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MORAL E DIREITO

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MORAL E DIREITO
DA IMPOSIÇÃO DA MORAL PELO DIREITO 
A DISPUTA DEVLIN-HART
Um dos temas clássicos que têm sido abordados desde a perspectiva das relações entre o direito e a moral é o da possibilidade – e em seu caso justificação – da imposição de normas morais, por meio do direito. Isto é, se trata de determinar se a mera imoralidade de um ato é, ou não razão suficiente para justificar que o direito interfira em sua realização.
Desde uma perspectiva liberal, esse é um problema importante, porque quase todas as constituições desse modelo, possuem em sua ideia central disposições que estabelecem que as ações dos homens, desde que não danem aos outros, não podem ser proibidas legalmente. A constituição Argentina, por exemplo, em seu artigo 19, diz: “As ações privadas dos homens que de nenhum modo ofendam a ordem e a moral pública, nem prejudiquem a um terceiro, estão somente reservadas a Deus e isentas das autoridades dos magistrados”. Também na Constituição Espanhola, no Título 1, DOS DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS, impõe uma série de garantias para a livre atuação das pessoas a respeito de temas morais. Assim, por exemplo, não cabe descriminação alguma por razão de religião ou opinião (art.14); Se garante a liberdade ideológica (art.16); se reconhece o direito a intimidade (art.18) ou a liberdade de expressão (art.20) etc. 
Na realidade, tais disposições já tinham sido adiantadas nos artigos 4 e 5 da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, ao estabelecer: “A liberdade consiste em fazer tudo que não fira o outro... A lei não pode proibir nada além das ações que sejam prejudiciais para a sociedade”. Parece que desde o ponto de vista de um sistema jurídico penal liberal, a mera imoralidade do ato não é razão suficiente para sua proibição, e o Estado deveria permanecer neutro em relação às concepções morais dos cidadãos. 
No âmbito jurídico filosófico, a polemica a respeito da imposição da moral mediante o direito teve seu maior desenvolvimento na década dos anos sessenta com a discussão entre Lord Devlin e H.Hart. A questão tinha sido colocada em torno da conveniência ou não, de descriminalizar os comportamentos homossexuais e a prostituição. A comissão Wolfenden, que nessa ocasião havia sido criada na Inglaterra, decretou em 1957, que era oportuno desregular ambas as condutas baseando-se precisamente em um argumento liberal, isto é: não são de incumbência do Estado as atividades privadas realizadas entre os adultos. Segundo a Comissão Wolfenden, “A função do direito penal é de preservar a ordem pública e a decência, proteger os cidadãos do que seria ofensivo e prejudicial, e fornecer suficiente resguardo frente à exploração e corrupção dos outros, especialmente aqueles que são particularmente vulneráveis, seja porque são jovens, fracos de corpo e mente, ou inexperientes. Em nossa opinião não é função do direito intervir na vida privada dos cidadãos, nem tentar expor nenhum modelo de comportamento determinado, mas além do necessário para levar a prática dos propósitos que temos buscado... Portanto se há de manter a moralidade e a imoralidade privada, falando breve e grosseiramente não é assunto do direito. 
 Com essa recomendação, o Comitê Wolfenden, não fazia se não recorrer a já tradicional concepção milliana a respeito do princípio do dano. Em Sobre La libertad, Mill sustém que: “A única finalidade pela qual o poder pode, com pleno direito, ser exercido sobre um membro da comunidade civilizada contra sua vontade é evitar que prejudique aos demais. A única parte da conduta de cada um pela qual ele é responsável diante da sociedade é a que se refere aos demais. No que corresponde a cada individuo, sua independência é de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e espírito, o individuo é soberano”. 
 A seguir, analisarei brevemente, em primeiro lugar, as teses do Lord Devlin, prestando especial atenção, as suas teses a respeito da desintegração social, em segundo lugar, apresentarei dois casos que pareceram abalar as teses Devlinianas e em terceiro lugar, farei um breve exame das principais críticas de Hart as teses de Lord Devlin para concluir examinando certas relações entre o direito e a moral. 
I
Lord Devlin, que em principio aceitava as mesmas conclusões das alegadas por Mill, ao terminar de preparar suas duas primeiras Conferências Macabeas tomou consciência de que tais conclusões eram totalmente inaceitáveis. Sua razão era proveniente de que a constatação de que todos os sistemas jurídicos impõe uma determinada moral através do direito penal, como um meio que tem a sociedade de defender-se dos ataques que podem destruí-la. 
Segundo Devlin, o direito penal não é nada além de um direito moralizado. E em muitos delitos, sua única função consistiria em aplicar nada mais que um principio moral. Em apoio a esta decisão, Devlin assinala o fato de que o consentimento da vítima não joga nenhum papel no direito penal como elemento de justificação ou de desculpa. A razão disso é que, em um crime não é somente um ataque a um individuo determinado, mas também um problema para a comunidade em seu conjunto. Por outra parte, acrescenta que existem ações imorais que não estão qualificadas como crime, não haveria imoralidade que fosse perdoada pela lei. Assim, um contrato cujo objeto fosse imoral, não seria válido. 
A defesa desse tipo de moralismo legal por parte de Devlin se baseia na premissa de que a coesão social depende do conjunto de crenças morais compartilhadas pelos membros de uma comunidade. Ao compartilhar essas crenças, os indivíduos se transformam em integrantes de uma sociedade. De fato a sociedade é definida por Devlin como “uma comunidade de ideias, e não só de ideias políticas, mas também de ideias sobre como seus membros devem comportar-se e governar suas vidas; Pois bem: estas últimas ideias constituem sua moral. Toda sociedade tem uma estrutura moral, também na política; ou melhor... eu diria que toda estrutura de toda sociedade se compõe de uma política e uma moral”. 
Porém se baseia também em uma segunda premissa, que é a de que toda sociedade tem o direito de defender sua integridade, tanto frente a ataques internos como externos. E assim como a rebelião afeta a integridade do corpo político, a imoralidade afeta a integridade do corpo social. Se a moralidade compartilhada constitui o cimento da comunidade, a imoralidade tende a desintegra-la. Bem, é certo, segundo a opinião de Devlin, que nem todo ato subversivo, nem qualquer ato de imoralidade ameaça a existência da sociedade, porém tanto as atividades subversivas como as imorais são, por sua própria natureza, capazes de ameaçar a existência da sociedade.
A sociedade tem o direito de usar suas leis como um ato de autodefesa de sua integridade. E deve, portanto, impor através das normas penais o núcleo moral básico da sociedade. Se, se reconhece a inexistência de limites do poder estatal para lutar contra a subversão, se deve também reconhecer que não é possível restringir a atividade punitiva do Estado para lutar contra a imoralidade.
Em conexão com esta afirmação, Devlin sugere uma analogia entre autoridade política e autoridade moral, entre a traição e a imoralidade. Afirma, em este contexto, que a supressão do vicio corresponde ao direito tanto como a eliminação da subversão. O principio que legitima a atividade repressora do Estado em ambos os casos é o mesmo: a autodefesa.
Robert George diz que Devlin, justifica a imposição de uma moral através do direito como uma questão de autoproteção e não como uma questão de defesa de uma hipotética moral verdadeira. “O que justifica a imposição jurídica é a coesão social per se. Embora a coesão social requeira a integração dos indivíduos em torno a um conjunto de crenças morais compartidas, não requer que as crenças que compartem sejam também verdadeiras. Portanto, segundo Devlin, uma sociedade pode impor legitimamente qualquer crença moral compartida que mantém aos seus membros unidos”.
Vislumbra-se aqui umaposição relativista na ética de Devlin. Isto é assim porque em Devlin a moral não é uma questão que se relaciona com a razão, mas sim com a sensibilidade. Para averiguar as crenças morais de uma sociedade, têm que se conhecer quais são as crenças morais do homem razoável, do homem da rua. A este “homem do ônibus de Clapham” não se há de pedir; afirma Devlin que pense. Não se trataria de saber o que pensaria um homem racional, se não o que seguraria um homem de mente reta. Por essa razão, a imoralidade a efeitos jurídicos é aquela que qualquer pessoa de mente reta consideraria imoral.
Porém não é qualquer ato de imoralidade que deve ser castigado pelo Estado. Não basta que uma determinada prática seja repudiada pela maioria, é necessário que exista um verdadeiro sentimento de reprovação, de repugnância. “Sua existência- afirma Devlin- é um bom indicio de que se está alcançando os limites de tolerância; Nem tudo há de se tolerar. Nenhuma sociedade é capaz de prescindir a intransigência, a indignação e a repugnância; São estas as provas que se respaldam a lei moral, e certamente pode argumentar-se que, se não estão presentes elas ou outras semelhantes, os sentimentos da sociedade não influirão o bastante como para privar o individuo de liberdade, de escolha”.
Finalmente, disse Devlin, não cabe distinguir entre uma imoralidade pública e outra privada. Em todo caso, unicamente caberia falar de imoralidades cometidas em público e em privado. 
Devlin supõe uma determinada moralidade media, se se quer conservar essa sociedade, há de se pedir que mude essa moral. De aí sua rejeição a distinguir entre o pecado e o crime, entre o direito divino e o secular entre o direito e a lei moral. Aqui sua inclinação conservadora é notória.
Até aqui a descrição das principais teses de Lord Devlin, para quem pensa que se trata de uma posição com validez meramente histórica, permita-me apresentar a continuação dos casos em os quais se há argumentado a mera imoralidade do ato como fundamento para sua proibição, o primeiro fará referencia a algumas das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos; o segundo a pornografia. 
II
Como se sabe, o Convenio Europeu de Direitos Humanos tem como objetivo central criar um âmbito europeu comum para a validez e vigência dos direitos humanos. Em este contexto, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos desempenha um papel destacado em um duplo sentido. Em primeiro lugar, se transforma ao máximo organismo de interpretação desse Convenio e em segundo lugar suas decisões são obrigatórias para os países signatários do mesmo.
Não é minha intenção aqui analisar todas as cláusulas do Convenio, nem toda a totalidade da jurisprudência do Tribunal. No que se seguem me limitarei a assinalar como o Tribunal tem entendido a cláusula do Convenio referente à “proteção da moral”. Apresentarei brevemente o caso Dudgeon e o caso Handyside.
No caso Dudgeon, o Tribunal entendeu que a cláusula de “proteção a moral” fazia referencia as pautas éticas da sociedade em seu conjunto, e que implicava a defensa de regras morais de uma sociedade. Cada Estado teria o direito a ditar normas para proteger crenças morais de sua comunidade. O caso Dudgeon, como se sabe, fazia referencia a leis de 1861 e 1885 que estavam vigentes na Irlanda do Norte e mediante as quais se perseguiam as práticas homossexuais, incluindo entre adultos que voluntariamente participam delas. 
O Tribunal entendeu que “o feito de que leis similares não se considerem necessário em outras partes do Reino Unido o em os Estados membros do Conselho da Europa, não significa que não possam ser necessárias na Irlanda do Norte. Quando existem disparidades culturais entre as comunidades que residem em um mesmo Estado, o governo deve fazer frente às diferentes exigências, tanto morais como sociais”. 
As autoridades norte irlandesas mantiveram, ao perseguir a Dudgeon, que as descriminalizações das práticas homossexuais tenderiam a corroer as pautas morais vigentes. Já no caso anterior, o caso Handyside, o tribunal havia mantido a tese de que as autoridades de cada um dos Estados membros estavam em melhor disposição de julgar as pautas e práticas morais de suas respectivas sociedades, pois estavam em “contato direto e continuo com as forças vitais de seus países”. 
E no que afeta as práticas sexuais, se mantém em Handyside, “É um dos assuntos que as autoridades nacionais podem legitimamente ter em conta – o clima moral particular – na hora de exercer suas faculdades de maneira discreta”. 
Igual que Devlin, o Tribunal assume uma posição relativista ao dizer que cada Estado membro está autorizado a manter seus próprios critérios morais. Coincide, também, com a legitimidade das leis que tenham por objeto manter a coesão moral da sociedade. Ao reconhecer que cada sociedade tem sua própria moral e que está pode ser diferente de cada uma das outras que constituem os que participam do Convenio, deveria ter que se pensar que a justificação de leis que castiguem ações imorais pelo simples fato de serem, se baseiam na autoproteção e não, em sua correção universal. É importante dizer aqui que a cláusula “ da proteção da moral” deve ser utilizada quando o bem que ela protege é superior ao bem que garante um direito humano, e em esse sentido, sustem que a proteção contra a desintegração social é superior aos valores e planos de vida individuais. 
Por outro lado, boa parte do debate que se tem desenvolvido nos últimos anos em torno a questões morais vinculadas a problemas sexuais, faz referência à questão de se a pornografia deve ser, ou não, proibida. Muitos são os argumentos que se tem dado em favor tanto de permitir sua produção, distribuição e consumo, como em favor de sua total proibição. Farei referencia aqui somente a um argumento deste debate, usando das teses de Lord Devlin, ele que diz que a pornografia provoca destruição da sociedade através de seu minar moral. Segundo Irving Kristol, existe um aspecto político na pornografia quando afirma que “é um poderoso subversivo da civilização e de suas instituições”. Já Walter Bens havia advertido que a democracia não é tanto uma forma de governo como uma questão de auto limitação. “Para falar de uma maneira que seja mais obviamente política, existe uma conexão entre autolimitação e vergonha, e por outro lado uma conexão entre vergonha e autogoverno e democracia. Tem-se, por conseguinte um perigo político ao promover a desavergonhice e a completa autoexpressão ou indulgencia. Viver junto requer regras... e os que não tenham vergonha serão ingovernáveis... A tirania é o modo natural e inevitável de governo para os sem vergonha e os autoindulgentes, que tem levado a liberdade, mas para lá do que qualquer limite, natural ou convencional”. Segundo estas teses, as sociedades em geral e a democracia particular sobreviveriam graças a um sentimento de identificação e de solidariedade entre seus membros, o que conduziria a um respeito pelas normas e as instituições sociais, fazendo com que cada uma delas se beneficiasse separadamente ao serem encompridas. As instituições sociais cultivaram tradições, costumes, valores e ideais compartidos. No âmbito sexual estabeleceram vínculos estáveis baseados em afeto e respeito mutuo que impediram tratar o outro como meio para alcançar gratificações próprias. Segundo Ernest van den haag, “a pornografia tende a corroer estes vínculos, em verdade, todos os vínculos. Convidando-nos a reduzir a outros e a nós mesmos a seres puramente físicos, convidando-nos a cada um de nós a olhar aos outros somente como um meio para a gratificação física, com sensações, mas sem emoções, com contatos, mas sem relações, a pornografia não só nos degrada, mas também corroí toda solidariedade humana e tende a destruir todos os vínculos afetivos... Podemos e devemos proibir o comércio, a venda pública do que percebemos como prejudicial para a sociedade, inclusive se não desejamos invadir lares para castigar a quem as consome”;
O Tribunal Supremo Espanhol, até o ano 1984 pareceuser da mesma opinião do que os autores anteriormente citados. Em sentença de 29/09/1984 se pode ler “a literatura pornográfica enquanto invade os ambitos sociais do país, desbordando os limites do erótico e provocando uma sexualidade desviada e pervertida que conduz ao homem a degradação pessoal, machucando e correndo gravemente a moral coletiva”; e em sentença de 09/10/1981, “as publicações pornográficas que referidas ao sexo os descrevem de forma sensual, impudica, torpe e obcena e, por tanto de maneira ofensiva para o pudor da generalidade das pessoas e da moral coletiva”. Em ambos os casos se encontrou culpados a quem produziram e distribuíram sendo materiais pornográficos em virtude de delito de escândalo público, tipo penal hoje felizmente revogado. 
Este modo de conceder a pornografia a converte em um caso paradigmático do pensamento de Devlin. Ao estimular as práticas sexuais e a libido das pessoas à margem dos cânones morais positivos vigentes na sociedade, se produz a ruptura do cimento social. Se a sociedade se identifica com a sua moral positiva, a pornografia ao viola-la contribui a desintegração dessa sociedade. Relaxamento de costumes e perda da identidade social aparecem como términos sinônimos. 
Tanto em exemplo do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como no caso da pornografia, se sustem que o Estado pode e deve ditar normas que reprimam condutas imorais pelo mero fato de celas, como uma forma de autoproteção social. E há de se fazer notar que a justificação deste tipo de legislação está à margem de se a conduta perseguida causa danos a terceiros.
III
Muitas são as críticas que se formularam as leis de Devlin desde as perspectivas mais diversas. Não gostaria passar a leitura aqui a todas elas. Mas, talvez haja sido Hart quem com mais atenção tenha analisado seu trabalho. As objeções de Hart são já clássicas, e ao formula-las pretendia em última instancia sentar as bases de um direito penal que se fundamenta em critérios liberais, atendendo em primeiro término ao principio do dano.
Segundo Hart, e em nisso seguindo em parte a defesa dos pontos de vista de Mill acerca da justificação moral do castigo “se deve demonstrar que a conduta punível é o bem diretamente prejudicial, ou o é com os indivíduos ou com sua liberdade, o bem coloca em perigo o interesse coletivo, o qual é mantido pelos membros da sociedade para sua organização ou defesa. Segundo este ponto de vista, o mantenimento de um código moral dado não é como tal, o objetivo do direito penal de qualquer instituição coerciva. Isto é algo do que se deveriam ocupar outros organismos: a educação, a religião ou a livre discussão entre adultos”. Em este sentido, Hart, igual que Mill, parece aceitar o principio do dano. 
Em opinião de Hart, as teses de Devlin, são equivocadas por várias razões. Em primeiro lugar, porque Devlin confundiria as leis com fundamentos paternalistas que proíbem certos atos com o fim de evitar que pessoas incompetentes se machuquem física ou psiquicamente a si mesmas, com a suposta justificação de leis que reprimem qualquer imoralidade. Isso se coloca de manifesto nos próprios exemplos que Devlin diz acerca de que o consentimento não joga papel algum no direito penal. 
Em segundo lugar, Devlin também confundiria a legitimidade da repressão da indecência com a suposta justificação da repressão de ações imorais executadas em privado. A repressão de ações indecentes tem por objeto evitar a ofensa dos sentimentos de terceiro, e estaria claramente justificada mesmo quando as mesmas ações realizadas em privado sejam legitimas. Por exemplo, ter relacionamento carnal em privado dentro do matrimonio é legitimo na via pública resulta indecente. E Hart diz que como em alguns casos propostos por Devlin, tal como a bigamia, a repressão estaria justificada pela existência de danos a terceiros, e não por castigar uma mera imoralidade. 
Em terceiro lugar, Devlin não oferece prova alguma de porque se há de influir nas pessoas para que se comportem moralmente mediante a imposição estatal de um mal (a sanção penal sempre é um mal que se infringe ao condenado), quando em realidade se pode conseguir os mesmos fins com outros métodos não prejudiciais como a educação, etc. Exigir a conformidade da conduta de terceiros mediante o medo e a sanção legal está mais relacionado com os tabus do que com a moral. 
Em quarto lugar, a definição da sociedade proposta por Devlin encerra um círculo vicioso. A sociedade é definida em términos morais. Se se violam certas regras morais, se produz a desintegração da sociedade. Logo, afirma Devlin, está justificada a defesa da moral social. Mas “a proposta da proteção da moral social é necessária para a existência da sociedade também pode ser rejeitada desde o ponto de vista lógico; como se trata de uma verdade necessária à proposta que identifica a existência da sociedade com a proteção de sua moral não pode implicar logicamente a proposição que a justifica a coação da moral em função das consequências valiosas de assegurar a existência da sociedade”. Por outra parte, Devlin não oferece nenhuma prova empírica de que a modificação dos hábitos morais cause ou haja conduzido à desintegração de nenhuma sociedade. 
Finalmente, duas considerações de uma já conhecida distinção entre moral positiva e a moral crítica. Hart se pergunta como é possível que a moral critica ordene impor qualquer moral positiva, incluindo aquela que se baseia em ignorâncias ou erros de diversos tipo. O legislador, ao ditar a lei penal deve valorar racionalmente quais são os fundamentos da moral positiva vigente, e em seu caso atuar em contra do majoritariamente desejado. Se não for assim, deduz Hart, se confundiria, tal como o faz Devlin, a democracia como forma de governo com um populismo moral, segundo o qual a maioria da população teria direito a estabelecer como devem viver os demais. A respeito da segunda, deveria fazer uma diferenciação às vezes inadvertida. Uma coisa é afirmar que um sistema jurídico é imoral, se viola certas pautas estabelecidas pela moral critica e outra diferente é assumir que esse sistema há de castigar toda a imoralidade. Segundo Carlos Nino, “da imoralidade de um ato não se infere, sem mais, a moralidade o a necessidade moral da pena por sua execução... Por conseguinte, manter que certos atos são imorais, porém que o direito não está moralmente justificado para interferir com eles, em uma posição logicamente coerente”. 
IV
As criticas de Hart a Devlin parecem demolidoras, a respeito dos casos apresentados e poderiam se fazer valer essas mesmas críticas, e se poderia invocar o principio do dano para manter que nem a homossexualidade – caso Dudgeon-, nem a pornografia, devem ser proibidos porque não provocam dano. Se poderia agregar, também, que experiências como as dinamarquesas a respeito da pornografia produziram a diminuição de delitos violentos e por conseguinte, uma maior coesão social; e que não há evidencia empírica de que as práticas homossexuais, e lésbicas, tenham destruído jamais sociedade alguma. Se poderia concluir, que o direito nunca pode impor de uma maneira justificada uma moral positiva, e que um direito penal que se assente sobre legitimas bases liberais deve permanecer neutro a respeito de valores morais; e com tudo dar por encerrada a questão.
No entanto, é necessário fazer algumas precisões adicionais, porque o conceito de dano que recepta “o principio do dano” é uma noção contestada que implica também uma posição moral. O principio do dano pressupõe tanto a determinação previa de quais há de serem os ingressos privados que se protegerão mediante do direito penal, como uma concepção acerca do bem público. Tais determinações envolvem uma irredutível decisão moral. “O principio do dano é então parasitário de certas concepções de uma ordem justa a respeito de pessoas, ações e coisas. Consequentemente, algumas leis que castigam, por exemplo, o assassinato, o roubo, a violação e que estão justificadas em virtude do principio do dano não somente coincidemcom a moral positiva, estas leis estão vinculadas necessariamente a proteção de interesses e valores morais”. Estes danos- assassinato, roubo, violação – não existem antes de sua definição moral. O conceito do dano tem uma denotação que depende de regras. Só depois de que as regras morais sejam conhecidas se pode determinar se uma ação dada constitui ou não um dano. Por está razão, N.MacCormick sustem que a defesa do principio do dano é incompatível com a defesa da separação entre o direito e a moral, e que o direito penal sempre contempla a qualidade moral dos atos para determinar se são merecedores ou não de ser castigados. Em este sentido, tanto Devlin como Hart sustentariam a mesma conclusão: a imoralidade como tal é de incumbência do direito.
A questão não é tanto, para perguntar-se se o direito é um instrumento adequado para impor critérios morais, já que a resposta sempre seria trivialmente afirmativa, se não, mas bem que tipo de moral a de impor o direito. A função do direito é, na tradição liberal, criar condições necessárias para o florescimento da individualidade. E aqui os princípios de autonomia, de dignidade e de inviolabilidade da pessoa, tais como tem sido proposto entre outros por Carlos Nino, se manifestam eficazes a hora de desenhar um direito penal justificado. Estes princípios supõem limites para qualquer pretensão ou aventura, seja holística, seja perfeccionista. Ao proibir-se a homossexualidade e a pornografia se restringe ilegitimamente a autonomia das pessoas, reduzindo as alternativas de escolhas possíveis e, portanto, a possibilidade de que os indivíduos desenhem seus próprios planos de vidas. Em ambos os casos se impôs uma moral positiva eticamente inaceitável. Queria agora concluir com uma citação: “sendo valiosa a livre escolha individual de planos de vida e a adoção de ideias de excelência humana, o Estado não deve interferir nessa escolha ou adoção, limitando-se a desenhar instituições que facilitem a perseguição individual desses planos de vida e a satisfação dos ideais de virtude que cada um sustenta”. Esta citação pertence a Carlos Nino,e em sua memória este trabalho foi dedicado.

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