica- mente impede que se destroce. A história do Negro americano é a história desta luta - este anseio por atingir a humanidade consciente, por fundir sua dupla individualidade em um eu melhor e mais verdadeiro. Nessa fusão, ele não deseja que uma ou outra de suas antigas individualidades se percam. Ele não africanizaria a América, porque a América tem muitíssimas coisas a ensinar ao mundo e à África. Tampouco des- botaria sua alma negra numa torrente de americanismo branco, porque sabe que o sangue negro tem uma mensagem para o mun- do. Ele simplesmente deseja que alguém possa ser ao mesmo tem- po Negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente bati- das na cara. Este, então, é o propósito da sua luta: ser um colaborador no reino da cultura, escapar da morte e do isolamento, administrar e li! ilizar o melhor da sua potência e do seu gênio latente. Tais pode- li" do corpo c da mente foram, no passado, estranhamente perdi- .11)'_ dl'sharatados ou esquecidos. A sombra de um poderoso passa- do negro adeja no conto de Etiópia, a Sombria, e do Egito, a Esfm- ge. Ao longo da história, supremacias isoladas de homens negros cintilam aqui e ali, como estrelas cadentes, e morrem às vezes antes que o mundo tenha avaliado corretamente o seu brilho. Aqui na América, nos breves dias desde a Libertação, a agitação do Negro, em muitos esforços hesitantes e duvidosos, tem feito muitas vezes com que a sua própria força perca a eficácia, dando a impressão de ausência de energia ou fraqueza. E no entanto não é fraqueza -, é a contradição de objetivos duplos. A luta de objetivos duplos do artesão negro - por um lado, escapar do desprezo que sentem os brancos para com uma nação de meros lenhadores e aguadeiros, por outro arar e pôr pregos e cavar a terra para uma horda faminta - só poderia resultar em fazer dele um pobre artífice, pois ele tem "apenas metade do coração em cada uma dessas causas. Em razão da pobreza e ignorância do seu povo, o sacerdote e o médico negro foram tentados pelo charlatanismo e pela demagogia; em razão da crítica do outro mundo, por ideais que o envergonharam de suas tarefas humildes. O pretenso savant negro foi confrontado pelo pa- radoxo de que o conhecimento de que seu povo necessitava já não era nenhuma novidade para seus vizinhos brancos, enquanto o co- nhecimento ministrado ao mundo branco era como grego para os do seu povo. O amor inato pela harmonia e pela beleza que levou as almas rudes do seu povo a dançar e a cantar não trouxe senão confusão e dúvida à alma do artista negro; pois a beleza que lhe foi revelada era a beleza da alma de uma raça que o público mais am- plo desprezava, e ele não podia articular a mensagem de nenhum outro povo. Esse desperdício de objetivos duplos, essa busca da satisfação de dois ideaisirreconciliáveis, forjou uma triste devasta- ção na coragem, na fé e nas atitudes de dez milhões de pessoas, levando-as com freqüência a cultuar falsos deuses e a invocar falsos meios de salvação, parecendo, às vezes, até torná-Ias envergonhadas de si próprias. 55 Gritem, oh crianças! Gritem, vocês estão livres! Pois Deus comprou sua liberdade! pontamento ainda mais amargo porque o ideal inalcançado era irrealizável, exceto para a ignorância simples de um povo humilde. A primeira década foi apenas um prolongamento da procura vã da liberdade, a bênção que parecia sempre esquivar-se do seu alcan- ce - como um torturante fogo-fátuo, enlouquecendo e enganan- do a multidão desnorteada. O holocausto da guerra, os terrores da Ku K1ux K1an,2 as mentiras dos carpet-baggers,3 a desorganização da indústria e os contraditórios conselhos de amigos e inimigos, dei- xaram o transtornado servo sem qualquer palavra de ordem além do antigo grito de liberdade. À medida que o tempo passava, entre- tanto, ele começou a agarrar-se a uma nova idéia. O ideal de liber- dade exigia para a sua realização meios convincentes e, estes, a Fifteenth Amendm'4'1he dava. (]) voto, que anteriormente vislumbra-.,- ra como um sinal visível de liberdade, ele agora considerava como o principal meio de conquistar e aperfeiçoar a liberdade que a guerra lhe havia parcialmente proporcionado. E por que não? Os votos não tinham trazido a guerra e emancipado milhões? Os votos não haviam dado ao liberto o direito à cidadania? Existiria alguma coi- sa impossível diante de um poder assim tão amplo? Um milhão de homens negros começou com zelo renovado a votar em si mesmos, para entrarem no reino. Assim a década se passou e veio a revolu- Sociedade secreta organizada no Sul dos EUA ao final da Guerra Civil (J 865), com o objetivo de reafirmar a "supremacia da raça branca" por meio de métodos terroristas. O nome completo da organização é Cavaleiros da Ku Klux Klan. A sociedade original foi dissolvida, sendo reativada na Geórgia, nos mesmos mol- des, em 1915. Ler a respeito: Behind lhe Mask oj Chivalry: The Making oj lhe Second Ku Klux Klan, de Nancy MacLean. Nova York/ Oxford: Oxford University Press, 1994. Nortistas que foram para o Sul após a Guerra Civil, em busca de vantagens políticas e econômicas. 15~ Emenda. Foram as seguintes as emendas à Constituição referentes à popula- ção negra, nos anos subseqüentes à Guerra Civil: 1865: 13" Emenda, proibindo a escravidão. 1868: 14" Emenda, concedendo direitos de cidadania aos libertos. 1870: 15" Emenda, destinada a proteger os direitos eleitorais dos libertos. No passado, nos dias do cativeiro, eles pensavam ver num certo acontecimento divino o fim de toda dúvida e desapontamento; poucos homens jamais adoraram a Liberdade com metade da fé inquestionável sentida pelo Negro americano durante dois séculos. Para ele, na medida em que pensava e sonhava, a escravidão era realmente a soma de todas as vilanias, a causa de todo sofrimento, a raiz de todo preconceito; a Libertação seria a chave para uma terra prometida de beleza mais doce do que aquela que se estende- ra ante os olhos de exaustos Israelitas. Nas canções e exortações expandia-se um refrão - Liberdade; em suas lágrimas e maldi- ções, o Deus a quem ele implorava tinha a Liberdade na mão direi- ta. Finalmente, ela chegou - repentina, temerosa, como um so- nho. Com um selvagem carnaval de sangue e paixão veio a mensagem em suas próprias cadências queixosas: Desde então, anos já se passaram - dez, vinte, quarenta; qua- renta anos de vida nacional, quarenta anos de renovação e desen- volvimento e, contudo, o escuro espectro continua a sentar-se em seu lugar de costume, na festa da Nação. Em vão bradamos diante deste problema, o nosso mais abrangente problema social: Assuma qualquer forma porém não esta, e meus nervos firmes Jamais hão de tremer! Â Nação ainda não se libertou dos seus pecados; o liberto ain- d,1 11;10 encontrou na liberdade a sua terra prometida. O que quer dI' hl1111 que lenha vindo nesses anos de mudança, a sombra de um 11I1l(lllldo dcsaponramento paira sobre o povo negro - um desa- 10 57 ç\io de 1876, deixando o servo cansado e semilivre.i perplexo, mas ainda inspirado. Lenta porém firme, nos anos seguintes, uma nova visão começou gradualmente a substituir o sonho de poder políti- co - um movimento forte, a ascensão de um outro ideal a orientar os desnorteados, uma outra coluna de fogo à noite, após um dia escuro. Era o ideal da "sabedoria dos livros"; a curiosidade, nascida da ignorância compulsória, de conhecer e testar o poder das letras cabalísticas do homem branco, o anseio de saber. Aqui, finalmente, parecia ter sido descoberta a trilha da montanha que levava a Canaã; mais longa do que a estrada da Libertação e da lei, íngreme e acidentada mas reta, conduzindo às alturas elevadas o bastante para se dominar a vida. Trilha acima, a guarda dianteira labutou lenta, pesada, obstina- damente. Só aqueles que observaram e guiaram os pés inseguros, as mentes nebulosas, a compreensão lerda dos alunos escuros dessas escolas sabem com que fé, com que dificuldade este povo lutou para aprender. Era um trabalho exaustivo. O frio estatístico regis- trou as polegadas de progresso aqui e ali, anotou também onde, aqui e ali, um pé escorregara ou alguém havia caído. Para os cansa- dos alpinistas, o horizonte continuava escuro, as névoas eram mui- tas vezes-frias, Canaã permanecia sempre obscura e longínqua. Se, no entanto, as paisagens não mostravam ainda qualquer meta, qualquer lugar de descanso, pouca coisa além de lisonjas e de críti- cas, a jornada ao menos dava ensejo à reflexão e ao auto-exame; ela transformou o filho da Libertação no jovem de nascente consciên- cia, conhecimento e respeito por si mesmo. Nas sombrias florestas de seus esforços, a própria alma elevou-se à sua frente e ele se viu na escuridão, como que através de um véu; no entanto, ele avistou em Du Bois refere-se, aqui, ao final da "Radical Reconstruction" e à crescente hege- monia de uma política racial conservadora. Os direitos civis dos negros, con- quistados com as Emendas 14 e 15 à Constiruição (ver nota anterior) seriam gradualmente suprimidos. 58 si uma tênue revelação do seu poder, da sua missão. Começou a ter um vago sentimento de que, para conseguir seu lugar no mundo, teria que ser ele mesmo e não um outro. Pela primeira vez procurou analisar o fardo que trazia às costas, aquele peso morto de degra- dação social parcialmente mascarado por um mal-esclarecido pro- blema negro. Sentiu sua pobreza: sem um centavo, sem lar, sem terra, ferramentas ou economias, entrara em competição com os ricos, os proprietários, os bem-preparados. Ser pobre é duro, mas ser uma raça pobre numa terra de dólares é a dureza mais extrema. Sentiu o peso da sua ignorância - não simplesmente das letras, mas da vida, dos negócios, das humanidades; a indolência acumu- lada, os subterfúgios e a falta de jeito de décadas e de séculos alge- mavam-lhe as mãos e os pés. E seu fardo não eram só a pobreza e a ignorância. A mancha rubra da bastardia, que dois séculos de siste- mático aviltamento legal das mulheres negras haviam estampado em sua raça, não significava apenas a perda da antiga castidade afri- cana, mas também o peso hereditário de uma massa de corrupção de adúlteros brancos, ameaçando até mesmo aniquilar o lar negro. A um povo assim prejudicado não se deveria pedir que compe- tisse com o mundo, mas sim permitir-lhe que dispusesse de todo o tempo e energia mental para tratar dos seus próprios problemas sociais. Mas, ai! enquanto os sociólogos listam com júbilo, na po- pulação de cor, os bastardos e as prostitutas, o Negro suarento, exaurido de trabalho, tem sua própria alma escurecida pela sombra de um profundo desespero. Os homens chamam essa sombra de preconceito, explicando-o em termos eruditos como a defesa
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