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Adriana Piva Naiane Loureiro dos Santos Filosofia Adriana Piva Naiane Loureiro dos Santos FILOSOFIA Belo Horizonte Novembro de 2015 COPYRIGHT © 2015 GRUPO ĂNIMA EDUCAÇÃO Todos os direitos reservados ao: Grupo Ănima Educação Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte deste livro, sem prévia autorização por escrito da detentora dos direitos, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravações ou quaisquer outros. Edição Grupo Ănima Educação Vice Presidência Arthur Sperandeo de Macedo Coordenação de Produção Gislene Garcia Nora de Oliveira Ilustração e Capa Alexandre de Souza Paz Monsserrate Leonardo Antonio Aguiar Equipe EaD Conheça a Autora Adriana Piva. Sou formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Educação pela UFMG. Sempre me interessei pela área de educação e cultura. Desenvolvi vários trabalhos nessa área, especialmente voltados para formação de professores e produção de materiais pedagógicos. Ainda durante a graduação, desenvolvi também uma pesquisa de iniciação científica, cujo tema era “Museus e escola - uma parceria promissora”, no Museu de Arte Contemporânea da USP. Já em Belo Horizonte, trabalhei como assessora de Ação Educativa da Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, onde, dentre outras atividades, coordenei a elaboração de um material de educação patrimonial, que foi distribuído para todos os municípios do estado. Participei ainda da elaboração e desenvolvimento de duas pesquisas sobre a cultura local em um distrito próximo a Diamantina: “As curas tradicionais populares de Milho Verde” e “Cantos Sagrados da região de Milho Verde”. Ambas as pesquisas geraram também a produção de materiais gráficos. E, finalmente, após ter realizado outros trabalhos ligados à educação e cultura, tive a oportunidade de atuar como professora no Centro Universitário UNA, onde venho lecionando as disciplinas Filosofia e Antropologia Cultural. E-mail: adriana.piva@ prof.una.br Conheça a Autora Naiane Loureiro dos Santos. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais; graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e especialista em Temas Filosóficos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Centro Universitário UNA nos cursos de Pedagogia e Psicologia. Integrante da Rede Nacional Observatório das Metrópoles da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 2000. Coordena a extensão na UNA em Betim. Atua como analista na Comissão Permanente de Avaliação da PUC Minas. E-mail: naiane.santos@prof.una.br. A disciplina de Filosofia busca estimular e subsidiar os estudantes na prática reflexiva e problematizadora do fazer filosófico, de modo a ressaltar a importância do pensamento crítico na formação humana e na construção da sociedade. Para isso, são apresentados importantes temas da história da Filosofia e as diversas maneiras como foram abordados. Com isso, espera-se que os educandos desenvolvam competências, tais como ler, analisar e contextualizar textos e discursos, filosóficos ou não, de forma crítica e fundamentada. Assim como também possam aprender a construir seus pensamentos e argumentos de forma estruturada e consistente, qualificando sua formação em qualquer área do saber. Para isso, discutiremos os seguintes temas: as principais correntes filosóficas na antiguidade, Idade Moderna e Contemporânea; filosofia e práxis, trabalho, cultura e ciência; fundamentos filosóficos contemporâneos articulados à ciência, ética, política e estética; filosofia como instrumento para ensinar a pensar; educação e pós-modernidade; a filosofia na escola; fundamentos ontológicos do ser social; a dimensão da sociabilidade, trabalho e alienação. O objetivo geral da disciplina se configura, portanto, em oportunizar a compreensão e a prática do exercício do filosofar, estimulando a reflexão sobre grandes temas da História da Filosofia (ética, estética, ciência, trabalho, emancipação, educação, identidade), de modo a explicitar a importância da filosofia na formação do pensamento ocidental e no enfrentamento de questões contemporâneas cruciais. Apresentação da disciplina UNIDADE 1 003 Filosofia como instrumento para ensinar a pensar 004 Percepção de mundo 007 Senso comum, ciência e conhecimento filosófico 011 Atitudes filosóficas 015 A filosofia na educação 017 Revisão 024 UNIDADE 2 026 Principais correntes filosóficas 027 O surgimento da filosofia 029 A filosofia antiga 030 A filosofia clássica 032 A filosofia pós-socrática 035 A filosofia medieval 037 A filosofia moderna 039 A filosofia contemporânea 044 Revisão 049 UNIDADE 3 052 Fundamentos filosóficos contemporâneos 053 Linguagem, comunicação e pensamento 055 Estética, cultura e sociedade 063 Caminhos e descaminhos do conhecimento científico 070 Tecnologia e sociedade 077 Revisão 084 UNIDADE 4 086 Experiência moral e os fundamentos da ética 087 Dilemas morais da vida cotidiana 089 Liberdade e dever moral 094 Ceticismo e relativismo ético na contemporaneidade 098 Revisão 105 UNIDADE 5 107 Filosofia e educação 108 Iniciando a conversa 110 A educação em Platão e Aristóteles 111 A educação em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino 117 Rosseau e a educação em Emílio 121 Educação na pós-modernidade 126 Educação: um ato político 130 Revisão 133 UNIDADE 6 135 Filosofia social e os fundamentos onto-antropológicos do ser social 136 Em que consiste a filosofia social? 137 A construção histórica da identidade humana 137 Trabalho: o fazer humano 140 Sociabilidade, trabalho e alienação 144 Revisão 155 UNIDADE 7 157 Filosofia política 158 A política e o homem 159 A política e as formas de poder 161 A democracia: promessa de emancipação política e liberdade humana 186 Revisão 192 UNIDADE 8 194 Discussões filosóficas contemporâneas na era da globalização 195 A filosofia no século XXI 197 Os efeitos da globalização nas sociedades e no mundo 199 Tecnologias da informação: otimismo, pessimismo e moderação 203 A condução das relações humanas entre povos e nações nas áreas política, econômica e social 208 Revisão 216 REFERÊNCIAS 218 Filosofia como instrumento para ensinar a pensar • Percepção de mundo • Senso comum, ciência e conhecimento filosófico • Atitudes filosóficas • A filosofia na educação • Revisão Introdução Grande maioria dos estudantes, quando se depara com o desafio de cursar a disciplina de Filosofia, imediatamente indaga: mas por quê? Para que estudar Filosofia se optei por um curso voltado para outra área profissional? Por outro lado, alguns profissionais da educação chegam a afirmar que os estudantes, de modo geral, não estão preparados para adentrar no universo da filosofia, pois a formação escolar e cultural deles é muito precária, impedindo-os de acessar, em sua plenitude, os conteúdos e métodos desenvolvidos ao longo da história. Isso exige alta capacidade de abstração, raciocínio e ordenação do pensamento – perfil não condizente com o público mediano das escolas de ensino médio e dos cursos universitários. Mas será tal afirmação verdadeira? Será que a Filosofia é conhecimento que deve se restringir a alguns poucos, possuidores de uma mente privilegiada, capazes de compreender e operar dentro de um alto grau de abstração? Falabretti e Oliveira (2012) abordam essa questão de uma maneira diferente. Para eles, em seu agir demais, o homem esqueceu de perguntar sobre o que é pensare equivocou-se nos descaminhos das parafernálias técnicas e nas maquinarias computacionais que, ilusoriamente, pensam no lugar do homem. O ser humano de hoje está cansado de pensar. Tornou-se preguiçoso, prefere ser tutelado pela máquina, pelos governos e pelos tecnocratas (...) (FALABRETTI e OLIVEIRA, 2012, p. 18) Nesse sentido, o pensar dependeria muito menos do desenvolvimento de maiores capacidades de raciocínio do que de uma atitude de abertura a esse pensar, de uma atitude de aceitação desse desafio tão desestabilizador que é a reflexão. Afinal, quando nos propomos a pensar livremente sobre a vida, sobre aquilo que sempre tomamos como verdadeiro, sobre nossas condutas e valores, corremos o grande risco de desestabilizar aquilo que sempre esteve tão acomodado em nós. Corremos o risco de ter que rever determinadas posturas para a manutenção de uma coerência entre nossas ideias e nossas ações; o risco, enfim, de termos que realizar nossas escolhas por nós mesmos, com autonomia. É a esses riscos que o pensar pode nos conduzir. E a Filosofia, por sua vez, “(...) tem um papel preponderante, por seu método e seu conteúdo, para organizar os sentidos do mundo e provocar o ser humano ao gesto revolucionário do pensar como condição para a realização de si mesmo enquanto ser humano.” (FALABRETTI e OLIVEIRA, 2012, p. 18). Então, é com essa perspectiva em vista que convidamos você a acompanhar esse desafio do pensar. Comecemos, pois, com algumas perguntas: você já pensou sobre o sentido da sua vida, sobre seu lugar no mundo? Já se inquietou com a forma como a sociedade aborda certas dimensões da vida? Já se perguntou por que pensamos de determinada forma e não de outra? Quais são suas inquietações? Pare um momento e reflita sobre seus pensamentos, sobre aquilo que o desinquieta – como diria o matuto, sobre aquilo que provoca sua reflexão. E tenha coragem! O filosofar, em alguma medida, já faz parte da sua vida, basta você se apropriar e potencializar esse processo, conhecer as origens de muitas de nossas ideias e se apossar, com autonomia, de seu próprio pensamento. Aceita o desafio? FILOSOFIA unidade 1 7 A Filosofia nasceu de uma inquietação. Uma inquietação diante da forma como o mundo era percebido e explicado, há cerca de 2500 anos atrás, na Grécia antiga. Antes do pensamento filosófico, vigorava, entre os gregos, o pensamento mítico, configurando e sendo configurado pela própria percepção de mundo dos indivíduos da época. Segundo Danilo Marcondes (2007), essa visão de mundo oferecida pelos mitos representava a maneira pela qual os gregos percebiam sua realidade, não precisando, portanto, de justificativas ou argumentos fundamentados para se legitimar. As lendas e narrativas míticas não são produto de um autor ou autores, mas parte da tradição cultural e folclórica de um povo. (...) Nesse sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento, à crítica ou à correção. (MARCONDES, 2007, p. 20) Além disso, o mito explica a realidade recorrendo ao sobrenatural, ao mistério, a uma realidade exterior ao mundo humano e natural, e a qual só os sacerdotes e iniciados poderiam interpretar (MARCONDES, 2007, p. 20). Esses eram os mestres da época, e sua palavra tinha autoridade. O que eles diziam ser a verdade tornava-se verdadeiro, sem receber objeção de ninguém. Esse cenário, que pressupunha uma aceitação incondicional ao mito, foi gerando insatisfação. Começaram a sentir falta de fundamentos e justificativas para a explicação do mundo, o que foi dando espaço para o surgimento daquilo que viria se chamar pensamento filosófico. Percepção de mundo A Filosofia nasceu de uma inquietação. FILOSOFIA unidade 1 8 Os primeiros filósofos buscarão uma explicação do mundo natural, não mais baseada nos mistérios de forças sobrenaturais, mas fundada em causas naturais, passíveis, portanto, de serem conhecidas. A explicação mágica do mundo começa a perder espaço para explicações racionais, ancoradas no espírito investigativo do homem. Como nos diz Marcondes (2007), “o mundo se abre, assim, ao conhecimento” (MARCONDES, 2007, p. 21). Os primeiros filósofos lançaram mão, então, de algumas noções que, “apesar das profundas transformações ocorridas, permanecem parte de nossa maneira de compreender a realidade ainda hoje (...) raízes de conceitos constitutivos de nossa tradição filosófico- científica” (MARCONDES, 2007, p. 24). Dentre essas noções, podemos citar as de: • causalidade: busca de explicação para os fenômenos naturais a partir de suas causas, que, nessa nova percepção de mundo, também estavam presentes na própria natureza; • cosmos: percepção do mundo natural enquanto ordenação racional (existência de princípios e leis), capaz, portanto, de ser conhecido pela racionalidade humana, ao qual corresponde; • logos: discurso racional, argumentativo, capacidade de explicar a natureza a partir da razão; • caráter crítico: as teorias não eram apresentadas de forma dogmática, como verdades absolutas, mas como argumentos que necessitam se justificar e são passíveis de crítica. Mas você deve estar se perguntando como uma transformação tão radical pode ter acontecido. Evidentemente isso não ocorreu de um dia para outro, nem tampouco da cabeça de uma mente genial, mas sim de um processo histórico, que incluiu o contato dos gregos com outras populações provenientes de colônias gregas, das quais FILOSOFIA unidade 1 9 se destacaram Éfeso e Mileto, e do Oriente. Essas cidades foram importantes portos e entrepostos comerciais, tornando-se ponto de encontro e convívio de povos de diferentes culturas, línguas, tradições, cultos e mitos. Esse contato com a alteridade, com o outro, com o diferente, naturalmente levou a uma relativização da percepção de mundo até então existente entre os gregos. Paralelamente a isso, esse espírito novo, que se propagava a partir das colônias, volta ao centro da civilização grega, gerando uma desestabilização das formas de organização sócio-políticas, e inspirando o surgimento da democracia ateniense. Nessa nova forma de organização política, a palavra, a capacidade argumentativa passa a dominar a cidade. Na democracia, todos os cidadãos têm direito a falar, e todas as falas têm o mesmo peso, não havendo, portanto, uma autoridade superior à capacidade de defender um ponto de vista a partir de argumentos racionalmente enunciados. Trata-se do princípio de isegoria. Da mesma forma, todos têm o mesmo direito de julgar os argumentos propostos e decidir qual considera mais verdadeiro ou apropriado (princípio da isocrítica). A essa nova forma de organização política, em que não há a figura de um soberano, de alguém que possua uma autoridade sobre os demais, correspondeu uma nova forma de abordar o conhecimento. Este não é mais proveniente de uma revelação dada a uma mente extraordinária, capaz de exercer um papel de autoridade sobre qualquer outro conhecimento, de tornar verdadeiro aquilo que enuncia. Da mesma forma que na democracia, também o conhecimento passa a ser direito de todos aqueles que se dispuserem a aprender e a conhecer, basta seguir o princípio racional da coerência entre os enunciados propostos. Não há mais um lugar de autoridade que seja detentor exclusivo do conhecimento, nem uma palavra que tenha, por princípio, mais autoridade que outra. E de outro lado, nenhuma fala deve ser aceita incontestavelmente,mas todas Nessa nova forma de organização política, a palavra, a capacidade argumentativa passa a dominar a cidade. FILOSOFIA unidade 1 10 devem ser passíveis de crítica, de análise e julgamento por parte do interlocutor (isocrítica). (...) a razão se resume em dois traços relacionados um ao outro, um negativo, o outro positivo. Negativamente, é a rejeição de toda autoridade, em particular de toda autoridade exterior ao julgamento de cada um (preconceitos, tradições, crenças a priori, discurso do mestre, texto sagrado etc.). Positivamente, é uma capacidade de universalização: uma conduta, uma crença, um discurso são geralmente qualificados de racionais se são universalizáveis, isto é, se dependem, cada um deles, apenas de sua faculdade discursiva, ou seja, de um discurso por direito enunciável e aprovável por todos. Ora, esses dois traços se encontram de uma ponta à outra da nova ordem do saber da segunda metade do século V (WOLFF, 1996, p. 68). Essas duas dimensões da razão, a negativa e a positiva, vão ser assumidas, cada uma delas, por figuras distintas. A dimensão negativa da crítica à tradição, ao mito, à autoridade será encarnada especialmente pelos sofistas, espécie de professores que ensinavam a falar bem, a argumentar, a convencer nos tribunais ou assembleias. Em um tal contexto, certamente a filosofia desempenharia um importante papel no exercício da cidadania. Se o logos era a palavra, era também o exercício da razão, do pensamento. Na democracia grega, era importante saber fazer uso da palavra nas assembleias, orientar-se corretamente no pensamento, ser capaz de argumentar e contra-argumentar. Para preparar os jovens para um bom desempenho como cidadãos, os sofistas ensinavam filosofia e retórica (GALLO e ASPIS, 2010, p. 91). De outro lado, encarnando particularmente a dimensão positiva da razão, aparecem os filósofos, físicos e historiadores, que buscam construir, sobre os escombros do pensamento mítico, um discurso universalizável sobre a realidade, possível de ser aceito por qualquer um. FILOSOFIA unidade 1 11 Mas eis que, nesse ínterim, surge a figura de Sócrates, criticando tanto o pensamento vindo da tradição, quanto o procedimento e os objetivos dos sofistas. Para ele, não bastava convencer o interlocutor, mas interessava-lhe efetivamente fazer avançar o conhecimento sobre as questões debatidas. O filósofo criou, então, uma nova forma de pensar, que busca a definição dos termos, antes de aderir ou não a eles. Sócrates inventa aquilo que hoje chamamos de conceito. Por meio do diálogo, Sócrates desconstrói o saber vindo da tradição, ou mesmo do senso comum, e procura alcançar com seu interlocutor aquilo que é essencial ao tema debatido, ou seja, aquela definição mínima a partir da qual se poderia alcançar um novo conhecimento ou um consenso em torno da questão debatida. Conceito é essa definição dada para determinada ideia. Para responder a uma pergunta, é preciso saber o que essa pergunta contém, perceber a ideia que nela se encontra, elaborar-lhe a representação. Em termos modernos: construir o seu conceito (CHATELET, 1994, p. 21). É em torno dessa atividade de produção de conceitos que a filosofia vai se firmar na condição de forma de pensamento própria, diferenciada do mito, do senso comum e da própria ciência, como veremos a seguir. Senso comum, ciência e conhecimento filosófico Segundo François Châtelet (1994), em uma célebre entrevista à Émile Noël, o conhecimento filosófico parte de perguntas simples, empíricas, próprias da vida cotidiana. A partir disso, procura-se “(...) construir uma argumentação que permita responder, não no plano da simples opinião, mas no plano do conceito” (CHÂTELET FILOSOFIA unidade 1 12 (1994, p. 23), à pergunta inicial. Nesse sentido, o conceito não é pura abstração, pois, ainda que seja uma construção racional, parte sempre de problemas experimentados, expressando coerentemente uma visão daquilo que é efetivamente vivido. A percepção de mundo proveniente do senso comum também parte dos desafios apresentados pela vida cotidiana. Porém esse saber não se constrói de forma sistematizada, não procura verificação – pelo contrário, é fragmentado (não se preocupa em estabelecer relações entre um fenômeno e outro), tornando-se muitas vezes incoerente diante de outros conhecimentos. Ele não se presta à generalização, constituindo-se, portanto, de forma bastante diferente da forma como os conhecimentos filosófico e científico se estruturam. Para os gregos, a “doxa”, ou seja, a opinião é produto das paixões, dos interesses, dos desejos, dos preconceitos e das circunstâncias dos indivíduos, não podendo se configurar, portanto, como um conhecimento estável, sistemático e universal. No entanto, não se pode dizer que o saber de senso comum seja, por princípio, incorreto ou inútil, pois que ele cumpre uma função prática, como um “(...) ‘saber de direção’, ou seja, um saber não- sistematizado, obtido sem qualquer planejamento rigoroso, no entanto, capaz de guiá-lo [o homem] na busca de elementos indispensáveis para sua sobrevivência” (SOUZA ,1995, p. 58). O pensamento conceitual diferencia-se também do pensamento mítico ou da opinião, uma vez que pode ser criticado, ou seja, para ser validado, deve passar pelo crivo da crítica radical, da crítica às suas raízes. É nessa abertura à crítica que o pensamento conceitual se constitui também como pensamento dialógico, pois não pretende construir verdades absolutas e inquestionáveis, como ocorria no pensamento mítico, mas produzir conceitos e argumentos passíveis de contestação e revisão. A percepção de mundo proveniente do senso comum também parte dos desafios apresentados pela vida cotidiana. FILOSOFIA unidade 1 13 Do mesmo modo, a ciência moderna, que foi criada no século XVII, ou seja, há mais de 2 mil anos depois da invenção da filosofia, busca se distanciar do pensamento mítico e do saber de senso comum – embora diversos conhecimentos produzidos pela ciência tenham sido construídos a partir da sabedoria popular. Um exemplo disso é o uso popular de plantas medicinais, que foi o ponto de partida para grande parte do conhecimento farmacológico existente hoje. No entanto, embora tanto a ciência quanto a filosofia configurem- se como conhecimentos sistemáticos, organizados, que buscam verificação e comprovação de suas hipóteses, há uma grande distinção entre essas duas formas de conhecimento. Vale lembrar que a ciência moderna surgiu com um objetivo bem definido: conhecer a causa dos fenômenos naturais para poder prever e interferir no curso deles, dominando e controlando a natureza a partir da racionalidade humana. O conhecimento científico tem início também a partir de situações- problemas para as quais o cientista lança algumas hipóteses iniciais de sua causa. A partir dessas hipóteses, ele passa a observar o fenômeno e coletar dados. À medida que suas hipóteses vão se mostrando consistentes, o cientista parte para a etapa de teste e confirmação de suas ideias. Isso é feito a partir de uma investigação controlada, normalmente realizada em laboratório (método experimental), onde o cientista procurará observar repetidamente o comportamento do fenômeno que estuda e verificar se sua hipótese é recorrente, se pode ser generalizada, ou seja, se é um fator relevante na determinação desse fenômeno. Uma vez confirmada, ele poderá tomar sua ideia inicial como uma lei explicativa da causa de um fenômeno. As leis científicas podem ser entendidas, portanto, como relaçõesde causa e efeito observadas recorrentemente entre dois ou mais acontecimentos. Essas relações tornam-se leis quando são generalizadas e tomadas como universais e necessárias, ou seja, sempre que ocorrer um determinado fenômeno será possível A partir dessas hipóteses, ele passa a observar o fenômeno e coletar dados. FILOSOFIA unidade 1 14 observar um mesmo efeito. Essas leis são, portanto, passíveis de gerar previsão para acontecimentos futuros, possibilitando a intervenção humana no controle da natureza. Já a filosofia não tem essa aplicação prática tão direta, o que leva muitos a se perguntarem o motivo da existência dela. Até o século XVII, era a base de todo o conhecimento ocidental. Mas, com o advento da ciência moderna, parte das preocupações da filosofia se desmembrou dessa matriz e passou a ser objeto de estudo do conhecimento científico. À filosofia restou as questões metafísicas, ou seja, aquelas que estão para além da física, do mundo material, tais como o que é a existência e quais são as possibilidades do conhecimento e da experiência humana. A metafísica É aquela que tem como objeto a investigação dos conceitos usados pelas ciências – espaço, tempo, quantidade, qualidade, causalidade substancialidade, universalidade, necessidade, etc (...). Estuda as maneiras pelas quais o sujeito do conhecimento, ou a razão teórica, põe a realidade, isto é, estabelece os objetos do conhecimento humano e da experiência humana (CHAUÍ, 1999, p. 234). Nesse sentido, a filosofia trabalha junto à ciência, problematizando os pressupostos do conhecimento e da prática científica, definindo os conceitos utilizados, investigando as finalidades e as prioridades às quais a ciência se propõe e as consequências das técnicas por ela utilizadas. Outro âmbito do conhecimento filosófico ou metafísico, que se manteve após o advento das ciências modernas, é constituído por questões acerca da ação humana, ou seja, sobre a ação moral, sobre como os homens orientam sua ação, não segundo determinações causais, como ocorre no âmbito da natureza, mas segundo finalidades ou deveres éticos. Neste sentido, podemos dizer que a filosofia busca: Já a filosofia não tem essa aplicação prática tão direta, o que leva muitos a se perguntarem o motivo da existência dela. FILOSOFIA unidade 1 15 (...) um sentido para as diversas experiências humanas, procurando dar um significado inteligível ao real que cerca todo e qualquer ser no mundo, a filosofia se caracteriza por um constante indagar, questionar, perguntar, cujas respostas se tornam objeto de novas indagações e questionamentos (SOUZA, 1995, p. 64). Você já imaginou como é viver uma vida na qual você não vê sentido? O que é viver sem se questionar sobre o porquê de determinadas experiências, sobre que caminhos seguir? Você se contenta em viver tal qual as gerações anteriores sempre viveram, conforme lhes disseram que era o jeito certo de viver? Aceita a ordem – ou talvez deveríamos dizer desordem – do mundo tal como se apresenta? Não? Então, talvez o pensar filosófico tenha alguma importância para você. Pois é justamente uma atitude crítica e problematizadora diante da vida que a filosofia nos ensina ter. Vejamos. Atitudes filosóficas Você já ouviu falar em dogmatismo? E em pensamento dogmático? Pois bem, o pensamento crítico-filosófico se ergue contra toda forma de dogmatismo, ou seja, toda vez que uma ideia, teoria ou pensamento é apresentado como absolutamente verdadeiro, acima de toda e qualquer crítica e como sendo válido para todos, podemos dizer que essa ideia, teoria ou pensamento está se configurando como dogmática. Segundo Marilena Chauí, em seu livro Convite à Filosofia (1999), Dogmatismo vem da palavra grega dogma, que significa: uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina, sem contestação. Por ser uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada, um dogma é tomado como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada, como acontece, por FILOSOFIA unidade 1 16 exemplo, na nossa vida cotidiana, quando, diante de uma pergunta ou de uma dúvida que apresentamos, nos respondem: “É assim porque é assim e porque tem que ser assim”. O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa. Autoritária, porque não admite dúvida, contestação e crítica. Submissa, porque se curva às opiniões estabelecidas. (CHAUÍ, 1999, p. 88) Há, portanto, dogmatismo no pensamento mítico, no senso comum, em algumas opiniões, no pensamento religioso e, às vezes, até mesmo em algumas visões da ciência, quando a tomam como único conhecimento válido e necessário, ao qual qualquer outra forma de percepção deve se submeter. A filosofia rompe com essa passividade do pensamento e assume aquela atitude típica da criança que está chegando ao mundo e se admirando com tudo o que vê, se permitindo perguntar o que é, por que é assim e como funciona qualquer coisa diante da qual se depara. Isso ocorre porque a criança ainda não está totalmente socializada e envolvida no sistema de valores e conceitos de sua sociedade. Ainda há entre ela e o mundo um certo distanciamento, uma admiração, um espanto diante de toda a novidade que o mundo lhe apresenta. Pois está aí, nessa atitude que para a criança é natural, espontânea e parte do seu processo de apropriação do mundo, o primeiro fundamento da filosofia. Quando Sócrates afirma “sei que nada sei”, ele nos indica que, para que ocorra o pensamento filosófico, temos que abordar o mundo radicalmente, ou seja, desde suas origens, como se nada soubéssemos sobre ele, temos que limpar o pensamento de qualquer verdade preestabelecida e deixar o pensamento livre para indagar o que quiser. A própria palavra “filosofia” vai indicar a busca pelo conhecimento, e não a posse dele. Etimologicamente, a palavra é formada por dois FILOSOFIA unidade 1 17 termos gregos, filos, amor, amizade; e sofia, que significa sabedoria. Assim, filosofia significa justamente “amor à sabedoria”. Segundo a tradição historiográfica, o termo “filósofo” parece ter sido utilizado, pela primeira vez, por Pitágoras, no século VI a.C., quando o príncipe Leonte lhe perguntou qual era a natureza da sabedoria com que agia. Pitágoras respondeu: sou apenas um filósofo. Ou seja, ele não se pensava como detentor de um conhecimento já pronto, mas como alguém que procura, que está em busca do saber, da sabedoria, da verdade. Essa atitude inicial a que os filósofos chamam de “espanto” e “admiração” configura-se justamente como a liberdade e a disposição de pensar sobre qualquer coisa sem pré-conceitos ou sem pré-noções. Mas se esses pensamentos estiverem errados ou forem limitados, seremos levados a reproduzir e perpetuar seus erros e/ou limitações, conduzindo o conhecimento a um círculo vicioso e repetitivo. E, ao mesmo tempo, sem a pretensão dogmática de ter alcançado um conhecimento pronto e definitivo, que não devesse mais ser questionado e aprofundado. Nesse sentido, podemos questionar a afirmação, presente no senso comum, de que, sem a filosofia, o mundo continuaria tal como era e dizer que, pelo contrário, a ausência do pensamento crítico- filosófico é que permitiria que o mundo fosse condenado a uma eterna repetição (SOUZA, 1995, p.64). Que tal pensar sobre isso! A filosofia na educação Quando abordamos a questão da Filosofia na educação brasileira, é justamente sua ausência que ressalta aos olhos. Já no período jesuítico, de 1553 a 1758, era destinada apenas aos colonos brancos e, desde então, a disciplina passa por um constante entra Quando abordamos aquestão da Filosofia na educação brasileira, é justamente sua ausência que ressalta aos olhos. FILOSOFIA unidade 1 18 e sai dos currículos educacionais, como podemos ver no texto de Correia (2009): Em 1891, por exemplo, Benjamim Constant não a privilegiou em sua reforma educacional. Já em 1901 a Reforma Epitácio Pessoa introduziu a disciplina de lógica no último ano do ensino secundário. A Reforma Rivadávia, de 1911, nem se referiu à Filosofia. Realizada em 1915, a Reforma de Maxiamiliano, previu cursos facultativos de lógica e história da filosofia, os quais nunca chegaram a se concretizar. Com a Reforma Rocha Vaz, em 1925, ocorrida sob o clima das ideias liberais, a Filosofia reapareceu como disciplina obrigatória no quinto e no sexto anos do ensino secundário. Em 1932 a Reforma Francisco Campos dividiu o ensino secundário em ciclos: o fundamental e o complementar, com cinco e dois anos respectivamente, sendo a Filosofia introduzida apenas no currículo do segundo ciclo. No período de 1942 a 1958 a Filosofia teve seus programas constantemente alterados. Em 1961, ano em que teve início a vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de número 4.024, por não atender a objetivos burocrático- tecnicistas da nova concepção de educação então em voga, a Filosofia foi excluída da educação básica. (CORREIA, 2009, p. 1) Durante o período de ditadura militar (1964 –1984), a disciplina de Filosofia, não por acaso, foi substituída por disciplinas como Educação Moral e Cívica. Ainda hoje, mesmo após a reabertura política do país, a implementação efetiva da Filosofia na educação formal ainda se coloca como desafio, e não como realidade. Mas, por que isso? Se retomarmos as últimas palavras do tópico anterior, talvez tenhamos alguma pista: o pensamento crítico nos estimula à mudança, a não aceitar aquilo que não está de acordo com nossos valores, necessidades e objetivos. No entanto, por razões óbvias, essa exclusão do pensamento crítico não pode ser assumida declaradamente, mas é justificada de várias formas. Uma delas é a afirmação de que os estudantes brasileiros da educação básica não estão preparados para enfrentar o desafio FILOSOFIA unidade 1 19 do pensar filosófico, restringindo seu ensino apenas a uma parcela diminuta da população, com acesso a colégios particulares voltados para uma faixa social de alto poder aquisitivo. Está aí uma expressão clara da já tão debatida divisão social do trabalho, na qual algumas classes sociais são educadas para assumir funções intelectuais ou de comando e outras são capacitadas para exercer atividades subordinadas, técnicas ou braçais, que não exigiriam o desenvolvimento de capacidades críticas mais apuradas. Ao determinar o tipo de informação e conhecimento que será destinado a determinado segmento social, estão sendo postos em prática o que Gallo e Aspis (2010) chamam de mecanismos sociais de controle. Nas sociedades de controle, que cada vez mais parecem materializar-se diante de nossos olhos, a tônica dominante é, portanto, o controle permanente sobre os fluxos de informação, sobre os padrões de comportamento dos indivíduos, gerando relações de poder mais difusas e descentradas, mas, mesmo por isso, mais abrangentes e mais eficientes nos processos de regulação social (GALLO e ASPIS, 2010, p. 101). Então, muitas vezes, quando ouvimos dizer, ou dizemos, que nem todos estão aptos, ou “não nasceram” para estudar Filosofia, talvez esteja sendo reproduzido aí essa forma de controle não declarada de nossas mentes e de nossos comportamentos. Talvez estejamos expressando esse condicionamento social que incute em nós a sensação de que não gostamos ou não temos habilidade para pensar, ou que a reflexão é algo secundário, supérfluo, próprio daqueles que já estão “com a vida ganha”. Deixar-nos levar por essa visão significa abrirmos mão de qualquer possibilidade de emancipação, assumirmos uma atitude de resignação e adaptação ao mundo tal como ele está. Ao fazermos FILOSOFIA unidade 1 20 isso, atrofiamos nossa capacidade crítica e, com isso, anulamo-nos enquanto sujeitos, capazes de intervir no rumo de nossa história, livres para recusar uma adaptação incondicional a uma realidade que consideramos injusta e desigual. Pelo contrário, compreender que o presente não é imutável, mas sim fruto da ação humana empreendida no passado (e que, portanto, poderia ter se configurado de forma diferente, assim como pode o futuro ser construído a partir de nossa ação no presente) é uma atitude – não mais de negação, mas de formação do sujeito como ser histórico. Essa apropriação crítica do presente, segundo Franklin Leopoldo e Silva (2001), faz parte do processo de formação e, (...) se a formação tem algo a ver com a educação, essa relação só pode se dar com uma educação crítica, uma educação que subverta os padrões adaptativos impostos pela desagregação histórica da experiência (SILVA, 2001, p. 34). Nesse sentido, problematizar o presente e pensar alternativas a ele é uma atitude que aponta para a emancipação humana. E, como afirmam Gallo e Aspis (2010, p. 102), “em épocas como esta, a tarefa crítica da filosofia é mais que necessária” Imaginamos ser possível um ensino de filosofia para jovens que seja uma arma de produção de sub- versões. Um ensino que se desenvolva de maneira tal que leve ao desenvolvimento de uma disciplina filosófica no pensamento. Além da forma de pensar da ciência, para a qual treinamos tão bem os jovens, além da lógica do mercado, de suas seduções, do marketing; para além das tradições e do senso comum, apresentar aos jovens e dar oportunidades de ensaiarem uma outra forma de pensar: a filosófica. (...) que tentem, eles também, criar composições filosóficas, usando conceitos filosóficos em resposta a seus problemas; o que vale dizer: ensaiar a criação filosófica. Criação de sub-versões. (...) que os faça sentir que cada um deles pode ser uma máquina de criação de versões, que a submissão não é a única saída (GALLO e ASPIS, 2010, p. 103). Assim, o ensino de Filosofia não seria um percurso frio e pouco significativo, devido à sua história, mas um exercício de apreensão Nesse sentido, problematizar o presente e pensar alternativas a ele é uma atitude que aponta para a emancipação humana. FILOSOFIA unidade 1 21 do pensar filosófico, materializado em suas várias escolas. Retomar a história da Filosofia ganha sentido, desse modo, ao possibilitar que o estudante entre em contato com o rigor conceitual, próprio da prática filosófica, mobilizado ao longo da história ocidental para pensar a existência humana. Segundo essa perspectiva, o ensino de Filosofia possibilita ao estudante a reelaboração de sua visão do mundo e de si mesmo a partir do pensamento crítico e problematizador. Contribui, portanto, para um verdadeiro processo de formação, de humanização, ou seja, um processo que leve o estudante a melhor compreender o mundo e a se situar nele, instrumentalizando-o para organizar seu projeto de vida e a definir com mais consistência e criticidade seus passos. Temos, assim, uma tríplice tarefa para a Filosofia em seu compromisso formativo: uma tarefa antropológica, uma tarefa epistemológica e uma tarefa axiológica, ou seja, cabe-lhe explicitar as reais coordenadas do existir humano, elucidar os processos de conhecimento e elaborar conceitos significadores e explicitar valores para o agir, assegurando que ele seja um agir humanizador (SEVERINO, 2010, p. 65). Nesse sentido é que a presença da Filosofia na educação pode contribuir para um processo de fortalecimentoda cidadania. Pois, se a educação pode servir para a reprodução de processos de acomodação e adaptação a uma estrutura social desigual e injusta, pode também contribuir para uma apreensão crítica da realidade, fornecendo instrumentos para um pensar livre e problematizador, que relacione a experiência cultural própria do estudante ao contexto mais amplo de formação do seu país, inserido, por sua vez, na história do Ocidente. E para aprender a pensar é preciso aprender a ler. Ler um texto, ler uma situação, ler o mundo. Mas, para bem ler, é preciso abandonar o ritmo apressado e desatento do nosso tempo e se deixar conduzir pelo objeto de leitura, como um artesão diante de FILOSOFIA unidade 1 22 sua matéria-prima. Para o filósofo Nietzsche, ler é ruminar, ou seja, extrair lentamente do texto todos os seus nutrientes, perceber suas nuances, tudo aquilo que ele pode nos ensinar, aquilo no que ele pode nos alimentar (FALABRETTI; OLIVEIRA, 2012, p. 20-21). Assim, ao ensino de Filosofia, que se compromete com o propósito de ensinar a pensar, está posto esse duplo desafio: ensinar a ler (textos, nossos pensamentos, o mundo...) para ensinar a pensar. E essa tarefa, às vezes, dói, pois, Ensinar é antes de tudo perturbar. Causar inquietação, insatisfação. Provocar. Muitas vezes chocar, causar indignação. (FALABRETTI; OLIVEIRA, 2012, p. 20-21) Diante do que discutimos anteriormente, que tal refletirmos sobre alguns pensamentos que povoam o nosso senso comum? Os provérbios ou os ditos populares, por exemplo. Você já pensou que, em cada um deles, podemos encontrar inúmeros pressupostos, ou seja, inúmeros conceitos sobre os quais não pensamos, mas estão subentendidos, dando base, subsídio para as afirmações contidas nesses pensamentos do senso comum, que muitas vezes nos guiam em nosso cotidiano? Pois bem, examinemos o dito popular: “a cavalo dado não se olha os dentes”. Que pressupostos estão subentendidos aí? Primeiramente, podemos assinalar o conhecimento muito difundido no meio rural sobre o quanto os dentes de um cavalo podem revelar sobre sua condição de saúde e idade. De outro lado, revela-se, nesse dito popular, uma atitude de passividade bastante própria da formação rural do Brasil, que passa pelo coronelismo ou pelo clientelismo, no qual aquele que se encontra em situação de subalternidade deve ser grato e se curvar ao patrão ou ao coronel diante de algo que lhe seja ofertado, ainda que essa oferta seja ultrajante ou inútil. O que mais poderíamos extrair desse dito popular? Que outros ditos ou provérbios você conhece e emprega no seu dia a dia? FILOSOFIA unidade 1 23 • De pensar morreu um burro. • Cada um por si e Deus por todos. • Amigos, amigos, negócios a parte. • Tempo é dinheiro. • Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. • As aparências enganam. • Bandido bom é bandido morto. • Preto quando não suja na entrada, suja na saída. • Mulher sem marido, barco sem leme. • Eles que são brancos que se entendam. • Onde há galo, não canta galinha. Numa primeira olhada por esses ditos tão comuns em nosso cotidiano, não é difícil perceber inúmeros valores presentes em nossa formação social, cultural, econômica, ética, política etc. Valores sobre os quais, muitas vezes, nunca pensamos, nunca avaliamos se estamos de acordo ou não, se queremos continuar reproduzindo. Uma boa dose de atitude crítica e de reflexão pode nos fazer rever esses padrões e nos permitir escolher conscientemente aquilo em que acreditamos, que realizamos, que somos. FILOSOFIA unidade 1 24 Revisão Discutimos, ao longo desta unidade, aquilo que historicamente vem sendo chamado de Filosofia, desde o seu surgimento na Grécia antiga, por volta do século V a.C. Apresentamos algumas das condições históricas e culturais que tornaram possível esse advento, tal como o contato dos gregos com outros povos, com valores e crenças muito diferentes ou o próprio surgimento da democracia ateniense. Vimos também quais eram as principais características dessa forma de perceber o mundo e produzir conhecimento, que nasceu naquele momento e se tornou a base do pensamento ocidental, em contraposição ao pensamento mítico e ao senso comum, até o advento da ciência moderna, no século XVII. Pontuamos algumas das principais diferenças entre mito, senso comum, filosofia e ciência, esclarecendo que, embora todos ofereçam respostas sobre nossas perguntas acerca do mundo em que vivemos e o nosso lugar nisso tudo, cada uma dessas formas de percepção promove uma abordagem diferenciada. A Filosofia funda-se sobre as atitudes de espanto e admiração, permitindo-se questionar tudo de forma radical, coerente e rigorosa. Trata-se de uma forma crítica e problematizadora de perceber o mundo. Por fim, abordamos como essa atitude de reflexão e criticidade, ainda hoje, sofre muitos entraves para se inserir de forma consistente nos processos educativos formais, uma vez que pode gerar uma perturbação na estabilidade do status quo. E é justamente nesse poder questionador e, portanto, renovador da Filosofia, que está a sua grande beleza. FILOSOFIA unidade 1 25 Filme: Sociedade dos poetas mortos. É um filme convencional, mas traz uma dimensão que pode nos interessar em nossa discussão presente, pois mostra a dificuldade encontrada por um professor questionador, que busca romper padrões de pensamento e conduta. Vídeo: Conhecimento, episteme, espanto. Em entrevista à UNIVESP TV, Franklin Leopoldo e Silva, filósofo e professor da USP, faz uma agradável e rigorosa introdução ao pensamento filosófico. Disponível em <http:// projetophronesis.com/category/videos-e-documentarios/page/8/>. Livro: Exercícios filosóficos, de Madeleine Arondel-Rohaut (trad. Paulo Neves). São Paulo: Martins Fontes, 2000. O livro apresenta vários temas presentes em nossas crenças de senso comum e procura abordá-los filosoficamente, mostrando ao leigo como é possível realizar o exercício do filosofar em nossa vida cotidiana. Blog: <https://projetophronesis.wordpress.com/>. Com o objetivo de divulgar e popularizar com rigor o conhecimento filosófico, o Projeto Phronesis reúne textos, livros, vídeos e informações referentes a várias áreas do conhecimento filosófico, além de disponibilizar materiais inéditos produzidos pelos próprios idealizadores do blog. Principais correntes filosóficas • O surgimento da filosofia • A filosofia antiga • A filosofia clássica • A filosofia pós- socrática • A filosofia medieval • A filosofia moderna • A filosofia contemporânea • Revisão Introdução Esta unidade tem como objetivo apresentar as principais matrizes filosóficas pertinentes a cada período histórico da filosofia; bem como refletir acerca dos diversos modos de percepção do homem e do mundo. Por fim, espera-se compreender a evolução do pensamento ocidental ao longo da história. Nesse sentido, o texto que se segue contemplará uma rápida explanação de cada período da história da filosofia – antiga/clássica, medieval, moderna e contemporânea. Compreender cada um desses períodos auxiliará no entendimento dos vários momentos e contextos históricos a que foi submetido o pensamento filosófico, além de fornecer subsídios que nos possibilitem realizar uma leitura mais coesa da atualidade. O esforço de um resgate histórico nos proverá uma noção acerca das características das sociedades, das concepções e principais ideias que vigoraram ao longo dos séculos no pensamento da humanidade, por isso, permite compreender melhor as consequências que nos trouxeram ao século XXI. Vale ressaltar que esseesforço remete, em especial, à filosofia ocidental a partir de seu nascimento, na Grécia antiga. Não será tratado nessa disciplina aspectos históricos relativos à história da filosofia oriental. Esta não assume papel menos importante, contudo, trata-se de um tema que merece um estudo mais aprofundado, não sendo objeto de contemplação da ementa dessa disciplina, do curso em questão. A história da filosofia abraça a história oficial da humanidade que pretende, mediante a uma proposta investigativa, estudar o que os homens fizeram, pensaram e sentiram enquanto seres sociais e humanos. Nesse sentido, o conhecimento histórico ajuda na compreensão da história da filosofia, pois baseia-se também na história do homem enquanto ser que constrói seu tempo e que se desenvolve na cultura, tornando-se sujeito capaz de partilhar da experiência acumulada e transmitida pelos seus semelhantes. Outro ponto relevante visa perceber o próprio processo da filosofia, considerando suas trajetórias ocasionadas pelas mudanças históricas e suas diversas interpretações da realidade, que conduziram correntes e teorias filosóficas distintas ao longo da história. Por fim, espera-se com essa unidade desenvolver a leitura contextualizada de textos e discursos filosóficos. Ao mesmo tempo estimular a capacidade de análise e interpretação de fatos históricos, instigando o pensamento crítico, inclusive do próprio contexto vivencial ou histórico-social que estamos vivenciando. Boa viagem! unidade 2 29 FILOSOFIA Convidamos você agora a realizar uma viagem no tempo. Para esta unidade da disciplina, sugerimos recordar as aulas de História geral da Humanidade. Até mesmo aquele livro que usamos no ensino médio durante as aulas de história ou as enciclopédias que ficavam, normalmente, guardadas nas estantes na casa de parentes mais velhos. Esses livros podem nos ajudar a nos situarmos melhor no tempo e no espaço. A história da filosofia inicia-se na Antiguidade, na Grécia antiga, por volta dos séculos V e VI antes de Cristo, no considerado período Homérico (devido a Homero, poeta que narra o surgimento da Grécia a partir da guerra de Troia). Tal momento histórico grego foi marcado por uma ascensão social, cultural e política que contribuíram enormemente com o avanço da filosofia. Naquela época a Grécia demonstrava uma admirável capacidade intelectual, geradora de um extraordinário progresso nas diversas áreas do conhecimento, das artes, da literatura, da música e da política. As navegações e o comércio com outros povos, a produção e capacidade artística, a linguagem, juntamente com a moeda e a tecnologia (de arquitetura e militar), e o nascimento da polis (cidade-estado), e de novas formas políticas trouxeram aos gregos muita vontade de conhecimento. Isso ocasionou num espaço profícuo para o desenvolvimento da filosofia, que pretendia levantar questionamentos acerca da existência humana e de pensar o mundo. Como é de notar, não foi por acaso que a filosofia surgiu na Grécia antiga, muitos fatores convergiram para esse lugar, abrindo espaço para o debate e o “pensar” filosófico. O surgimento da filosofia Para esta unidade da disciplina, sugerimos recordar as aulas de História geral da Humanidade. unidade 2 30 FILOSOFIA A filosofia antiga A filosofia antiga pode ser dividida em três fases: • Período pré-socrático, • Período clássico, que remete aos sofistas e a Sócrates, e seus seguidores, conhecido também como período socrático, • Pós-socrático ou helenístico. O período pré-socrático considera os filósofos anteriores a Sócrates, que viveram na Grécia por volta do século VI a.C., por exemplo, Tales de Mileto, Heráclito, Anaximandro, Xenófanes e Parmênides, considerados os precursores da filosofia ocidental. Você já ouviu falar de algum desses nomes? Nesse período, a filosofia era utilizada para explicar a origem do universo e das coisas ao redor. Os pré-socráticos buscavam um princípio que deveria estar presente em todos os momentos de tudo que existia. Essa fase caracteriza-se pela preocupação com a natureza e o cosmo, ao mesmo tempo em que inaugura uma mentalidade com base na razão e não mais na tradição mítica. As escolas jônica, eleática, atomista e pitagórica são as principais desse período. Os filósofos da Jônia, como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito, buscavam explicar o mundo pelo desenvolvimento de uma natureza comum a todas as coisas e em eterno movimento. Já os pensadores de Eléa, como Parmênides e Anaxágoras, ao contrário dos filósofos de Jônia, dizem que o ser é unidade e imobilidade e que a mutação não passa de aparência. Para Parmênides, o ser é ainda completo, eterno e perfeito. Os atomistas, como Leucipo e Demócrito, sustentam que o universo As escolas jônica, eleática, atomista e pitagórica são as principais desse período. unidade 2 31 FILOSOFIA é constituído de átomos eternos, indivisíveis e infinitos, reunidos aleatoriamente. O chamado pitagorismo, que remete ao filósofo Pitágoras, representa a primeira tentativa de apreender o conteúdo inteligível das coisas, preocupando-se com sua essência. Pitágoras afirma que a verdadeira substância original é a alma imortal, que preexiste ao corpo e no qual se encarna como em uma prisão, como castigo pelas culpas da existência anterior. É interessante percebermos que esses filósofos também eram físicos, químicos, matemáticos etc. Ou seja, nesse momento da história, a filosofia e o conhecimento científico andavam lado a lado. Seguem alguns pensamentos filosóficos suscitados nessa época pelos filósofos supracitados: “A coisa de maior extensão no mundo é o universo, a mais rápida é o pensamento, a mais sábia é o tempo e mais cara e agradável é realizar a vontade de Deus. ” Tales de Mileto (MAGGE, 1999, p.13) “Nada é permanente, exceto a mudança. ” Heráclito (MAGGE, 1999, p.14) “Não poderias entrar duas vezes no mesmo rio. ” Heráclito (MAGGE, 1999, p.15) “Princípio dos seres é o ilimitado. Pois donde a geração é para todos os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo. ” Anaximandro de Mileto (MAGGE, 1999, p.13) “A Evolução é a Lei da Vida, o Número é a Lei do Universo, a Unidade é a Lei de Deus. ” Pitágoras (MAGGE, 1999, p.15) unidade 2 32 FILOSOFIA “O ser é o não ser; o não ser é o nada; o nada, é tudo. ” Parmênides (MAGGE, 1999, p.17) A filosofia clássica A filosofia clássica destaca-se pela preocupação metafísica ou pela procura do ser, e pelo interesse político em criar a cidade harmoniosa e justa, que tornasse possível a formação do homem e da vida de acordo com a sabedoria. Ela remete principalmente aos sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles. Vale ressaltar que esse período corresponde ao apogeu da democracia na polis grega e é marcado pela hegemonia política de Atenas. Os filósofos chamados de sofistas, como Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos, são educadores pagos pelos alunos para fornecerem ensinamentos sobre filosofia, cuja preocupação era formar o cidadão da nova democracia ateniense. Com eles, a arte da oratória e da retórica - falar bem e de maneira convincente a respeito de qualquer assunto - alcança grande desenvolvimento, contribuindo ainda mais para o desenvolvimento da política. Conhecido pelo testemunho de Platão, Sócrates não deixou nenhum documento escrito e dedicou-se à procura metódica da verdade identificada com o bem moral. Com ele,o conhecimento filosófico desloca-se da natureza para o homem. Seu método divide-se em duas partes. A ironia, do grego eironéia - perguntar, uma forma de forçar seu interlocutor a reconhecer que ignora o que pensava saber; e a descoberta da ignorância, na tentativa de extrair do interlocutor a verdade contida em sua consciência, método denominado por ele como maiêutica Você sabia que Sócrates foi comparado a Jesus Cristo, devido às semelhanças de suas vidas? Os dois não deixaram nada escrito, Vale ressaltar que esse período corresponde ao apogeu da democracia na polis grega e é marcado pela hegemonia política de Atenas. unidade 2 33 FILOSOFIA foram condenados à morte e acusados de serem uma ameaça à sociedade devido ao poder de persuasão sobre as pessoas. E também ambos eram considerados homens sábios. Platão, discípulo de Sócrates, afirmava que as ideias são o próprio objeto do conhecimento intelectual, a realidade é metafísica. Para melhor expor sua teoria, utiliza-se de uma alegoria, o mito da caverna, no qual a caverna simboliza o mundo sensível, a prisão, os juízos de valor em que só se percebem as sombras das coisas. O exterior é o mundo das ideias, do conhecimento racional. Feito de corpo e alma, o homem pertenceria simultaneamente a esses dois mundos. A tarefa da filosofia seria libertar o homem da caverna, do mundo das aparências para o mundo real, das essências. Platão gostava de escrever suas teorias em forma de diálogo. O nome Platão, na verdade, era o apelido dado a esse filósofo que chamava-se Aristócles. Outra curiosidade diz respeito à expressão “amor platônico”, cuja a interpretação é equivocada no que se refere ao conceito de amor, na filosofia de Platão. O amor para Platão é falta, ou seja, o amante busca no amado a ideia - verdade essencial - que não possui. Nisso, supre a falta e torna-se pleno, de modo dialético, recíproco. Já o filósofo Aristóteles buscou aperfeiçoar e sistematizar as descobertas de Platão e Sócrates desenvolvendo a chamada lógica dedutiva clássica, que postula o encadeamento das proposições e das ligações dos conceitos mais gerais para os menos gerais. Para Aristóteles, a lógica consiste num instrumento para atingir o conhecimento. Ao contrário de Platão, ele afirma que a ideia não possui uma existência metafísica, só existindo no ser real e concreto. Os escritos de Aristóteles perfazem grande número de volumes (constam 150, aproximadamente) e abordam assuntos diversos, desde ciência, política e ética até crítica literária. Desses trabalhos, O exterior é o mundo das ideias, do conhecimento racional. unidade 2 34 FILOSOFIA cerca de dois terços desapareceram. Muitos ficaram sob posse da Igreja Católica. Muitos ficaram perdidos por séculos, por vezes em mais de uma ocasião, e muitos foram traduzidos para o árabe. As frases que se seguem são de autoria de filósofos que viveram no período da filosofia socrática: “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.” Protágoras (MAGGE, 1999, p. 18) “A arte da persuasão ultrapassa todas as outras, e é de muito a melhor, pois ela faz de todas as coisas suas escravas por submissão espontânea e não por violência.” Górgias (REALE, 1990, p. 78) “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância.” Sócrates (MAGGE, 1999, p. 20) “Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente.” Sócrates (MAGGE, 1999, p. 22) “Conheça a ti mesmo”. Sócrates (MAGGE, 1999, p. 20) “O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê.” Platão (MAGGE, 1999, p. 24) “O homem retrata-se inteiramente na alma; para saber o que é e o que deve fazer, deve olhar-se na inteligência, nessa parte da alma na qual fulge um raio da sabedoria divina.” Platão (MAGGE, 1999, p. 26) “O homem, por natureza, é um animal político.” Aristóteles (MAGGE, 1999, p. 32) “A politica não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça.” Aristóteles (MAGGE, 1999, p. 38) unidade 2 35 FILOSOFIA A filosofia pós-socrática Este período da história da filosofia ocorre até o início da Era Cristã e abarca as correntes filosóficas chamadas: ceticismo, epicurismo e estoicismo. Elas refletem a decadência política e militar da Grécia naquele momento histórico que antecedia a Idade Média. A corrente filosófica ceticista afirma que as limitações do espírito humano não permitem conhecer nada seguramente. Assim, acredita na suspensão do julgamento e da permanência da dúvida. Ao recusar toda afirmação dogmática, prega que o ideal do sábio é o total despojamento, o perfeito equilíbrio da alma, que nada pode perturbar. Já os epicuristas destacam o prazer obtido pela prática da virtude, o bem. O prazer consiste no “não-sofrimento” do corpo e na “não- perturbação” da alma. Epicuro acreditava que a filosofia é o melhor caminho para alcançar a felicidade, que para ele significava libertar- se dos desejos. Assim, a filosofia com Epicuro passa a ter uma intenção prática e não somente a finalidade de investigação dos fundamentos últimos do mundo e do homem. De acordo com os estóicos, como Sêneca e Marco Aurélio, o homem deve permanecer indiferente às conjunturas exteriores, como dor, prazer e emoção, submetendo sua conduta focada na razão, mesmo que isso lhe traga dor e sofrimento, e não prazer. Por fim, já no século III da Era Cristã, Plotino pensa o neoplatonismo na perspectiva histórica do Império Romano. As doutrinas neoplatônicas têm grande influência sobre os pensadores cristãos em vários momentos da chamada Idade Média. O prazer consiste no “não- sofrimento” do corpo e na “não- perturbação” da alma. unidade 2 36 FILOSOFIA Seguem abaixo alguns pensamentos e frases famosas de filósofos pós-socráticos: “A primeira tarefa do filósofo é derramar a vaidade, pois é impossível ao homem aprender quando julga saber tudo.” Epiteto (Estóico) (MAGGE, 1999, p. 47) “O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário.” Sêneca (Estóico) (MAGGE, 1999, p. 46) “Só há um caminho para a felicidade. Não nos preocuparmos com coisas que ultrapassam o poder da nossa vontade. ” Epicuro (Epicurista) (MAGGE, 1999, p. 44) “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais. ” Epicuro (MAGGE, 1999, p.45) “Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la...” (EPICURO, 1999, p. 21) “Se um homem busca tirar da vida boa algo que está além dela, não é a vida boa que ele está buscando. ” Plotino (Neoplatonista) (MAGGE, 1999, p. 30) unidade 2 37 FILOSOFIA A filosofia medieval Este período histórico é marcado por uma forte influência do cristianismo e, com isso, da forma de pensar centrada nos dizeresda Igreja Católica Apostólica Romana. Historiadores afirmam que o conhecimento da humanidade nesse período da história parou de evoluir, voltando a se desenvolver apenas após o Renascimento. A preocupação da época centrava-se apenas em converter “pagãos” ao cristianismo e unir a fé à razão. Nesse período destaca-se a filosofia de Santo Agostinho, que retoma o platonismo, identificando o mundo das ideias de Platão com o mundo das ideias divinas. Para ele, o homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas. Essa corrente filosófica ficou denominada como Patrística, por ser elaborada pelos padres da Igreja Católica. A posteriori, já entre os séculos V e XIII, predomina-se a corrente denominada Escolástica, que abarca o conjunto das doutrinas oficiais da Igreja, influenciadas pelos pensamentos de Platão e Aristóteles. Os representantes dessa corrente filosófica estão preocupados em conciliar razão e fé, e desenvolver a discussão, a argumentação e o pensamento discursivo. O filósofo que mais se destacou nessa época foi Santo Tomás de Aquino. A decadência da Igreja Católica, no final da Idade Média, foi marcada pelas obras da chamada “Santa Inquisição”, composta por um tribunal eclesiástico destinado a defender a fé católica. Sua função era vigiar, perseguir e condenar aqueles que fossem suspeitos de praticar outras religiões e de ousarem ir contra os dizeres e pregações da Igreja. Além disso, censurava toda a produção cultural, bem como resistia fortemente a todas as inovações científicas. O fato era que a Igreja temia que as ideias inovadoras conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade Papal. A preocupação da época centrava-se apenas em converter “pagãos” ao cristianismo e unir a fé à razão. unidade 2 38 FILOSOFIA A seguir encontram-se alguns pensamentos desses dois filósofos da Idade média: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria, se não existisse em Vós. Porém, chamastes-me, com uma voz tão forte, que rompestes a minha Surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes Perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós. Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi, no desejo da Vossa Paz. ” (SANTO AGOSTINHO, 2002, p. 27 - Conf. X) “...Dê-me, Senhor, agudeza para entender, capacidade para reter, método e faculdade para aprender, sutileza para interpretar, graça e abundância para falar, acerto ao começar, direção ao progredir e perfeição ao concluir...” São Tomás de Aquino (REALE, 1990, p. 570) “A alma é conhecida pelos seus atos.” São Tomás de Aquino (MAGGE, 1999, p. 59) unidade 2 39 FILOSOFIA A filosofia moderna O período de transição entre a Idade Média e Moderna foi assinalado pelo Renascimento, que objetivava a retomada de valores da cultura greco-romana clássica. O pensamento renascentista defendia a ideia de que a razão era uma manifestação do espírito humano que colocava o indivíduo mais próximo de Deus. Assim, exercer a capacidade de questionar consistia em fazer uso do dom que foi dado por Deus, dando razão a ele. Tal movimento cultural, artístico e científico atingiu as camadas urbanas da Europa Ocidental entre os séculos XIV e XVI, principalmente na Itália. Foi essencial para o abandono de ideias medievais que ainda estavam presentes, porém não deve ser visto como uma ruptura radical entre a Idade Média e a Idade Moderna. Além disso, a decadência do feudalismo, as grandes descobertas da ciência e a ascensão da burguesia assinalam a emergência de um novo momento da história. A Idade Média ficou marcada por uma filosofia dogmática e submissa à Igreja, já a proposta da filosofia moderna é profana e crítica. Os filósofos dessa época eram leigos que procuraram pensar de acordo com as leis da razão e do conhecimento científico, caracterizando o antropocentrismo - que considera o homem o centro do universo – e, consequentemente, o humanismo, em detrimento ao teocentrismo medieval. Na Idade Moderna a razão era a única forma aceita de se chegar ao conhecimento. Filósofos como René Descartes, conhecido pela frase famosa “Penso, logo existo” e criador do cartesianismo, inaugura a corrente filosófica conhecida como racionalismo, que privilegia a razão como o fundamento de todo o conhecimento exercer a capacidade de questionar consistia em fazer uso do dom que foi dado por Deus, dando razão a ele. unidade 2 40 FILOSOFIA possível. Uma especificidade desse pensador é que, ao contrário dos antigos pensadores que partiam da certeza, Descartes parte da dúvida metódica, que põe em questão todas as supostas certezas. Descartes desenvolveu, no âmbito da matemática, a Geometria Analítica. Nesse sentido, pela primeira vez na história da matemática, conseguia-se integrar totalmente a Álgebra à Geometria, abrindo um novo campo de explorações que alcançaria vários desdobramentos nos séculos seguintes. Além do racionalismo, o empirismo e o idealismo também são correntes da filosofia moderna. Tais doutrinas remetem diretamente à ascensão da burguesia e à Revolução Industrial. Outros filósofos de destaque dessa época são: o inglês Francis Bacon, que esboça o empirismo, corrente filosófica que considera o conhecimento como resultado da experiência sensível; e Thomas Hobbes, John Locke e David Hume, que seguem essa mesma linha de pensamento. Thomas Hobbes e John Locke contribuíram muito, também, no âmbito do desenvolvimento da política. Suas concepções sobre o papel do Estado ajudaram a desvinculá-lo da religião. Na Idade Média, o poder político do clero encontrava-se equiparado ao poder da nobreza, ou, em alguns lugares, até maior. Tanto o racionalismo cartesiano como o empirismo inglês preparou o terreno para o movimento que se tornou conhecido como Iluminismo no século XVIII. O filósofo Immanuel Kant almejou uma síntese dessas duas correntes filosóficas a partir de uma análise crítica da razão. Para ele, o conhecimento só existe a partir dos conceitos de matéria e forma, ou seja, a matéria vem da experiência sensível e a forma é dada pelo sujeito que pensa. Dizem que, ao ver fisicamente Kant, muitos tinham impressão de fragilidade. O filósofo era magro, tinha um pequeno porte, peito e ombros Suas concepções sobre o papel do Estado ajudaram a desvinculá-lo da religião. unidade 2 41 FILOSOFIA delicados e estreitos. Para assistir a uma audiência pública ou particular desse filósofo, era necessário estar uma hora de antecedência no local das aulas, pois sempre lotava. Os cursos que Kant ministrava eram apresentados por ele com graça e humor. Já a corrente chamada de Idealismo, muito forte na região da Alemanha, incidia na interpretação da realidade exterior e material a partir do mundo interior, subjetivo e espiritual. Para os filósofos dessa corrente, como o alemão Hegel, somente o sujeito pode conhecer o objeto, ou seja, o que se conhece sobre o homem e o mundo é produto das ideias, representações e conceitos elaborados por cada um de nós. Objetivando explicar a realidade em constante processo, Hegel estabelece uma nova lógica, intitulada como dialética. Ele defende a ideia de que todas as coisas e ideias morrem, e essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico. No final da Idade Moderna, mais especificamenteinício do século XIX, vigora a corrente positivista do filósofo francês Auguste Comte, a qual considera o fato positivo (aquele que pode ser medido e controlado pela experiência) como o mais adequado para estudo. Tal teoria é retomada no século XX, como o “neopositivismo” do austríaco Ludwig Wittgenstein. Ainda no século XIX, influenciado pelos ideais de Hegel, o alemão Karl Marx utiliza o método dialético e cria o chamado materialismo histórico, que considera o modo de produção da vida material como condicionante da história. A tradição marxista propõe formular os princípios de uma prática política voltada para a revolução. Marx desenvolve o socialismo científico como uma alternativa ao sistema capitalista moderno. Marx foi um grande pensador e é estudado em várias áreas do conhecimento, como ciências exatas, humanas e sociais. Foi considerado um determinista da história, que conseguiu prever as consequências devastadoras do capitalismo para humanidade. A tradição marxista propõe formular os princípios de uma prática política voltada para a revolução. unidade 2 42 FILOSOFIA Algumas curiosidades sobre a vida de Marx: recusava-se a trabalhar em algo que não tivesse relação com o que acreditava. Possuía uma caligrafia muito ruim. Ele, em sua juventude, era romântico, pouco cuidadoso com os gastos, apreciador das noites. Somente três dos seus seis filhos sobreviveram. Já na transição da Idade Moderna para a Contemporânea surge Friedrich Nietzsche, filósofo alemão que elaborou uma crítica aos valores tradicionais da cultura ocidental, como o cristianismo, considerando-o decadente e contrário à criatividade e à espontaneidade humana. Para ele, a tarefa da filosofia seria de libertar o homem desse tradicionalismo. Muitas pessoas conhecem Nietzsche pela sua frase “Deus está morto”. Vale ressaltar que não se trata do Deus vivo que é imortal, mas do Deus da metafísica, das representações religiosas e culturais, feitas apenas para acalmar as pessoas e impedir que se confrontem com os desafios da condição humana. Para esse filósofo, esse Deus é somente uma representação e uma imagem da sociedade moderna, por isso ele diz que é bom que morra para liberar o Deus vivo. Assim, não devemos confundir imagem de Deus com Deus como realidade essencial. Enfim, o fim do século XIX foi marcado por uma filosofia pragmática a qual defendia o empirismo como teoria do conhecimento e o utilitarismo como a busca da obtenção da maior felicidade possível para o maior número de pessoas no campo da moral. Também foi marcado por um século de muitos problemas sociais devido ao avanço do capitalismo industrial e pelo crescimento desordenado das cidades. Tais problemas fizeram emergir as ciências humanas e sociais, como a sociologia, a antropologia a ciência política, a psicologia etc. Assim, não devemos confundir imagem de Deus com Deus como realidade essencial. unidade 2 43 FILOSOFIA As frases abaixo são de autoria de filósofos modernos: “Penso, logo existo.” Descartes (Racionalista) (MAGGE, 1999, p. 86) “Nossas ações são as melhores interpretações de nossos pensamentos. ” John Locke (Empirista) (MAGGE, 1999, p. 105) “A beleza das coisas existe no espírito de quem as contempla. ” David Hume (Empirista) (MAGGE, 1999, p. 112) “O homem é o lobo do homem. ” Thomas Hobbes (Empirista) (MAGGE, 1999, p. 80) “Não se aprende bem a não ser pela experiência. ” Francis Bacon (Empirista) (MAGGE, 1999, p. 75) “Ciência é conhecimento organizado. Sabedoria é vida organizada. ” Kant (Idealista) (MAGGE, 1999, p. 132) “A filosofia nos dá o conhecimento do universo como uma totalidade orgânica, totalidade que se desenvolve a partir do conceito e que, nada perdendo do que faz dela um conjunto, um todo cujas partes estão unidas pela necessidade, a si mesma regressa e no regresso a si mesma forma um mundo de verdade. ” Hegel (Idealismo) (MAGGE, 1999, p. 163) “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo. ” Marx (MAGGE, 1999, p. 167) “A história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes. ” Marx (MAGGE, 1999, p. 170) “A religião é o ópio do povo. ” Marx (MAGGE, 1999, p. 169) unidade 2 44 FILOSOFIA “Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milénio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra. ” Nietzsche (MAGGE, 1999, p. 172) A filosofia contemporânea A filosofia no início do século XX foi marcada por uma forte tradição marxista. Muitos pensadores, como o húngaro Gyorgy Lukács, o italiano Antonio Gramsci, os franceses Henri Lefebvre, Louis Althusser e Michel Foucault, e os filósofos ligados à Escola de Frankfurt buscaram reinterpretar o marxismo. Outra corrente dessa época foi a conhecida como fenomenologia, que teve início com o filósofo tcheco Edmund Husserl. O mesmo buscou aproximar o racionalismo do empirismo, objetivando desenvolver um estudo descritivo dos fenômenos. Para tanto, ele observou que as coisas percebidas pela consciência são diferentes das coisas em si mesmas. Seus seguidores são Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e os filósofos do existencialismo, como Jean-Paul Sartre, que consideram a existência humana o primeiro objeto da reflexão filosófica. Devido ao avanço da ciência e da tecnologia, demonstrando maior domínio do homem sobre a natureza, a corrente filosófica conhecida como epistemologia ganha destaque quando propõe um estudo crítico de princípios, hipóteses e resultados das ciências. Outra corrente filosófica contemporânea diz respeito ao estruturalismo. Tal corrente surge a partir de duas ciências humanas: a linguística, com o suíço Ferdinand de Saussure e a antropologia, com Claude Lévi-Strauss. O estruturalismo parte do pressuposto de que existem estruturas comuns a várias culturas unidade 2 45 FILOSOFIA que necessitam ser pesquisadas, independentemente dos fatores históricos. Os pensamentos que se seguem são atribuídos aos pensadores da filosofia contemporânea: “O Estado é a organização económico-política da classe burguesa. O Estado é a classe burguesa na sua concreta força atual. ” Gramsci (REALE, 1990, p. 832) “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. ” Foucault (REALE, 1990, p. 951) “Morrer não é um acontecimento; é um fenômeno a ser compreendido existencialmente. ” Heidegger (MAGGE, 1999, p. 212) “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. ” Sartre (MAGGE, 1999, p. 216) “Nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo. ” Sartre (REALE, 1990, p. 605) Chegamos ao fim dessa unidade, mas a história da filosofia não se finda nunca, pois o homem sempre irá buscar o conhecimento na tentativa de dar explicações para os acontecimentos, de compreender o comportamento humano e de compreender a finalidade da existência humana. Para tanto, a filosofia é disciplina comum a todas as áreas do conhecimento, sendo ensinada em todos os cursos de nível superior e também no ensino médio. Na verdade, como disse o filósofo alemão Imannuel Kant, “não se ensina filosofia, mas a filosofar”. O exercício filosófico requer uma postura critica, reflexiva e analítica Na verdade, como disse o filósofo alemão Imannuel Kant, “não se ensina filosofia, mas a filosofar”. unidade 2 46 FILOSOFIA perante o mundo.
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