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Tiago Nene Polishop

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PREFÁCIO 
A BELEZA SUJA 
José Carlos Barros 
Procurar um descentramento; um lugar de fora. E procurar também cortar fios, 
ligações, aproximações. Até o olhar poisar nos objectos e devolver apenas o que 
os objectos mostram à superfície do que parecem ser. Acontece que esta (espécie 
de) máquina fotográfica tem uma memória por dentro: e quando a luz do flash 
ilumina os objectos, os eventos, ou antes mesmo do disparo, já as interrogações 
(e o desconforto delas) acompanham esse impulso, esse movimento sem retorno 
em direcção ao coração das coisas. Falo de uma poesia que parece decidir-se no 
território da sua própria impossibilidade; num conflito permanente entre ficção 
e realidade, entre concretude e fingimento, entre aceitação (desistência) e 
interrogação; entre milagre, revelação e, por outro lado, afastamento e 
reconhecimento da insuficiência do poema no desígnio de mudar o mundo. 
Nem sempre os títulos dos livros de poesia remetem para o seu universo 
temático. Neste caso, no entanto (e não obstante a primeira sensação de 
desconcerto), o título é já o enunciado, o resumo, do projecto que move o autor 
nesta busca (ou deambulação) pelas margens, por «um pequeno subúrbio/ onde 
os carros não passam», por lugares onde os terramotos apanham «pessoas que 
faziam amor» e «morriam de uma causa lenta e dolorosa» e onde (em vão?) se 
espera «a esperança/ de um próximo começo». Polishop é o nome de uma 
conhecida cadeia de venda de produtos milagrosos: cremes contra as rugas e a 
celulite (e as estrias), cintas vibráteis que resolvem os problemas das 
adiposidades abdominais, escadas de alumínio que ocupam apenas, num 
armário, o espaço de vinte centímetros, kits para desmontar variadores (seja lá 
isso o que for), artefactos que picam a cebola sem o incómodo prosaico das 
lágrimas. O título é a acertada metáfora deste universo de perdas, de 
desencontros, de impossibilidades (também de exaltações), de encenações – e, 
simultaneamente, de procuras, de rasuras (intervalos, fronteiras) entre o que é e 
o que poderia (deveria) ser. Há, nestes versos, o incómodo que reverte de um 
olhar irónico, altivo, desarmado, livre, sobre as armadilhas do quotidiano, sobre 
o desconcerto das relações humanas (sentimentos, moralidade), sobre a 
normalidade, assim interrogada, de supostos inquestionáveis códigos de 
conduta; sobre o logro das aparências; um olhar (às vezes apenas fotográfico, 
neutro) a trazer à superfície o lixo, a sujidade, as partes por unir, a 
incompletude, a impossibilidade de chegar a um lugar e de ocupá-lo por inteiro; 
onde, por indiferença (por desistência, por cansaço), «as pessoas sobrevivem 
quando alguém morre». O título do livro é a metáfora do mundo retratado 
nestes versos: a vida, o quotidiano, olhados de cima, de fora, como se tudo se 
desenvolvesse já num território de pechisbeque, de prometidos paraísos a 
pilhas, de felicidade anunciada a prestações. Os produtos da Polishop – a ilusão 
do mundo perfeito, a promessa da alegria, as virtudes do consumismo, os 
consequentes ruídos do anúncio, da frase, da publicidade erigida a realidade 
concreta – parecem ser tudo o que temos quando (como algures se dirá neste 
livro) o tempo é de montarmos o circo e fazermos de conta. E por isso, num 
outro poema, se fala do político que cola, nas paredes, os seus próprios cartazes, 
confrontando-se com o logro do que ele mesmo anuncia (como num produto 
que a Polishop venderia em horário nobre para curar as varizes). Nem sempre 
os poemas deste livro, na sua aparente dispersão temática e formal, parecem 
fazer parte de um conjunto lógico, coerente, de peças que vão encaixando até 
mostrar o retrato inteiro que (por um momento) não adivinhávamos nas suas 
partes desligadas. Mas este é um livro de poesia, mais que uma recolha de 
versos e poemas: essa aparente dispersão (que nos ilude pelas inusitadas 
imagens, pelas incursões aparentemente exteriores ao poema, pelo salto – que 
se revela ser contiguidade – entre o poema lírico mais extenso e a concisão do 
aforismo, pelo encadear de reflexões sobre a arte poética ou a crua descrição dos 
estilhaços do quotidiano) revela-nos, aos poucos, um pano inteiro onde os 
diferentes (múltiplos) fios não cerziram mais que pedaços desatados. Há algo 
(há muito), nestes versos, de surrealidade, de sobressaltada transfiguração das 
imagens, de re-leitura, de re-interpretação, de deflagração às vezes sem um 
centro reconhecível que possa acudir-nos. É certo: porque a linguagem não se 
desliga nunca dos temas e do universo que procura servir: esse universo de 
perplexidade e desencanto onde já nem é possível regressar ao ponto de partida 
nem caminhar a partir de nenhum ponto. Porque nos perdemos no lixo das 
coisas, na «beleza suja» em que nos distraímos e afastámos de nós mesmos, 
entre logro e fingimento, entre imagens (falsas) cujo sentido já nem chegamos a 
interrogar. Servida por um rigor que busca na palavra o sentido exacto e último 
das coisas, esta poesia (a deste livro) confronta-nos com o mundo que vivemos 
tantas vezes sem exigirmos dele o que está por detrás (ou além) do lodo e do 
imperceptível milagre de um tempo anterior (antigo) em que era possível 
acreditar: «éramos tão novos (…), bebíamos veneno para dormir». É por aí que 
esta poesia nos leva: pelo incómodo sobressalto; pela convicção de que é 
preferível bebermos veneno para dormir, de que é indispensável amarmos «o 
amor quando nasce», do que nos sujeitarmos à impossibilidade de nos 
sentarmos a uma mesa do Majestic ou de «soltar os cães dentro dos poemas de 
amor». 
 
 
 
 
NOTA: em 28 de Maio de 2010 a obra “Polishop”, de Tiago Nené, foi 
apresentada por José Carlos Barros no “Pátio de Letras”, em Faro. 
 
POLISHOP 
 
click, 
dormem em simultâneo sobre as escarpas 
e sobre a sua beleza suja, 
interior ao sono, interior à chuva, 
colocam as mãos nos bolsos como se lá estivesse 
parte de uma incompletude que os completasse, 
consolidam a solidão inacessível, 
sentem o vento processar o seu rigor irregular 
nos pulsos rasgados, 
ouvem música petrificada, julgam que o ritmo 
e o movimento da cabeça os podem apartar, 
e por isso se intitulam apenas 
de ouvintes de música, 
click, 
nunca saberiam assinalar, por exemplo, nos negativos 
da presente sessão, os lugares íngremes 
das suas infâncias 
que se consolam e flagelam entre si. 
sobre eles disparo como se atirasse a matar 
sobre as suas ideias transumantes 
em direcção à trovoada oca 
dos meus olhos brancos. 
click, 
o crepúsculo carrega-nos, a confusão inicia-nos as fugas, 
todas as fugas, todas as horas que a bem ou a mal 
singram e quebram. 
quem me dera poder embriagar-lhes a sombra, 
desatar-lhes os nós da vida, 
poder vê-los andar de novo, 
e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde, 
compensando a minha completa falta de rosto 
com a tripulação dos meus dedos 
fingindo sobre a máquina fotográfica. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
METROPOLITANO 
 
[aos que sabem ouvir] 
no metropolitano do ouvido 
o ritmo da minha inconsciência: 
os subúrbios do poema que são mais seguros, 
o desperdiçar de sentimentos 
nas complicações de uma velha 
identidade, um método ludovico, 
o centro de uma cidade que anda 
sobre o seu congestionamento. 
[uma nova carruagem chega 
com destino ao braço esquerdo 
e a uma acção simples]. 
creio que ouvir pode ser falar com o ouvido, 
e falar com o ouvido pode ser devolver 
totalmente esse sentido. 
finalmente oiço o grito de munch, 
é encorpado, com textura de sílex, 
eternamente velho num ventre de silêncio, 
e não enterra quaisquer lamentos. 
[uma nova carruagem chega, sem destino]. 
fecho os meus olhos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PERFÍDIA 
 
Incrível como se ama 
qualquer animal 
recém-nascido. 
por isso, ainda 
queem vão, amamos 
o amor quando nasce, esse 
animal que em criança 
alimentamos, 
e que um dia 
nos comerá o coração. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CORAÇÕES DE PLENILÚNIO 
 
Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,/ as tâmaras, 
a voz da grande Kolthoum vinda de uma / janela num cântico apaixonado ao Nilo 
Victor Oliveira Mateus 
 
a entrada secreta é breve como 
a abertura dos lábios meramente à PALAVRA. 
a necessidade de uma necessidade gera 
a incompletude que produz o néctar 
no coração feminino de plenilúnio. 
as folhas no ar conduzem borboletas inatmosféricas, 
o vento conduz o ódio que a criação retém 
num fio de silêncio atravessando 
a transparência oculta da matéria. 
a entrada da espera é breve 
e emancipa um segredo que ainda se funde 
nas membranas de uma tentativa 
assertiva e ovípara de coerência. 
esperar por ti é esperar que o primeiro final 
da história que ainda corre num só cateto 
te desiluda como um relógio que pára, 
um gato subitamente fusco, ou 
um verso mau do nosso poeta preferido. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MAJESTIC 
 
e não há uma só repetição 
que se cruza com uma primeira vez, 
e alguém que deixa uma beleza em prol de outra, 
o desamor de um amor culpado, 
uma eternidade invertida, 
o cansaço invisível num homoponto. 
e não há uma dor que sobe aos dons, 
e um inverno rigoroso que é o pudor do verão 
[e talvez da primavera], 
e os líquenes de uma canção por gestos. 
 
e não há corações num frappé 
[é, porém, lindo o majestic] 
sobre uma travessa de uvas 
passando nas ruas dos dedos que emparedam 
o sangue oculto mas lilás 
sob o movimento dos astros da pele. 
 
e nenhum segredo desperdoa todo o tempo, 
e não retiramos as minas de tacto sobre o mapa da cidade, 
e nunca regressaremos aqui, antes 
dissolvemos agora o rasto do seu infinito. 
 
e diz oscar wilde que o inverno traz consigo a sabedoria, 
e eu ainda espero que vague uma mesa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A DENSIDADE DOS SISTEMAS 
 
[aos perfeccionistas] 
 
o onde é demasiado denso para o quando, 
o quando é demasiado denso para o quem, 
o quem é demasiado denso para o o quê, 
o o quê é demasiado denso para o porquê. 
rejeitar as coisas que não tens 
é acender o rastilho do tempo que resta, 
a densidade comparativa dos sistemas 
destruí-los-á um por um: 
primeiro o espaço, depois o tempo, depois 
o facto consumado, depois as dúvidas 
e finalmente as explicações infundadas. 
- e nós? 
- nós acabaremos por subsistir no território 
da alma, sem densidade alguma. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA 
 
[ensaio sobre celebridades] 
 
com as rugas escondidas de uma distância esticada, 
o útero mudo, uma língua fóssil, a emoção mortífera. 
o seu fruto é frígido, o seu todo tem as partes por unir. 
as alíneas do seu índice são duvidosas e a música 
que lhe enche o quarto é de vinil branco. o seu 
tempo não tem a densidade que o nome exige, 
apesar de ninguém o saber. dos seus olhos saem 
porcelanas, o seu inverno é subterrâneo, a sua história 
conta-se por carta. no seu exílio conheceu gente 
que traduziu goethe e hölderlin e lhes acrescentou versos 
por graça. os seus erros nunca couberam dentro de versos 
porque o seu coração sempre mudou com as novas 
grafias. nunca ninguém colocou um dedo que fosse 
nas suas feridas porque sempre as soube esconder 
fora dos locais do rosto. o seu sigilo tem a duração 
do olhar, e este, sem distinguir planos, descontinua 
a discrição dos movimentos dos outros. o seu infinito 
oscila na memória inconsciente, a sua água é 
vaporizada com as sombras do corpo contra a luz 
quente. o seu alheamento é um pequeno subúrbio 
onde os carros não passam e o passado das pessoas 
que lá vivem fica na grande cidade. a sua imaginação 
é solitária, a sua razão sempre extirpou a matéria fluida. 
as suas pétalas são autónomas em relação às flores, 
as suas cores envelhecem como se por esse facto 
deixassem de ser úteis. a partir de certa altura 
a sua natureza torna-se sonora e inexprimível, e 
as suas obsessões são indefesas e frágeis. rilke 
um dia escreve-lhe uma carta que veio devolvida 
e nela constava um poema escrito à mão e pingos 
de suor nocturno. todos os seus princípios eram 
oficialmente os seus fins, e o silêncio do público 
estranhamente o fazia notar ainda mais. até que ela 
morre, morre mais do que a lei da vida, e o seu abismo 
continua exuberante. apesar de ter vivido uma vida 
corrosiva, ela permanece como um protótipo, porque 
as pessoas não vêem as pequenas coisas, porque as 
pessoas não se revêem nos equilíbrios, porque as pessoas 
parecem sobreviver quando alguém morre, porque 
as pessoas apenas sabem ver ao longe. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O TERRAMOTO 
 
[a uma pessoa intemporal] 
 
querida joana, o terramoto apanhou pessoas que faziam amor, 
pessoas que morriam de uma causa lenta e dolorosa, 
pessoas que celebravam contratos com apertos de mão, 
pessoas com instrumentos na terra fértil, 
pessoas que faziam de conta, pessoas sem relógio. 
os que faziam amor perpetuaram-no, os que morriam 
viram a sua morte impedida por uma colectiva e mais bem aceite, 
os que celebravam contratos perderam as mãos coladas, 
os que trabalhavam na terra fértil foram soterrados, 
os que faziam de conta procuraram cumprir uma promessa, 
os que não tinham relógio escaparam ao tempo. 
meu amor, sermos egoístas é tentar impedir que as coisas mudem, 
sermos intensos é não respeitar causas e efeitos, 
espero-te no meu futuro, ainda que ele não seja 
o efeito directo de um presente que ainda treme muito. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUBMERSÃO 
 
[a uma pessoa demasiado especial para ser compreensível] 
 
sem desatar o nó de cegueira 
ou deixar cair o pano, 
direi que a submersão 
chegou ao ponto de nos acharmos 
dois estranhos sem tacto 
num dos milhares de pontos.de.vista 
do fim, esperando a esperança 
de um próximo começo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AUNG SAN SUU KYI 
 
montemos o circo. façamos 
de conta. deixemos 
que o sonho acorde e confesse. 
sintamos todo o impacto 
de ver as palavras de pele 
tomarem forma 
e rédea de coisas lúcidas 
presas no desejo de um pequeno erro. 
o nosso coração 
é a nossa cabeça, e para sermos felizes, 
ou temos sorte, 
ou somos brilhantes. 
somos romeu e julieta, 
reféns perfeitos 
de todos os sonhos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
GESTAÇÃO / POEM IN PROGRESS 
 
a ecografia morfológica está bem, 
as medidas estão certas, 
o poema está com um quilo e pouco 
e tem trinta e dois centímetros. 
daqui parece perfeito, 
sei que não tem hidrocefalia, 
nem lábio leporino, 
ou cataratas congénitas. 
eu vi-o mexer-se bem no fundo do seu 
pré-destino moral 
e todos os seus significados 
continuavam inteiramente livres, 
o seu autêntico deliberado, 
e os seus acontecimentos espantosos 
impondo ao sonho as excepções 
que ele necessita para ser credível. 
para a semana far-se-á 
uma amniocentese, e se porventura 
o líquido estiver contaminado, 
sou capaz de tomar 
pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LICITAÇÃO 
 
Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude? 
Manoel de Barros 
 
não sei o que escondeo silêncio 
nunca o entendi 
talvez sirva 
para leiloar sentimentos 
 
sim, deve ser 
exactamente isso 
que acontece - 
e a licitação mais baixa 
sempre vence. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CONCEITO 
 
No vazio leve das miragens, esconde-se, / nas vindimas da noite, 
/ o corpo dormente da eternidade que rebenta 
Maria do Sameiro Barroso 
 
para viveres, lembra-te, só precisas 
de um conceito. 
e depois sabê-lo, sem contudo o decorar, 
e constatar que é 
impossível guardá-lo, 
porque digamos que é impossível 
guardar 
o que deve ser maior, 
bem maior do que o que somos. 
 
isso a vida, podes ir, 
tudo o resto é 
meramente científico e teórico. 
 
um dia encontrar-te-ás 
num tempo com o teu rosto velho, 
desaparecendo 
sobre todo o alimento 
do espaço que ainda cresce. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
COTOVELOS SOBRE A MESA 
 
invisíveis luzes estão acesas. 
vejo o andré, o 
fundador, desintegrando as direcções 
do tempo sujo 
passível de ser reciclado em boa arte. 
o mário, o 
de vasconcelos, enfia a rosto na cabeça 
e engole as sombras disponíveis 
dos alimentos citadinos mas rugosos. 
o antónio, o de maria e o de lisboa, sorri como 
aparece na capa 
de um livro póstumo (consultem-no) 
e crê retirar aos poucos 
o ar aos insectos que circulam. 
do outro lado o 
alexandre, o de o'neill, 
ergue-se em direcção a uma das 
casas-de-banho de que o mundo, contiguamente, 
é feito. 
 
mas vendo bem as coisas, 
talvez segundo 
um intervalo quadrangular, 
este meu trabalho do olhar 
dirá apenas respeito 
ao meu poema. o que lhes interessará a eles 
é que uma vez chegados 
ao surrealismo reflexo do seu público anonimato 
cada um escreverá o seu. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
HÍMEN DO TEMPO 
 
impossível, e nesse impossível uma forte sensação de possível, os 
poetas que morrem dentro de aves, os sons que se ouvem no ar, 
transformações de palavras, palavras de palavras. impossível, e 
nesse impossível uma última sensação de possibilidade, todo o 
tempo em simultâneo suspenso, consumido o espaço com a 
mesma aleatoriedade do sangue que narra. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
03032007 
 
no livro que me foi emprestado - 
uma edição de poesia de novalis - 
vinha uma nota 
muito ténue a lápis tremendo. dizia 
procuro o último livro de 
ruy duarte [de] carvalho - de que nunca li coisa alguma - 
e encontro este, que procurei 
há dias sem encontrar. 
vinha datado 
e escrito assim: 03032007. 
não vinha assinado, nem a caligrafia 
pertence a quem mo emprestou. 
e estes factos, lentamente suspensos 
na superfície móvel da memória mais imediata, 
impuseram 
no mapa sem rios da minha leitura 
um sentido extremo de ficção real. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UM POEMA COM FORMA ESTRANHA 
 
alargar [anota aí] 
a imobilidade depois de ver a rapidez das sombras, 
uma [filma, filma isto] 
existência não expressa 
é mais 
verdadeira. só ele [tira a máquina da chuva] 
saberia como 
fazer passar o seu corpo por cima de si mesmo, 
por fora da música, do [que música é esta?] 
karma, sobre as nuvens [um, dois e terês] fixas 
de cor profunda [ele é 
o poeta dos íssimos, mas shiuuu] 
tudo o que lhe odeiam [ele tem 
trinta 
e nove de febre e toda a genialética] 
é tudo 
o que eles gostariam de ter, 
ele que sabe como resumir todo o silêncio a só um começo. 
[corta. repete] 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
JOHN UPDIKE 
 
morreu sem um critério rigoroso. 
não se poderá dizer que tenha sido a lei da vida 
ou a lei da morte 
ou uma derradeira e infinita 
composição da urgência. 
hoje morreu-lhe o corpo, morreu porque assim 
disseram os médicos, porque assim 
disse o seu pulso frágil como o equilíbrio 
da terra, e porque agora é o tempo que o respira. 
hoje morreu-lhe o corpo, repito em voz alta. 
e isso é tudo o que, 
da perspectiva da nossa memória incompleta, 
precisamos de saber. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PARA O BEM E PARA O MAL 
 
[autobiografia] 
 
para o bem e para o mal / eu sou o tiago nené e nasci / dentro do 
meu corpo, muitos dias após o meu nascimento. / não posso mais 
ser outro, estou preso / ao solo de mim mesmo, perdi as clarividências 
que me pertenciam / quando eu próprio lhes era imensamente 
imperceptível. / para o bem e para o mal / o meu apelido 
não é comum, e morfológica / e espiritualmente me remete bem lá 
para o começo, / ao átrio das coisas novas e palpáveis / com o 
relevo móbil do coração bem saliente. / para o bem e para o mal 
/ uso uns óculos ralph lauren com uma armação / castanho-escura 
e uma graduação de quatro, / repito, quatro dioptrias em cada 
olho. / porém, ainda há aqueles que me conhecem, ou conheceram, 
/ sem óculos, com os olhos profundos directamente sobre / 
as suas almas furtivas, e os seus olhos densamente / sobre os 
meus, onde as minhas lembranças de ontem são / impressas nos 
poemas de hoje. / para bem e para o mal / eu sou de facto o tiago 
nené, / posso prová-lo, posso exibir o meu / bilhete de identidade, 
submeter-me a análises de sangue, / ou caminhar elegantemente 
sobre a rua. / e há quem ame e quem deteste, / quem ache simpático 
ou estúpido, / ou ainda quem me condene por soltar os cães 
dentro dos poemas de amor. / na verdade, / e para o bem e para 
o mal, / eu sou tudo isso, / mas se tivesse de me definir ou redefinir, 
diria / apenas que sou aquele que agora resume a vida / numa 
gorda miserável, / espremível como uma laranja / cujo sumo resultará 
muito azedo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
REFEIÇÃO COMPLETA 
 
talvez não queiras um amor absoluto, 
mas uma só refeição completa. 
podes comer-me as pernas, 
os braços, o fígado à florentina, 
e os dedos dos pés al ajillo, 
ou talvez encontres o peixe que 
vive dentro do meu sangue. 
não é verdade que assim morra, 
diz o livro que não podemos viver sem amor, 
e podemos morrer sem amor? 
o amor é o momento, 
e o meu amor é passivo, são as tuas 
hipocondrias nos meus órgãos, 
os teus dentes exemplares nas minhas praças 
e a misteriosa velocidade 
só de imaginar o que digo com a convicção 
e ordem com que o exijo. 
fá-lo, fá-lo, fá-lo, fá-lo. 
chegarás à côdea do meu coração 
de três dias lentos. afinal, 
não precisas de um amor absoluto, 
mas de uma só refeição completa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O SONHO 
 
e cobri o rosto sem preterir as cores 
 
 
 
 
ESPAÇO & TEMPO 
 
os lugares estão vivos quando conduzem a outro tempo 
 
 
 
 
MAPPUGGHJE 
 
partiram aqueles que precisam de regressar 
 
 
 
 
MOTS-VALISE 
 
incrível como são os olhos com sede 
os que deixam cair a água. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
KARMA 
 
e duvidamos dos instantes 
mas não de todo o tempo, 
dos versos mas não da poesia. 
se alguém nos disser 
que o tempo parece uma cascata de céus 
acreditamos mais facilmente 
do que se alguém disser 
que nos ama. 
e acreditamos nos poetas, 
e não naqueles loucos 
que dizem que uma pessoa 
se mata muitas vezes 
se tiver muitos corpos. e duvidamos 
de certas palavras 
mas não de todas as combinações 
entre sílabas. acreditamos 
na geração do movimento mas 
não conseguimos sair do meio do caos. 
e acreditamosnos tiros 
que acabámos de ver partir 
mas não que estamos 
prestes a morrer. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O TRIÂNGULO DE SANGUE 
 
As palavras / não dizem o mundo / dizem o desejo / 
de dizer o mundo 
Luís Ene 
 
não fiques lento perante o imóvel, 
instala num triângulo de sangue 
uma pequena rua. 
deixa essa rua açoitar o sangue que corre 
parado no seu asfalto. 
não isoles os teus sentidos, não os atires 
como pedras. 
ninguém suspeita se apenas viveres 
segundo o rigor da tua arte. 
sê perpendicular às tuas fugas, 
corre e apaixona o mundo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DOUBLE FANTASY 
 
I just believe in me, Yoko and me, and that's reality. 
The dream is over, what can I say? The dream is over. 
John Lennon 
 
deus é uma distância profunda sem corpos que a meçam. 
a minha presença é uma boca invulnerável à matéria. 
EU contraí a minha força e saúde militares, 
eu desenhei uma maçã no mapa-múndi 
e fechei os olhos com violência com o propósito de a engolir. 
a minha mão operou o impossível no sono feérico, 
nele clarificou as pontes destruídas 
entre os meus principais pensamentos 
e mais tarde haveria de se cruzar 
com um mark chapman de olhos vermelhos 
e o DOUBLE FANTASY debaixo do braço 
ouvindo a pestilância que vinha do dakota. 
está uma noite espontânea e o paul goresh não registará 
nada que neste momento só pergunte. 
a noite, digamos, é da cor da dança invisível 
dos dentes mudando de posição quando a boca 
se fecha para ESCUTAR apenas. 
cinco tiros rasgam o ar e o sonho acaba. a noite 
perdeu o túnel por onde passava a sua fantasia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SINFONIA DAS NUVENS 
 
eu acho que te amo, disse. 
como se o amor, 
o verdadeiro amor, 
admitisse 
algum tipo de dúvida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CIDADE SUBJECTIVA 
 
e depois existe uma cidade subjectiva 
(sem casas) 
e observa-se no ar 
um copo de whisky gigante, ouvem-se vizinhos furtivos 
sobre a sede rígida, 
e emagrecem as palavras que riscam a parede, descreve-se 
a memória cautelosamente 
e sazonam-se as vozes que vão escurecendo 
num buraco de energia. 
e faz-se silêncio e não há luz na mão. 
[e o futebol não pára 
(um jogador vê o segundo amarelo e volta 
para o geral subjectivo)] 
e por fim, 
uma última corrida à tona de um semi-sono vivo, 
a solidão de um golo. 
nasce então o esquecimento de uma alegria 
(violoncesca) 
de noite, luzes e transpiração. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A HORA IMPLÍCITA 
 
[a uma pessoa que vive na direcção da sua vontade, em horas 
implícitas] 
todos os acasos são subterfúgios, por exemplo 
este silêncio é mais lento que 
a cabeça que o absorve, fendendo em mim uma página em branco. 
[e chove] foi preciso 
transformar-me em chuva para que as minhas lágrimas 
adquirissem a velocidade que condissesse 
com a condição antológica do meu estado. 
[e dá-se uma transfusão de estações do ano por detrás 
do branco da página] - um ajuste de contas é circundante, 
um abraço cheio comove os nervos dos braços vazios. 
através de mim passa o meu corpo, eu vejo-o, 
a carne é um gueto escuro, a sua sombra um centro falso 
sem gravidade, 
o equilíbrio deu à luz o intervalo 
que desliga a luz das palavras íntimas - espalho-me por cada 
sua raiz que me trouxe até aqui. 
[e começo de novo, e alimento-me de mim mesmo] 
ainda confundo poesia com amor 
e um amor nato e frio com um sorriso radioactivo e dolente, 
[só os ecos das palavras absolvem] 
e um sorriso radioactivo e dolente com a certeza absoluta 
e magnífica das coisas que dançam com submarinos no sangue 
[a morte ainda nos espera longe: 
dará uma vida poeticamente configurada uma morte lírica?] 
e no meio de tudo, [retomo], desse silêncio mais lento que o 
coração que o absorve, 
a ideia de que um homem inteligente 
jamais colocaria as coisas do seu ponto de vista. 
[e limpamo-nos um no outro] 
e regressamos na ficção da boleia do pensamento 
certeiro de alguém que passa no momento em que nos ocorre 
que seria suficiente fazer uso do potencial pandémico deste amor 
para acabar com tudo e impedir o regresso e o progresso. 
[e a nossa lembrança conjunta, no tempo justo e diurno, 
é a única que ainda cresce no jardim da memória. 
e a chuva cessa, o sol espreguiça, são seis em ponto, 
o frio de palavras inaudíveis 
escuta por entre a respiração ofegante de um corpo 
que rasteja devagar até mim.] 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FAZ DE CONTA 
 
[a uma mulher bonita] 
 
faz de conta: que 
a festa acabou, a felicidade continua, 
e nós ainda escolhemos 
o vocabulário 
para nos cravarmos os dedos 
na pele móbil 
como o tempo que nos esquece 
sem fazer de conta, sem 
germinar ou colocar a nossa beleza 
conjunta na ambiguidade de uma boca 
maternal, 
sem umas mãos que nos exonerem 
da linguagem indiscutível, 
veneno azul, 
que nos aproxima os silêncios 
que hão-de vir 
e as artes materiais dos fármacos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAMPANHA 
 
o candidato não deve preocupar-se 
com certas questões, 
são quinze dias terríveis, 
e isto não é uma equipa de futebol. 
aqui não há artistas e ainda temos 
uma lacuna no terreno: não conhecemos 
nem a ti maria, nem o zé bois, 
nem boa parte da população 
de risco ao H1N1 
e possivelmente resistente ao tamiflu. 
precisamos de mais gente, 
e o voluntariado está difícil nos dias de hoje. 
aqui todos têm opiniões, 
[o mandatário projecta-se 
dentro de si mesmo, por entre o silêncio que antes 
lhe esculpiu as feições] 
há uma técnica de comando e controlo, 
um yin e um yang, 
e temos uma auto-estima muito prodigiosa, 
fortemente disciplinados quanto 
à delegação de competências 
e dinâmica de grupo. 
por isso não entendo 
como é possível passar-se à noite 
de carro pelo concelho 
e ver-se o candidato a colar os cartazes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TAXONOMIA 
 
a verdadeira taxonomia dos géneros 
remete-me para a obra de ilmar laaban, 
rumores claros ao arquivar o som. 
e eu escrevo, 
os vizinhos queixam-se da minha autonomia 
e independência sonora, 
do modo como bato os ovos 
e concebo uma omelete de som e cassandra. 
algumas pessoas circulam em mim 
descalças com os pés na água índigo, 
preocupadas com a estética 
de um discurso ilógico sobre os bunkers 
de uma identidade ocidental, 
pessoas experimentais 
que discutem a feminilidade em silêncio, 
não entendendo nunca o papel 
da tecnologia na poesia, o seu mestrado 
sobre a memória contemporânea 
dos meros corpos, e o elo perdido dos 
vanguardistas sem contextofobias 
porque os seus diplomas arderam 
noutros obstáculos biográficos. 
i must be free now i must be free now 
and should not hesitate 
i should go now but instead instead 
instead there's i mean 
há um século xxi por ensaiar 
e um futuro neo-determinista 
a colocar de costas 
para a minha performance pletórax. 
e eu bato, continuo a bater os ovos 
até ver uma gueixa a tocar shamisen 
e eu mato, e me uso comparativamente, 
doo-me como um revólver quente, 
e eu morro, e eu escrevo, e eu sinto. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POEMA DE BOAS-VINDAS AOS MOTARDS NA 
28.º CONCENTRAÇÃO INTERNACIONAL DE MOTOS - 
CIDADE DE FARO 
 
vêm em duas rodas, as vísceras sincronizadas 
com a mão direita, pensam que o futuro 
é tudo o que se esquiva ao passado. 
desmentem verdades absolutas, 
instalamfantasias no lugar de medos, 
transgridem regras 
em prol de uma verdade indecisa, 
picoteiam suavidades como dúvidas remotas, 
redefinem caminhos, nem sempre 
cientes do risco. 
a sua ilusão é redundante por opção, 
não precisam de falsificar a urgência 
porque a sua gravidade se perde por si só. 
pulverizam a cidade de faro pelo verão, 
o seu barulho incendeia um próximo regresso, 
enquanto o seu amor vem em pequenos monopólios. 
e selam abraços de cerveja multicolor 
com os seus olhos invisíveis, desaparecem 
tão rápidos quão ubíquos como um tiro de luz. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ÉRAMOS TÃO NOVOS 
 
Despertei com a tua ausência tão mal sintonizada como sempre, / 
Como sempre repleta de café morno queimando os meus sonhos. 
Celia Léon 
 
éramos tão novos, 
explodíamos por tudo e por nada, 
lembrávamo-nos de existir 
em cada pequena coisa, 
atendíamos telefones públicos, 
incendiávamos o silêncio com um grito, 
adorávamos que nos invejassem, 
bebíamos veneno para dormir. 
 
a memória era costeira e mecânica, 
havia búzios em nós, o som perfeito, esculpido 
de uma cidade esvaída, 
da tímida perspectiva do mar. 
 
e só o não saber nos marcava as horas, cada minuto 
desprendia os corpos mútuos, 
o repetido fim interrompido ia bebendo o resto do tempo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PROTOCOLO 
 
kyoto, pulmões de ferro, 
picar o ponto a: 
delírios minúsculos, 
seguir a linha dos pássaros, 
feridas dissemelhantes, 
ruas emparedadas no interior 
dos teus canais, 
aproximações da inocência, 
distância entre sangues marítimos, 
respiração húmida do beijo frondoso, 
óculos de um gandhi-flipper 
ficcionado num olhar 
que ainda caminha, 
cintila numa cor oca 
de clarividência irresponsável, 
evidencia a árvore íntegra 
por cima do teu lábio 
fazendo o mar ciciar 
nos pulmões de ferro, 
na tua cabeça livre, 
no teu suave azul solúvel 
gotejando isenção, 
libertando substância subtil e dúctil 
das coisas meramente ténues, 
essas coisas, esse hábito volúvel, 
esse protocolo 
fragilmente feroz, fictício, nu, 
flora no interior 
do teu corpo ausente e frio. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TEORIA DO FIM 
 
[a Graciela Perosio] 
 
não sabemos o caminho de regresso / ao nosso começo. 
talvez nos tenhamos perdido / no infinito caótico da criação, 
o infinito no rosto que muda / noutro infinito que fica 
no sorriso que intui. / tirámos todo o silêncio / das 
entranhas da terra para saber que a nossa estadia mútua / 
é uma marioneta nos reflexos de um e de outro, /sendo que 
aqueles, os reflexos, estão condicionados pelos espíritos, signos, 
ou pela maneira peculiar e inata / de se comer uma laranja azul 
[mas isto, claro, é uma mera suposição]. 
não sabemos o caminho de regresso ao nosso começo, / 
é esta a questão. / talvez porque não seja o mesmo, o caminho, / 
talvez porque este não esteja exactamente no mesmo lugar 
e se tenha transformado num verso [num verso em linha recta], 
talvez porque o começo esteja noutro lugar ou tenha havido dois 
que se cruzaram, enlearam e perturbaram, 
ou talvez porque o fim tenha simplesmente mudado de lugar. 
[e tudo isto, claro, são meras suposições] 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
EPÍLOGO 
 
Impressiona que um escritor tão jovem produza primeiras obras tão especiais. Talvez 
imperfeitas (como todas), mas, sem dúvida, especiais. Recordemos que Tiago Miguel 
Serrano Pereira Nené (Tavira, Portugal, 1982) apenas havia publicado um livro em 
Portugal e poemas avulsos em revistas literárias de Espanha, Portugal e México. E 
especifico: a obra que tem em mãos o leitor versa sobre um dos temas poéticos por 
excelência: o homem situado dentro do espaço e do tempo. O normal nos poetas jovens, 
talvez devido à sua aprendizagem, é que comecem com poemas onde o eu pessoal se 
confunde com o lírico e tratem temas menos substantivos como o amor passional. No 
entanto, Tiago aproxima-nos do espaço/tempo sagrado por excelência, os centros 
comerciais (ainda que virtuais). Talvez não sejam, na actualidade, estes centros, lugares 
que substituíram os templos. Lá, cumprimos os nossos rituais de consumo enquanto o 
tempo se demora. O que é o espaço, para Tiago Nené? Será um espaço arbitrário, 
caprichoso, ideal? Aventuro-me a responder que não, que o seu espaço tem por objecto 
o mais cruel do real quando se aproxima do Aberto segundo a concepção de Rilke. 
Talvez não seja assim quando nos diz: desaparecendo / sobre todo o alimento/ do 
espaço que ainda cresce. 
O poeta concebe o espaço, como o faria Ana Hatherly, como um território-tempo que 
contém toda a luz do mundo, intervalo por onde desliza o pensamento imaginando 
imagens numa cosmovisão de sentimentos, paixões e arrebatamentos. Porque o poeta, 
ainda que duvide, nunca é neutral com as palavras, e somente através de imagens entra 
em comunicação com o indizível. Segundo Bachelard, a função fenomenológica da 
imagem poética é a sublimação que opera mediante a mesma e que se expressa pela 
abertura de um estilo único: “captar a imagem do ser na mesma brevidade efémera 
de sua ontologia”. Não será esse o preciso sentido do poema que inaugura o livro onde 
o autor se confessa coleccionador de imagens graças a uma câmara fotográfica? Ainda 
que em última instância nos confesse que “a confusão inicia-nos as fugas /…/ todas as 
horas que a bem ou a mal singram e quebram. / quem me dera poder embriagar-lhes a 
sombra, desatar-lhes os nós da vida”. 
Uma parte do nosso universo é luz, mas tal não significa que haja vida. Para o poeta do 
algarve Tiago Nené, um espaço está vivo se conduzir a outro tempo, o que é dizer o 
contrário do que acontece nos centros comerciais: esses espaços que atrasam o tempo e 
para ele se iluminam com uma luz difusa, uma luz eléctrica que não produz sombras. 
Mais do que templos os poetas nos fazem lembrar túmulos, mausoléus ou velórios. E 
daí o diabólico e o numinoso, que é quase o mesmo, destes espaços. Talvez estejamos 
dentro de um espaço sem hímen, onde o tempo suspenso nos diz: “está num não-lugar. 
Ainda que sorria por o estarmos a filmar para sua segurança, actue como se nada fosse, 
controle as suas emoções e não se esqueça de passar pelo duty free…” Ante esta 
situação o poeta busca essa plenitude impossível de conseguir. Talvez inspirando-se no 
poeta brasileiro Manoel de Barros, busca a sua “incompletude” através de um processo 
que consiste em desaprender: desaprender oito horas por dia ensina os princípios. 
Assim se nos revela outra parte essencial deste livro que nos fala da ânsia de plenitude, 
da fome lato sensu, entendendo por fome “essa falta espantosa do ser, esse vazio que 
tortura, essa aspiração, menos à utópica plenitude que à simples realidade” (Amélie 
Nothomb). Num estilo febril, com quarenta de febre, omitindo maiúsculas em nomes 
próprios e depois de ponto final (e que falta faz, não somos tão importantes quanto 
isso), o poeta trata de descobrir as zonas de espanto do espaço, do amor, da comida, do 
tempo nos seus começos e no seu fim, febril como a caótica viagem de um anti-herói do 
nosso tempo, febril como uma má digestão que perdura demasiado tempo. 
Esperemos que Tiago Nené não demore muito a oferecer-nos novos poemas em 
próximos livros. 
 
Jack Landes 
Huelva, 30 Outubro de 2009

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