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NASCIMENTO, S. Variações do feminino

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Variações do feminino: circuitos do universo trans na Paraíba1 
Silvana de Souza Nascimento2 
 
Resumo: Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa etnográfica, realizada 
entre 2009 e 2011, a respeito de trajetórias e sociabilidades de travestis, transexuais e 
transformistas na Paraíba. A investigação analisou circuitos que perpassam municípios em 
diferentes escalas, inclusive áreas rurais e indígenas, que se interconectam e criam rupturas: 
o da prostituição, o dos concursos de beleza (Miss Gay e Top drag Queen) e o dos 
movimentos LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Os concursos de 
beleza e as redes de prostituição conformam um conjunto que dá visibilidade a corpos e 
pessoas que realizam um jogo mimético com o feminino, onde a participação do público é 
essencial. Constroem-se modelos de beleza que se projetam em estilos metropolitanos e 
revelam uma feminilidade versátil, complementar à homossexualidade. Em contrapartida, 
as(os) atoras(os) do movimento LGBT procuram reagir a esses modelos de beleza mas 
acionam os circuitos dos concursos em ocasiões estratégicas, como as paradas gays, que 
têm se irradiado para o interior da Paraíba, da cidade para o campo. 
Palavras-chave: transsexualidade, sociabilidade, cidade, mimese. 
Abstract: In this article we describe the results of an ethnographic study held between 
2009 and 2011, concerning to transvestites, transsexuals and transformist’s trajectories and 
sociability in Paraíba, Brazil. The investigation analyzed circuits that pass townships on 
different scales, including rural and indigenous areas that interconnect and create 
disruptions: the prostitution, the beauty contests (Miss Gay and Top drag queen) and 
LGTB movement (lesbian, gay, bisexuals, transvestites and transsexuals). Beauty contests 
and prostitution networks comprise a set that gives visibility to bodies and persons who 
perform a mimetic play with the feminine universe where public participation is essential. 
They build up models of beauty that project themselves in metropolitan styles and flighty 
femininity, a complement to homosexuality. In contrast, the subjects of LGBT movement 
seeking to respond to these standards of beauty but them triggering circuit of competitions 
on strategic occasions, such as gay pride parades, which have been irradiated from the town 
to the countryside. 
Key-words: transexuality, sociability, city, mimesis. 
 
Prelúdio 
“Tudo que é profundo ama a máscara”, Nieztche. 
 
 Em uma casa de quatro cômodos, no bairro do Areal, na periferia da cidade de 
Mamanguape, Litoral Norte da Paraíba, Gabrielle borda com lantejoulas brilhantes um 
vestido branco, curto, tomara que caia. Está sentada em uma cama de casal, rodeada de 
bonecas penduradas nas paredes, pôsteres com personagens de histórias em quadrinhos, 
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como Turma da Mônica e Pato Donald, e uma pequena cômoda cheia de esmaltes, 
perfumes e outros produtos de beleza. Brinquedos misturam-se a objetos de decoração de 
uma adolescente travesti de 16 anos. O referido vestido está sendo reformado para Marta, 
uma de suas melhores amigas, que irá participar de um concurso de “Miss Gay” numa 
cidade próxima, a pequena Capim, com aproximadamente 4 mil habitantes, lugar cercado 
por uma usina de refinamento da cana de açúcar. Quando a conhecemos, alternava as 
brincadeiras com bonecas e as trocas de experiências sexuais e afetivas com sua amiga 
Marta, dois anos mais velha, que se sustentava com o trabalho na prostituição. Gabrielle já 
tinha experimentado, ocasionalmente, algumas trocas sexuais por dinheiro com “um 
coroa” mas naquele momento não realizava mais estas práticas devido ao forte ciúme e 
controle de seu companheiro. Marta, por sua vez, vestia-se e comportava-se de maneira 
mais sensual, com maquiagens marcantes, roupas justas e saltos altos. 
Ao longo das pesquisas de campo, acompanhamos rápidas transformações na vida 
de Gabrielle e Marta. A primeira, depois de se separar de seu jovem marido, começou a 
realizar, cotidianamente, trabalhos na prostituição. À medida que foi obtendo uma renda 
maior, passou a utilizar roupas mais chamativas, maquiagens, alisou e pintos os cabelos. No 
ano passado, de Mamanguape, foi para Natal, no Rio Grande do Norte, e depois para o 
Rio de Janeiro e, até o momento, não tivemos mais notícias suas. Segundo sua mãe, ela tem 
procurado trabalho em “casas de família”. Marta, por sua vez, mudou-se para Recife já no 
final de 2009 e pouco tempo depois foi tragicamente assinada na pista. 
Neste cenário, poético e trágico, perseguimos, com falhas e rupturas no percurso, a 
trajetória de Gabrielle, Marta, assim como de outras pessoas que podem ser incluídas no 
que chamamos aqui de “universo trans” – travestis, transexuais, homossexuais 
transformistas (gays afeminados) e drag queens –, primeiramente no Litoral Norte da Paraíba, 
e posteriormente na capital João Pessoa3. O propósito inicial da investigação foi mapear e 
compreender as redes de sociabilidade dessas protagonistas nesta região litorânea, incluindo 
os municípios de Mamanguape, Rio Tinto e Baía da Traição4. Contudo, acompanhando 
seus trajetos (MAGNANI, 1996; 2002)5, constatamos uma circulação muito mais ampla 
que incluía desde municípios rurais e indígenas, como Baía da Traição, Capim, Marcação, 
Mataraca até a capital João Pessoa e outras cidades do país e do exterior (Recife, Rio de 
Janeiro, São Paulo, Barcelona, Roma, etc.)6. Desse modo, pelo método da etnografia, 
identificamos três circuitos que se interconectam e criam tensões e rupturas entre si: o da 
prostituição, o dos concursos de beleza gay e o do movimento LGBT. Pretendemos 
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demonstrar que esses circuitos criam redes de relações que perpassam municípios e cidades 
de diferentes escalas, permitem construções de pessoas femininas dentro de um universo trans 
e possibilitam pensar em deslocamentos de gênero e de sexualidade. 
 Para esta pesquisa, optamos pela expressão ampla “universo trans” devido à grande 
variação em termos de definições e classificações que nos deparamos em campo, certas 
vezes móveis, outras fixas. Assim, de qualquer modo, pensamos que ser (ou estar) travesti, 
transexual, transformista, drag depende, antes de mais nada, de uma auto-identificação e de 
um reconhecimento enquanto tal pelo seu grupo de sociabilidade e/ou movimento 
político. Essas definições locais acompanharão a descrição etnográfica, entretanto, não 
realizaremos aqui uma reflexão a respeito das construções identitárias e dos modos de 
sexualidade, propomos interpretar, dentro do universo trans, como os três circuitos 
mencionados se interconectam e permitem pensar na mobilidade por escalas urbanas, em 
contextos metropolitanos e não-metropolitanos. 
Os resultados desta pesquisa tiveram a colaboração de diversas mãos, uma 
professora antropóloga e estudantes de graduação que estavam se inserindo no ofício da 
antropologia na época (bolsistas PIBIC/CNPq/Universidade Federal da Paraíba)7. Muitas 
experiências de campo contribuíram para a construção do texto etnográfico e também para 
a formação antropológica das(os) alunas(os) que vivenciaram, desde os primeiros anos da 
graduação, pesquisas “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002) numa região que 
apresenta uma dinâmica de fronteira entre diferentes dimensões: entre o urbano e o rural, o 
masculino e o feminino, o prazer e a violência, corpo e gênero, poética e política. A 
pesquisa, com duração de três anos (2008 a 2011) acompanhou a formação do Guetu – 
Grupo de Pesquisa em Etnografias Urbanas8, do Campus IV, da UFPB. 
 
Raparigas9 na pista 
 Iniciaremos nossa análise a partir do Litoral Norte, mais especificamente emMamanguape, com uma população de 42.300 habitantes (Censo 2010, IBGE) e 
posteriormente nos direcionaremos para a capital João Pessoa, acompanhando o percurso 
das atoras da pesquisa. Mamanguape é passagem obrigatória para quem vai para Rio 
Tinto10, há apenas 5 km dali, e para Baía da Traição, onde estão localizadas belas praias 
turísticas e grande parte da área indígena Potiguara. É a cidade mais distante da capital que 
faz parte da Região Metropolitana de João Pessoa (cerca de 50 quilômetros), recortada pela 
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BR 101, entre João Pessoa/PB e Natal/RN, e com vias de acesso para outras cidades do 
interior, como Guarabira, Itapororoca e Sapé. Há uma intensa circulação de pessoas e 
veículos, que é facilitada pela presença da rodovia, que separa a cidade em dois pólos: do 
lado esquerdo (para quem vem sentido João Pessoa – Natal), encontram-se os bairros da 
Cidade Nova, Planalto e Areal, lugares de ocupação recente, com poucas ruas asfaltadas, 
onde habitam trabalhadores das usinas de cana da região, assentados da reforma agrária, e 
populações pobres. Do lado direito, está o centro econômico e político de Mamanguape, 
com a presença de famílias tradicionais na região, bancos, repartições públicas, mercados, 
lojas, universidades, etc. Do lado esquerdo, acompanhando a estrada, espalham-se motéis e 
pequenos hotéis, bares, postos de gasolina, restaurantes onde trabalham mulheres e 
travestis que oferecem serviços de prostituição tanto para trabalhadores das usinas quanto 
para caminhoneiros. A margem da BR 101, que à primeira vista poderia ser vista apenas 
como um “pórtico”, passagem momentânea para viajantes, apresenta uma pluralidade de 
atividades econômicas – diversas mecânicas e auto elétricos, postos de gasolina, motel, 
bares, restaurantes, vendedores ambulantes de castanhas de caju, prostitutas, etc. Além 
disso, é um lugar de sociabilidade de crianças e jovens do bairro Areal e Planalto que 
ocupam a beira da estrada para jogar bola e soltar pipa. 
Qualquer etnografia dos lugares de fora (hors-lieuxs) – margens, 
interstícios, espaços de trânsito, lugares precários, acampamentos e 
campos – implica necessariamente uma antropologia do ban-lieu, lugar de 
confinamento do banido, cujo afastamento político e territorial permite 
todas as dominações e exclusões, sejam elas econômicas, culturais ou 
“raciais”. Assim, o exílio imóvel dos habitantes confinados aos espaços 
de exclusão do urbano encontra o exílio sem saída “das pessoas 
deslocadas” que não encontram o lugar de chegada da sua viagem, o seu 
lugar num mundo partilhado (AGIER, 2011, p. 41). 
 
 Inspirando-nos em Michel Agier, travestis no Litoral Norte da Paraíba revelam 
outras formas de fazer a cidade que ultrapassam as fronteiras municipais e dos bairros. 
Justamente pelo fato de serem consideradas “deslocadas”, ou “discriminadas”, adjetivos 
que estão incorporados no discurso das atoras da pesquisa, seus trajetos adquirem sentido 
na estrada, no sentido literal e metafórico. A estrada é seu lugar de trabalho, onde elas 
podem circular entre diferentes cidades e estados e, ao mesmo tempo, o lugar de um 
feminino sempre transitório, nunca completado. Elas realizam constantes mobilidades 
entre campos, cidades e aldeias e não se encontram isoladas num mesmo espaço físico e 
simbólico. Há travestis oriundas de bairros rurais em pequenos municípios, como Mataraca 
e Itapororoca, e aldeias indígenas, como nos municípios de Marcação e Baía da Traição. Há 
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também aquelas que vieram de outros estados, como Rio Grande do Norte, Pernambuco, 
São Paulo e Rio de Janeiro. Principalmente para as travestis, a estrada é uma passagem cada 
vez mais intensa para um modelo de feminilidade, onde o projeto mais desejado, e nem 
sempre conquistado, é sair do Brasil e tornar-se “europeia” (VALE, 2005; PATRÍCIO, 
2008; PELÚCIO, 2009). 
 Ao longo da pesquisa, identificamos pelo menos oito a dez travestis que moram em 
áreas indígenas na região entre Rio Tinto e Baía da Traição. Segundo elas, “se você quiser 
ver bicha lá, é só o que tem”. Algumas estão na Itália, outras retornaram da Europa, outras 
ainda almejam se mudar para lá. Da Itália para a aldeia, há um circuito que mobiliza 
travestis jovens no Brasil, e travestis “das antigas” e “coroas”, na Europa, permitindo a 
circulação dessas pessoas em contextos distintos, circulação esta que se dá por relações de 
amizade e de compadrio (ou seja, “madrinhas” que incentivam e patrocinam as viagens). 
Há também aquelas que vieram de outros estados, como Rio Grande do Norte, 
Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Observamos que a circulação é realizada dentro 
de um ou mais circuitos que incluem não apenas grandes aglomerados urbanos e capitais, 
mas lugares que permitem a passagem de pessoas, como rodovias, postos de gasolina, 
rodoviárias, avenidas, ruas movimentadas, espaços situados em trajetos específicos de 
determinadas categorias de trabalhadores(as), etc. Assim, elas realizam constantes 
mobilidades entre campos, cidades e aldeias e não se encontram isoladas num mesmo 
espaço, físico e simbólico. Além disso, elas não rompem com os lugares de origem e 
sempre retornam para visitar a família, sem contar com o fato de que, com a prostituição, 
elas garantem grande parte do orçamento doméstico. 
 É o caso de Claudia, travesti de origem potiguara, de pouco mais de vinte anos, cuja 
família mora em uma aldeia indígena no município de Baía da Traição e a qual ela sustenta 
economicamente com seu trabalho na prostituição. Na aldeia, seu pai e seus irmãos 
trabalham sazonalmente nas plantações cortando cana de açúcar, e na pesca do caranguejo. 
Sua mãe e suas irmãs são donas de casa. Com exceção de Claudia, os demais filhos 
construíram casas ao lado da residência dos pais. Segundo sua mãe, na aldeia é muito difícil 
ganhar dinheiro e, trabalhando em Mamanguape, Claudia pode dar “uma ajudinha” para a 
família. Mesmo não concordando com seu “jeito de mulher”, os pais terminaram 
aceitando, e hoje Claudia pode circular entre a aldeia, onde alimenta seus laços familiares, e 
outros espaços urbanos em que se diverte, trabalha e cria relações afetivo-sexuais. 
 Além das áreas indígenas, há jovens que possuem famílias que vivem nas zonas 
rurais próximas e também no próprio município de Mamanguape. Por exemplo, os pais de 
6 
 
Marta moram em um sítio no município de Mataraca, próximo à divisa com o Rio Grande 
do Norte e, até sua morte, ela colaborava com a economia doméstica. Marta foi uma das 
primeiras travestis que contribuiu com nossa pesquisa. No final de 2009, decidiu ir para 
Recife, a convite de uma travesti, “madrinha”, que recebe jovens dessa região para que 
trabalhem na prostituição em um bairro periférico. Depois de quinze dias na capital 
pernambucana, em que realizava ponto em uma calçada, situação muito diferente da 
vivenciada nos postos fiscais da BR 101, ela foi assassinada. O seu caso não teve nem a 
elaboração de um boletim de ocorrência e soma-se a mais um entre tantos outros crimes 
impunes contra travestis e homossexuais que ocorrem diariamente no Brasil. 
De uma perspectiva antropológica, a vulnerabilidade de Marta, nesse episódio, 
estava na falta de habilidade de uma jovem recém-chegada do interior da Paraíba em lidar 
com as territorialidades, conflitos e relações de poder nos espaços de prostituição. Ela 
ainda não dominava a lógica local, permeada por uma complexa rede de relações e grupos 
numa cidade de dimensões metropolitanas, com mais de 1 milhão e 500 mil habitantes11. 
Para esta etnografia, as categorias de pedaço, trajeto e mancha12, à luz de Magnani, 
podem elucidar como os espaços e equipamentos urbanos são utilizados bem como a 
construçãode rede de relações para além da sociabilidade familiar e da vizinhança associada 
à ideia de comunidade. As travestis que acompanhamos mudam constantemente de 
residência e dificilmente encontraremos com elas numa mesma casa durante mais de um 
ano. As condições econômicas precárias somam-se a uma instabilidade das relações 
conjugais e de amizade, fazendo com que uma ruptura entre amigas ou entre casais 
possibilite a mudança de endereço. Contudo, essa mudança, geralmente, é realizada dentro 
do próprio bairro e da vizinhança, ou seja, dentro do seu pedaço, onde as pessoas são 
relativamente conhecidas. Ao mesmo tempo, este pedaço também acolhe, frequentemente, 
travestis que vêm de outras localidades, devido ao trabalho rotativo da prostituição. Essa 
instabilidade ou fluidez mostra-se também na duração que as pesquisadas permanecem 
num mesmo local de trabalho. “Se não der num lugar, dá no outro”, explicam. Aquelas que 
vêm de outras regiões, geralmente, chegam até lá por indicação de uma amiga, conhecida 
ou parente e evidenciam uma vasta teia de relações, onde Mamanguape é apenas um dos 
pontos desse complexo mapa. Os bairros do Areal e do Planalto são uma espécie de mancha 
da prostituição no Litoral Norte. E podemos verificar, na imagem a seguir, diferentes 
trajetos que identificamos ao longo da pesquisa. 
 
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 Cada ponto no mapa1 é uma cidade que faz parte do circuito descrito. Os mais 
recorrentes são: 
 Mamanguape → Divisa com o Rio Grande do Norte 
 João Pessoa → Mamanguape → João Pessoa 
 Mamanguape → Brejo (região de Guarabira) 
 Mamanguape → João Pessoa 
 Mamanguape → Recife ou Natal 
 João Pessoa/Recife/Natal → Rio de Janeiro/São Paulo 
 Rio de Janeiro/São Paulo → Europa (Itália ou Espanha) 
 
 Há um desejo de sair do lugar de origem e ir para uma cidade que lhes propicie um 
maior retorno financeiro e uma maior valorização social de sua pessoa travesti. Ou seja, a 
visão de mundo nativa acompanha um continuum folk-urban (REDFIELD, 1949), que vai do 
rural ao metropolitano, localizado especialmente na Europa. Mas notamos que esta 
migração muitas vezes não se encerra, pára no meio do caminho, sofre alguns percalços e 
há sempre a possibilidade de retornar para a cidade natal, que elas chamam de “casa”. 
Desse modo, mesmo as “europeias” – que vão principalmente para a Itália e para a 
Espanha – retornam para suas cidades natais, em pequenos municípios no interior. 
 
 
 
1 Fonte: Google Maps. 
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No palco: as divas e as tops 
 A primeira descoberta de que havia um circuito de concursos de miss gay na 
Paraíba se deu durante a pesquisa de campo na casa de Gabrielle, episódio narrado no 
prelúdio deste artigo. A partir do Miss Capim, descobrimos um espaço privilegiado de 
pesquisa para a compreensão das múltiplas variações que podem ser feitas em torno de 
uma feminilidade gay e passamos a observar vários concursos de beleza em diferentes 
cidades paraibanas. Acompanhamos alguns eventos, como o Miss Paraíba Gay, o Miss João 
Pessoa Gay, o Top drag Queen, o Beleza Gay Indígena, além de competições mais curtas em 
festas, boates e paradas LGBTs. Esses eventos apresentam diferentes faces da 
travestilidade, explorando o lúdico, o poético e o gosto, digamos, americanizado. Pudemos 
observar, pelo menos, quatro estilos de performance 1) a miss; 2) a diva; 3) a drag caricata; 
4) a top drag. Cada estilo pode ser vivido pela mesma pessoa, em situações distintas, e exige 
uma determinada postura, vestimentas próprias, maquiagem, gestos, olhares, andares, falas, 
etc. De forma genérica, as pessoas que representam esses estilos podem ser consideradas 
“transformistas”, no sentido de transformar-se, temporariamente, em uma pessoa feminina. 
Em alguns concursos, encontramos divas que se definiam como transexuais e outras como 
gays; em boates, observamos jovens rapazes que começavam a experimentar processos de 
feminilização, nos quais alguns, posteriormente, se desdobraram em identidades 
transexuais, outros apenas em performances eventuais e jocosas. Muitas diferenças foram 
notadas dentro do universo observado, contudo o devir feminino, mimético, similar, “uma 
cópia de um original sem origem”, como diria Butler (2003), atravessava todos os espaços 
da pesquisa, entorpecidos de doces perfumes e o som metálico dos saltos altos. 
Muitas explicações e interpretações científicas foram feitas para definir uma certa 
identidade travesti e/ou transexual, em diferentes áreas de conhecimento, para tentar 
classificá-la dentro de um ou mais sistemas de sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2003). Nesta 
pesquisa, a partir do ponto de vista das interlocutoras, apostamos na produção de pessoas 
que manipulam categorias prescritas e possuem uma habilidade em flutuar por entre elas 
como estratégias de auto-afirmação e demarcação de fronteiras que dependem dos 
contextos observados e das redes que são acionadas por relações de oposição, justaposição, 
verossimilhança ou mimese. 
Partindo deste cenário, ensaiamos pensar não em identidades mas na construção de 
pessoas que elaboram um devir feminino dentro de um universo trans. O devir feminino 
abarca aqui desde transexuais que se definem como mulheres, e que inclusive já realizaram 
9 
 
mudança do nome social e possuem o reconhecimento jurídico da mudança de sexo, 
travestis que não querem realizar o processo cirúrgico de transgenitalização – ainda que a 
questão de ter ou não pênis seja central para a elaboração da ideia de um feminino 
“perfeito” e jovens gays afeminados que se transformam em personagens femininas em 
espetáculos e concursos. 
A noção de pessoa, como categoria do espírito humano, que varia de cultura para 
cultura, e de acordo com o período histórico (MAUSS, 2003) possibilita compreender o 
universo das transexualidades de uma perspectiva polissêmica13. Dessa maneira, para além 
do “ser ou não ser” transexual, travesti, gay afeminado, transformista, interessa-nos 
compreender como se produz uma pessoa feminina – que varia de personagem, máscara, 
persona à sujeito jurídico – a partir de corpos e agentes que permitem subverter, de um 
lado, regras heteronormativas e, de outro, reafirmar lógicas essencialistas. 
Ainda que, diversas vezes, nas pesquisas de campo, nos deparamos como 
afirmações categóricas sobre como elas se pensam, suas peculiaridades, e como se 
contrapõem em relação às mulheres, e como elaboram seus projetos de vida de forma 
única (VELHO, 2003), propomos centralizar nossa reflexão na construção da pessoa 
feminina, que se elabora a partir da possibilidade de construir imagens “exclusivas”, por 
meio da faculdade mimética, onde nenhuma é igual a outra, apenas similar. 
 A noção de mimese, aqui, refere-se àquela usada por Michael Taussig (1993): 
the nature that culture uses to create second nature, the faculty to copy, 
imitate, make models, explore difference, yield into become the Other. 
The wonder of mimesis lies in the copy drawing on the character and 
power of the original, to the point whereby the representation may even 
assume taht character and that power (TAUSSIG, 1993, p. xii). 
Na lógica da magia simpática, a faculdade mimética, para Taussig, possibilita que a 
cópia ganhe o poder do original, e adquira vida própria. Além disso, não se cria 
simplesmente uma réplica mas um permanente exercício de tradução. O autor cita em 
diferentes passagens a frase de Roger Caillois: “he is similar, not similar to something, but 
just similar”. Apesar do universo trans feminino mostrar uma forte contraposição em 
relação às “mulheres biológicas” (se é que este termo pode ser aplicado a algum grupo em 
algum lugar),seja por uma incongruência entre a anatomia e fisiologia corporais e a 
identidade de gênero, seja por um conflito, digamos cultural, entre uma 
heteronormatividade hegemônica e modelos dissidentes, a similaridade com o universo 
feminino normativo não pode ser negada. A valorização da delicadeza, da maquiagem, das 
10 
 
saias, dos bustos, das nádegas, dos gestos singelos, dos saltos, das bolsas, dos cabelos cria 
imagens essencializadas de mulheres exuberantes e desejantes. 
 Retornando aos concursos de beleza gay, na Paraíba, assim como em outras regiões 
do país (TREVISAN, 2007; GREEN, 1999), as(os) primeiros transformistas começaram a 
surgir na década de 1980 e tinham uma formação voltada para o teatro. Os espetáculos 
também estavam vinculados aos primeiros grupos organizados em João Pessoa que 
passaram a lutar pelos direitos de homossexuais, como o “Nós Também” e o “Beira de 
Esquina”, que posteriormente deram origem ao Movimento do Espírito Lilás (MEL), no 
final da década de 1990, uma das principais organizações hoje que defende os direitos de 
homossexuais em João Pessoa. 
Neste primeiro período, era organizado o concurso “Drag Mel”, que teve pelo 
menos cinco edições, entre o final da década de 1980 e o início dos anos 2000. Alguns 
artistas que participaram desses eventos ainda continuam a se apresentar, como Malu 
Morenah, ou ainda colaboram com as(os) amigas(os) na produção dos seus espetáculos, 
como Lumara Vilar, transmitindo a experiência de montagem nos camarins, desde a 
maquiagem até o figurino, e a atuação no palco. Segundo Malu Morenah, inicialmente as 
candidatas utilizavam seu conhecimento cênico para atuarem nos concursos mas hoje as 
transformistas tem aprendido seu estilo nas boates, tornando os eventos menos 
profissionais. 
Eu já tinha trabalhado no teatro, pra mim o simples não era legal, né? Que 
geralmente elas pegavam, reciclavam, faziam umas reciclagens. E eu não eu sempre 
tive um lado meio glamour, meio clean, eu gosto muito de passear nessa coisa do 
glamour, do chique... são umas histórias da minha cabeça, né, como a Rogéria (Malu 
Morenah, entrevista realizada por Thiago Oliveira e Silvana Nascimento, 
em 27.07.2011). 
Assim, observando o repertório musical e cênico de apresentações inspiradas no 
teatro, dublam-se cantores brasileiros, como Ney Mato Grosso e Maria Betânia, e também 
se homenageiam artistas clássicas como Carmem Miranda e Edith Piaf. Este é o caso de 
Malu Morenah, que é uma das cantoras oficiais das paradas LGBTs em João Pessoa e 
arredores. E também das atuações de Romilson Rodrigues, ator, homossexual, que venceu 
o concurso de Miss Gay Paraíba em 2010 com a personagem Letícia Rodrigues. Romilson, 
em parceria com seu irmão gêmeo Romildo, atua há alguns anos como ator e diretor de 
teatro, trabalha como repórter em um programa de televisão local vestido de drag caricata e 
ficou conhecido na cidade pela dupla Diet & Light, personagens drag queens gêmeas que 
11 
 
fazem apresentações em eventos de variados tipos, sempre a partir de um roteiro cômico e 
exagerado. O exagero expressa-se, em determinados eventos, de forma a caricaturar o 
universo feminino e o mundo da bicha (evocando adjetivos que remetem à feiura, à 
obesidade, à burrice, à falta de jeito feminino por parte de transformistas, etc.). Em outras 
ocasiões, as personagens procuram reforçar uma certa “perfeição feminina”, desfilam com 
faixas de miss, comportam-se como modelos usando elegantes perucas e maquiagens que 
escondem os traços masculinos de seus rostos e vestimentas que mostrem silhuetas 
sensuais e insinuantes. 
A forma caricaturizada de se referir às mulheres e ao universo feminino de modo 
geral também foi notado na maneira como as protagonistas da pesquisa se relacionavam 
com as pesquisadoras que, muitas vezes, eram chamadas de rachas, mulheres que nasceram 
com vagina. Para elas, entre rachas e bichas, rachas e travestis,14 sempre existirão diferenças 
irreconciliáveis, que começam pela presença ou ausência de pênis. 
Eu? Sentia vontade de tirar meu pênis. Eu não uso ele pra nada! Algumas falam 
que gostam, mas eu não gosto. Pronto, eu faria [a cirurgia de transgenitalização]! 
Se tivesse aqui [na Paraíba], eu tirava, mas eu penso assim sabe? De fazer e não 
fazer? Por que não fazer? Porque eu sinto falta de usá-lo em outra pessoa. Falta, 
assim, de tirar um órgão que Deus me deu, tá entendendo? Ele não me fez assim! 
Vou morrer assim! Se ele quisesse que eu fosse uma pessoa normal assim que nem 
você, perfeita, ele tinha botado um órgão genital feminino. (Doce Mel, travesti, 
João Pessoa, 2009). 
Os concursos de Miss acontecem em diferentes cidades como João Pessoa, 
Campina Grande, Bayeux, Guarabira, Patos, Monteiro, Mari, Capim etc., em diferentes 
escalas e proporções, com o objetivo de eleger uma representante do município que possa 
concorrer ao evento estadual. Proliferam-se concursos que culminam com o Miss Gay 
Paraíba, que acontece na capital, rumo ao Miss Brasil Gay, que ocorre em Juiz de Fora, 
Minas Gerais15. O processo de transformação se inicia nos camarins ou em casa, quando 
estão se preparando para irem para o evento. Por trás das coxias, já vão se tornando mais 
femininas, as vozes afinam, os andares em cima de saltos tamanhos 10, 12 e 15 tornam-se 
mais cuidadosos. Gestos. Olhares expressivos. 
 Em relação aos desfiles das candidatas, cada uma deve representar uma cidade da 
Paraíba, vestindo um traje típico e um traje de gala. Segundo os organizadores, o traje típico 
deve “levar a riqueza do estado”, sendo que algumas levam esta riqueza ao pé da letra e 
apresentam trajes cheios de pedrarias e altos custos que podem chegar de 5 a 20 mil reais. 
Os trajes de gala são sempre vestidos longos, para festas elegantes, em tecidos refinados, 
em diferentes formatos. A cena no palco, que dura por volta de dois minutos para cada 
12 
 
traje, é apenas uma pequena parte do processo de construção das personagens que se inicia 
muito antes com a escolha e confecção do figurino, os ensaios, até os comentários e a 
repercussão nas redes virtuais e nas boates16. 
 Do ponto de vista das pesquisadas, há uma hierarquia de concursos, dos mais aos 
menos valorizados, dos mais “ricos” aos mais “pobres”, que expõe uma desigualdade 
simbólica de classe e de região. Mesmo que grande parte delas pertença às classes populares 
e, algumas vezes, às classes médias, diversos aspectos dos concursos de Miss evocam a 
nobreza, a aristocracia, as elites. Por exemplo, alguns trajes típicos celebram a época áurea 
das baronesas dos engenhos de açúcar do Nordeste, sem contar as mais variadas coroas 
utilizadas, veludos e sedas. O uso de cristais swarovski, ainda que não sejam os originais, 
celebram o luxo e a alta costura, sem contar as infinidades de variações de bordados 
dourados e prateados. Ao mesmo tempo, há também o uso – que é disseminado em 
diferentes concursos de miss gay em todo o Brasil – de penas ao estilo pavão e grandes 
enfeites nas cabeças, que também são usados nos desfiles de carnaval. 
 Os concursos de Miss, além das redes virtuais, reverberam entre rapazes 
homossexuais que estão experimentando processos de feminização e transformismo. Esses 
processos são vivenciados nas boates17 e em outras formas de lazer, como shows e festas, 
onde começam a experimentar perucas, maquiagens, saltos, minissaias e podem, 
posteriormente, ser experimentados no palco, durante os concursos. 
Do aprendizado no teatro para a pista das boates, as gerações mais novas, que 
começaram a se apresentar em meados dos anos 2000, pertencem a diferentes classes 
sociais, e suas performances procuram parodiar cantoras americanas como Whitney 
Houston, e mais recentemente, Mariah Carey,Beyoncé, Ryana, Adele, entre outras. 
Predomina o estilo drag, que pode ser incorporado de várias formas18. À medida que uma 
drag é incorporada, a pessoa é transformada por meio de indumentárias, maquiagens e 
performances gestuais. Corpo e pessoa não estão separados (MALUF, 1999). 
Observamos um crescente aumento do estilo top drag nos últimos onde não se 
busca ironizar ou caricaturizar as mulheres ou o feminino (como geralmente ocorre com as 
drags caricatas), pelo contrário, procuram ser belas, dublar cantoras americanas, mostrar 
corpos e nádegas esculturais e realizar um perfeito “bate cabelo”19. A performance da top 
drag segue o seguinte roteiro: 1) Disfarce: entram no palco com capas ou mantos escuros, 
com detalhes brilhantes, escondendo-se. Podem começar de costas para a plateia. 
Começam a dublar músicas de cantoras internacionais, como Adele, Beyoncé, Whitney 
Houston etc.; 2) Corpo e figurino: arrancam a capa ou manto, olham para o público e 
13 
 
exibem o figurino – geralmente pequenos biquínis em fio dental bordados com cristais, 
miçangas, brilhos, uma bota ou sapato de salto enquanto continuam dublando a música e 
dançando; depois, tiram o chapéu ou outro adereço que escondida a peruca longa, alisada, 
penteada; jogam a peruca para a frente; alisam e ajeitam os “cabelos” como parte do 
espetáculo; 3) Bate cabelo: o ritmo da música altera-se, cessam-se os vocais e impera o 
tribal house20. No palco, luzes coloridas piscam e o público grita, assobia, bate palmas; 
começa o “bate cabelo”: elas balançam freneticamente a peruca, para os lados, para frente e 
para trás, rodopiam, sacudindo a peruca. Este é o auge do show – um transe, uma fibrilação 
– que perdura entre um e dois minutos até chegar ao seu fim, com muitos aplausos e gritos 
do público. O roteiro da performance top drag – em que o dualismo masculino/feminino é 
impensável – oscila entre o vestido e o nu, a delicadeza feminina e a androginia. 
Todavia, terminado o espetáculo, a repercussão nas redes sociais evidencia, de 
forma categórica, a beleza (ou feiura) das campeãs. O auge do show presencial, o “bate 
cabelo”, perde-se em meio a uma busca ansiosa por comentários, elogios, curtidas, 
compartilhamentos, fotografias em diferentes ângulos que evidenciam rostos 
cuidadosamente maquiados, olhares que fitam, sensualmente, a câmera, cabelos 
devidamente posicionados e penteados, poses e closes que querem ser boneca, barbie, perfeita, 
diva, rainha. 
 O reforço da aparência, com substância, tantos nos concursos de miss quanto drag, 
contribuem para dar legitimidade a pessoas jovens que estão experimentando o idioma da 
travestilidade e da feminilidade. Acompanhando o percurso de algumas protagonistas, 
notamos que os concursos de beleza e performance permitem dar legitimidade a uma 
transformação que pode levar à transexualidade (tornar-se “mulher 24 horas por dia”). Os 
concursos, muitas vezes, são a porta de entrada para experimentar a travestilidade que, em 
alguns casos, se tornará uma condição mais permanente, incluindo o trabalho na 
prostituição. 
 Este processo de transformação está perpassado por uma visualidade e uma 
corporalidade. Para Taussig, a faculdade mimética, na modernidade, mostra uma 
compulsão humana de tornar-se Outro, ou seja, a mimese evoca a produção de alteridades. 
Desse modo, da travestilidade ao transformismo, há uma tentativa constante, num 
processo que nunca se encerra, de uma cópia de um certo ideal feminino que precisa ser o 
mais belo e perfeito possível segundo os padrões dos concursos de beleza gay: elegantes 
como divas, carismáticas, que chamem a atenção, que “fechem”. Ainda segundo Taussig, 
14 
 
por meio do contato e da imitação, a noção de mimeses faz uma conexão entre o corpo do 
observador e o corpo do observado, realizando uma elaborada arte da aparência que 
termina por adquirir densidade e substância, uma fusão entre “imagem” e “espírito”. 
Para Marcos Benedetti, “é no corpo que elas localizam os principais símbolos do 
masculino e do feminino; e investem conhecimento, tempo e dinheiro para que possam 
ostentar, sentir e exibir um corpo diferente, um novo corpo” (BENEDETTI, 2005, p.51). 
O autor problematiza a construção do feminino: um feminino que não é o feminino das 
mulheres e que não abdica de características masculinas. 
As travestis buscam, em todo seu processo de transformação, aquilo que 
elas chamam de feminino. Um feminino que lhes é bem peculiar e que 
está orientado por valores e práticas os mais diversos, especialmente no 
que diz respeito ao corpo e seus usos – sendo as práticas e preferências 
sexuais os principais pontos levados em conta. (BENEDETTI, 2005, 
p.89) 
 
 Paradoxalmente, as travestis, segundo a descrição do autor, movem-se entre o 
feminino e o masculino mas essa ambiguidade se dilui no desejo de se “passarem por 
mulheres” e serem desejadas por homens “machos”. Nesse sentido, o antagonismo sexual 
permanece e a transitividade se apaga. Contudo, o processo de transformação da pessoa e 
do corpo nunca se encerra (PELÚCIO, 2005). 
A experiência de vivenciar uma feminilidade única se processa num crescendo: desde 
os primeiros gestos quando jovens rapazes deixam o cabelo crescer, fazem as sobrancelhas 
e as unhas, usam vestimentas justas, mais afeminadas, até processos mais definitivos que 
envolvem procedimentos cirúrgicos e mudanças nos documentos de registro oficial. 
Interessante observar que não há um necessariamente um único caminho a seguir nem uma 
única finalidade. Há processos e passagens mais lentos, outros mais rápidos, alguns são 
experimentados ocasionalmente, outros definitivamente. 
Aconteceu sim, primeiro foi assim [...], aquelas roupinhas assim, baby look, calça, 
depois eu comecei a tomar hormônio, tomar hormônio, tomar hormônio, faz uns três 
anos que eu tomo hormônio, e hoje eu tô assim com esse corpo feminado, eu era assim, 
eu era muito magra, tinha que tomar hormônio para ficar parecido com uma mulher 
(Gabrielle, entrevista, 22 de abril de 2010). 
 “Parecer uma mulher”, significa, certas vezes, buscar a “perfeição”, especialmente 
entre as novas gerações. Um dos rituais de passagens para uma feminilidade “perfeita” está 
nos concursos de beleza. A performance das(os) divas, de misses a drags, move-se a partir 
de uma faculdade mimética de produção de femininos que não são representações de 
15 
 
mulheres em si mas de elementos feminilizados num contexto gay. Assim, mesmo que a 
travestilidade esteja ligada ao trânsito de corpos e a possibilidades de construções e 
desconstruções de gênero, as classificações e categorizações, do ponto de vista local, se 
enrijecem. Divas precisam de cristais. Tops precisam ser as melhores. 
Políticas travestis 
 Dos brilhos dos palcos e dos saltos, chegamos ao universo da militância e da prática 
política. Ainda que sejam universos distintos, algumas militantes participam dos concursos 
como juradas ou ainda possuem trajetórias na juventude em que experimentaram 
montagens de misses e drags. Se entre jovens que podem se tornar travestis ou transexuais, 
ou apenas gays afeminados que se montam em boates e festas, a prostituição acompanha o 
processo de vivenciar formas de feminilidade que evocam nudez, pornografia, sensualidade 
e visibilidade, entre militantes do movimento transexual e travesti a prostituição evidencia, 
ao contrário, a exclusão dessas jovens das escolas, do mercado de trabalho e dos laços 
familiares. Para as ativistas, a prostituição representa uma constatação do cenário, uma 
fatalidade que torna travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade econômica, e um 
estigma que dificulta seu reconhecimento social. Para combater essas múltiplas formas deexclusão, o termo “travesti” tem sido menos utilizado publicamente por parte das 
militantes justamente para romper com os estereótipos que as vinculam à prostituição e à 
marginalidade e elas têm utilizado com mais frequência “transexual”. 
 Para Geo Laverna, ex-presidente da ASTRAPA (Associação das Travestis e 
Transexuais da Paraíba)21 e atual agente de direitos humanos do Centro de Referência 
Estadual LGBT da Paraíba, “a mulher está na mente e não no corpo”, ela não faz questão 
de realizar mudanças radicais em seu corpo nem tomar hormônios regularmente. Assim, ela 
se define como mulher transexual mesmo não desejando realizar transformações cirúrgicas 
em seu corpo, e busca construir uma trajetória que rompa com o estigma que associa a 
transexualidades à prostituição e luta pelos seus direitos e de outras companheiras. 
Na ASTRAPA, pudemos conhecer a atuação de algumas militantes, com histórias 
distintas: Lumara Vilar, Mimosa, Gel Laverna, Andreina, Josi e Fernanda Benvenutty. Esta 
última possui uma projeção nacional. Foi uma das fundadoras da entidade paraibana, fez 
parte da vice-presidência da Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros 
(ANTRA) e hoje é conselheira fiscal e representante estadual na Paraíba da Associação 
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT); já se candidatou 
duas vezes a vereadora e a deputada estadual nas últimas eleições. Alterna seu trabalho 
16 
 
como mãe, parteira e organizadora de desfiles no carnaval, com as intensas atividades de 
militância em diferentes cidades do país e compõe o Fórum LGBT da Paraíba. Por ela 
mesma, Fernanda define-se como “política 24 horas, não adianta você dizer que você não é 
um ser político”22. 
 A afirmação política das travestis e transexuais femininas que se consideram 
militantes, dentro do leque variado do universo trans, tem se mostrado como uma 
estratégia de reconhecimento onde há pouco espaço para a emergência de possibilidades 
transitivas de ser e de estar. Ainda que em termos antropológicos haja a possibilidade de 
uma gama de variações em torno das transexualidades e travestilidades, para o movimento 
transexual no Brasil, as marcações identitárias são necessárias para a implantação de um 
projeto político que se desdobre em políticas públicas. Todavia, essas marcações, 
aparentemente fixas, podem mudar de acordo com os interesses coletivos e negociações. 
Ao reafirmar a categoria “transexual”, este segmento descola-se da fluidez queer e não 
incorpora facilmente cross dressers, drag queens, etc. Ao mesmo tempo, recentemente, o 
movimento transexual teve que aglutinar as demandas de outro público – os transexuais 
masculinos ou homens trans – cenário que merecer ser descrito e analisado com atenção 
em outras pesquisas etnográficas. 
De qualquer modo, se no plano do discurso oficial a fluidez é camuflada, em 
contextos cotidianos e de sociabilidade ela está presente, ainda que para ser reprimida, 
questionada ou assumida. Há a construção de códigos-território que apresentam 
interseções, fluxos desejantes e mobilizações, que envolvem relações de poder 
(PERLONGHER, 2008). Um desses códigos-território são as Paradas Gays ou LGBTs 
onde se observa uma confluência de pessoas, militantes e não-militantes, homossexuais e 
não homossexuais, que participam da festa de modos diferentes, com propósitos distintos. 
Na Paraíba, essas manifestações iniciaram-se por volta dos anos 2000 e 
aconteceram, inicialmente, na capital João Pessoa. Mas, a partir de 2005, começaram a ser 
realizadas também paradas no interior, primeiramente em cidades de médio porte, como 
Itabaiana, Campina Grande, Guarabira, Mamanguape, Santa Rita, entre outras e 
posteriormente em cidades de pequeno porte como Mari, Congo, Pedra Lavrada e Baía da 
Traição23. Nas cidades do interior, as paradas são oportunidades importantes para que 
travestis, gays, lésbicas, drags possam mostrar-se para sua cidade e andar nas ruas de 
maneira mais livre, sem os constrangimentos da vida cotidiana, e fazer parte de um evento 
conhecido nacionalmente, com a cobertura da mídia. Diferentemente das paradas que 
acontecem em grandes metrópoles como São Paulo, a ocupação da rua é feita de forma 
17 
 
quase familiar, com poucos gestos públicos erotizados ou pornográficos, observando 
discretos beijos e casais homossexuais de mãos dadas. 
 Por meio das paradas, os circuitos da prostituição, da beleza e da política se 
encontram. As divas se cruzam com as pobres, as top drags com as travestis que se prostituem, 
as da capital com as do interior, as europeias com as paraibanas. Todavia, esse encontro 
ritual tem curta duração e depois se desfaz com a constante segmentação de grupos, 
classificações identitárias, organizações e redes de sociabilidade que se pulverizam por 
diferentes territórios e trajetos, dentro e fora da Paraíba. 
A irradiação das paradas para o interior, fazendo a interconexão entre cidades, 
capital e interior, campo e cidade, permite a costura de um fio invisível entre os três 
circuitos apresentados onde podemos pensar na construção de transexualidades e 
travestilidades em contextos não-metropolitanos e em diferentes sentidos de cidade, para 
além de unidades sociológicas mais amplas. 
Os concursos de beleza e as redes de prostituição constroem modelos de beleza 
projetados, de certo modo, em estilos metropolitanos. Ao mesmo tempo, criam trajetos de 
larga escala – das aldeias da Baía da Traição, Litoral Norte do estado, a cidades da Itália e 
Espanha, passando por Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Por sua vez, as(os) atoras(os) 
que fazem parte do movimento LGBT procuram reagir a esses modelos e criam modos 
mais estáticos de sexualidade mas acionam os modelos do circuito da beleza em ocasiões 
estratégicas. Se, de um lado, há um projeto de internacionalização e de metropolização, por 
meio dos concursos de beleza e da prostituição, de outro, há um movimento de 
interiorização, influenciado pelos ativistas, sem perder de vista referências de organizações 
em capitais maiores, como o Grupo Gay da Bahia, em Salvador e a Parada Gay de São 
Paulo. 
 Essa dinâmica cidade-campo, rural-urbano, metropolitana e não- metropolitana, 
ainda foi pouco registrada pelas pesquisas acadêmicas sobre a temática e merece estudos 
mais aprofundados pois as atoras observadas não se revelam apenas em grandes cidades, 
tampouco a prostituição pode ser encarada como um fenômeno estritamente urbano. 
 
Fechando a cortina 
 
 A produção brasileira sobre travestis, transexualidades e transformismo na área de 
antropologia e ciências humanas, de modo geral, é recente e começou a se desenvolver no 
final da década de 198024. Em 1983, Neuza de Oliveira realiza pesquisas em Salvador e 
18 
 
apresenta um olhar psicanalítico baseado na ideia de que as travestis seriam “invertidos” 
sexualmente25. Ainda nesse período, Luiz Mott mostra que as transformações de gênero no 
Brasil existem desde o período colonial e apresenta relatos da “primeira travesti brasileira”, 
um escravo vindo do Congo que respondia pelo nome de “Vitória” (Mott, 1988)26. Na 
década de 1990, pesquisas foram realizadas, em sua grande maioria, em cidades de grande 
escala – Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Paris, Porto Alegre (SILVA, 1993 e 1997; 
PIRANI, 1997; JAYME, 1998; KULICK, 1998; OLIVEIRA, 1997; FLORENTINO, 
1998), evidenciando que, até então, o fenômeno do universo trans irrompia em contextos 
metropolitanos. 
 A partir dos anos 2000, as pesquisas sobre travestis e transexuais cresceram 
significativamente, em diferentes áreas das ciências humanas no Brasil, desdobrando a 
temática nas questões que envolviam processos deconstrução do corpo, da identidade e da 
sexualidade, diferenças geracionais; transnacionalização e migração; formas de violência, 
etc. (BENEDETTI, 2005; CARRARA e VIANA, 2006; PELÚCIO, 2009; BENTO, 2007; 
TEIXEIRA, 2009; DUQUE, 2009; SIQUEIRA, 2009; LIMA,2009; LEITE JR., 2006 e 
2011). Nesse momento histórico, também começam a se fortalecer os movimentos sociais 
específicos que lutam pela causa trans. Em 2000, nasce a ANTRA (Associação Nacional de 
Travestis, Transsexuais e Transgêneros), em Porto Alegre e logo na sequência em 2002 
nasce a ASTRAPA e a realização da 1ª Parada Gay em João Pessoa. Em 2008, acontece a 1ª 
Conferência Nacional LGBTT e a posterior elaboração do Plano Nacional de Promoção da 
Cidadania e Direitos Humanos e LGBT. 
No período, ainda há um maior destaque para pesquisas realizadas em grandes 
cidades mas começam a surgir trabalhos voltados para o Nordeste, como Fortaleza (VALE, 
2005) e Recife (MAIA, 2006; PATRÍCIO, 2008) e algumas pesquisas em cidades pequenas 
e médio porte, como Campina Grande/PB (PATRICIO, 2002), São Carlos/SP 
(PELÚCIO, 2005) e Vale das Passagens (CARDOZO, 2009), no sul do Brasil, entre 
outros. 
 Esses trabalhos acima listados evidenciam que o campo das travestilidades e 
transexualidades está em evidência no campo das ciências humanas e sociais, 
principalmente nos estudos de gênero e sexualidade. Recentemente, o Ministério da Saúde 
promoveu a campanha Nome Social para Travestis e Transexuais, na tentativa de implantar 
a Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009 que autoriza a mudança do nome social no Cartão 
SUS. Há diversas portarias municipais e estaduais que tem impulsionado o uso do nome 
19 
 
social por pessoas trans em instâncias públicas e privadas. A mudança do nome não 
significa simplesmente uma alteração jurídica nos registros oficiais como cidadãs, 
representa, para elas, a possibilidade de estar no mundo tal como desejam e se sentem, 
femininas. 
Em nossas pesquisas, apontamos para uma visibilidade de travestis e transexuais em 
cidades do interior da Paraíba, que nos leva a conjecturar sobre algumas questões: os 
modelos de família tradicional podem estar em processo de transformação e ter construído 
espaços de tolerância para a homossexualidade, ou ainda esses modelos sempre tiveram 
espaços de tolerância para sexualidades não-hegemônicas mas ainda não tinha sido 
descritos ou observados com a devida atenção por pesquisadoras(es). De uma forma ou de 
outra, por meio da perspectiva etnográfica, pensamos na ideia de um universo trans como 
“ilhas” metropolitanas que reúnem espaços e estilos de vida urbanos e não-urbanos, e que 
permitem mobilidades entre diferentes cenários e constantes trânsitos, corporais, 
simbólicos e territoriais. 
Para finalizar, trazemos fragmentos biográficos de mais uma protagonista de nossas 
investigações. A primeira modelo do cartaz da campanha do governo federal pelo “Nome 
Social” foi justamente Fernanda Benvenutty, transexual ativista paraibana, que hoje já 
adquiriu o nome social em seus documentos e projeção nacional. Fernanda não é apenas 
uma representante do movimento transexual feminino no Brasil, ela singulariza uma 
trajetória de uma pessoa que transita entre os mundos da maternidade, da família, do 
mundo gay, dos serviços de saúde, como técnica em enfermagem, do universo da política, 
dos movimentos sociais e dos desfiles carnavalescos. De sua primeira fuga de casa, aos 15 
anos, acompanhando um grupo de circo, no interior da Paraíba, aos atuais 51 anos, 
Fernanda investe na sua pessoa, como ativista e mulher, para que outras travestis e 
transexuais possam espelhar-se nela e circular entre o mundo e a Paraíba, terra masculina e 
de mulher macho, sim senhora!. 
 
Referências bibliográficas 
 
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20 
 
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21 
 
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em Sociologia. UFC. Fortaleza. 
 
 
1 Este artigo sintetiza discussões apresentadas em dois papers elaborados para eventos científicos, o 
primeiro na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, em julho de 2012, em SãoPaulo (SP) e o 
segundo na IV Reunião Equatorial de Antropologia e XII Reunião de Antropólogos do Norte e 
Nordeste, em agosto de 2013, em Fortaleza (CE). Agradeço as valiosas contribuições dos(as) 
colegas Antônio Maurício Costa (UFPA), Jane Beltrâo (UFPA), Laura Moutinho (USP) e Fabiano 
Gontijo (UFPA). 
2 Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Ex-docente do 
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus Litoral 
Norte. É pesquisadora do LabNau – Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. 
3 João Pessoa, capital da Paraíba, é uma cidade que possui aproximadamente 720 mil habitantes 
(Censo IBGE, 2010). 
4 O Litoral Norte da Paraíba é uma microrregião que compreende onze municípios: Mamanguape, 
Rio Tinto, Baía da Traição, Marcação, Itapororoca, Jacaraú, Pedro Régis, Curral de Cima, Capim, 
Cuité de Mamanguape e Mataraca. 
5 Usamos “trajeto” a partir da definição de Magnani: “é a extensão e principalmente a diversidade 
do espaço urbano para além do bairro que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões 
distantes e não contíguas: esta é uma primeira aplicação da categoria: na paisagem mais ampla e 
diversificada das cidades, trajetos ligam pontos, manchas, circuitos, complementares ou 
alternativos” (MAGNANI, 1996, pág. 43). 
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6 Elas realizam constantes mobilidades entre campos, cidades e aldeias e não se encontram isoladas 
num mesmo espaço, físico e simbólico. Há aquelas oriundas de bairros rurais em pequenos 
municípios, como Mataraca e Itapororoca. Identificamos, até o momento, pelo menos oito a dez 
travestis que moram em áreas indígenas na região entre Rio Tinto e Baía da Traição. Segundo elas, 
“se você quiser ver bicha lá é só o que tem”. Algumas estão na Itália, outras retornaram, outras 
ainda almejam mudar-se para lá. Da Itália para a aldeia, há um circuito que mobiliza travestis jovens 
nesta localidade. Há também aquelas que vieram de outros estados, como Rio Grande do Norte, 
Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Nota-se que elas não rompem com os lugares de origem e 
sempre retornam para visitar a família, sem contar com o fato de que, com a prostituição, elas 
garantem grande parte do orçamento doméstico. 
 
7 Verônica Alcântara Guerra, hoje mestranda em Antropologia pela UFPB, Lívia Freire da Silva 
atualmente mestranda em Antropologia pela UFRN, Thiago Lima de Oliveira, hoje bacharel em 
Tradução (UFPB) e Luzicleide de Lima Bernardo, atual bacharel em Antropologia (UFPB). 
8 A proposta do Guetu é possibilitar espaços de interlocução acadêmica e elaboração de etnografias 
que promovam o diálogo da Antropologia Urbana com temas ligados aos Marcadores Sociais da 
Diferença (corpo, gênero, geração, raça, etnia, etc.) e refletir sobre a clássica relação campo-cidade, 
rural-urbano, comunidade-sociedade, socialidade-sociabilidade. 
 
9 Na Paraíba, o termo rapariga, muitas vezes, é atribuído a mulheres e travestis que se prostituem. 
10 Rio Tinto, com aproximadamente 22.876 moradores (Censo 2010, IBGE), foi construída no 
início do século 20 para receber as instalações e a vila operária da Companhia de Tecidos Rio Tinto 
(dos mesmos proprietários da Companhia de Tecidos Paulista, localizada em Paulista, Pernambuco: 
a família Lundgren). A fábrica encontra-se fechada há 18 anos e grande parte dos moradores da 
cidade são trabalhadores aposentados da fábrica. Nos últimos anos, destaca-se a emergência e o 
fortalecimento dos povos indígenas Potiguara, que conquistaram a demarcação de suas terras, 
sendo que parte delas encontra-se dentro do perímetro urbano. Os índios começam a emergir como 
atores de um cenário urbano ocasionando conflitos, ainda que de forma sutil, com os moradores da 
cidade que se consideram “não-índios” e trazem à tona ambiguidades da história e memória de Rio 
Tinto. De um lado, a cidade entrou em decadência econômica pelo fechamento da companhia. De 
outro, abriu possibilidades para a emergência étnica de índiosque, até então, sofriam de 
discriminação e violência por parte dos moradores da cidade, dos usineiros, que ainda ocupam 
vastas áreas dentro das reservas indígenas, e da família Lundgren. Grande parte dos povos 
indígenas encontram-se nos municípios de Rio Tinto, Marcação e Baía da Traição, com 8.012 
moradores (Censo 2010, IBGE), que se distribuem por 32 aldeias, com uma população aproximada 
de 19 mil pessoas (Dados da Fundação Nacional do Índio, 2012) 
11 A partir desse trágico acontecimento, que fez com que a equipe da pesquisa refletisse 
politicamente sobre a situação de travestis e transexuais na região, elaboramos um programa de 
extensão (Editais Probex UFPB 2010, Probex UFPB 2011 e Proext MEC 2012), que se iniciou em 
2010 e terminará no final de 2013, em parceria com o movimento LGBT e com a Secretaria 
Estadual da Mulher e da Diversidade Humana da Paraíba. Atualmente, são três projetos em 
desenvolvimento: uma exposição fotográfica itinerante “Variações do feminino – poéticas do 
universo trans”, uma pesquisa sobre a memória do movimento LGBT no estado e um projeto de 
pesquisa e intervenção sobre a formação política e sociabilidade da juventude LGBT em João 
Pessoa, que inlui performances e experimentações etnográficas. O programa é coordenado por 
Silvana de Souza Nascimento (USP) e Monica Franch (PPGA/UFPB). 
12 O pedaço se define pelas relações entre seus membros, “pelo manejo de símbolos e códigos 
comuns. (...) A mancha, ao contrário – sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos 
-, apresenta uma implantação mais estável tanto na paisagem como no imaginário. As atividades que 
oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre seus 
equipamentos, edificações e vias de acesso – o que garante uma maior continuidade, 
23 
 
 
transformando-a, assim, em ponto de referência físico, visível e público para um número mais 
amplo de usuários” (MAGNANI, 1996, pág. 43). 
 
13 Permitimo-nos, assim, lembrar de um texto já clássico na etnologia brasileira, “A construção da 
pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” para se pensar na ideia de pessoa como aquilo que 
define os seres humanos, de um certo ponto de vista. “Tomar a noção de pessoa como uma 
categoria é tomá-la como instrumento de organização da experiência social” (SEEGER, DA 
MATTA E VIVEIROS DE CASTRO, 1987, pag. 15). 
14 O par racha/bicha acompanha a dualidade homossexual(bicha)/heterossexual (macho/fêmea ou 
feme). A categoria nativa bicha transcende as travestis e as transexuais, como se as incluíssem dentro 
do leque da homossexualidade. Elas podem ser acionadas em situações ordinárias, para falarem de 
si mesmas, em situações de conflito onde se tornam um xingamento, ou em situações jocosas, onde 
podem brincar, ironicamente, com a própria sexualidade. Essas situações jocosas foram observadas 
em espaços de sociabilidade, como nas boates, e nas apresentações sobretudo das drags caricatas. 
 
15 O Miss Gay Brasil já está na sua 36ª edição e hoje é um evento que chega a receber 5 mil pessoas, 
em sua maioria gays. As candidatas vêm representar seus estados e os quesitos avaliados para traje 
típico e de gala são: beleza, elegância, postura e carisma. Para participar do concurso, o candidato 
deve ser do sexo masculino, ter entre 18 e 35 anos e não possuir implante de silicone em nenhuma 
parte do corpo. A história do MissGay remonta a 1977, em Juiz de Fora/Minas Gerais, quando o 
cabeleireiro Chiquinho Mota organizou um concurso de beleza gay que imitava o Miss Brasil para 
mulheres com o intuito de angariar fundos para a Escola de Samba Juventude Imperial. Nas 
primeiras edições, assim como os bailes de travestis no Rio de Janeiro, o evento fazia parte das 
comemorações carnavalescas e aos poucos foi ganhando vida própria e passou a ser realizado, 
todos os anos, em agosto. 
16 Como estratégia metodológica de aproximação com as candidatas, passamos a fotografá-las em 
todo o processo de montagem da miss e da drag. Com a colaboração do fotógrafo Paulo Rossi, 
realizamos diferentes tipos de imagens, inclusive os bastidores nos camarins, evidenciando detalhes, 
objetos, cenas, retratos, gestos, poses, iluminação. Parte das fotografias da pesquisa encontram-se 
no site www.paraibatrans.org e na série Fe-meninos, de Paulo Rossi: 
http://paulorossifotografia.com.br/blog/2011/04/19/fe-meninos. 
17 Durante a pesquisa, João Pessoa tinha três casas noturnas voltadas para o público LGBT, 
localizadas no centro da cidade: a Vogue, mais antiga; e a Sky e a Space Pink, inauguradas em 2011. 
Depois da tragédia com a boate Kiss, em Santa Maria/RS, todos os espaços foram fechados e ainda 
não foram reabertos, devido às exigências mais rigorosas do corpo de bombeiros. 
18 Existem múltiplas definições do seja uma drag que varia não somente nas diferentes regiões do 
país e do mundo mas também entre as próprias pesquisadas. Na pesquisa realizada por Anna Paula 
Vencato em Florianópolis, as definições parecem semelhantes a que encontramos na Paraíba: “Top-
drags - Têm postura bastante feminina, interagem com a moda, têm a obrigação de estar bonitas e 
sexy, devem se parecer um pouco com mulheres; Caricatas - Alegóricas, cômicas, engraçadas, 
exageradas; Ciber-drags - Relativamente semelhantes às tops, mas com um estilo bem mais 
‘futurista’; Andróginas ou go-go drags - Mais masculinas, sem pretensões de se aproximarem muito 
do feminino. Não se depilam, por vezes; Bonecas – Como Isabelita dos Patins, que possui um 
personagem único e cujos movimentos lembram um pouco uma boneca”. (VENCATO, 2002, 
p.67). 
 
19 Nos concursos de Top Drag, os(as) jurados(as) devem analisar as candidatas de acordo com os 
seguintes critérios: maquiagem, figurino, dublagem, performance e originalidade. 
20 O ritmo tribal house usado nas performances drags e tocado nas boates é um estilo de música 
eletrônica comercial que usa misturas de sons de percussão com batidas fortes e pesadas, em ritmos 
24 
 
 
repetitivos. Há também o estilo drag music, que pode ser definido como tribal, onde há uma 
estrutura mais ou menos fixa que se inicia com vocais e pouca percussão e posteriormente uma 
pletora de sons de percussão em batidas aceleradas, que animam os “bate-cabelos” das drags 
21 A ASTRAPA, criada em 2002 impulsionada pelo Movimento do Espírito Lilás (MEL), tem como 
propósito “articular, mobilizar, propor e monitorar políticas públicas de superação e enfrentamento 
à discriminação e à violência homofóbica e fortalecer a auto-estima e promover a cidadania plena 
de travestis e transexuais” (www.astrapa.blogspot.com). 
22 Entrevista realizada por Silvana Nascimento, João Pessoa, agosto de 2011. 
23 A Parada LGBT da Baía da Traição teve a sua segunda edição em 2011 e foi organizada por um 
rapaz homossexual, militante, filho de uma liderança política reconhecida na área indígena 
potiguara. Este rapaz tem um projeto de implantar uma associação LGBT indígena que possa 
mobilizar jovens de suas aldeias. 
24 Com o advento da epidemia HIV/Aids, diversas pesquisas foram desenvolvidas no campo da 
homossexualidade e a temática travesti pôde ganhar legitimidade científica. Nesse período, algumas 
travestis ganharamam visibilidade na mídia, como Thelma Lipp (do programa Bolinha), Rogeria, 
Roberta Close, Patrícia Bisso, Laura de Vison. Esta visibilidade no campo midiático e cultural 
também possibilita o surgimento das drag queens nas casas noturnas e festas do cenário clubber 
(PALOMINO, 1999). 
 
25 Seu trabalho foi publicado em 1994. 
26 Num período anterior, em 1959, Roger Bastide escreve um artigo pioneiro, “O homem 
disfarçado em mulher” no livro Sociologia do Folclore Brasileiro, no qual descreve os rituais de 
travestismo e inversão de gênero no carnaval.

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