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Oliver Sacks Na pele de um cão

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NA PELE DE UM CÃO – Oliver Sacks
Stephen D., 22 anos, estudante de medicina, sob efeito de drogas (cocaína, cloridrato de fenociclidina [PCP], principalmente anfetaminas).
Sonho vivido uma noite, sonhou que era cachorro, em um mundo de odores inimaginavelmente rico e significativo. (”O cheiro alegre da água... o cheiro
desafiador de uma rocha”.) Ao acordar, ele se viu em um mundo exatamente como aquele. ”Como se eu tivesse sido totalmente daltônico antes e de repente me achasse em um mundo cheio de cores”. Ele de fato
apresentou uma acentuação da visão em cores (”Eu conseguia distinguir dúzias de marrons onde antes só via marrom. Meus livros encadernados com couro marrom, que antes pareciam semelhantes, passaram todos a ter matizes bem distintos e perceptíveis”) e uma notável intensificação da percepção visual e memória eidética (”Eu antes não conseguia desenhar,
não conseguia ’ver’ as coisas na mente, mas depois era como ter uma câmara clara na cabeça — eu ’via’ tudo como se estivesse projetado no papel, e apenas desenhava os contornos que ’via’. Subitamente, tornei-me
capaz de fazer desenhos anatômicos muito precisos”). Mas foi a hipertrofia do olfato que verdadeiramente transformou seu mundo: ”Sonhei que
era cachorro — foi um sonho olfativo — e acordei para um mundo infinitamente aromático, um mundo no qual todas as outras sensações, intensificadas como estavam, empalideciam diante dos cheiros”. E tudo isso
veio acompanhado de uma espécie de emoção vibrante, ansiosa, e uma estranha nostalgia, como que por um mundo perdido, meio esquecido, meio lembrado.*
”Entrei numa loja de perfumes”, continuou ele. ”Eu nunca tinha sido muito bom para distinguir cheiros antes, mas dessa vez diferenciei cada um
instantaneamente — e para mim cada um era único, evocativo, todo um mundo.” Ele descobriu que podia distinguir todos os seus amigos — e pacientes — pelo cheiro. ”Eu entrava na clínica, farejava como um cão e,
naquela fungadela, reconhecia, antes de ver, os vinte pacientes que estavam ali. Cada um possuía sua fisionomia olfativa, um rosto-cheiro, muito mais vivido e evocativo, mais fragrante do que qualquer rosto
visto.” Ele era capaz de cheirar as emoções — medo, alegria, sexualidade — como um cachorro. Podia reconhecer cada rua, cada loja, pelo cheiro — era capaz de se deslocar por Nova York, infalivelmente, guiado
pelo olfato.
Ele sentiu um certo impulso de farejar tudo e de tocar em tudo (”Nada era verdadeiramente real enquanto eu não sentisse e tocasse”), mas o reprimia, quando estava com outras pessoas, para não ser inconveniente. Os odores sexuais eram excitantes e intensificados — porém não mais do que o cheiro de comida e outros aromas, a seu ver. O prazer olfativo
era intenso — e também o desprazer — mas para ele parecia menos um mundo de mero prazer ou desprazer e mais toda uma estética, toda uma avaliação, todo um novo significado a cercá-lo. ”Era um mundo
irresistivelmente concreto, de pormenores”, explicou, ”um mundo irresistível de natureza imediata, de significado imediato”. Ele que antes era um tanto intelectual, dado a reflexão e abstração, passou a considerar o pensamento, a abstração e a categorização um tanto difíceis e irreais diante do imperioso caráter imediato de cada experiência.
NR
”reminiscência” e déjà vu associados a intensas alucinações do olfato — são característicos de ”ataques uncinados”, uma forma de epilepsia do lobo temporal descrita pela primeira vez por Hughlmgs Jackson a cerca de um século Em geral, a experiência é muito específica, mas ocasionalmente ocorre uma intensificação geral do olfato, uma hiperosmia O gancho do hipocampo, filogeneticamente uma parte do antigo ”cérebro olfativo” (ou nnencéfalo), tem associação funcionai com todo o sistema límbico, o qual
vem sendo cada vez mais reconhecido como crucial para determinar e regular todo o ”tono” emocional A excitação deste, por qualquer meio, produz emotividade acentuada e intensificação dos sentidos
De maneira muito súbita, após três semanas, essa estranha transformação cessou — seu sentido do olfato, todos os seus sentidos, voltaram ao normal; ele se viu novamente, com uma sensação que era um misto de
perda e alívio, em seu antigo mundo de palidez, de sentidos débeis, de não-concretude e abstração. ”Estou feliz por ter voltado”, ele comentou, ”mas é uma perda enorme, também. Agora percebo o que deixamos de
lado por sermos civilizados e humanos. Também precisamos do outro — do ’primitivo.’”
Dezesseis anos se passaram — e os tempos de estudante, de anfetaminas, ficaram bem para trás. Nunca mais houve recorrência de coisa alguma
remotamente semelhante. O dr. D. é um jovem clínico geral muito bem-sucedido, meu amigo e colega em Nova York. Ele não lamenta — mas às vezes sente saudades: ”O mundo dos cheiros, o mundo dos aromas”, exclama, ”tão vivido, tão real! Foi como uma visita a um outro mundo, um mundo de pura percepção, rico, vivo, auto-suficiente e pleno. Como eu gostaria de às vezes poder voltar a ser cachorro!”. Freud escreveu em várias ocasiões que o sentido do olfato no homem era uma ”perda”, reprimido no crescimento e na civilização quando o homem assumiu
a postura ereta e reprimiu a sexualidade primitiva, prégenital.
De fato, intensificações específicas (e patológicas) do olfato foram registradas na parafilia, fetichismo e perversões e regressões afins.* Mas a
desinibição aqui descrita parece mais geral e, embora associada a excitação — provavelmente uma excitação dopaminérgica induzida por anfetamina —, não era especificamente sexual nem associada a regressão sexual. Hiperosmia semelhante, às vezes paroxísmica, pode ocorrer em estados excitados hiperdopaminérgicos, como no caso de alguns pósencefalíticos
tratados com levodopa e alguns pacientes com síndrome de Tourette.
O que vemos é, no mínimo, a universalidade da inibição, mesmo no nível perceptivo mais elementar: a necessidade de inibir o que Head denominava
”protopático”, considerado primordial e repleto de tom do sentimento, a fim de permitir a emergência do ”epicrítico”, refinado, categorizante e sem tono
emocional.
A necessidade dessa inibição não pode ser reduzida ao freudiano, nem sua redução pode ser exaltada, romantizada como blakeana. Talvez precisemos dela, como Head dá a entender, para que possamos ser homens e não cães.* Entretanto, a experiência de Stephen D. nos lembra, como o poema de G. K. Chesterton, ”The song of Quoodle”, que às vezes precisamos ser cães e não homens: Eles não têm nariz Os decaídos filhos de Eva...
Oh, para o cheiro alegre da água, o cheiro desafiador de uma rocha!
PÓS-ESCRITO
Recentemente, encontrei uma espécie de corolário deste caso — um homem talentoso que sofreu uma lesão na cabeça, danificando gravemente seus tratos olfativos (estes são muito vulneráveis em seu longo
trajeto pela fossa anterior) e, em conseqüência, perdendo por completo o sentido do olfato. Ele se espantou e ficou aflito com os efeitos dessa
perda: ”Sentido do olfato?”, diz ele. ”Eu não lhe dava a menor importância. Normalmente ninguém dá. Mas quando o perdi — foi como ficar cego de repente. A vida perdeu boa parte do sabor — ninguém percebe o quanto o ’sabor’ vem do cheiro. Nós cheiramos as pessoas, cheiramos os livros, cheiramos a cidade, cheiramos a primavera — talvez não conscientemente, mas como um rico pano de fundo para tudo o mais. Todo o meu mundo de repente ficou radicalmente mais pobre [...]” Havia uma sensação aguda de perda, um imenso anseio, uma verdadeira osmalgia: o desejo de lembrar
o mundo dos cheiros ao qual ele não prestara atenção conscientemente, mas que, ele agora sentia, formara o verdadeiro alicerce da vida. E então, alguns meses depois, para seu espanto e alegria, o café da manhã que ele tanto apreciava e que se tinha tornado ”insípido” começou a readquirir seu
sabor. Hesitante, ele experimentou o cachimbo, intocado havia meses, e ali também percebeu sinais do rico aroma que ele adorava.Todo animado—os neurologistas não haviam dado esperanças de recuperação — ele voltou ao médico. Porém, depois de examiná-lo minuciosamente, empregando a técnica do ”duplo cego”, o médico declarou: ”Não, infelizmente não há nenhum sinal de recuperação. Você ainda tem uma total anosmia. Mas é
curioso que agora ’sinta o cheiro’ do cachimbo e do café...”. O que parece estar acontecendo — e é importante que apenas os tratos olfativos, e não o córtex, tenham sido danificados — é o desenvolvimento de uma imagem mental olfativa muito acentuada, poderíamos dizer quase uma alucinose controlada, de modo que ao beber café e acender o cachimbo — situações que antes eram normalmente repletas de associações com aromas — ele agora consegue evocar ou evocar novamente esses aromas, inconscientemente e com tal intensidade que ele a princípio pensou que fossem ”reais”. Essa capacidade — em parte consciente, em parte
inconsciente — intensificou-se e disseminou-se. Hoje em dia, por exemplo, ele fareja e ”sente o cheiro” da primavera. Ou pelo menos traz à tona uma lembrança ou quadro dos aromas, tão intenso que ele quase consegue enganar a si mesmo, e enganar os outros, fazendo crer que realmente está sentindo o cheiro. Sabemos que essa compensação ocorre com frequência nos cegos e nos surdos. Lembremos o surdo Beethoven e o cego Prescott. Mas ignoro se isso é comum com a anosmia.