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Curso de Pedagogia – Brasil/Japão – Débora Krischke Leitão Márcia Santos Ferreira Antropologia Curso de Pedagogia – Brasil/Japão – Débora Krischke Leitão Márcia Santos Ferreira Cuiabá, 2009 Antropologia Leitão, Débora Krischke; Ferreira, Márcia Santos Antropologia : Curso de Pedagogia : Brasil/Japão / Débora Krischke Leitão e Márcia Santos Ferreira. -- Cuiabá, MT: Central de Texto : EdUFMT, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-00000-00-0 1. Educação a distância 2. Pedagogia - Estudo e ensino I. Título. Índices para catálogo sistemático: 1. Ononononono : Ononononono : Ononononono 000.000 00-00000 CDD-000.000 Conselho Editorial Kátia Morosov Alonso Maria Lúcia Cavalli Neder Paulo Speller Maria de Lourdes Bandeira De Lamonica Freire Sandra Regina Geiss Lorensini Rosiméry Celeste Petter Silas Borges Monteiro Lúcia Helena Vendrúsculo Possari Produção editorial Central de Texto Projeto gráfico Helton Bastos Paginação Maike Vanni Tratamento de imagens Ronaldo Guarim Revisão para publicação Henriette Marcey Zanini Núcleo de Educação Aberta e a Distância Av. Fernando Corrêa da Costa, s/ nº Campus Universitário – Cuiabá-MT www.nead.ufmt.br – tel: (65) 3615-8438 Apresentação Ao iniciarmos estudos na área de Antropologia, como parte integrante de um curso mais amplo de formação de Educadores, parece que um bom ponto de partida a ser tomado é o questionamento sobre como o conjunto diversificado de “conhecimentos” ou de “formas de olhar o mundo” que constitui o pensamento antropológico pode con- tribuir nesse processo de formação. Se entendemos que o nosso curso de Pedagogia tem como um de seus propósitos contribuir para que os Educadores nele formados tornem-se conscientes e atuantes em relação aos alcances e desafios que a prática de sua profissão envolve nos dias atuais, pensamos ser muito importante, neste início de percurso, refletir sobre al- guns pensamentos provocativos que talvez estejam passando pela sua cabeça neste momento: � Para que estudar Antropologia? Eu não deveria estar estudando coisas sobre como ensinar e aprender? Será que eu não estou perdendo tempo com essa Antropologia? Em que a Antropologia pode me ajudar a ser um bom Educador/a? Esperamos que, ao longo de nossas discussões, sejamos capazes de mostrar que a Antropologia pode ajudar a elaborar e a colocar em prática várias formas alternativas de “olhar” as coisas do mundo e das pessoas, e que o desenvolvimento desses múlti- plos “olhares” está relacionado a diferentes formas de “aprendizagem” que podem ser muito úteis em suas práticas no universo da Educação, sejam elas exercidas no Japão, no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta. Com este propósito, organizamos nossas discussões em quatro unidades. Na primeira, intitulada “Movimentos do Olhar”, vamos experimentar diversas for- mas de perceber o “outro”, o “exótico”, o “desconhecido”. Como não poderia deixar de ser, ao nos aprofundarmos no conhecimento do “outro” também estaremos elaboran- do um olhar reflexivo sobre nós mesmos e nosso comportamento perante o diferente. Nessa parte do nosso trabalho, desenvolveremos nossa compreensão em relação a conceitos que talvez ainda lhe sejam desconhecidos, como “alteridade”, “etnocentris- mo” e “relativização”. A segunda parte de nosso trabalho consiste na discussão de um conceito central para o conhecimento antropológico: o conceito de “cultura”. Aqui, as relações entre a Antropologia e a Educação poderão ser identificadas com bastante clareza. Veremos que uma das características das identidades culturais, na perspectiva antropológica contemporânea, é que elas são aprendidas. Por serem aprendidas, as culturas podem ser transformadas, alteradas, adaptadas de acordo com as transformações e mudanças que ocorrem nos processos sociais. Esse dinamismo estabelece relações diretas – e indiretas – com os processos educativos, entendidos em todas as suas diversidades, e está na base dos processos de ensino/aprendizagem. Alguns dos principais paradigmas teóricos da Antropologia serão discutidos na ter- ceira parte de nossos estudos. Nessa parte também abordaremos alguns elementos da pesquisa antropológica brasileira. Nossas discussões serão finalizadas com o estudo dos diversos elementos envolvi- dos na pesquisa antropológica, focalizando as especificidades do método etnográfico e algumas das principais técnicas de pesquisa utilizadas. O propósito nessa parte, em especial, é fazer com que você perceba que pode exercer o papel de professor- pesquisador em suas práticas educativas e que isto, quando realizado por meio dos recursos oferecidos pelos conhecimentos antropológicos, pode ser uma experiência incrivelmente fascinante! Ao final deste fascículo você encontrará algumas sugestões de atividades que serão desenvolvidas durante nossas discussões. Além destas, serão disponibilizadas, na pla- taforma do curso outras atividades diversificadas – com vídeos, músicas, poesias, ima- gens, etc. – que complementarão o seu percurso formativo. Através destas atividades você encontrará diversas possibilidades de reflexão sobre sua formação de Educador e sobre os processos de ensino-aprendizagem com os quais você entrará em contato em suas práticas. As autoras 1 – OlhArEs sOBrE A AltEridAdE 13 2 – EtNOcENtrismO 25 3 – rElAtiVizAçãO 35 4 – O JOgO dOs EspElhOs 39 1 – A pAlAVrA E O cONcEitO 49 2 – A culturA Em NOssO cOtidiANO 61 3 – dO iNAtO AO AprENdidO 75 4 – sOBrE diNâmicAs E frONtEirAs 91 5 – idENtidAdEs NAciONAis 101 MoViMENToS Do oLHAR CoNCEiTo DE CULTURA 1 2 1 – EVOluciONismO culturAl 119 2 – ANtrOpOlOgiA culturAl NOrtE-AmEricANA 123 3 – ANtrOpOlOgiA sOciAl BritâNicA 131 4 – ANtrOpOlOgiA EstruturAl NA frANçA 141 5 – ANtrOpOlOgiA NO BrAsil 151 1 – O métOdO EtNOgráficO 159 2 – A rElAçãO suJEitO E OBJEtO 169 3 – códigO dE éticA dO ANtrOpólOgO 179 4 – AlgumAs técNicAs dE pEsquisA 181 sugEstõEs dE AtiVidAdEs 199 rEfErêNciAs 205 TEoRiAS ANTRoPoLóGiCAS A PESqUiSA EM ANTRoPoLoGiA 3 4 un id ad e 1 M ov im en to s do O lh ar Movimentos do Olhar 12 Marcel Duchamp, artista plástico francês, se permite uma licença poética para de- finir a pintura como uma “atividade retínica”, como arte do olhar. Buscando inspiração em suas palavras, propomos que o percurso pela antropologia, que aqui se inicia, seja pensado igualmente como uma arte do olhar, como um exercício de brincar com a retina, possibilitando e estimulando novos jogos de luzes, novos ângulos e distâncias. Nesta unidade, você terá contato com alguns conceitos que fundamentam o olhar antropológico. Muito se discute, como você sabe, a importância de desenvolver uma postura reflexiva e crítica diante da realidade. pensar o mundo a partir de uma postura antropológica é, entretanto, ir além da visão crítica: é desafiar, sem temores, nossas próprias crenças e certezas – e as dos outros! Propomos que você, ao longo desta primeira unidade, experimente esse descen- tramento do olhar proporcionado pela antropologia. Para isso, você precisará aceitar o desafio de entregar-se à empatia, tentando colocar-se em um lugar diferente do seu, reconhecendo, de modo sensível, as diferentes possibilidades em termos de posicio- namentos e pontos de vista. Sugerimos que você leia esta unidade tendo em mente as seguintes questões ▼ ▶ O “desconhecido” lhe causa aversão, curiosidade, medo? ▶ Pense em algo que você considera exótico. De onde isso vem? ▶ quais as lentes que você usa para ver o mundo? Onde você as obteve? ▶ Dizer que A é diferente de B é o mesmo que dizer que A é melhor ou pior que B? ▶ Como o exercício do “olhar antropológico” pode contribuir para a sua formação de educador?Self portrait in profile [autorretrato de perfil]. Obra de Marcel Duchamp. Disponível em: http://www. artinthepicture.com/paintings/Marcel_ duchamp/self-portrait-in-profile/ so br e a 1 Ol ha re s al tE ri da de Movimentos do Olhar 14 quando conhecemos alguém de outro país, não raro ficamos cheios de curiosidade, desejando saber mais sobre como se vive por lá. O contato com uma realidade diversa da nossa gera curiosidade, inclusive a respeito dos detalhes mais cotidianos da vida: O que eles comem? como se vestem? como são suas casas? que livros leem? suas escolas são iguais às nossas? O que fazem suas crianças? E os idosos? como é o casamento? Como expressam as emoções? E quando alguém morre? A preocupação com a enorme variedade de comportamentos e modos de pensar apresentada pela espécie humana ocupa, há bastante tempo, nossa reflexão. graças a algumas particularidades de nossa época, como o sistema econômico capitalista, a globalização e as inovações tecnológicas em termos de comunicação, no mundo con- temporâneo, as distâncias físicas entre diferentes povos veem-se, de certo modo, dimi- nuídas. Não há dúvidas de que, hoje em dia, a diversidade ficou um pouco mais próxima, e basta ligarmos a televisão para vermos notícias sobre outros países ou documentários sobre os costumes de outras sociedades. Mas você consegue imaginar como era, há alguns séculos, encontrar pessoas que levavam suas vidas de modo totalmente dife- rente? Imagine, por um instante, que você estava na tripulação de Cristovão Colombo quando este chegou à América: como interpretar – e situar dentro dos conhecimentos que você tem – a existência de seres humanos que diferem totalmente do seu modo de viver, com outra aparência, outras regras, outros deuses? Imagine ainda que você é um africano e vê, pela primeira vez, um soldado português, trajando roupas estranhas, usando cortes de cabelo que nada têm a ver com seu padrão de beleza, e apresentando gestos que nem parecem humanos! Todos nós, através de nossa imaginação, temos a tendência a construir em nosso pensamento imagens a respeito dos outros, sejam eles reais ou não, e, perante tais imagens que nós mesmos construímos, ficamos nos perguntando se, sendo assim tão diferentes, eles também são humanos. Acreditava-se que, em algum lugar do planeta, havia criaturas tão diferentes, mas tão diferentes, que não poderiam ser totalmente gente. Imaginava-se que, em um lugar 15 Movimentos do Olhar bem distante, havia pessoas com duas cabeças (ou ainda, algumas sem cabeça), com apenas um olho, com uma só perna, com corpos metade humanos, metade animais, ou outros que, ainda que humanos em aparência, agiam de forma pouco humana, alimentando-se de gente (os canibais!) ou invertendo regras e normas no que concerne ao gênero (as amazonas!). Essas raças monstruosas, como mostra o historiador Peter Burke (2004), povoavam os sonhos tanto dos antigos gregos quanto da Europa às vésperas das grandes nave- gações. Preparação do corpo para a devoração canibal. in: BElluzzO, Ana maria de moraes. Imaginário do Novo Mundo. [s.l.]: Odebrechet; Metalivros, 1994. (coleção O Brasil dos Viajantes, v. 1) raças monstruosas. Disponível em: http://people. hofstra.edu/daniel_m_varisco/ newworldmonst.jpg Movimentos do Olhar 16 E onde vivia essa gente que nem parecia gente? A melhor resposta poderia ser aquela digna dos contos de fadas: em uma terra distante e desconhecida, muito longe daqui... E que terra era essa? Bem, isso dependia de quais terras aqueles que imagina- vam conheciam. Para compreender melhor, veja o que nos conta Burke: O exemplo clássico e antigo desse processo é o do assim denominado “raças monstruosas,” que os antigos gregos imaginavam existir em lugares distantes como a Índia, Etiópia ou catai. […] Na medida em que a Índia e a Etiópia se tornaram mais familiares aos europeus nos séculos XV e XVi e nem Blemmiane [homens sem cabeça], Amazonas [raça de mulheres guerreiras de apenas um seio] ou scipods [homens com apenas uma perna] puderam ser encontrados, os estereótipos foram relocados no Novo Mundo. Por exemplo, a origem do nome do rio Amazonas está relacionada à crença de que as Amazonas habitavam aquela região. BurKE, peter. Estereótipos do outro. in: Testemunha Ocular. Bauru: Edusc, 2004. p. 157-158. Assim, como se pode ver, o habitat das criaturas humanas monstruosas era sempre o desconhecido. hoje não há, em nosso planeta, lugares assim tão distantes e desco- nhecidos que possam ser habitados por raças monstruosas semelhantes àquelas que imaginávamos outrora. Mas deixamos de acreditar na existência delas? Podemos pen- sar que, se antes os monstros viviam no Novo Mundo, atualmente eles vivem em outros mundos. Basta lembrar dos filmes de ficção científica que criamos para reencontrarmos homens sem cabeça, homens com um olho só, mulheres guerreiras sem homens e criaturas antropomorfas bastante semelhantes às antigas raças monstruosas, em pleno século XXI, habitando outros planetas. Além disso, se olharmos bem para as grandes navegações, tentando compreendê- las no seu contexto, podemos pensar que elas guardam alguma semelhança com as via- gens espaciais atuais: ambas usam tecnologias de ponta de sua época, são investimen- tos bastante caros realizados pelos governos das potências hegemônicas do momento, aqueles que as empreendem são vistos como heróis-aventureiros, e representam, cada uma à sua maneira, uma jornada rumo ao desconhecido, nem sempre bem-sucedida, mas que, quando o é, promove uma verdadeira revolução nas ciências de sua época, refletida, aos poucos, nos modos de vida cotidianos das pessoas comuns. Assim, muito embora a Europa do século XVi já tivesse, há muito tempo, contatos de longa duração com Outros, como os asiáticos e o mundo árabe, é preciso que com- preendamos que o encontro com o novo mundo, no período das grandes navegações, representou um encontro cultural sem precedentes. O antropólogo francês François La- plantine (1995) acredita que o gérmen da reflexão antropológica, entendida aqui como reflexão sobre a diversidade, fruto do contato com a alteridade – com o Outro – aconte- ceu justamente nessa época. repare que, no caso das raças monstruosas, tratava-se de 17 Movimentos do Olhar E onde vivia essa gente que nem parecia gente? A melhor resposta poderia ser aquela digna dos contos de fadas: em uma terra distante e desconhecida, muito longe daqui... E que terra era essa? Bem, isso dependia de quais terras aqueles que imagina- vam conheciam. Para compreender melhor, veja o que nos conta Burke: O exemplo clássico e antigo desse processo é o do assim denominado “raças monstruosas,” que os antigos gregos imaginavam existir em lugares distantes como a Índia, Etiópia ou catai. […] Na medida em que a Índia e a Etiópia se tornaram mais familiares aos europeus nos séculos XV e XVi e nem Blemmiane [homens sem cabeça], Amazonas [raça de mulheres guerreiras de apenas um seio] ou scipods [homens com apenas uma perna] puderam ser encontrados, os estereótipos foram relocados no Novo Mundo. Por exemplo, a origem do nome do rio Amazonas está relacionada à crença de que as Amazonas habitavam aquela região. BurKE, peter. Estereótipos do outro. in: Testemunha Ocular. Bauru: Edusc, 2004. p. 157-158. Assim, como se pode ver, o habitat das criaturas humanas monstruosas era sempre o desconhecido. hoje não há, em nosso planeta, lugares assim tão distantes e desco- nhecidos que possam ser habitados por raças monstruosas semelhantes àquelas que imaginávamos outrora. Mas deixamos de acreditar na existência delas? Podemos pen- sar que, se antes os monstros viviam no Novo Mundo, atualmente eles vivem em outros mundos. Basta lembrar dos filmes de ficção científicaque criamos para reencontrarmos homens sem cabeça, homens com um olho só, mulheres guerreiras sem homens e criaturas antropomorfas bastante semelhantes às antigas raças monstruosas, em pleno século XXI, habitando outros planetas. Além disso, se olharmos bem para as grandes navegações, tentando compreendê- las no seu contexto, podemos pensar que elas guardam alguma semelhança com as via- gens espaciais atuais: ambas usam tecnologias de ponta de sua época, são investimen- tos bastante caros realizados pelos governos das potências hegemônicas do momento, aqueles que as empreendem são vistos como heróis-aventureiros, e representam, cada uma à sua maneira, uma jornada rumo ao desconhecido, nem sempre bem-sucedida, mas que, quando o é, promove uma verdadeira revolução nas ciências de sua época, refletida, aos poucos, nos modos de vida cotidianos das pessoas comuns. Assim, muito embora a Europa do século XVi já tivesse, há muito tempo, contatos de longa duração com Outros, como os asiáticos e o mundo árabe, é preciso que com- preendamos que o encontro com o novo mundo, no período das grandes navegações, representou um encontro cultural sem precedentes. O antropólogo francês François La- plantine (1995) acredita que o gérmen da reflexão antropológica, entendida aqui como reflexão sobre a diversidade, fruto do contato com a alteridade – com o Outro – aconte- ceu justamente nessa época. repare que, no caso das raças monstruosas, tratava-se de Outros totalmente imaginados e desconhecidos. O que pensar, então, diante de Outros que, apesar de não terem apenas um olho ou uma perna, se vestiam, se alimentavam e se comportavam de modo totalmente diverso? Ainda que humanos em aparência, se- riam eles “realmente” humanos? E quais seriam os critérios de humanidade utilizados? O resultado do contato com a alteridade, além desse movimento inicial de curiosi- dade, também comporta esforços imaginativos não menos grandiosos do que aquele empregado no caso das raças monstruosas ou da ficção científica. A partir dos poucos dados que temos sobre os modos de vida do Outro, costumamos construir em nosso pensamento, a partir de nossas próprias vivências e critérios, um esboço mais comple- to a respeito dos jeitos de viver que diferem do nosso. quando nos deparamos com o Alienígenas. Disponível em: http://www. carloscardoso.com/2008/07/01/ passatempo-identifique-os-aliens/ Menina “japonesa”. Menino “alemão”. fonte: clip-art microsoft Office Movimentos do Olhar 18 Outro, diferente de nós, precisamos, em um primeiro momento, apreendê-lo e situá-lo. Assim, o contato com aquilo que é diverso gera, quase sempre, um ato imaginativo. São muitos os recursos que utilizamos para representar o outro, completando com nossa fantasia ou com elementos de nossa própria sociedade aquilo que acreditamos que ele seja. Três dessas maneiras foram bastante frequentes na história do contato intercultural, dos encontros humanos com a diversidade, e, embora por vezes falemos de encontros culturais que aconteceram há muitos séculos, não podemos deixar de pensar que, ainda hoje, recorremos a mecanismos muito parecidos para pensar, em nosso cotidiano, a diversidade. O primeiro dos procedimentos utilizados para situar o Outro é a analogia. Trata- se de analisar os costumes de alhures procurando compará-los aos nossos próprios costumes, dando pouca ou nenhuma importância para seu contexto de origem ou para os processos históricos que geraram os costumes do Outro. Como relata Burke (2004), Vasco da gama fez uso da analogia quando, em um templo indiano, interpretou Brahma, Vishnu e shiva como uma imagem da santíssima trindade do cristianismo, e o mesmo fizeram os chineses que, confrontados à imagem da Virgem maria, enxergaram a deusa budista Kuan Yin. Estamos fazendo uso da mesma estratégia quando tratamos os hashi japoneses como se fossem talheres ou as escarificações tribais africanas como tatuagens contemporâneas. No primeiro caso, estamos fazendo o uso da analogia a partir da função dos objetos, mas esquecemos que são fruto de processos históricos diferentes, tendo surgido em épocas distintas em cada uma das sociedades que estamos comparando. Conta-se, por exemplo, que o uso do hashi remonta a milhares de anos e envolve regras de etiqueta e polidez específicas, ao passo que os talheres ocidentais individuais, tal qual conhece- mos, são bastante mais recentes, fruto de um processo de longa duração que, como demonstra Norbert Elias (1997), teve início na Idade Média europeia. r ic ar do c ar ra ce do | B an co c & c r ic ar do c ar ra ce do | B an co c & c 19 Movimentos do Olhar Já no que concerne às tatuagens ocidentais e marcas tribais africanas, estabele- cemos a analogia a partir da aparência dos fenômenos: ambas enfeitam os corpos e marcam de forma perene a pele do sujeito. Além dos processos históricos que as origi- naram, convém notar que seu significado é completamente distinto. As escarificações frequentemente fazem referência a fortes pertencimentos culturais, bem como ao posicionamento do sujeito dentro de sua coletividade. Nossas tatuagens contemporâ- neas, como você sabe, remetem à construção de identidades individuais ou ao perten- cimento a grupos urbanos de caráter bem mais flexível. Além disso, quando começaram a ser utilizadas, tinham um forte significado de transgressão na sociedade ocidental, sendo um emblema de grupos e indivíduos que estavam à margem da sociedade (ma- rinheiros, prostitutas, etc.), ou posteriormente, quando apropriadas pelos movimentos contraculturais, representavam a recusa aos padrões culturais hegemônicos. Em termos de representação de artes visuais também temos, com frequência, o uso da analogia, no sentido de que o Outro é representado algumas vezes não apenas com os instrumentos de nossa própria sociedade, mas igualmente adaptado a nossos próprios critérios estéticos. As estátuas yorubá, esculpidas em madeira, após a colo- nização britânica na áfrica, passaram a representar, por vezes, a rainha Victória, mas sua imagem é reinterpretada segundo critérios estéticos locais, que dão à aristocrata inglesa ares de soberana africana. imagens da rainha Victória. in: gruziNsKi, serge (org). Planète métisse. Paris: Musée du quai Branly, 2008. p. 106-107. Movimentos do Olhar 20 Comparando com os dois procedimentos que relataremos a seguir, você poderá acreditar que apreender o Outro por meio da analogia é um modo bastante inofensivo de fazê-lo. é preciso, entretanto, perceber que através da analogia estamos assimilando o Outro a nós mesmos, negando-lhe, portanto, autonomia e originalidade: ele é apenas um reflexo nosso! se, no caso da analogia, interpretamos o Outro como nosso reflexo no espelho, podemos pensar que o segundo procedimento, a oposição, concebe o outro como uma espécie de reflexo invertido. Ele está lá, mas está de ponta-cabeça! tudo o que ele faz (ou, com mais frequência, deixa de fazer) vai ser, nessa perspectiva, o exato oposto do que o meu grupo de origem faz. Podemos pensar que o ponto de vista da oposição funciona quase sempre como aqueles “jogos dos sete erros” da infância: olhamos uma primeira imagem, a correta, e depois analisamos a segunda, procurando nela o que há de diferen- te ou, em geral, o que falta nela daquilo que estava representado na imagem anterior. Foi essa a perspectiva adotada pelos europeus quando, chegando ao Novo Mundo, perceberam os nativos das sociedades ameríndias que aqui viviam como “povos sem”: sem estado, sem religião, sem moral, sem regras e, é claro, sem roupas. Sabemos que os europeus referidos, ora de tal chegada, se depararam com a nudez, e que tal nudez foi associada à ideia de um corpo natural, não socializado por meio das regrasculturais, de origem moral, religiosa, ou de status social: eles eram a natureza, pois não se via neles as marcas da cultura. Como já nos conta a famosa carta de pero Vaz de caminha: “Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas [...]”. Poucas linhas depois, entretanto, Caminha relata que Ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. metem-nos pela parte de dentro do lábio, e a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita à roque-de-xadrez, ali encaixado de maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber. (1996, p. 79) Assim, apesar de não utilizar roupas tais quais as dos europeus, seus corpos apresen- tavam diversos elementos estéticos que “vestiam” o corpo. Não se tratava de um corpo “natural”, ou de um corpo “sem vergonhas”, como foi imaginado, inclusive porque os adornos utilizados correspondiam, certamente, a regras e normas bastante rígidas, ainda que diversas daquelas que guiavam o sistema indumentário europeu. A roupa, assim como os demais objetos que enfeitam e cobrem o corpo, antes de ser resposta ao pudor sexual, como supunham à época os europeus, é signo de perten- cimento à humanidade, a uma cultura e a um grupo social. como lévi-strauss (1997) diz tão bem a respeito dos Kadiwéu, para ser homem é preciso ser pintado. uma vez decorado, vestido e pintado, o homem exibe sua humanidade. Carta de Pero Vaz de Caminha – conforme versão publicada na edição atualizada de Castro (1996) 21 Movimentos do Olhar Comparando com os dois procedimentos que relataremos a seguir, você poderá acreditar que apreender o Outro por meio da analogia é um modo bastante inofensivo de fazê-lo. é preciso, entretanto, perceber que através da analogia estamos assimilando o Outro a nós mesmos, negando-lhe, portanto, autonomia e originalidade: ele é apenas um reflexo nosso! se, no caso da analogia, interpretamos o Outro como nosso reflexo no espelho, podemos pensar que o segundo procedimento, a oposição, concebe o outro como uma espécie de reflexo invertido. Ele está lá, mas está de ponta-cabeça! tudo o que ele faz (ou, com mais frequência, deixa de fazer) vai ser, nessa perspectiva, o exato oposto do que o meu grupo de origem faz. Podemos pensar que o ponto de vista da oposição funciona quase sempre como aqueles “jogos dos sete erros” da infância: olhamos uma primeira imagem, a correta, e depois analisamos a segunda, procurando nela o que há de diferen- te ou, em geral, o que falta nela daquilo que estava representado na imagem anterior. Foi essa a perspectiva adotada pelos europeus quando, chegando ao Novo Mundo, perceberam os nativos das sociedades ameríndias que aqui viviam como “povos sem”: sem estado, sem religião, sem moral, sem regras e, é claro, sem roupas. Sabemos que os europeus referidos, ora de tal chegada, se depararam com a nudez, e que tal nudez foi associada à ideia de um corpo natural, não socializado por meio das regras culturais, de origem moral, religiosa, ou de status social: eles eram a natureza, pois não se via neles as marcas da cultura. Como já nos conta a famosa carta de pero Vaz de caminha: “Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas [...]”. Poucas linhas depois, entretanto, Caminha relata que Ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. metem-nos pela parte de dentro do lábio, e a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita à roque-de-xadrez, ali encaixado de maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber. (1996, p. 79) Assim, apesar de não utilizar roupas tais quais as dos europeus, seus corpos apresen- tavam diversos elementos estéticos que “vestiam” o corpo. Não se tratava de um corpo “natural”, ou de um corpo “sem vergonhas”, como foi imaginado, inclusive porque os adornos utilizados correspondiam, certamente, a regras e normas bastante rígidas, ainda que diversas daquelas que guiavam o sistema indumentário europeu. A roupa, assim como os demais objetos que enfeitam e cobrem o corpo, antes de ser resposta ao pudor sexual, como supunham à época os europeus, é signo de perten- cimento à humanidade, a uma cultura e a um grupo social. como lévi-strauss (1997) diz tão bem a respeito dos Kadiwéu, para ser homem é preciso ser pintado. uma vez decorado, vestido e pintado, o homem exibe sua humanidade. Ainda hoje, quando olhamos para aqueles que são diferentes de nós, fazemos uso da oposição e os definimos pela falta: eles são descritos pelos traços que, quando com- parados a nós mesmos, acreditamos que não apresentam. Eles são diferentes de nós, e embora tenham regras, formas políticas e religiosidades específicas, não as reconhe- cemos enquanto tal. No melhor dos casos, quando reconhecemos a existência de seus costumes, nós os tratamos como “pré-costumes”, costumes ainda não plenamente desenvolvidos. Você conhecerá, mais adiante, uma corrente da antropologia chamada Evolucionismo e entenderá como o pensamento científico europeu teorizou a respeito da diversidade, situando os Outros como pertencentes a um estágio evolutivo anterior ao seu próprio: eles ainda não tinham uma cultura civilizada, mas um dia chegariam lá! mesmo dentro de uma mesma sociedade podemos encontrar a postura de identifi- car os outros pela falta, especialmente quando estamos tratando da cultura popular em oposição a uma cultura erudita, ou opondo classes populares e classes dominantes. é o que nos mostra, com boa dose de ironia e crítica, Eduardo galeano, no seguinte trecho do poema intitulado “Os ninguéns”: que não são, embora sejam. que não falam idiomas, falam dialetos. que não praticam religiões, praticam superstições. que não fazem arte, fazem artesanato. que não são seres humanos, são recursos humanos. que não têm cultura, têm folclore. que não têm cara, têm braços. que não têm nome, têm número. A estereotipia, mais do que uma terceira maneira de representar o Outro, pode ser considerada transversal, sendo utilizada tanto pelos olhares que procuram a analogia quanto por aqueles que procuram a oposição. “Estereótipo” é uma palavra recorrente em nosso vocabulário do dia a dia, mas você sabe o que é, originalmente, um estereó- registro da pintura corporal indígena. Apiacás na margem do rio Arinos. in: BElluzzO, Ana maria de Moraes. Um lugar no Universo. [s.l.]: Odebrechet; Metalivros, 1994. p. 135. (coleção O Brasil dos Viajantes, v. 2). Movimentos do Olhar 22 tipo? Estereótipo é uma palavra que se origina do campo de significação das técnicas e artes gráficas, com o início da imprensa: era uma placa na qual determinada imagem podia ser impressa, de modo a ser reproduzida quase que infinitamente. certamente não tínhamos, ali, uma grande riqueza de detalhes, mas apenas linhas gerais da ima- gem a ser reproduzida. quando acontecem encontros culturais é comum que procuremos situar o Outro e apreendê-lo a partir de linhas gerais, pontos que reconhecemos, olhando de longe e com pouca riqueza de detalhes, como representativas do que ele é. Além de deixarmos de lado os detalhes, procedendo através da estereotipia, costumamos generalizar, apli- cando a toda uma população as mesmas características. Veja, por exemplo, o que relata o crítico literário japonês hisayasu Nakagawa no que concerne ao Outro ocidental: Assim, até hoje, mesmo em conceituados jornais japoneses, encontra- se a expressão aoi-me, “olhos azuis”, para designar os ocidentais, como se todos eles tivessem olhos azuis! Como se essa peculiaridadefosse um traço comum a todos! Pessoalmente, tenho pouquíssimos amigos franceses que correspondem a tal critério. A maioria tem olhos escuros. Esse estereótipo me faz lembrar do fechamento do Japão durante o período Edo, quando no século XVi os portugueses eram qualificados de “bárbaros do sul” e, mais tarde, entre os séculos XVii e XiX, os holandeses eram chamados de “cabelos vermelhos”. hisayasu Nakagawa. Introdução à cultura japonesa: ensaio de antropologia recíproca. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 8. gruziNsKi, serge (org). Planète métisse. Paris: Musée du quai Branly, 2008. Se, ainda em tempos recentes, o azul permanece presente nos olhos do estere- ótipo do ocidental, nas representações dos europeus nas artes visuais japonesas do século XVii a pele dos portugueses também é azul. todos vestem, igualmente, calças que parecem grandes balões – quão diferentes essas calças deveriam ser do vestuário japonês da época! O que significa, então, dizer que todos os ocidentais têm olhos azuis ou cabelos ruivos? Em primeiro lugar, significa encontrar, através do recurso da oposição, um traço diferencial explícito (alguns deles não têm os olhos escuros, como os japoneses) e, a seguir, exagerar esse traço e aplicá-lo, através da generalização, para a totalidade de um povo (nenhum deles tem olhos escuros, são todos azuis!). Assim, embora conce- bamos que em nossa própria sociedade existe diversidade entre os indivíduos, temos mais dificuldade em reconhecer as diferenças internas entre indivíduos de outras so- ciedades. A diferença que percebemos entre “nós” e “eles” comumente se sobrepõe à realidade de não serem todos iguais. A esse respeito, o antropólogo brasileiro roque Laraia comenta: Os alunos de nossa sala de aula, por exemplo, estão convencidos de que cada um deles tem um modo particular de rir, mas um observador estranho a nossa cultura comentará que todos eles riem da mesma forma. Na verdade, as diferenças percebidas pelos estudantes, e não pelo observador de fora, são variações de um mesmo padrão cultural. Por isso é que acreditamos que todos os japoneses riem de uma mesma maneira. Temos a certeza de que os japoneses também estão convencidos que o riso varia de indivíduo para indivíduo dentro do Japão e que todos os ocidentais riem de modo igual. lArAiA, roque. Cultura: um conceito antropológico. rio de Janeiro: zahar, 2002. p. 69. Assim, sendo o riso um dentre os gestos que aprendemos culturalmente, acredi- tamos que as expressões individuais das maneiras de rir, dentro de nossa sociedade, são diversas e variadas, reflexos da personalidade dos sujeitos. Não é raro que nos lembremos de nossos amigos ou parentes dizendo, de maneira afetiva, “fulano tem uma maneira muito especial de rir”, ou “beltrana tem uma risada que é só sua”. Isso significa que reconhecemos, dentro do padrão de nosso grupo, algumas variações possíveis. No grupo do Outro, entretanto, muito frequentemente somos incapazes de atentar para tais detalhes, tão preocupados que estamos em frisar suas diferenças com relação a nós. O grande perigo de tratar a alteridade através da fabricação de estereótipos é que, assim, estamos muito próximos de reduzir o outro, uma pessoa com todas as suas particularidades, ao anonimato: 23 Movimentos do Olhar Se, ainda em tempos recentes, o azul permanece presente nos olhos do estere- ótipo do ocidental, nas representações dos europeus nas artes visuais japonesas do século XVii a pele dos portugueses também é azul. todos vestem, igualmente, calças que parecem grandes balões – quão diferentes essas calças deveriam ser do vestuário japonês da época! O que significa, então, dizer que todos os ocidentais têm olhos azuis ou cabelos ruivos? Em primeiro lugar, significa encontrar, através do recurso da oposição, um traço diferencial explícito (alguns deles não têm os olhos escuros, como os japoneses) e, a seguir, exagerar esse traço e aplicá-lo, através da generalização, para a totalidade de um povo (nenhum deles tem olhos escuros, são todos azuis!). Assim, embora conce- bamos que em nossa própria sociedade existe diversidade entre os indivíduos, temos mais dificuldade em reconhecer as diferenças internas entre indivíduos de outras so- ciedades. A diferença que percebemos entre “nós” e “eles” comumente se sobrepõe à realidade de não serem todos iguais. A esse respeito, o antropólogo brasileiro roque Laraia comenta: Os alunos de nossa sala de aula, por exemplo, estão convencidos de que cada um deles tem um modo particular de rir, mas um observador estranho a nossa cultura comentará que todos eles riem da mesma forma. Na verdade, as diferenças percebidas pelos estudantes, e não pelo observador de fora, são variações de um mesmo padrão cultural. Por isso é que acreditamos que todos os japoneses riem de uma mesma maneira. Temos a certeza de que os japoneses também estão convencidos que o riso varia de indivíduo para indivíduo dentro do Japão e que todos os ocidentais riem de modo igual. lArAiA, roque. Cultura: um conceito antropológico. rio de Janeiro: zahar, 2002. p. 69. Assim, sendo o riso um dentre os gestos que aprendemos culturalmente, acredi- tamos que as expressões individuais das maneiras de rir, dentro de nossa sociedade, são diversas e variadas, reflexos da personalidade dos sujeitos. Não é raro que nos lembremos de nossos amigos ou parentes dizendo, de maneira afetiva, “fulano tem uma maneira muito especial de rir”, ou “beltrana tem uma risada que é só sua”. Isso significa que reconhecemos, dentro do padrão de nosso grupo, algumas variações possíveis. No grupo do Outro, entretanto, muito frequentemente somos incapazes de atentar para tais detalhes, tão preocupados que estamos em frisar suas diferenças com relação a nós. O grande perigo de tratar a alteridade através da fabricação de estereótipos é que, assim, estamos muito próximos de reduzir o outro, uma pessoa com todas as suas particularidades, ao anonimato: Movimentos do Olhar 24 Incêndio em mina de ouro nos arredores de Johannesburgo mata 117 trabalhadores. uma companhia de mineração da áfrica do Sul anunciou na última quarta-feira que 117 pessoas, a maioria de trabalhadores negros, morreram na terça-feira quando um incêndio provocou a emissão de gases (…). Um pronunciamento dos proprietários da companhia de mineração general mining union corp. identificou os cinco brancos por nome, cargo e estado civil, fornecendo análises detalhadas de quantos filhos cada um deles tinha. Os negros foram identificados apenas por tribo. the New York times service. citado em pricE, sally. Arte primitiva em centros civilizados. rio de Janeiro: Editora ufrJ, 2000. p. 87. é justamente nesse sentido que uma ampla gama de Outros (ameríndios, africa- nos, asiáticos, polinésios, etc.) foram vistos e categorizados, aos olhos do colonialismo europeu, como o Outro. Embora suas diferenças internas fossem tão grandes quanto aquelas que os separavam dos europeus, acabaram ocupando um único espaço, o do “não-nós”. A distinção eurocêntrica entre Ocidente e Oriente, construída não a partir do colo- nialismo, mas em conjunto com esse, é objeto da crítica exegética do intelectual pales- tino Edward Said (2007), a partir da qual desenvolve o conceito – atualmente parte de um léxico cotidiano inclusive não-acadêmico – de Orientalismo. Seu livro, que recebe o mesmo nome do conceito-chave nele presente, é publicado pela primeira vez em 1978. Enquanto [...] uma visão política da realidade cuja estrutura promove a diferença entre o familiar (a europa, o ocidente, “nós”) e o estranho (o oriente, “eles”) (Said, 2007), o Orien- talismo seria um princípio identificador, mas igualmente homogeneizador. A partir da divisão binária que estabelece, ele coloca na mesma categoria– aquela de “Oriente” – grande quantidade de povos muito distantes e diferentes entre si. Assim, nosso olhar cotidiano, do senso comum, tende a perceber a alteridade de maneira superficial, desprovida de nuanças, e até mesmo, por vezes, de forma detur- pada ou equivocada. A razão de tal fato é, em grande medida, aquilo que chamamos de etnocentrismo, um conceito que você conhecerá melhor a seguir. 2 ET NO CE NT RI SM O Movimentos do Olhar 26 Nossa maneira de olhar o mundo está sempre condicionada pelos aprendizados cul- turais que recebemos de nossa própria sociedade. A antropóloga norte-americana ruth Benedict definia a cultura como uma espécie de lente através da qual vemos o mundo. quando estudar o conceito de cultura, você terá alguns instrumentos para compreen- der com maior profundidade tal afirmação, reconhecendo, inclusive, outros autores e correntes teóricas que não concordam plenamente com a definição. por hora, entretan- to, podemos abraçar a metáfora da lente: conforme crescemos vamos aprendendo, em nossa sociedade, as noções do que é certo e errado, bonito e feio, e tais aprendizados são os parâmetros que vão moldando nosso olhar, exatamente como uma lente. Uma vez vendo os outros por detrás dessas lentes, e a partir de uma visão de mundo aprendida em nossa própria sociedade, há uma tendência em considerar nossa forma de ver e fazer as coisas como a mais correta, ou mesmo a única correta. Tal postura consiste em tomar o que é nosso como o verdadeiro e o que é do outro (e o que é o Outro) como digno de reprovação, dando assim aos nossos valores um suposto caráter de universalidade. Em linhas gerais, é a isso que, na antropologia, chamamos de etno- centrismo. Veja como Tzetan Todorov procura conceituá-lo ▼ Na acepção dada aqui a esse termo, consiste em, de maneira indevida, erigir em valores universais os valores próprios à sociedade a que pertenço. O etnocêntrico é, por assim dizer, a caricatura natural do universalista: este, em sua aspiração ao universal, parte de um particular que se empenha em generalizar; e tal particular deve forçosamente lhe ser familiar, quer dizer, na prática, encontrar-se em sua cultura. tOdOrOV, tzetan. Etnocentrismo. in: Nós e os outros. rio de Janeiro: Jorge zahar, 1993. p. 21. fo nt e: c lip -a rt m ic ro so ft O ffi ce 27 Movimentos do Olhar Assim, de acordo com o autor, o etnocentrismo pode ser considerado um universa- lismo na medida em que nele está implícita a ideia de que haveria valores universalmen- te compartilhados entre todos os povos, ou uma escala de valores cuja hierarquia seria universal. A antropologia vem nos mostrando, entretanto, que os comportamentos e as maneiras de pensar são relativos, ou seja, variam de cultura para cultura e, da mes- ma maneira, variam historicamente, dentro de uma mesma cultura. Não é preciso ser antropólogo nem saber muito sobre a diversidade humana para, olhando em retrospec- tiva, perceber que mesmo dentro de nossa própria sociedade os parâmetros valorativos se transformam. é bem verdade que essa mudança por vezes é lenta, mas ela existe e, se nos dispusermos a refletir sobre ela, podemos verificá-la sem dificuldade. A postura etnocêntrica verifica a variabilidade nos comportamentos, mas não reco- nhece a variabilidade dos padrões de valor, por isso ela pode ser compreendida como uma forma de universalismo. Por outro lado, como também aponta Todorov, ela busca os valores universais em um lugar bastante específico e limitado: sua própria cultura. Ela almeja a universalidade, mas para isso faz uso de conteúdos particulares. O etnocentrismo é uma postura que rejeita as normas, comportamentos e valores de outras sociedades ou de outros grupos por serem diferentes dos seus, rotulando-os como inferiores. Em geral, ele hierarquiza as culturas através de um julgamento de valor que tem como parâmetro a sua própria: minha cultura é minha única referência e tudo o que dela diferir será rejeitado com hostilidade, visto como errado, ilógico, imoral, repugnante. é o etnocentrismo que faz com que os Outros, os diferentes, sejam perce- bidos como não-humanos (já que os humanos somos nós, e apenas nós) ou, na melhor das hipóteses, rotulados como bárbaros, selvagens ou primitivos. O olhar etnocêntrico é bastante limitado e crê que as fronteiras da humanidade correspondem às de sua própria sociedade. como você pode imaginar, o etnocentrismo teve, e continua tendo, consequências graves. Uma vez acreditando ter ao seu lado to- das as verdades e as certezas, o etnocêntrico se crê autorizado a interferir no que é do Outro. Partindo desse pressuposto, muitas formas de dominação, e mesmo etnocídios e genocídios, tentaram ser legitimados. Etnocídio e genocídio são ambos consequência do etnocentrismo. Enquanto o segundo representa a destruição física de um povo ou grupo étnico, o primeiro diz respeito à sua destruição cultural. Foi a postura etnocêntrica, autocentrada, que guiou diversas práticas europeias nas Américas e na áfrica, resultando em saques, destruição e escravização, dizimando enormes parcelas da população nativa. hernan cortez, celebrado como conquistador do méxico, foi na verdade um destruidor das civilizações ameríndias, massacrando e aniquilando as populações, arrasando e saqueando cidades. Nas cartas que escreveu ao imperador carlos V, cortez narra com detalhes os horrores praticados na conquista. As violências praticadas, entretanto, não o impediram de descrever, com admiração, as grandezas da civilização que destruía com requintada crueldade, uma vez que Movimentos do Olhar 28 dispunha de armas de fogo, de cavalaria, de agentes biológicos, como a varíola, que os povos maias e os povos astecas desconheciam. cortez acusava esses povos de bárbaros. […] Essa gente bárbara a que Cortez se refere eram os Maia, que habitavam a costa leste do México. De acordo com estudos de historiadores e antropólogos, os Maia tinham escrita fonética, calendário, conhecimentos avançados de clima, de agricultura; possuíam sistema numérico, faziam elaborados cálculos astronômicos. Sua arquitetura, pintura, escultura, cerâmica e ourivesaria eram bastante desenvolvidas. As tribos Nahuath, do domínio Asteca, estavam na idade do bronze. Eram habilíssimos ourives e oleiros. Cortez dizimou povos cujo processo civilizatório alcançara desenvolvimento semelhante ao de povos europeus, com a diferença crucial de não possuírem armas de fogo. BANdEirA, maria de lourdes & frEirE, Otávio. Antropologia. Cuiabá: EdUFMT, 2006. p. 51. Todavia, convém notar que outras práticas, como a evangelização, aparentemente menos nocivas, também estavam guiadas por um olhar etnocêntrico que pressupunha que algumas crenças (as dos europeus) eram verdadeiras, ao passo que as de todos os demais não eram válidas. Com as “melhores intenções”, a de “salvar almas”, depois que ficara decidido que os nativos tinham uma, empreendeu-se a catequização, sem questionar, por exemplo, se havia o desejo de ser “salvo”. O racismo e a intolerância religiosa são duas expressões dos perigos que podem ser gerados pelo etnocentrismo. Ambos serviram – continuam servindo! – como combustí- vel para guerras étnicas e religiosas. O nazismo, baseado na ideologia da superioridade ariana, é um exemplo dos efeitos nefastos do etnocentrismo, ali materializado em termos de um discurso sobre raça e eugenia. Folheando as páginas do jornal diário da semana você encontrará, certamente, mais uma série de outros exemplos ainda fre- quentes, como os conflitos entre católicos e protestantes na irlanda do Norte, a guerra étnico-religiosa na Bósnia, o movimento separatista basco na Espanha, ou ainda o racismo nos Estados unidos e na áfrica do sul. O próprio colonialismo segue,ainda hoje, produzindo consequências nefastas. Os conflitos contemporâneos, dentro do território europeu, nas grandes metrópoles, envolvendo imigrantes oriundos das ex-colônias, são certamente alguns de seus des- dobramentos persistentes. O etnocentrismo não é, entretanto, exclusividade das sociedades ocidentais e modernas. Como mostra Lévi-Strauss (1980), é um fenômeno que se registra pratica- mente em todas as sociedades. Muitos grupos, inclusive, utilizam para si nomes que significam, em suas línguas de origem, o equivalente a “os humanos”, “os perfeitos”, “os verdadeiros”, “os excelentes”. Todos aqueles que estão fora do grupo em questão serão vistos, em consequência, como “não humanos”, “errados” ou “imperfeitos”. Sobre o assunto, heródoto já nos contava que: 29 Movimentos do Olhar Se fosse dada a alguém, não importa a quem, a possibilidade de escolher entre todas as nações do mundo as crenças que considerasse melhores, inevitavelmente... escolheria as de seu próprio país. Todos nós, sem exceção, pensamos que nossos costumes nativos e a religião em que crescemos são os melhores... Existe uma multiplicidade de evidências de que este sentimento é universal... Poderíamos lembrar, em particular, uma anedota de Dario. Sendo ele rei da Pérsia, chamou alguns gregos presentes em sua corte e perguntou-lhes quanto queriam em troca de comer os corpos de seus pais defuntos. Os gregos replicaram que não havia dinheiro suficiente no mundo para fazer isso. depois perguntou a alguns índios da tribo chamada Callatie - que realmente comem os corpos de seus pais defuntos - quanto queriam para queimá-los (referindo- se, é claro, ao costume grego da cremação). Os índios exclamaram horrorizados que nem se devia falar em coisa tão repugnante. � Mas o que faz com que o etnocentrismo seja tão recorrente?Por que razão é tão comum reagir com hostilidade frente aos costumes dos outros, sempre que diferem de nossos próprios? E por que as reações são sempre tão dramáticas e fortes? Voltemos para a metáfora da lente: quando crescemos dentro de uma sociedade, vamos aos poucos recebendo dela aqueles elementos que serão nossos referenciais. São eles que, sendo compartilhados pelos demais que compõem nosso grupo, per- mitem a coesão de nossa cultura e a construção de nossas identidades. Mas nossas identidades culturais, além de construídas através daquilo que compartilhamos com os nossos, são quase sempre reforçadas, através de jogos de contraste, com as identida- des dos outros, sejam nossos vizinhos, sejam membros de um povo exótico e distante. Na realidade, a proximidade com outro grupo social pode ser vista como uma ameaça às nossas certezas (será que nossos valores e nossos modos de vida são mesmo os úni- cos ou os melhores?) e, por consequência, uma ameaça à nossa identidade. Everardo rocha, tratando desse desconforto ameaçador, tenta imaginar como seria a reação etnocêntrica frente à descoberta da diversidade: O monólogo etnocêntrico, pois, segue um caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados, ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil! rOchA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 9. Movimentos do Olhar 30 A descoberta de que existem outras formas de viver e pensar pode ser desconcer- tante, fazendo com que nos perguntemos sobre nossas próprias verdades e sobre o quanto elas realmente são únicas, corretas, ideais. E se a reação etnocêntrica costuma ter uma força descomunal é em razão de a diversidade mexer com certezas que temos enraizadas em nós, e que foram aprendidas não apenas pela via intelectual e racional, mas igualmente emocional e afetiva. A alteridade ameaça nosso pensamento e nossos sentimentos, e por isso muitas vezes nem chegamos a ter consciência de que nossas atitudes refletem posturas etnocêntricas, chegando a não reconhecer como possíveis outras crenças, outros gostos alimentares, outros critérios estéticos, outros arranjos matrimoniais, ou outras maneiras de criar os filhos. A música sampa, de caetano Veloso, trata de um recém-chegado na cidade grande, São Paulo, que, em um primeiro momento, tem um profundo estranhamento diante do que vê: quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto é que Narciso acha feio o que não é espelho E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho Nada do que não era antes quando não somos mutantes E foste um difícil começo Afasto o que não conheço “sampa”, caetano Veloso. ☞ repare que o julgamento de valor (mau gosto!) é fruto do encontro com aquilo que difere de seu próprio rosto. O etnocentrismo coloca seus costumes e valores no centro, não consegue reconhecer beleza naquilo que não diz respeito a si mesmo, sente temor perante o novo e o diferente. Sua reação primeira é afastar o desconhecido, de tão perturbador que lhe parece. é bem verdade que também há aqueles que se encantam pelo diverso, mesmo não sendo antropólogos, e que por vezes chegam a idealizá-lo. Temos uma série de mani- festações artísticas europeias, tanto nas artes plásticas quanto na literatura, que nos sé- culos XViii e XiX fizeram uso de costumes e estéticas diversas e nelas se inspiraram para sua própria produção cultural. Trata-se de um fenômeno que denominamos exotismo. Datado da primeira década do século XX, um dos primeiros esforços em conceituar teoricamente o exotismo é o de Victor segalen (1996), em seu postumamente publi- cado – e inacabado – Ensaio sobre o Exotismo. definindo-o enquanto uma estética do diverso já no subtítulo da obra, o autor propõe que o pensemos essencialmente como 31 Movimentos do Olhar uma forma de reconhecimento da existência do Outro. Esse Outro em questão, entre- tanto, não é única e necessariamente o que está geograficamente distante. O autor, em repetidas tentativas ao longo de sua escrita, procura estabelecer uma tipologia de exotismos. Tal repetição talvez indique para o leitor, que tem em mãos uma obra inacabada, a importância, aos olhos de Segalen, de instituir e diferenciar tais tipos de exotismo. Sublinhando sua vontade de depurar o exotismo do que ele tem de apenas geográ- fico, deixando de lado o “coqueiro e o camelo”, o autor sugere que existam três tipos de exotismo. O primeiro e mais conhecido é o exotismo geográfico, em que a distância do Outro é dada espacialmente, frequentemente refletida em diferenças étnicas e culturais. O segundo tipo de exotismo que Segalen enumera é o exotismo temporal ou histórico. Nele, o exótico costuma situar-se em outro momento histórico, geralmente em um passado ou futuro idealizados. A valorização de um passado idílico pode ser facilmente entendida como exotismo temporal, mas também as utopias, por exemplo, são um tipo de atitude exótica aplicada ao tempo futuro. O terceiro dos tipos de Sega- len, menos esmiuçado por ele, seria o exotismo sexual, no qual a diferença se dá sem que haja um afastamento espacial ou temporal; em um mesmo lugar e em um mesmo tempo, o estranhamento diz respeito à diferença entre o masculino e o feminino. O que há de comum entre estes três tipos de exotismo é que todos representam uma atitude e um olhar a respeito do diverso, do Outro, sem que a distância seja suprimida. quase sempre uma idealização, o exotismo supõe que o Outro possa ser em grande medida imaginado. Exotismo e conhecimento aprofundado da realidade diversa, para Segalen, não coexistem. E embora pretenda mostrar que não é exclusivo, declara que o exotismo geográfico é o mais encontrado, sobretudo em sua vertente tropical, já que há pouco exotismo polar (1996,p. 33). Aliado à distância, é nele que o outro será menos conhecido e mais estimulador da curiosidade. Maneira de ver e atitude frente aos outros, o exotismo é, ao contrário do racismo, uma positivação do Outro. Seus costumes, seu modo de vida, seus valores, sua produ- ção não apenas são dignos de estima, mas mesmo almejados. Através dele, as carac- terísticas do que é diverso adquirem valência positiva. Mas ainda que se mostre enquanto celebração do outro, o exotismo talvez não esteja tão distante daquele que, em aparência, é seu oposto, o etnocentrismo. Indo da desconfiança à hostilidade, este último rejeita toda forma cultural que seja diferente da sua própria. é nesse ponto que etnocentrismo e exotismo se aproximam. mesmo que difiram em conteúdo, um valorizando e outro repelindo, ambos têm em comum o fato de ser um enunciado sobre si próprio ainda mais do que sobre o Outro: no espelho, a referência e o centro continuam a ser Narciso. Antes de ser desvalorização do outro, o etnocentrismo é o ato de tomar sua própria cultura como parâmetro absoluto de valor no ato de comparação com culturas diversas. No exotismo, da mesma forma, o que é valorizado não é propriamente o Outro, mas um ideal que funciona tal qual crítica de sua cultura de referência (Todorov, 2005). Ou, como define panoff (1986, p. 19), elabora-se por meio do exotismo – em sua vertente clássica – uma espécie de recusa crítica ao modo de vida de sua própria sociedade (no Movimentos do Olhar 32 caso, a burguesia europeia urbana do século XIX), trocado por uma liberdade deseja- da, imaginativamente situada em um Outro visto como seu exato oposto: em terras distantes, ou eles são selvagens infelizes e imorais (etnocentrismo), ou são inocentes criaturas não maculadas pelos vícios da sociedade europeia industrial, ou são apenas defeitos, ou apenas qualidades. ☞ repare que, sejam repertórios de defeitos ou de qualidades, em ambos os casos são julgados tendo como referência a sociedade de origem – e a lente – daquele que vê. Permanecem desconhecidos, pois, se conhecidos fossem, seriam julgados não por seus costumes, mas dentro de seus costumes. Everardo rocha relata uma historieta bastante ilustrativa para compreendermos um pouco o que ele chama de “etnocentrismo cordial”: Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens, um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar, no Xingu, seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio. A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo, no centro, o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor. Fora-se o relógio. 33 Movimentos do Olhar Passados mais alguns meses, o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou- se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio. rOchA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 10-12. A relação entre o indígena e o missionário, nesse caso, fora amistosa, e sem dúvidas havia acontecido uma troca cultural, inclusive através da troca de objetos – o relógio dado de presente pelo pastor ao indígena. O pastor, entretanto, ficara impressionado com o fim que teve seu relógio – feito para ver as horas, dentre tantas outras modernas funções. um objeto fabricado em uma sociedade específica, como aquele relógio, tinha nela uma função técnica também bastante específica. O índio, pensou ele, talvez por desconhecer essa função, ao incorporar o novo bem a seu próprio modo de vida, trans- formou o relógio em objeto estético. Mas não teria o religioso percebido que também ele, ao pendurar na parede flechas, flautas e arcos, lidava com objetos que, em sua sociedade de origem, eram técnicos, e que estavam sendo usados com fins estéticos? Temos, assim, o fato de que, de ambos os lados, havia um descompasso entre os objetos e seu contexto de produção e utilização. Tanto o etnocentrismo (cordial ou hos- til) quanto o exotismo procedem da mesma maneira, analisando ações, crenças, regras sociais e produções culturais de acordo com seus próprios critérios, sem compreender que não podem ser julgados plenamente, a menos que sejam remetidos aos sistemas de valores dos quais fazem parte. 3 Re la tiv iza çã o Movimentos do Olhar 36 Aceitar o desafio de experimentar as lentes do olhar antropológico significa, antes de tudo, relativizar. quando procuramos compreender os costumes dos outros dentro de seu próprio contexto, dentro de seu próprio sistema de valor, estamos relativizando. quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. quando compreendemos o “outro” nos seus próprios termos e não nos nossos: estamos relativizando. rOchA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 20. Partir para o território do outro, dar espaço ao que não é familiar: esse é o primeiro passo para uma possível transformação do olhar, uma relativização de ponto de vista. como vimos na primeira parte desta unidade, a curiosidade do homem sobre si próprio sempre existiu, mas é a passagem do curioso, do exótico e do bizarro para uma cons- ciência da alteridade que marca realmente o pensamento antropológico e sua reflexão a respeito da diferença. A diversidade cultural só pode ser compreendida se a postura frente ao estranho e ao estrangeiro tornar-se mais flexível e permitir existência da diferença enquanto dife- rença, não enquanto hierarquia, como no caso do etnocentrismo. O primeiro passo para a relativização é aceitar que o Outro existe, reconhecê-lo: lembre-se de que, em alguns casos, o etnocentrismonem ao menos reconhece que existe a diferença! Além de reconhecê-lo, é preciso conhecê-lo, tentando ultrapassar um olhar superficial e distanciado. para realmente compreender e conhecer seus costu- mes, precisamos conhecer suas lentes, sua forma de ver o mundo, sob sua perspectiva. E, já que estamos tratando de perspectivas, podemos experimentar um exercício bastante simples que diz respeito à visão e ao contexto. olhe com atenção o con- junto de círculos representado na imagem abaixo. ▼ Todos estão loucos neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. guimarães rosa. Grande Sertão: Veredas. 37 Movimentos do Olhar � o que você vê? Você saberia dizer qual dos dois círculos centrais tem maiores dimensões? Ainda que muito frequentemente o círculo central da direita seja percebido visu- almente como maior do que o círculo central da esquerda, ambos têm exatamente o mesmo tamanho. repare o quanto o contexto e a perspectiva podem influenciar nosso modo de perceber a realidade, mesmo quando se trata de algo aparentemente simples e objetivo: a representação gráfica de formas geométricas. quando relativizamos, situando os costumes do Outro na perspectiva do Outro, aquilo que antes era tido como estranho e exótico, imediatamente julgado e hierar- quizado, passa a ser percebido não como a diferença ameaçadora, e sim como mais uma possibilidade, entre tantas outras, de se viver no mundo. Se eles conseguem viver assim, de maneira tão diferente, é porque nós, se tivéssemos nascido em sua sociedade, também conseguiríamos, e isso nos pareceria o mais natural. A partir do reconheci- mento da diversidade em seus próprios termos – não mais nos nossos – temos diante de nossos olhos um enorme leque de alternativas, um grande conjunto de lentes que não são, por si mesmas, nem melhores nem piores do que as nossas. Pensemos que, aos olhos dos que delas fazem uso, podem ser vistas inclusive como melhores do que as nossas. O antropólogo norte-americano clifford geertz (2001) sugere que o grande objetivo da antropologia seria o alargamento do discurso humano: reconhecer outras possibili- dades, outros significados, outras formas de vivenciar e de explicar a realidade. conhe- cer outras perspectivas pode ser uma experiência bastante enriquecedora. Imagine, por exemplo, que você está sozinho em uma casa vazia, só tendo acesso ao mundo lá fora a partir de uma única janela do edifício. O que você veria? A realidade lá fora, ou a perspectiva da realidade fornecida por sua janela em específico? por que não experi- mentar, então, outras janelas? Assim, estudando a diversidade humana, as diferentes culturas repletas de riquezas e esquisitices, a antropologia contribuiria para mostrar a relatividade de toda experiên- cia. Nesse sentido, ela poderia ser vista como uma ciência da tolerância, que poderia contribuir para fazer com que percebamos a arbitrariedade das assimetrias, e para que tentemos pensar na igualdade, sem abrir mão das diversidades. Tendo contato com a alteridade a partir de um ponto de vista relativizador, perce- bemos que somos apenas uma das culturas possíveis, e não a única. Conhecendo as diferentes formas de lidar com o mundo, as diferentes respostas dadas pelas mais di- versas culturas é que se pode relativizar aquilo que nos é estranho, tentando encontrar, assim, no olhar do outro, o ponto de partida. é claro que jamais chegaremos a ocupar o lugar do outro de maneira literal ou total, afinal é impossível abrir mão totalmente de nossa cultura de origem, de nossos valores. é preciso, entretanto, tentar chegar o mais próximo possível desses outros olhares e, mesmo sem adotá-los como nossos, respeitar sua lógica e coerência. Nossas lentes muitas vezes nos cegam, quando tentamos ver o que está distante. Ajustemos então essas lentes para mais longe, não deixando que nos ceguem para o outro e, principalmente, nos tornem míopes para nós mesmos. do s O j o g o 4 es pe lho s Movimentos do Olhar 40 Se, como dizíamos, relativizar é tentar entender o Outro com base no ponto de vista do Outro, acreditando que seus costumes são relativos à sua cultura, temos que, através do contraste, perceber que nosso próprio modo de ser e viver é apenas mais um entre tantos outros, sendo também relativo à nossa própria cultura, circunscritos e limitados, e não absolutos e universais. relativizar o Outro é também relativizar a nós mesmos. é a partir do reconhecimento da alteridade que podemos, finalmente, entender quem somos. Cruzar a fronteira, deixando nosso território, é a melhor forma de – olhando para trás – ver nosso mundo com o espanto e a curiosidade que não podiam germinar enquanto estávamos dentro dele. Por mais que o antropólogo tenha esse quê de viajante, não precisamos aqui falar em transposição de fronteiras físicas. A viagem que propomos é a de simplesmente enxergar o outro lado, a outra margem do lago, o que não me pertence e é diferente de mim. Através do estranhamento provocado pelas outras culturas, modifica-se a forma que temos de olhar sobre nós mesmos. O Narciso antropológico, ao contrário daquele do qual tanto ouvimos falar, não vê no lago sua imagem familiar refletida, e sim a imagem de algo que é desconhecido, rica em detalhes que, antes de ver o outro, passavam desapercebidos. é um Narciso que, ao invés de, apaixonado, aproximar-se cada vez mais do lago para mergulhar em si próprio, toma certa distância para admirar-se de mais longe e a partir de outros ângulos. Começa, então, a estranhar a si próprio, a se espantar com tudo que lhe parecia banal. O “eu” não existe plenamente sem o “outro”, e olhar para os outros e para si mesmo são dois movimentos estreitamente homólogos. Novamente exercitando sua percepção, olhe para as figuras na página ao lado e diga o que você vê ▶ � Na primeira figura, você identifica o perfil de um saxofonista, ou um rosto de mulher? Na segunda, vemos um esquimó de costas, ou o rosto de um indígena norte-americano? Na terceira imagem, conhecida como “a moça e a velha”, você enxerga o rosto de uma senhora de cabelos brancos, ou uma jovem com uma pluma na cabeça e uma estola de pele? ☞ repare que os pares de imagens estão presentes nas três figuras. por vezes, temos dificuldades de perceber todas elas, mas elas estão lá, basta saber olhar. Além disso, repare que cada par de figuras se completa: um não pode ser visto se lá não está o outro. Se apagarmos do papel o saxofonista, por exemplo, não mais vemos o rosto da mulher. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Livro dos Conselhos. Citado em José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira 41 Movimentos do Olhar Movimentos do Olhar 42 depois de percebermos, não sem algum espanto, a presença de todas as figuras, dificilmente poderemos olhar novamente para estas imagens e ver, como antes fizéra- mos, apenas uma ou outra. Nosso olhar já não será mais o mesmo. Da mesma forma, quando nos confrontamos com a alteridade, e estamos dispostos a enxergá-la de maneira relativizadora, não conseguimos mais nos olhar no espelho da mesma maneira. Depois de ver o Outro e procurar seu ponto de vista, algo mudou em nós. Mas o que foi? Como dizíamos há pouco, o etnocêntrico reage de maneira muito agressiva ao contato com o Outro porque as verdades do Outro ameaçam suas próprias certezas. Elas ameaçam aquelas coisas que aprendemos racionalmente, pela via do intelecto, mas também todas as outras que aprendemos, desde muito cedo em nossa vida, sem ao menos termos percebido. � Sabemos que não podemos ir para a sala de aula usando pijamas ou roupas de banho, mas quando alguém nos avisou que assim seria? Sabemosque as mulheres costumam sentar-se de maneira diversa daquela dos homens, mas onde exatamente está escrito que deve ser assim? Você lembra do dia em que lhe foi ensinado que seu gato, ou cachorro, era menos comestível do que a carne de frango que compra no supermercado? quando lhe avisaram que baratas não eram um petisco? Você consegue voltar ao momento em que lhe explicaram a maneira correta de enterrar seus mortos, o que sentir perante a perda, e como chorar por eles? quem lhe sugeriu que pintar as unhas dos pés de cores vivas é aceitável, e mesmo bem visto, para mulheres, e não para os homens? E como aprendeu que usar gravata no pescoço pode ser elegante para um homem, mas que portar alargadores de madeira nos lábios, à semelhança de alguns indígenas brasileiros, não é a melhor maneira de “vestir o corpo” para uma reunião de negócios? Todas essas pequenas coisas cotidianas, além de muitas outras, foram aprendidas através de nossa vivência em sociedade. Elas nos parecem tão óbvias que é como se fossem quase naturais. Mas nascemos sabendo disso tudo? Por que é então que as crianças pequenas teimam em levar tudo à boca, inclusive aqueles insetos que causa- riam repulsa a qualquer adulto? Elas ainda não estão totalmente socializadas, ainda não aprenderam algumas dessas regras, gostos e comportamentos, não sabem ainda o que é culturalmente valorizado e o que não é. Se nos perguntam a razão de essas pe- quenas coisas serem como são, frequentemente nos esquivamos das respostas dizendo que são “porque sim”, ao invés de “porque assim deve ser”. Não sabemos a origem de grande parte de nossos hábitos e fazemos de conta que já nascemos com eles. A música “Oito Anos”, escrita por paula toller para seu filho, gabriel, trata exata- mente desse estranhamento dos pequenos perante os detalhes mais cotidianos da vida: 43 Movimentos do Olhar Por que você é Flamengo e meu pai Botafogo? O que significa “impávido colosso”? Por que os ossos doem enquanto a gente dorme? Por que os dentes caem? por onde os filhos saem? Por que os dedos murcham quando estou no banho? Por que as ruas enchem quando está chovendo? quanto é mil trilhões vezes infinito? quem é Jesus cristo? Onde estão meus primos? “Oito anos”, Paula Toller / Dunga quando estudamos uma outra sociedade e procuramos entender seus modos de viver como sendo tão válidos quanto os nossos, acabamos nos tornando um pouco como as crianças, e olhamos para nossa própria sociedade com certo estranhamento. Se eles comem insetos, se eles pintam o corpo, se eles não usam gravata ou sapatos de salto há de ser porque os costumes não são naturais nem inatos (não nascemos com eles), nem os dos outros nem os nossos. Como você já viu, o olhar antropológico, quando tem como foco o diferente, o Outro, procura aproximar-se, olhar de mais perto, tentando chegar o mais próximo possível da perspectiva alheia. quando olhamos para nossa própria cultura, entretanto, já estamos bastante próximos. O que fazemos, então, é tentar exercitar o movimento contrário, aquele do distanciamento, quase que fazendo de conta que não fomos cria- dos nessa sociedade, que desconhecemos suas verdades aparentes – assim buscamos suas verdades mais profundas e enraizadas! Somos como crianças pequenas, querendo saber os porquês, ou como um marciano recém-chegado tentando entender como se vive na nova realidade desconhecida. quando a antropologia surgiu como disciplina, ela estudava sobretudo os Outros, os povos tidos como “exóticos”. Nesse caso, o esforço era o da proximidade, ver a lente do Outro, ou, como o antropólogo roberto da matta (1978) em um texto já bastante clássico, o antropólogo tentava “tornar o exótico familiar”: tentava procurar nos fe- nômenos que lhe pareciam ilógicos, nas outras sociedades, uma lógica interna, uma razão de ser, conhecia o Outro em profundidade para desexotizá-lo. é claro que ele não voltava o mesmo para casa, e dificilmente veria sua própria realidade sem algum estranhamento. Nesse caso, o objetivo era tornar o exótico familiar, e estranhar o que lhe era familiar acabava sendo apenas uma consequência. Desde mais ou menos a década de 60 do século XX, entretanto, os antropólogos passaram a estudar também as sociedades ocidentais e industrializadas. Acreditando na equivalência entre as culturas diversas, percebemos que as sociedades ocidentais, urbanas e industriais eram tão “estranhas” quanto as outras. Seus hábitos não eram Movimentos do Olhar 44 naturais, eram tão culturalmente e socialmente determinados quanto aqueles de to- das as demais sociedades. Por que, então, não podiam ser estudadas para que melhor compreendêssemos a humanidade? Além disso, mais recentemente, começaram a surgir antropólogos nativos, antro- pólogos que não pertenciam à sociedade europeia (como no final do século XiX), ou norte-americana (como no início do século XX). hoje temos antropólogos indianos, chineses, brasileiros, japoneses, congoleses. Muitos deles estudam suas próprias socie- dades, assim como muitos antropólogos franceses agora estudam a França, e muitos antropólogos britânicos estudam a Inglaterra. Se, no caso de nosso antropólogo clássico, era buscada a proximidade do Outro, e o estranhamento do familiar era uma consequência, no caso do antropólogo que estuda sua própria sociedade (seja ela francesa, brasileira ou japonesa) o estranhar o familiar se torna um objetivo. A revolução no olhar, provocada pelo distanciamento, permite que nos espantemos com aquilo que nos é mais familiar, com o que é parte de nosso cotidiano e da sociedade na qual vivemos. O jogo dos espelhos é justamente esse, tornar o estranho familiar e enxergar o mais familiar com espanto e estranhamento. Assim, passamos a observar mais atentamente tudo o que encontramos. Passamos, principalmente, a não apenas ver, mas também a reparar. Veja o que Roberto DaMatta tem a dizer sobre os dois movimentos do olhar an- tropológico, tornar o exótico familiar e estranhar o familiar: ▼ Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogo parecem guardar entre si uma estreita relação de homologia. Como o desenrolar de uma sonata, onde um tema é apresentado claramente no seu início, desenvolvido rebuscadamente no seu curso e, finalmente, retomado no seu epílogo. No caso das transformações antropológicas, os movimentos sempre conduzem a um encontro. Deste modo, a primeira transformação leva ao encontro daquilo que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no envelope do bizarro, de tal maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem do herói clássico, partida em três momentos distintos e interdependentes: a saída de sua sociedade, o encontro com o outro nos confins do seu mundo social e, finalmente, o “retorno triunfal” (como coloca Degerando) ao seu próprio grupo com os seus troféus. De fato, o etnólogo é, na maioria dos casos, o último agente da sociedade colonial, já que, após a rapina dos bens, da força de trabalho e da terra, segue o pesquisador para completar o inventário canibalístico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as ideias - numa palavra, os imponderáveis da vida social que foi colonizada. Na segunda transformação, a viagem é como a do xamã: um movimento drástico onde, paradoxalmente, não se sai do lugar. E, 45 Movimentos do Olhar de fato, as viagens xamanísticas são viagens verticais (para dentro ou para cima) muito mais do que horizontais, como acontece na viagem clássica dos heróis homéricos. E não é por outra razão que todos aqueles que realizam tais viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os que de algum modo se dispuseram a chegar no fundo do poço de sua própria cultura. Como consequência, a segunda transformação conduz igualmente a
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