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Educação em Direitos Humanos 
 
 
Frei Betto1
 
 
 Vivemos, hoje, sob o paradoxo de popularizar o tema direitos humanos 
e, ao mesmo tempo, deparar-nos com hediondas violações desses mesmos 
direitos, agora transmitidos ao vivo, via satélite, para as nossas janelas 
eletrônicas. O que assusta e preocupa é o fato de, entre os violadores, 
figurarem com freqüência instituições e autoridades – governos, polícias, 
tropas destinadas a missões pacificadoras etc – cuja função é zelar pela 
difusão, compreensão e efetivação dos direitos humanos. 
 
 No Congresso Internacional sobre Ensino dos Direitos Humanos, 
celebrado em Viena, em 1987, Amadou-Mahtar M’Bow, diretor geral da 
UNESCO, sublinhou que “ensinar cada um a respeitar e fazer respeitar os 
próprios direitos humanos e os dos demais, e possuir, quando for necessário, a 
coragem de afirmá-los em quaisquer circunstâncias, inclusive nas mais 
difíceis: tal é o principal imperativo do nosso tempo”. 
 
 A falta de um programa sistemático de educação em direitos humanos 
na maioria dos países signatários da Declaração Universal favorece que se 
considere violação o assassinato, mas não a tortura policial empregada com 
método de intimidação e investigação: o roubo, mas não a miséria que atinge 
milhares de pessoas; a censura, mas não a intervenção estrangeira em países 
soberanos; o desrespeito à propriedade, mas não a sonegação do direito de 
propriedade à maioria da população. 
 
Caráter de educação em direitos humanos 
 
 Um programa de educação em direitos humanos deve visar, em 
primeiro lugar, à qualificação dos próprios agentes educadores, tanto 
instituições – ONGs, Igrejas, governos, escolas, partidos políticos, sindicatos, 
movimentos sociais, empresas etc. – quanto pessoas. Aqueles que se dispõe a 
aplicá-lo devem superar as concepções idealistas e positivistas de direitos 
humanos. Numa sociedade secularizada e pluralista, tais direitos não podem 
 
1 Frei Betto, frade dominicano e escritor, foi membro do conselho da Fundação Sueca para 
os Direitos Humanos em 1992-1997. 
depender apenas de uma visão religiosa, metafísica ou abstrata, como se 
fossem derivados da vontade divina ou da razão natural. Não se pode esquecer 
que, em seu advento nos séculos XVII e XVIII, os direitos humanos surgiram 
como “expressão das lutas da burguesia revolucionária, com base na filosofia 
iluminista e na tradição doutrinária liberal, contra o despotismo dos antigos 
Estados absolutistas”. Uma vez no poder, a burguesia, tendo o Estado sob seu 
controle, procurou garantir-se contra a ameaça representada pela emergente 
pobreza coletiva proclamando a universalidade dos direitos, extensivos a todas 
as pessoas e povos, quando de fato não se questionavam a desigualdade de 
situações e a mudança mesma das causas da desigualdade. 
 
 Ainda hoje, em muitos países a lei consagra os direitos alienáveis de 
todos, sem distinção entre ricos e pobres, confinada, porém, à mera 
formalidade retórica que não assegura a toda a população uma vida justa e 
digna. Pouco vale as constituições de nossos países proclamarem que todos 
têm igual direito à vida se não são garantidos os meios materiais que tornem 
efetivo esse direito. Como assinala Marilena Chauí, “a prática de declarar 
direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio para todos os 
homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, que não é um 
fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A declaração de 
direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem social e 
política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos 
exigindo o consentimento social e político”. 
 
 Os direitos fundamentais não poder se restringir aos direitos individuais 
enunciados pelas revoluções burguesas do século XVIII. A liberdade não 
consiste no contratualismo individual que sacraliza o direito de propriedade e 
permite ao proprietário a “livre iniciativa” de expandir seus lucros, ainda que à 
custa da exploração alheia. Num mundo assolado pela miséria de quase 
metade da população, o Estado não pode intervir de modo a assegurar a todos 
os direitos sociais, econômicos e culturais. O mero reconhecimento de um 
direito inerente ao ser humano não é suficiente para assegurar seu exercício na 
vida daqueles que ocupam uma posição subalterna na estrutura social. Há 
direitos de natureza social, econômica e cultural – como ao trabalho, à greve, à 
saúde, à educação gratuita, à estabilidade no emprego, à moradia digna, ao 
lazer etc – que dependem, para sua viabilização, da ação política e 
administrativa do Estado. Neste sentido, o direito pessoal e coletivo à 
organização e atuação políticas torna-se, hoje, a condição de possibilidade de 
um Estado verdadeiramente democrático. 
 
Pedagogia para os direitos humanos 
 
 Na América Latina, costuma-se dizer que, nas escolas, a pedagogia se 
distingue entre o método Piaget e o método Pinochet ... Isto quer dizer que os 
métodos de ensino nem sempre são verdadeiramente pedagógicos. Por vezes 
são opressivos, inibem potencialmente, reprimem a criatividade e tornam o 
educando covarde frente à realidade da vida. 
 
 Isto vale para uma sociedade que pretenda assegurar o respeito aos 
direitos humanos. Em princípio, eles devem ser expostos pela força de lei. 
Mas isto não basta, como a experiência demonstra. Em quase todos os países 
signatários da declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela 
ONU, tais direitos, ainda que figurem na letra da lei, continuam sendo 
desrespeitados. Há torturas a prisioneiros, censura à imprensa, invasão da 
privacidade pessoal, discriminação racial e social, adoção da pena de morte 
etc. Portanto o aspecto objetivo de uma legislação que garante os direitos 
humanos precisa ser complementado pelo aspecto subjetivo, uma educação 
para os direitos humanos, de modo a torná-los um consenso cultural 
enfatizado no sentir, no pensar e no agir das pessoas. Essa educação deve 
priorizar, sobretudo aquelas pessoas que têm, por dever profissional, o papel 
de aplicarem as leis que asseguram pleno respeito aos direitos humanos. 
 
 Toda pedagogia centrada no objetivo de tornar o educando um sujeito 
social e histórico deve caracterizar-se por agudo senso crítico. Neste sentido, 
não se podem adotar os artigos da Declaração Universal dos Direitos 
Humanos como oráculos divinos, ideologicamente imparciais e imunes a 
correções e aperfeiçoamentos. Eles refletem uma cosmovisão culturalmente 
condicionada pelos valores predominantes no Ocidente de pós-guerra. Há 
muito de utopia, distante da realidade. Daí a importância de uma pedagogia 
para os direitos humanos que parta do debate do próprio documento da ONU. 
 
 Por exemplo, o artigo 1º reza que “todos os homens nascem livres e 
iguais em dignidade e direitos”. Hoje, diríamos: homens e mulheres. O fato é 
que homens e mulheres nascem dependentes. Como mamíferos não podemos 
prescindir do cuidado de nossos semelhantes nos primeiros anos de vida. E 
estamos longe de nascer iguais em dignidade e direitos: basta verificar a 
situação das mulheres em países do Oriente, dos indígenas na América Latina, 
dos refugiados nos países da África ou dos imigrantes em certos países da 
Europa. 
 
 A crítica construtiva à Declaração Universal deve resultar não apenas 
num aprimoramento da carta da ONU, mas, sobretudo na modificação das leis 
vigentes e na conscientização das autoridades responsáveis por sua aplicação, 
do presidente ao guarda da esquina, do primeiro-ministro ao policial do bairro. 
 
 Educar para os direitos humanos é buscar o consenso cultural que iniba 
qualquer ameaça aos direitos da pessoa. Direitos individuais e sociais. Torna-
se imprescindível falar também no direito de participação nas decisões 
políticas e econômicas; no direito decontrole sobre o setor bélico de nossas 
nações; no direito de preservação da boa fama diante de abusos da mídia e, 
inclusive, no direito a uma programação saída nos veículos de comunicação de 
massa. 
 
 Uma questão delicada é como politizar a educação para os direitos 
humanos sem incorrer em sua participação. Os direitos humanos têm caráter 
político, pois dizem respeito à nossa convivência social. Mas, como direitos 
universais, devem ser implantados e respeitados dentro do princípio - que é 
também um direito – de autodeterminação dos povos. Portanto, não se devem 
utilizar os direitos humanos como meio de impor a outros povos os nossos 
modelos políticos. Eles não podem se transformar em arma de 
neocolonialismo, o que seria, no mínimo, um paradoxo. Tais direitos devem 
ser respeitados sob a monarquia e a república, no regime presidencialista e 
parlamentarista, no capitalismo ou no socialismo. Por isso, é preciso começar 
a falar em direitos humanos e direitos dos povos, como direito divino à 
independência, direito à escolha do seu próprio regime político, direito de 
usufruir de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito de não ser 
colonizado nem explorado por nações, organismos ou empresas estrangeiras. 
 
 Nenhum direito estará assegurado se, em primeiro lugar, não forem 
oferecidas garantias ao direito fundamental: o direito à vida. Não apenas o 
direito de nascer mas também de viver em liberdade e dignidade, o que 
pressupõe, no mínimo, que esteja socialmente assegurado o tripé alimentação-
saúde-educação. 
 
 Como implementar a educação para os direitos humanos? Que 
pedagogia adotar? Ora, vivemos num mundo plural, onde se fala em 
globalização, enquanto seitas fanáticas e movimentos neonazistas botam lenha 
na fogueira da xenofobia. Uns aplaudem a queda do Muro de Berlim enquanto 
outros denunciam a crescente desigualdade entre o Norte e o Sul do planeta, 
erguendo ainda mais a muralha da segregação social. Há quem proclame o 
“fim da história” ao lado daqueles que regatam as utopias libertárias. Sob a 
crise dos paradigmas, a razão moderna assiste à crescente emergência dos 
movimentos esotéricos; há quem prefira a astrologia, o tarô e o I Ching às 
análises de conjuntura e às prospectivas estratégicas. 
 
 Neste contexto de fragmentação paradigmática, onde a cultura cede 
lugar ao mero entretenimento atrelado ao consumismo, falar em direitos 
humanos e direitos dos povos torna-se um pressuposto básico de uma 
educação que vise a modificar as relações entre pessoas e grupos, dentro de 
uma ética da tolerância e do respeito ao diferente. Isto não significa, 
entretanto, administrar uma sociedade anárquica, em que o direto de um 
termina quando começa o do outro. Os direitos grupais, étnicos e coletivos 
devem estar em harmonia com os direitos individuais, de tal modo que a 
defesa destes represente uma consolidação daqueles. Ou seremos capazes de 
admitir o direito do seresteiro da madrugada de incomodar o sono de todos os 
moradores da rua, o direito do fazendeiro ampliar suas terras para dentro de 
uma reserva indígena e o direito de uma nação impor seu modelo econômico a 
todo um continente? Não se devem, pois, confundir direitos com privilégios, 
nem admitir que a ganância material se sobreponha à indelével sacralidade da 
vida humana. 
 
 Este ideal só será alcançado quando escolas, Igrejas, instituições 
religiosas e movimentos sociais, Estados e empresas privadas se tornarem 
agentes pedagógicos capazes de educar pessoas e grupos numa atitude que os 
faça sentir, pensar e agir segundo o pleno respeito aos direitos humanos e aos 
direitos dos povos. Como fazer isso talvez represente um desafio que só pode 
ser afetivamente respondido pela metodologia de educação popular combinada 
com o poder de difusão dos veículos de comunicação de massa. Que tal uma 
simulação pedagógica onde um branco se sinta na situação de um negro 
discriminado pela cor de sua pele? Ou uma comunidade européia subjugada, 
num exercício pedagógico, a prática e costumes próprios de uma comunidade 
africana ou indígena? Quando nos situarmos no lugar do outro, isto representa 
uma mudança em nosso lugar social e se reflete na mudança de nosso lugar 
epistêmico. Do lugar do outro ninguém retorna o mesmo. O difícil é estender 
pontes a essa ilha egocêntrica que nos faz ver o mundo e as pessoas pela ótica 
de nossa geografia individual ou grupal – e este é exatamente o papel de uma 
pedagogia centrada nos direitos humanos. 
 
Metas para um programa educativo 
 
 1. Um programa educativo em direitos humanos deve englobar os direitos 
da liberdade (proclamados pelas revoluções burguesas do século XVIII), os 
direitos da igualdade (exigidos pelas conquistas sociais do século XIX) e os 
direitos da solidariedade (reconhecidos no século XX após a Segunda 
Guerra). Entre os direitos da solidariedade dastacam-se o direito à paz, ao 
desenvolvimento, à autodeterminação, ao ambiente natural ecologicamente 
equilibrado, à paridade nas relações comerciais entre países e à utilização do 
patrimônio comum da humanidade. 
 
Nos países subdesenvolvidos, as pessoas têm alguma idéia do que seja 
liberdade, mas nem sequer atingiram ainda a modernidade no que diz respeito 
à idéia de igualdade. No Brasil, o último país a liberta seus escravos na 
América Latina, após 320 anos de escravidão – o que hoje perdura de modo 
oficioso, atingindo cerca de 16 mil trabalhadores -, ainda é parte de nossa 
cultura não reconhecer a humanidade do outro. A identidade do brasileiro 
passa pelo ter mais, e não pelo ser mais. A propriedade é o fundamento da 
cidadania. Aquele que se encontra destituído de posses é tido também como 
desprovido de direitos. 
 
Nos países desenvolvidos, com freqüência a idéia de liberdade 
confunde-se com a de privacidade, legitimando o egoísmo hedonista e o 
consumo opulento, respaldada pela convicção de que são “naturais” ou 
inelutáveis as desigualdades entre povos, nações, etnias, classes e pessoas. 
 
 2. A educação em direitos humanos deve humanizar, o que significa 
suscitar nos educandos capacidade de reflexão e de crítica, bem como a 
aquisição do saber, o acolhimento do próximo, a sensibilidade estática, a 
capacidade de encarar os problemas da vida, o cultivo do humor etc. 
 
Neste sentido, cabe ao programa educativo decantar o discurso 
consagrador das injustiças, das desigualdades e das discriminações. Deve 
permitir ao educando o confronto com as diferentes representações do real. 
Como afirma o cardeal Paulo Evaristo Arns, de São Paulo, “a educação é 
sempre ideológica e o ensino politicamente neutro é apenas um mito da 
filosofia liberal, a qual exclui as atividades políticas das demais atividades da 
sociedade civil”. 
 
3. Como recomenda Paulo Freire, a educação em direitos humanos deve 
ser dialógica, adotando o educador posturas que levem à colaboração, união, 
organização, síntese cultural e reconstrução do conhecimento. Devem-se 
superar comportamentos comuns na educação tradicional, tais como sedução, 
manipulação, concorrência, invasão cultural e imposição de valores e de 
conhecimentos. Segundo Antônio Carlos Ribeiro Fester, um dos mais 
importantes educadores em direitos humanos no Brasil, o programa deve 
adotar a pedagogia da indagação e jamais do conformismo 5. As metodologias 
devem induzir os educandos à participação social; à contradição; à visão 
universal que supere etnias, classes, nações etc., estimulando a criatividade, 
fortalecendo os vínculos com a comunidade e tendo como referencia a 
realidade na qual se vive hoje. 
 
4. Direitos humanos não são um tema específico. Os princípios dos 
direito humanos devem estar presentes em todas as disciplinas curriculares. 
Como observa Fester, “não se trata de separar quinze minutos de uma aula, 
uma aula do mês ou um trecho do ser o ponto de partida e oponto de chegada 
do planejamento escolar, estar presentes em toda a vivência curricular”. 
 
5. A metodologia deve abranger a noção dos direitos humanos, o 
conhecimento de seus fundamentos e o resgate da história recente do respeito 
e do desrespeito aos direitos humanos no mundo; dos horrores do nazismo aos 
Esquadrões da Morte da América Latina, do racismo emergente hoje na 
Europa à matança de crianças no Brasil. 
 
A educação em direitos humanos, segundo Fester, compreende as 
seguintes etapas: sensibilização, problematização, construção coletiva da 
interdisciplinariedade, acompanhamento sistemático do processo nas escolas e 
formação permanente dos professores e do histórico dos direitos humanos, 
relacionando-os sempre com os problemas locais da comunidade e da nação. 
 
6. A educação em direitos humanos é uma educação para a justiça e a 
paz. Uma pessoa só pode dimensionar bem seus próprios direitos na medida 
em que reconhece os direitos alheios, sobretudo aqueles que são fundamentais 
à sobrevivência. Assim, no centro do processo pedagógico devem estar, como 
eixo, aqueles que mais têm direitos essenciais negados: os pobres e as vítimas 
da injustiça estrutural. Nessa linha, assumir os direitos dos pobres é, com 
freqüência, entrar em choque com os interesses daqueles que consideram os 
lucros do capital privado acima dos direitos coletivos ou as razões de Estado 
acima do direito individual. Esta dimensão conflitiva do processo educativo 
deve ser encarada com parte mesma de uma pedagogia que não quer apenas 
conscientizar, mas formar agentes transformadores, cidadãos empenhados na 
erradicação das injustiças e na construção de um mundo verdadeiramente 
humano. 
 
7. A metodologia adequada é educação inspirada no método Paulo 
Freire. Ela considera o educando como o centro do processo educativo e, 
indutiva, vai da prática à teoria para retornar e melhor qualificar a prática. 
Parte de casos concretos e utiliza recursos como a dramatização, simulação de 
casos, papelógrafo, desenhos, jogos, pesquisas e, sobretudo, valoriza a 
narrativa oral e existencial dos educandos. Ela se direciona do local ao 
internacional; do pessoal ao social; do detalhe ao geral; do fato ao princípio; 
do biográfico ao histórico. O educador não educa: ajuda a educar e, ao fazê-lo, 
predispõe a reeducação. E todo o processo educativo tem como ponto de 
partida e de chegada à ação dos sujeitos educados, educandos e educadores na 
transformação da realidade em que se inserem. 
 
	Frei Betto 
	Caráter de educação em direitos humanos

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