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Walter Steenbock Fabiane Machado Vezzani Ilustrações de Claudio Leme agrofloresta aprendendo a produzir com a natureza 1ª edição Curitiba Fabiane Machado Vezzani 2013 IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL Permitida a reprodução parcial ou total desta obra, em diferentes meios, desde que citada a fonte e não se preste a fins comerciais. S814 Steenbock, Walter Agrofloresta : aprendendo a produzir com a natureza / Walter Steenbock; Fabiane Machado Vezzani. – Curitiba : Fabiane Machado Vezzani, 2013. 148p. il. ISBN 978-85-908740-1-0 1. Agrosilvicultura. 2. Agroecologia. 3. Biodiversidade. 4. Desenvolvimento sustentável. I. Vezzani, Fabiane Machado. II. Título. CDD 634.99 CDU 631.95 1a Edição: 2013 Tiragem: 1.000 exemplares Capa e Design Gráfico: Claudio Leme Revisão Ortográfica: Gabriela Koza Agradecemos ao MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA), por intermédio da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) e o CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO - CNPq, no âmbito da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural - PNATER, por meio do Edital 58/2010 – Chamada 2: Núcleos de Pesquisa e Extensão, que fomentou a construção do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Agroe- cologia da Universidade Federal do Paraná (NEPEA), que dentre as suas ações fortaleceu parcerias entre instituições de pesquisa e extensão na área de Agro- ecologia, qualificou a formação de professores, alunos e técnicos e proporcio- nou os recursos financeiros para a realização desse livro. Agradecemos aos agricultores e aos técnicos da Cooperafloresta, cujo grandioso conhecimento e valiosa prática tornam possível este texto. Em espe- cial, ao grande amigo Nelson Eduardo Corrêa Netto. Sobre nos Walter Steenbock Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Recursos Genéticos Vege- tais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, atuando na Co- ordenação Regional do Instituto no Sul do Brasil. Desenvolve pesquisas na área de sistemas agroflorestais e manejo de populações naturais de plan- tas. Email: walter.steenbock@icmbio.gov.br Fabiane Machado Vezzani Engenheira Agrônoma, Mestre e Doutora em Ciência do Solo pela Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Solos e Engenharia Agrícola e docente permanente do Programa de Pós- -Graduação em Ciência do Solo da Universidade Federal do Paraná. Atua na área de Manejo Ecológico do Solo e desenvolve pesquisas no tema Qualida- de do Solo. Email: vezzani@ufpr.br Claudio Leme Ferreira Artista gráfico e músico. Atua na comunicação de projetos socioam- bientais e em atividades relacionadas à diversidade cultural e espiritual. Email: clauleme@yahoo.com.br sumario Apresentação Parte 1 Sistemas vivos 12 Sistemas agroflorestais como sistemas vivos 22 O papel da fotossíntese 26 A busca pela eficiência fotossintética nos sistemas agroflorestais 33 O papel da sucessão ecológica 40 O uso do conhecimento da sucessão ecológica na prática agroflorestal 50 O solo como resultado da prática agroflorestal 54 O manejo do solo agroflorestal 69 Os caminhos da biodiversidade 75 O manejo da biodiversidade em sistemas agroflorestais 81 Parte 2 Linhas gerais para a prática agroflorestal 90 1. Identificando o espaço para a prática agroflorestal 91 2. Implantando uma agrofloresta 97 3. Manejo inicial do capim e das espécies de ciclo curto 121 4. Manejo de agroflorestas maduras 127 4.1 Poda de estratificação 131 4.2 Poda de frutificação 133 4.3 Poda de eliminação 134 4.4 Cuidados na poda 135 5. “Completando” agroflorestas 137 6. Renovação da agrofloresta 138 7 apresentacao Em uma definição ampla, sistemas agroflorestais (SAFs) são combi- nações do elemento arbóreo com herbáceas e/ou animais, organizados no espaço e/ou no tempo. A legislação brasileira, em diferentes instrumentos legais (Brasil, 2009; Brasil, 2011), tem definido sistemas agroflorestais como “sistemas de uso e ocupação do solo em que plantas lenhosas perenes são manejadas em associação com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas, culturas agrícolas, forrageiras em uma mesma unidade de manejo, de acordo com arranjo espacial e temporal, com alta diversidade de espécies e interações entre estes componentes”. Quando caracterizados pela alta diversidade de espécies e pela ocupa- ção vertical de diversos estratos, os sistemas agroflorestais são comumen- te chamados, na literatura, de sistemas agroflorestais multiestrata (Angel- -Pérez & Mendoza, 2004; Benjamin et al., 2001; Caja-Giron & Sinclair, 2001; Staver et al., 2001; Granados, 2005; Silveira, 2005; Holguin et al., 2007). Muito embora diferentes definições de sistemas agroflorestais caracte- rizem estas áreas, grosso modo, como consórcios entre árvores e culturas agrícolas, é relevante destacar, nestes sistemas, o cuidado com o manejo da luminosidade, da produtividade primária, da sucessão natural, da reci- clagem de nutrientes e das relações ecológicas. Em outras palavras, mais do que identificar os componentes de uma agrofloresta – árvores, arbustos e culturas agrícolas –, é importante carac- terizar que intervenções ou práticas de manejo estão por trás dessa estru- tura. Mal comparando, pode-se caracterizar uma praça como um local que contém brinquedos infantis, como escorregador, balanço e gangorra. Entretanto, são as crianças balançando nos balanços, brincando na areia, rodando com o avô, jogando bola, subindo ou descendo do escorregador ou andando de bicicleta que fazem a praça. 8 De forma análoga, caso não considerarmos os elementos definidores da estrutura agroflorestal, corremos o risco de manter a mesma lógica produ- tiva da artificialização de agroecossistemas, comum na agricultura conven- cional, para a produção agroflorestal. Na agrofloresta, não se trata de artificializar as condições para a ger- minação e crescimento das espécies de interesse, mas de potencializar os processos naturais para a otimização da produção, tanto das espécies de interesse quanto da biodiversidade como um todo. É justamente nessa dife- rença de orientação do processo produtivo que a prática agroflorestal pode contribuir para a sustentabilidade da produção de alimentos. Para Götsch (1995), “os sistemas agroflorestais, conduzidos sob o fun- damento agroecológico, transcendem qualquer modelo pronto e sugerem sustentabilidade por partir de conceitos básicos fundamentais, aproveitan- do os conhecimentos locais e desenhando sistemas adaptados para o po- tencial natural do lugar”. A partir dessa definição, Götsch (1995) propõe que “uma intervenção é sustentável se o balanço de energia complexificada e de vida é positivo, tanto no subsistema em que essa intervenção foi realizada quanto no sistema inteiro, isto é, no macrorganismo planeta Terra; susten- tabilidade mesmo só será alcançada quando tivermos agroecossistemas parecidos na sua forma, estrutura e dinâmica ao ecossistema natural e original do lugar da intervenção (...)”. Esta concepção se mescla ao pensamento contemporâneo de conserva- ção ambiental, que vem assumindo cada vez mais a importância do uso sus- tentável da biodiversidade como paradigma e, neste paradigma, o envolvi- mento da dinâmica da biodiversidade associada à dinâmica do uso humano. Cada vez mais se concebe a natureza não como uma imagem estática, na quala sustentabilidade do uso represente algo como poder tirar um pedaço pequeno dessa imagem, sem comprometer sua integridade – o que de fato seria impossível. O uso sustentável só é possível na prática de contribuição deste uso com os processos naturais, no rumo crescente da integração, da troca e do aumento de biodiversidade e de produtividade. 9 A concepção geológica, climática, biogeográfica, evolutiva e ecologi- camente dinâmica da biodiversidade indica que, mais que a preservação das espécies ou comunidades de forma isolada, o objetivo central da con- servação biológica é possibilitar a continuidade dos processos evolutivos e ecológicos (Pickett & Rozzi, 2000). Richard Primack, um dos mais expoentes representantes da biologia da conservação atual, em conjunto com outros colegas, descreve que, se pensarmos metaforicamente que a vida é como a música e esperarmos que a música siga vibrando, então não devemos pretender guardar os instrumentos musicais em vitrines e evitar que sejam tocados por seres humanos, mas sim devemos estimular que os músicos possam tocar delicadamente as cordas em um quarteto, reverberar os tam- bores e respirar com as flautas, mantendo o movimento musical adequado ao tempo. É com essa perspectiva que se trará a biodiversidade em nível de genes, populações, espécies, comunidades biológicas, ecossistemas e regiões (Rozzi et al., 2001). Fazer agrofloresta, nesta metáfora, é perceber e tocar a música. A prática agroflorestal envolve captar e entender como os processos vi- tais, os ciclos biogeoquímicos e as relações ecológicas estão acontecendo, identificando como potencializá-los para o aumento de fertilidade, produti- vidade e biodiversidade naquele espaço. Essa identificação deve recorrer, sem dúvida, ao uso de conhecimentos acumulados, tanto a partir da prática acadêmica quanto a partir da prática produtiva – ou seja, ao uso do conhecimento científico e do saber ecológico local. Mas, essa identificação envolve também, com igual importância, o “perguntar” ao ambiente o que ele está fazendo no rumo do incremento de fertilidade e biodiversidade. Assim, fazer agrofloresta consiste em trazer as ferramentas do conhecimento para utilizá-las nos processos naturais daquele espaço, naquele momento, em um movimento constante e balan- ceado entre percepção e prática. Em outras palavras, fazer agrofloresta é manter um diálogo constante com o ambiente natural, conversando com seus processos e relações, perguntando o que é mais adequado ao seu fluxo 10 e, ao trazer sua contribuição a este fluxo, receber dele a produção de ali- mentos. Assim, fazer agrofloresta é, também, educar-se ambientalmente. Este livro traz alguns conceitos de ecologia, discutindo sua aplicação na prática agroflorestal. Não parte, entretanto, de hipóteses da aplicação desses conceitos, mas, principalmente, de “trazer ao papel”, ainda que de forma fragmentada, a aplicabilidade desses conceitos, experienciada, espe- cialmente, por agricultores familiares associados à Cooperafloresta (Asso- ciação de Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo - SP e Adrianópolis - PR). Há quase duas décadas, agricultores e técnicos destes municípios, no Alto Vale do Rio Ribeira, entre Paraná e São Paulo, vêm produzindo ali- mentos em conjunto com o incremento de fertilidade e conservação do solo, de biodiversidade, de autonomia e de segurança alimentar, por meio da agrofloresta. Hoje, nessa região, mais de uma centena de famílias têm na prática agroflorestal sua opção de produção e reprodução familiar, de- monstrando, assim, esse caminho. Na primeira parte deste livro, apresentam-se e discutem-se conceitos ecológicos de forma contextualizada com a prática agroflorestal. Na se- gunda parte, descreve-se, brevemente, como as famílias agricultoras da Cooperafloresta fazem isso. Longe da pretensão de detalhar profundamente os conceitos, e mais longe ainda da pretensão de descrever todos os aspectos relacionados à prática agroflorestal, pretende-se que este livro possa ajudar estudantes, agricultores e professores a utilizarem a agrofloresta como caminho, ou como música. Parte 1 12 Sistemas vivos Os sistemas de produção agrícola, como os sistemas agroflorestais, são sistemas vivos. O entendimento dos sistemas vivos, suas características e princípios, é fundamental para a compreensão do funcionamento dos siste- mas de produção agrícola. A Teoria de Gaia representa claramente o funcionamento dos sistemas vivos. Essa teoria foi elaborada na década dos anos 60, enquanto o quími- co James Lovelock colaborava no projeto de Pesquisa Lunar e Planetária do Laboratório de Propulsão a Jato em Pasadena, na Califórnia (USA). Um dos objetivos do projeto era descobrir se havia vida no planeta Marte. Para isso, Lovelock pesquisou como os seres vivos terráqueos funcionavam e percebeu que toda a forma de vida extrai energia e matéria do ambiente e descarta subprodutos da atividade. O subproduto das plantas, dos animais e dos microrganismos são gases (gás carbônico [CO2], metano [CH4] e oxi- gênio [O2]). Então, ele fez uma análise da atmosfera dos planetas Terra e Marte. O estudo indicou que havia uma alta concentração dos gases oxigê- nio e metano e uma baixa concentração do gás carbônico na atmosfera da Terra. Composição completamente inesperada, considerando a lei química de alta interação entre os gases oxigênio e metano, formando gás carbôni- co e água, conforme reação abaixo: Entretanto, a análise da atmosfera de Marte informou o oposto: baixa concentração dos gases oxigênio e metano e alta concentração de gás car- bônico, ou seja, de acordo com a lei química. Nesse momento, Lovelock convidou a bióloga Lynn Margulis para in- terpretar os resultados dessa pesquisa e juntos concluíram que a diferença entre as atmosferas dos dois planetas é a existência de vida na Terra! A atmosfera da Terra é uma mistura instável de gases. Ou seja, os gases são continuamente liberados como subprodutos dos sistemas vivos e reagem 13 entre si. Sendo assim, a concentração dos gases se mantém, em função dos seres vivos, e, ao mesmo tempo, a concentração dos gases é favorável à continuidade dos seres vivos. A Teoria de Gaia de Lovelock e Margulis diz que a vida é resultado das condições do meio que é produzido pelos sistemas vivos em interação com os não vivos. A vida é resultado da própria vida! A vida no planeta Terra é uma rede de relações complexas, e essa rede é o meio adequado para a existência da vida. Como afirmaram James Lovelock e Lynn Margulis: “A evolução dos organismos se encontra tão intimamente arti- culada com a evolução do seu ambiente físico e químico, que juntas constituem um único processo evolutivo, que é autorregulador” (Lovelock, 2006). Assim como é o planeta Terra, são os sistemas agrícolas, no caso, as agroflorestas. Os sistemas vivos são fechados quanto à sua organização; abertos em relação à energia e à matéria, fazendo uso de um fluxo constante para produzir, reparar e perpetuar a si mesmos; e operam num estado distante do equilíbrio termodinâmico, um estado em que novas estruturas e novas formas de ordem podem surgir espontaneamente, o que conduz ao desen- volvimento e à evolução (Capra, 2005). Em relação ao aspecto dos sistemas vivos serem fechados quanto à sua organização, pensemos o seguinte: desde a célula até os peixes, os pássa- ros, as gramas, os bovinos, as árvores... todos os organismos vivos possuem um limite físico. E, dentro desse limite físico, há uma organização específi- ca de seus componentes, que o caracteriza como uma célula, um peixe, uma grama, um bovino, uma árvore. O que acontece é que essaorganização dos componentes tem um padrão de rede, ou seja, todos os componentes estão interligados numa rede de relações complexas e não lineares. Se observarmos atentamente, percebemos que o padrão de rede repete-se em todo o mundo vivo. Bertalanffy, em 1950, afirmou, na sua Teoria Geral dos Sistemas, que “o padrão em rede é comum a todas as formas de vida” (von Bertalanffy, 1950). Vejamos na Figura 1 em que uma rede de moléculas constitui uma cé- lula. Uma rede de células constitui um organismo. Uma rede de organismos 14 constitui um ecossistema. São redes dentro de redes. E nessa organização é que se forma a “rede alimentar” do planeta (e do Universo...). Figura 1. Representação esquemática do padrão de rede no espectro de moléculas a organismos superiores. O aspecto dos sistemas vivos serem abertos está baseado em que os organismos para manterem-se vivos precisam alimentar-se de um fluxo contínuo de energia e matéria assimiladas do ambiente. E é desta forma que os sistemas vivos são abertos do ponto de vista energético e material, fazendo uso de um fluxo constante de energia e matéria para produzir, reparar e perpetuar a si mesmos. Todos os organismos vivos produzem dejetos continuamente, e esse fluxo de energia e matéria (alimento e excre- ção) estabelece o lugar que eles ocupam na rede alimentar. Dito de outra 15 forma, nesse fluxo, o que cada um precisa e libera define o seu lugar na rede alimentar, como mostra a Figura 2. Nesse sentindo, Capra (2005) afirmou: “Os limites entre esses sistemas não são limites de separação, mas limites de identidade; todos os sistemas vivos comunicam-se uns com os outros e partilham seus recursos, transpondo limites”. Em um ecossistema, as trocas de energia e matéria são sustentadas por uma “cooperação generalizada” (Capra, 2005). Figura 2. Representação esquemática de uma rede alimentar. O fluxo constante de energia e matéria que caracteriza os sistemas vivos faz com que estes sistemas estejam sempre longe do equilíbrio ter- modinâmico. Relembrando a termodinâmica clássica, os sistemas são clas- 16 sificados em isolados, aqueles que não trocam energia nem matéria com o meio; fechados, aqueles que trocam energia, mas não trocam matéria com o meio; e os abertos, que trocam energia e matéria com o meio. A defini- ção de “equilíbrio” de um sistema é oriunda da termodinâmica clássica e é tida como o ponto de mínima produção de energia livre que um sistema fechado alcança. Observe a Figura 3, que representa a energia livre de uma reação química (energia livre de Gibbs), definida como um sistema fechado na termodinâmica clássica. O ponto de “equilíbrio” é atingido quando todos os reagentes reagiram e produziram os produtos. A energia livre era máxi- ma no início da reação, antes de os reagentes serem misturados, e atingiu um valor mínimo, quando todo o produto foi formado. A partir do ponto de equilíbrio, a reação cessa. Portanto, o equilíbrio termodinâmico é um estado característico de sistemas fechados, no qual o sistema, após receber uma quantidade de energia e matéria, tende para um estado estacionário, onde não ocorrem mais alterações nas concentrações dos reagentes nem dos produtos. Como os sistemas abertos recebem, continuamente, um fluxo de energia e matéria, o equilíbrio nos sistemas vivos nunca é atingido. Figura 3. Representação esquemática da variação da energia livre de Gibbs (EL) durante a reação entre reagentes (reag) transformando em produtos (prod) e indicando o ponto de “equilíbrio” em sistema fechado (uma reação química). Fonte: adaptado de Russel (1994). 17 Dessa forma, os sistemas vivos operam num estado distante do equilí- brio termodinâmico. É nesse estado de não equilíbrio que os sistemas vivos têm capacidade de se auto-organizarem e produzirem novas estruturas e novas formas de ordem, desenvolvendo-se e evoluindo. A auto-organização ocorre porque os sistemas são configurados num padrão de rede de rela- ções, as quais possuem um vínculo de causa. Se observarmos a Figura 4, proposta por Capra (1996) para representar a configuração dos sistemas abertos, os círculos representam o limite físico dos elementos que com- põem um determinado sistema, e as linhas retas representam as relações. Percebemos que os limites dos elementos não têm importância; o que in- teressa são as relações dentro e entre eles. Os próprios elementos são o resultado de uma rede de relações, e é, através das relações dentro deles, que os elementos estão interligados, são as “redes dentro de redes”, como chamou Capra (1996). Figura 4. Configuração de um sistema aberto. Círculos com linhas tracejadas representam os elementos; linhas contínuas, as relações dentro dos elementos e entre eles. Fonte: Capra (1996). elementos relações 18 Por isso, qualquer mensagem recebida em algum ponto desse sistema irá percorrer toda a rede de relações, e o sistema irá se auto-organizar em função dessa nova mensagem recebida, como mostra a Figura 5. Figura 5. Representação esquemática da configuração do padrão de rede de um sistema aber- to, indicando a passagem do fluxo de energia e matéria. Fonte: adaptado de Capra (1996). Num primeiro momento, a energia e a matéria recebidas pelo sistema dissipam-se entre a rede de relações e causam uma instabilidade; porém, é com essa mesma energia e matéria que o sistema se auto-organiza em outro estado de ordem em diferente nível de complexidade, evoluindo e de- senvolvendo-se dependendo das características do fluxo de energia e ma- téria. A Figura 6 mostra esse processo. Se a magnitude do fluxo de energia e matéria que passa através das relações não lineares entre os elementos aumenta, emergem espontaneamente novas estruturas e formas de com- portamento em níveis energéticos sucessivamente mais elevados, que se caracterizam pela crescente diversidade e complexidade da estrutura e das suas formas de comportamento, resultado de relações complexas entre os elementos e da alta quantidade de energia e matéria retida. O sistema tende ao desenvolvimento. Por outro lado, a alteração do fluxo pode gerar energia e matéria energia e matéria 19 decomposição, quando a magnitude de energia e matéria que passa pelo sistema diminui e, através da corrente de relações não lineares entre os elementos, um novo estado de ordem emerge, porém com menor quantida- de de energia e matéria retida. Quando isso ocorre, o andamento do fluxo resulta no surgimento de estados de ordem em níveis energéticos sucessi- vamente mais baixos, que se caracterizam pela crescente simplicidade da estrutura e das suas formas de comportamento, resultado de relações sim- ples entre os elementos e de baixa quantidade de energia e matéria retida. O sistema tende à decomposição (Vezzani & Mielniczuk, 2011). Figura 6. Representação esquemática do caminho seguido pelo sistema (linha contínua), que se auto-organiza em estados de ordem (indicados por letras e números) em diferentes níveis de complexidade em função do fluxo de energia e matéria. Essa representação também ilus- tra o comportamento do sistema solo-plantas-organismos, onde partículas minerais, maté- ria orgânica e raízes formam agregados de estrutura cada vez mais complexa (estado de ordem a3) ou cada vez mais simples (estado de ordem b3), conforme será detalhado adiante (ver Figura 20). Fonte: em analogia a Prigogine (1996). Andamento do fluxo de energia e matéria N ív el d e co m pl ex id ad e Desenvolvimento Decomposição 20 Em cada estado de ordem nos distintos níveis de complexidade, surgem as propriedades emergentes. As propriedades emergentes do sistema são a manifestação das relaçõesnão lineares entre os elementos que compõem cada estado de ordem. À medida que aumenta o nível de complexidade, a estrutura se torna mais diversificada e complexa, e maior quantidade de energia e matéria é retida (veja o estado de ordem a3 na Figura 6). O au- mento no número de elementos do sistema gera aumento nas relações não lineares, o que irá refletir no aumento das suas propriedades emergentes. Portanto, em nível de complexidade alto, as propriedades emergentes são em maior número, capacitando o sistema a funcionar em situações diversas e, dessa forma, manter a sua integridade frente a perturbações. Por outro lado, nos sistemas de estrutura mais simples (estado b3 na Figura 6), o nú- mero e a função das propriedades emergentes são baixos, e o sistema tem menor capacidade de manter sua integridade. Entendendo esses três aspectos do funcionamento dos sistemas vivos – fechados na organização, abertos no fluxo e capacidade de auto-organiza- ção –, fica clara a definição de Prigogine quando ele afirma que os sistemas vivos são Estruturas Dissipativas (Prigogine, 1996; 2002; Prigogine & Sten- gers, 1992; 1997), porque a mesma energia que dissipa o sistema (aquela que passa pela rede de relações não lineares através do fluxo) é a energia que gera ordem. A ordem e a desordem estão constantemente presentes nos sistemas vivos, gerando desenvolvimento ou decomposição. Portanto, as redes vivas criam ou recriam a si mesmas continuamente mediante a transformação ou a substituição dos seus componentes (Ca- pra, 2005). Este processo de autogeração ou autocriação foi definido por Maturana & Varela (2001) como autopoiese, no qual a definição sistêmica da vida encontra seus principais fundamentos. Os sistemas vivos sofrem mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo em que preservam seus padrões de organização em redes de relações e constituem-se a si mesmos. A característica de autopoiese dos sistemas vivos é o que os difere clara- mente dos sistemas não vivos, ou seja, os sistemas vivos têm a capacidade 21 de reproduzirem a si mesmos! Por isso, o fenômeno da vida tem de ser compreendido como uma pro- priedade do sistema como um todo (Capra, 2005). A vida só existe pelo re- sultado das relações entre os seus componentes, cada um executando sua função, o que permite que os demais componentes se mantenham ativos também. E essa característica extrapola para a relação do sistema vivo com o meio. O meio é resultado das relações com os sistemas vivos, e os sistemas vivos são resultados das relações com o meio, como nos dizem Lovelock e Margulis na Teoria de Gaia. 22 Sistemas agroflorestais como sistemas vivos A partir do que foi exposto, fica claro que os sistemas vivos, organiza- dos nos vários ecossistemas e comunidades como vimos acima, são conse- quência de um longo processo evolutivo, orientado pelo aprendizado e pela troca entre os seres vivos. Nesse processo, as estruturas da vida, em seus diferentes níveis (célu- las, tecidos, órgãos, indivíduos, comunidades, ecossistemas, etc.), organi- zaram-se de forma a viabilizar os processos vitais. Estes, por sua vez, pos- sibilitam a existência das formas estruturais em nível individual e coletivo. Para que isso se tornasse possível, a vida criou mecanismos de organização, complexificação e troca, em estruturas dissipativas e sistemas autopoiéticos. Em uma célula, por exemplo, as membranas não somente estabele- cem os limites das diferentes organelas citoplasmáticas, especializadas em diferentes processos vitais, mas também criam condições adequadas a estes pro- cessos, a partir da absorção e transformação de substâncias. Durante os processos vi- tais, são formadas outras substâncias, liberadas para fora da organela, as quais são utilizadas em outros processos, como mostra a Fi- gura 7, utilizando como exem- plo o funcionamento da mito- côndria, organela responsável pela respiração celular. Figura 7. Funcionamento da mitocôndria no interior de uma célula. Em um organismo pluricelular, este mecanismo é mais fácil de ser percebido. Uma árvore, por exemplo, tem estruturas especializadas, cada 23 uma com uma função específica, e cada uma dependente dos processos vitais promovidos pelas outras. A raiz é limitada por tecidos resistentes, que possibilitam à planta penetrar no solo; ao mesmo tempo, dela par- tem tecidos mais finos, que permitem a absorção de água e nutrientes. Um dos produtos principais dessa organização é a seiva bruta, entregue ao caule, para que este cumpra sua função de seu transporte às folhas, onde ela será processada. Mas, além da seiva bruta, o produto dessa organização é a própria estrutura da raiz, que só se mantém contando com a glicose e o oxigênio produzidos nas folhas, na fotossíntese. Neste processo, um dos reagentes é a água da seiva bruta. Assim, raiz, caule e folhas, existindo e funcionando, permitem o funcionamento e a existên- cia uns dos outros. Em uma comunidade de organismos, essa lógica permanece. Usando novamente como exemplo uma árvore, é possível identificar, somente a partir dela, várias inter-relações com outros organismos. O processo vital da fotossíntese, ao liberar oxigênio na atmosfera, permite a respiração de vários outros organismos; a penetração da raiz no solo contribui na infiltração de água, possibilitando a germinação de outras espécies ve- getais e garantindo a umidade necessária para a micro e mesofauna do solo; a relação das raízes com bactérias fixadoras de nitrogênio ou com micorrizas favorece a existência destes seres, disponibilizando glicose a eles e, ao mesmo tempo, a ampliação de absorção de água ou de nitra- tos que esses organismos promovem contribuindo com o crescimento e o metabolismo da árvore; as flores e os frutos são fonte de alimento para a fauna, que por sua vez promove a polinização e a dispersão de sementes; a copa da árvore contribui para a proteção do solo, evitando a erosão pelo impacto da chuva, o que permite a estruturação do solo e a promoção da vida de vários organismos. A lista das inter-relações é grande e variada! Portanto, seja em nível celular, individual, comunitário ou ecossistêmi- co, ao mesmo tempo em que cada estrutura se mantém, ela produz subs- tâncias ou condições adequadas para que outras estruturas funcionem e 24 existam. É a vida funcionando! O aprendizado das várias espécies, ao longo da evolução, tem sido “se localizar” neste processo. Cada uma tem seu nicho ecológico, ou seja, um espaço onde a luz, a temperatura, a umidade, a relação com outras espécies e tantas outras condições são adequadas a ela. Ao estar ali, por sua vez, “funcionando”, cada indivíduo de cada espécie produz substâncias e condições adequadas para outros organismos. Isso possibilita a vida coletiva, a constante cria- ção de novas formas de adaptação e, consequentemente, a ampliação da biodiversidade. Fazer agrofloresta é identificar as estruturas e os mecanismos de fun- cionamento da vida no local de fazer agricultura, “ocupando o nicho” huma- no por meio do manejo agroflorestal e orientando o sistema para a produ- ção de alimentos e outros produtos em meio à produção de biodiversidade e da troca entre os seres vivos. A Figura 8 demonstra essa lógica. Figura 8. Representação esquemática da configuração de um sistema agroflorestal. O sistema agroflorestal é, portanto, um sistema vivo e, como tal, a sua configuração é na forma de redes dentro de redes; onde ocorrem os fluxos de energia e matéria, movidos pela energia solar; onde os elementos que compõem o sistema estão numa cooperação generalizada, interligados por alianças e parcerias; onde a diversidadeimprime maior capacidade de fun- cionamento e orienta para a manutenção de um estado estável, mantendo (e até melhorando) a função do ecossistema. 26 O papel da fotossintese Como vimos, todo sistema vivo possui um fluxo contínuo de energia e matéria. Esse fluxo inicia com a fotossíntese. A fotossíntese é o processo em que as plantas (e algumas bactérias) utilizam a energia luminosa proveniente de parte da radiação solar que chega à superfície da Terra e a transformam em energia química. Durante esse processo, as plantas captam CO2 da atmosfera e absorvem nutrientes e água do solo, produzindo a sua matéria. Então, a produção de matéria vegetal da parte aérea das plantas (troncos, galhos, folhas, frutos e semen- tes), das raízes e exsudatos (compostos orgânicos liberados pelas raízes) é oriunda da energia solar, que promove o início das cadeias alimentares do planeta Terra. Figura 9. Representação esquemática do processo de fotossíntese. Portanto, a matéria de todas as formas vivas, no planeta, existe por causa da fotossíntese. A fotossíntese se constitui, fundamentalmente, na 27 biotecnologia gerada pela evolução natural que permitiu, há bilhões de anos, que os organismos pudessem passar a produzir alimento e estrutura a partir de luz solar, água e gás carbônico. Quando se olha para uma floresta tropical, por exemplo, ou para qual- quer outro ambiente natural, é importante ter clareza de que toda forma viva ali existente é composta basicamente de carbono, que veio da atmos- fera, e que as ligações químicas entre os elementos e entre as substâncias que dão forma e funcionamento a essa vida têm como caldeira de energia a luz solar. Isso vale tanto para as plantas, que fazem fotossíntese, quanto para os animais, que consomem as plantas para se alimentar. Quando nós, seres humanos, pensamos, andamos ou nos exercitamos, estamos gastando fundamentalmente energia solar, que foi transformada em energia química na glicose produzida pela fotossíntese; a glicose, car- regada dessa energia, foi transformada pelas plantas, entre outras subs- tâncias, em amido; quando comemos o amido, o transformamos novamente em glicose na nossa digestão, levamos a glicose até cada uma de nossas células e, nas mitocôndrias, no interior das células, extraímos a energia para o nosso metabolismo. Isso é feito por todos os animais. Uma vez que a fotossíntese é o processo básico para a geração da ma- téria vegetal e funcionamento dos seres vivos – inclusive daqueles vegetais que produzimos para comer –, é relevante estimularmos a fotossíntese de forma que ela ocorra satisfatoriamente, pois, assim, teremos elevada pro- dutividade na agricultura. É por isso que um provérbio chinês antigo diz que “a agricultura é a arte de guardar o sol”. Embora possamos ter a impressão de que a fotossíntese é tão natural que ocorre em qualquer lugar onde haja incidência de luz, é importante considerar que, para que a taxa de fotossíntese seja otimizada – e com isso a quantidade de biomassa gerada –, é necessário que haja água, gás carbônico e luz em quantidades adequadas. Nos trópicos que os efeitos da fotossíntese são mais notáveis. A produ- tividade primária, ou seja, a matéria vegetal produzida a partir da fotossín- 28 tese é muito maior em regiões tropicais do que em regiões temperadas. A maior quantidade de energia solar que os trópicos recebem ajuda a explicar essa diferença. A maior quantidade de luz, associada à maior umidade, gera maior quantidade de recursos energéticos, o que reflete em uma capaci- dade de os trópicos sustentarem um maior número de espécies. Mais luz e umidade, portanto, geram mais diversidade, sendo essa uma das princi- pais hipóteses para a explicação da maior biodiversidade nestas regiões (Pianka, 1966). Como não poderia deixar de ser, em uma floresta tropical existem me- canismos para a manutenção da água – fundamental à fotossíntese – no sistema. Um deles é a cobertura da floresta pelas copas das árvores. O fato de existir essa cobertura evita a incidência direta de energia solar no solo. Isso reduz sua temperatura e, consequentemente, a evaporação de água diretamente a partir da superfície do solo. A cobertura florestal, porém, não é realizada apenas pelas copas do dossel (ou do “teto” da floresta). Existem diferentes estratos, ao longo de um perfil vertical, ocupados por copas de árvores, arbustos e ervas de dife- rentes espécies. Estes diferentes estratos servem como barreiras que evi- tam a saída de uma grande quantidade de vapor de água evapotranspirada, mantendo elevada a umidade relativa do ar dentro da floresta e reduzindo a amplitude térmica do ambiente. É importante notar, entretanto, que isso não impede que, especialmente, as copas das árvores do dossel trans- firam constantemente uma grande quantidade de água do solo para a atmosfera, conferindo às florestas o importante papel de refrigeração atmosférica planetária. Além disso, a cobertura florestal multiestratificada evita que as gotas de chuva atinjam diretamente o solo – em uma floresta tropical, apenas em torno de 1% das gotas de chuva chegam diretamente ao chão. A maior parte da chuva atinge as copas, escorrendo lentamente, evitando a erosão e contribuindo, assim, para a manutenção da estrutura do solo. Essa estrutu- ração também é consequência da atuação das raízes e dos microrganismos 29 edáficos. Bem estruturado, o solo permite a infiltração e a manutenção de água em seus microporos e nos lençóis freáticos. Durante um período de chuva, portanto, parte da água é mantida nos próprios vegetais e parte é acumulada no solo. Em um período de déficit de água, essa água acumulada pode ser usada pelas plantas, mantendo o processo de fotossíntese, ou realocada para a atmosfera (Pianka, 1994). A estrutura florestal também influencia a forma da incidência de luz, determinando a eficiência fotossintética. A intensidade de luz varia com a altura da floresta. Árvores altas, com as copas no dossel, recebem incidên- cia total de radiação solar, enquanto árvores mais baixas e arbustos rece- bem progressivamente menos luz. Semelhante ao que ocorre com a chuva, em florestas bem densas, menos de 1% da luz solar chega diretamente ao solo (Figura 10). Figura 10A. Percentagem de luz que chega às plantas. Fonte: adaptado de Pianka (1994). 30 Figura 10B. Percentagem de gotas de chuva que chegam diretamente ao solo em uma floresta tropical. A variação de luz que chega a cada planta influencia, também, o próprio gasto de energia para receber essa luz. Apesar de uma árvore do dossel ter mais energia solar disponível do que uma erva próxima ao solo, a árvore precisa despender muito mais energia para os tecidos de suporte (madeira) do que a erva. Ao mesmo tempo, plantas do sub-bosque são, frequentemen- te, muito mais tolerantes à sombra e capazes de fazer fotossíntese em me- nores taxas de incidência luminosa. Assim, cada espécie vegetal, com sua estratégia de crescimento e forma de vida, apresenta seus próprios custos e benefícios (Pianka, 1994). Em uma floresta tropical, além do gradiente vertical de incidência lu- minosa e de água da chuva, existe também uma variação espacial, ou hori- zontal, destes fatores. Isso porque a formação natural de clareiras, nestas florestas, é muito frequente. As clareiras são formadas, geralmente, por quedas naturais de árvores e, por vezes, a partir de incêndios. Quando isso 31 acontece, há uma maior entrada de luz na clareira do que no restante da floresta. Em termos gerais, isso aumenta a taxa de produtividade primária nas clareiras, ou seja, a velocidade em que o carbono originado daatmos- fera é transformado em matéria vegetal. Isso ocorre porque há mais fixação de carbono atmosférico em forma de tecidos vegetais do que a produção de gás carbônico, via respiração, pelas plantas. É neste momento que vá- rias plântulas que estavam recebendo pouca luz passam a crescer mais rapidamente, e que muitas sementes presentes no solo são estimuladas a germinar, em função do aumento da temperatura do solo. A formação de clareiras é o principal “motor” de fixação de carbono, via fotossíntese, nas florestas tropicais, pois, na medida em que uma nova for- mação florestal vai se estabelecendo, uma grande quantidade de gás carbô- nico vai sendo fixado na forma de tecidos vegetais (matéria vegetal). Porções de florestas maduras têm um saldo praticamente nulo entre a quantidade de carbono fixada e a quantidade de carbono emitida, a partir de sua respiração. Em estudo realizado em 25 florestas tropicais “maduras”, Clark (2002) identi- ficou que esse saldo é, em média, de apenas 0,3 mg C ha-1ano-1. Não obstante as clareiras variarem em seu tamanho, o fato de ocorre- rem em meio a uma floresta permite, apesar do aumento de luz e chuva no solo da clareira, que haja uma cobertura florestal em formação, mantendo- -se, em nível espacial maior, as características florestais. A partir das últimas décadas do século XX, vários trabalhos passaram a identificar que a formação de clareiras em florestas tropicais é de fato muito mais comum do que se imaginava, ocupando grandes percentagens de áreas das florestas e com períodos de rotação (tempo para uma clareira voltar a ser clareira) relativamente curtos (Brokaw, 1985; Martínez-Ramos et al., 1988; Oliveira, 1997). Desde então, vem sendo cada vez mais aceita a concepção de florestas tropicais como mosaicos de clareiras, de diferentes idades e tamanhos. Isso contribui fortemente para o aumento da biodiversi- dade em nível regional, considerando a variação de adaptações das espécies às diferentes condições de luminosidade, temperatura, umidade e demais 32 características variáveis entre clareiras de diferentes tamanhos. A relação entre umidade e luminosidade, facilmente identificada em flo- restas tropicais, é quebrada quando se retira a floresta para a produção monocultural. Em uma grande lavoura de soja, por exemplo, há obviamente uma forte incidência direta de luz solar, um dos componentes da fotossínte- se. Entretanto, a elevada temperatura do solo (provocada inclusive por esta incidência direta), associada à ausência de uma cobertura florestal em dife- rentes estratos, faz com que haja aumento da evaporação de água na super- fície do solo, desprovida de um sistema florestal de armazenamento hídrico. Além disso, em elevada temperatura, grande parte das plantas fecha seus estômatos (poros por onde ocorrem as trocas gasosas e a transpira- ção) como estratégia para evitar a desidratação. Com estômatos fechados, a captação de gás carbônico para a fotossíntese é temporariamente inter- rompida. O solo, por sua vez, atingido diretamente pela maior parte das gotas de chuva e pela luz solar, tende a se desestruturar, desagregando os grumos que formam os macro e microporos e reduzindo sua capacidade de armazenamento e disponibilidade de água. 33 A busca pela eficiencia fotossintetica nos sistemas agroflorestais “Uma intervenção é sustentável se o balanço de energia complexificada e de vida é positivo (...)” (Götsch, 1995). Seguindo esta premissa, sistemas agroflorestais agregam a produção de alimentos e outros produtos à comple- xificação crescente do sistema. Para tanto, entre outros aspectos, as agroflo- restas utilizam a fotossíntese para potencializar a produção de matéria viva. Um dos caminhos utilizados para esta potencialização é a otimização da produtividade no perfil vertical das agroflorestas. Agricultores associa- dos à Cooperafloresta, por exemplo, vêm implantando agroflorestas cada vez menores em termos de área, entretanto cada vez mais completas em termos da ocupação de estratos verticais. Por outro lado, há também uma tendência de aumento do número de agroflorestas ao longo do tempo em cada propriedade. A combinação entre a implantação gradativa de um maior número de agroflorestas, porém de menor área e maior intensidade de manejo, potencializa a produtividade por área (Steenbock et al., 2013a). No âmbito da Cooperafloresta, em média, 16% da área das proprieda- des (ou unidades familiares) correspondem a agroflorestas, implantadas em diferentes épocas, 58% da área são florestas em estágio inicial ou médio de regeneração,13% da área são florestas em estágio avançado de regeneração e apenas 13% da área das unidades de produção são utilizadas para outros fins (geralmente a área da sede e das pequenas criações). Assim, apesar das agroflorestas se constituírem na base da produção, da segurança alimentar e da renda dos agricultores, é importante notar que o uso mais comum do solo, em termos de área, é a manutenção de capoeiras (florestas secundárias em estágio inicial e médio de regeneração), que correspondem a mais da metade da área das propriedades (58% da área das unidades de produção, em média). À primeira vista, as capoeiras podem ser entendidas como áreas sem uso. Entretanto, de acordo com os relatos dos agricultores da Coopera- floresta, agroflorestas implantadas em áreas que eram anteriormente 34 capoeiras tendem a ser muito mais férteis e mais fáceis de se tornarem “completas”. Isso porque há um acúmulo de matéria vegetal nas capoei- ras, proveniente da produtividade primária, que, se bem manejado, pode se constituir em potencialização da produtividade das agroflorestas implanta- das posteriormente nessas áreas. O manejo agroflorestal, na Cooperafloresta, tem estabelecido um uso do solo em que são mantidos quatro hectares de capoeiras para um hectare de agrofloresta (as agroflorestas se constituem em 21,5% da área constituída pelo somatório de áreas de agroflorestas e capoeiras). Assim, no sistema agroflorestal praticado pelos associados da Cooperafloresta, existem dois mecanismos, um formador de agrofloresta e outro de capoeira que, rotacio- nados ao longo do tempo no espaço das propriedades, ocupam hoje 74% da paisagem das áreas das famílias agricultoras (Steenbock et al., 2013a). É notória, nessa forma de manejo, a semelhança com a dinâmica de clareiras – principal processo de otimização da produtividade primária (ma- téria vegetal produzida pela fotossíntese) nas florestas tropicais. Brokaw (1985) identificou, em floresta tropical, que as clareiras, originadas por que- da de parte de árvore, por uma ou por várias árvores, somavam 25% da área total da floresta (Tabela 1). Tabela 1. Área e frequência de tipos de clareiras em florestas tropicais. Fonte: adaptado de Brokaw (1985). Oliveira (1997), revisando diferentes trabalhos, caracterizou o tempo médio de rotação – o período em que uma clareira tende a voltar a ser 35 clareira após o crescimento florestal – em 125 anos, em florestas tropicais. Portanto, a rotação entre clareiras e florestas em estágios sucessionais mais avançados, nas florestas tropicais e nos sistemas agroflorestais, é um elemento definidor de ambas as formações. Associado à rotação de agroflorestas em meio a áreas florestais, o manejo agroflorestal, para ser produtivo nos vários estratos verticais da floresta, envolve plantios bastante densos, o que potencializa a fotossíntese e a produtividade. Nestes plantios, agricultores associados à Cooperafloresta vêm utili- zando a metodologia de implantação de canteiros agroflorestais, separa- dos por faixas destinadas ao cultivo de gramíneas, que desempenham a funçãode captar energia solar nas etapas iniciais da sucessão ecológica, quando a estrutura florestal propriamente dita ainda não está formada. A poda frequente dessas gramíneas e a deposição do material podado nos canteiros favorece o acúmulo de energia e matéria vegetal no sistema. Na medida em que as espécies plantadas vão se desenvolvendo, ou- tras espécies provenientes das áreas florestais vizinhas se estabelecem na agrofloresta, também fixando gás carbônico da atmosfera. Para garantir a entrada de luz nos vários estratos da agrofloresta, são feitas podas fre- quentes, tanto das espécies plantadas quanto das espécies originadas de regeneração natural. A poda, portanto, promove o incremento das espécies do sub-bosque, de forma ainda mais intensa do que em florestas nativas. Procurando cobrir o solo adequadamente, seja distribuindo e deposi- tando cuidadosamente o material podado no solo, seja mantendo plantios densos e estratificados, cria-se uma proteção do solo à incidência direta de luz e das gotas de chuva. Por outro lado, a promoção da estrutura multiestratificada da agroflo- resta cria um ambiente propício para a manutenção de elevada umidade relativa do ar em seu interior, bem como para a redução dos ventos. O resultado desse manejo é a otimização da água, do gás carbônico e da luz – ou seja, da fotossíntese e da produtividade primária (matéria vege- tal) – no sistema agroflorestal. 36 Agroflorestas conduzidas sob este tipo de manejo, no âmbito da Coope- rafloresta, fixam nas plantas e no solo, em média, 6,6 toneladas de carbono da atmosfera por hectare por ano (Steenbock et al., 2013c). Agroflorestas de 15 anos manejadas desde 1991 de forma semelhante no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, a Região de Torres, através de uma intervenção da organização denominada Centro Ecológico, com apoio da Pastoral Rural da Igreja Católica, apresentaram 100 toneladas de carbono por hectare de estoque de carbono acumulado (MMA/Centro Ecológico, 2013). É importante abordar aqui sobre o comportamento da energia nos ecossistemas. A energia no planeta Terra segue duas leis da termodinâ- mica. A primeira lei diz que toda a energia pode ser transformada de uma forma para outra, mas não pode ser criada, nem destruída. E a segunda lei diz que em toda transformação ocorre dissipação de energia na forma de energia térmica (calor). Então, nos ecossistemas, a energia move-se cons- tantemente de um lugar para outro, através da cadeia alimentar, e muda de forma (Gliessman, 2000). Ela entra como energia solar e é convertida em energia química, através da fotossíntese, e armazenada na matéria ve- getal. Quando os organismos utilizam essa energia para crescer, mover-se, reproduzir-se, a maior parte dela é transformada em energia térmica, que não fica mais disponível para ser utilizada, ou seja, ela é perdida na forma de calor. Sendo assim, os sistemas agrícolas que têm a capacidade de fazer melhor uso da energia são mais eficientes. Sabe-se que quanto maior for o uso de energia biológica, maior será a eficiência de uso de energia dos sistemas de produção agrícola. Gliessman (2000) classificou as fontes de energia para produção de alimentos, confor- me apresentado na Figura 11. 37 Figura 11. Classificação das fontes de energia utilizadas na agricultura. Fonte: adaptado de Gliessman (2000). Além da energia ecológica, que é a energia do sol para a fotossíntese, existe a energia cultural, que é a suprida pelos homens, e essa pode ser de origem biológica, que são as energias derivadas de fontes humanas e animais, como o trabalho, o esterco; e a de origem industrial, que são as energias de fontes não biológicas, como o petróleo, os maquinários e os agroquímicos. As energias classificadas como cultural industrial são aque- las que são empregadas energias anteriores na sua produção (por exem- plo, os agroquímicos para serem produzidos necessitam de uma grande quantidade de energia para concentrar os elementos no produto final). Por isso, quando as energias de origem industrial são utilizadas nos sistemas agrícolas, existe um aporte de energia muito grande e, para o sistema ser eficiente, seria necessário retirar uma quantidade de energia na forma de produto muito maior, considerando que a eficiência do uso de energia é dada pela seguinte equação: quantidade de energia contida na matéria vegetal colhida quantidade de energia cultural exigida para produzi-la Eficiência do Uso da Energia Cultural = 38 No caso das agroflorestas, a principal energia utilizada é a energia eco- lógica – energia da radiação solar – e a energia cultural biológica, que é o trabalho humano e as sementes e mudas inseridas nos sistemas agroflores- tais. A eficiência do uso de energia é muito elevada nesse caso. Gliessman (2000) apresenta dados de uma plantação de milho de roçado no México em que 90% da energia aportada foi oriunda do trabalho humano (energia cultural biológica) e apresentou uma eficiência no uso da energia cultural de 12,5. Por outro lado, ele mostra um sistema de produção de milho nos Esta- dos Unidos na década de 80 em que 26,5% da energia aportada foi oriunda de adubo nitrogenado, 21% foi de petróleo e 11% foi de agrotóxicos. A eficiência da energia cultural, nesse caso, foi de 2,9. Juntamente com o fluxo de energia está o fluxo de matéria, que é com- posto pelo carbono e nutrientes. Na fotossíntese, como já vimos, o carbono e os nutrientes são incorporados à matéria vegetal. Quando esta é utilizada na cadeia alimentar, o carbono e os nutrientes passam pelo sistema. À medida que ocorre a decomposição do material orgânico nos diferentes níveis da cadeia alimentar, parte do carbono é transformada pela microbiota em CO2 e volta para a atmosfera, que, posteriormente, será absorvido por outra planta através da fotossíntese. E os nutrientes, quando liberados no processo de decomposição, ficam disponíveis para uso dos organismos do solo ou de uma nova planta em fase de absorção de nutrientes. Esse “cami- nho” dos nutrientes caracteriza o fluxo de matéria nos ecossistemas agríco- las. Nesse fluxo, se considerarmos o agroecossistema alvo, podem ocorrer perdas de nutrientes quando existe a saída de carbono e nutrientes na forma de produtos para as famílias e para a venda; ou quando os nutrientes estão junto com a água do solo e esta é infiltrada a profundidades maiores que as raízes absorventes; ou, também, quando os nutrientes estão disponíveis, mas as plantas não estão em fase de absorção de nutrientes (no período de enve- lhecimento da planta, por exemplo). Nesses casos, o nutriente sai do agroe- cossistema que estamos manejando e vai para os ecossistemas do entorno. Nesse aspecto, podemos considerar que a matéria tende a ciclar dentro do 39 grande ecossistema Terra, pois, mesmo saindo do ecossistema alvo, o car- bono e os nutrientes são utilizados em outros ecossistemas. Diferentemente da energia, que entra na forma de energia solar (radiação solar) e que, após transformada em calor, não é recuperada para os ecossistemas. A eficiência do fluxo de matéria nos sistemas agroflorestais ocorre pela complexidade das relações não lineares entre os componentes (minerais do solo, plantas e organismos). Nessa complexidade de relações, a matéria é transferida de um componente para outro. Por isso que, quanto mais comple- xa e diversa é a estrutura de um sistema de produção agrícola, mais compo- nentes ele possui, gerando condições para os nutrientes permanecerem mais tempo no sistema. Ressalta-se que, no caso das agroflorestas, essa com- plexidade é produto do manejo que promove a riqueza de espécies vegetais, otimizando a fixação do carbonoe do nitrogênio atmosférico (como o plantio adensado, a poda e o incremento da biota no solo), resultando em proprieda- des que capacitam o sistema a fazer melhor uso da energia e matéria. Portanto, a estrutura e o funcionamento dos sistemas agroflorestais geram propriedades emergentes que promovem alta eficiência fotossintéti- ca no uso da energia e dos nutrientes. Além disso, é essencial ressaltar que as propriedades emergentes dos sistemas agroflorestais capacitam-lhes a executar os serviços ecossistêmicos. Segundo a Câmara de Avaliação Ecossistêmica do Milênio (Millenium Ecosystem Assessment), os serviços ecossistêmicos são “os benefícios que as pessoas obtêm dos ecossistemas” (MEA, 2005). Ou seja, a nossa saúde e o nosso bem-estar dependem dos serviços fornecidos pelos ecossistemas. São serviços de abastecimento de alimentos, água, fibras e madeira; serviços de regulação do clima, de enchentes, doenças, resíduos e qualidade da água; serviços culturais, que fornecem benefícios de recreação, estéticos e espirituais; e serviços de su- porte, como formação do solo, fotossíntese e ciclagem de nutrientes. A própria Câmara conclui que “a espécie humana é fundamentalmente dependente do flu- xo dos serviços ecossistêmicos” (MEA, 2005). Neste fluxo, diferentes processos têm papéis fundamentais que procuram ser valorizados na prática agroflorestal. 40 O papel da sucessao ecologica Tendo a fotossíntese como biotecnologia de produção de matéria vege- tal, a vida se adaptou e se adapta constantemente para ocupar diferentes espaços, com toda a variação de combinações de condições de luminosida- de, temperatura, umidade, disponibilidade de nutrientes, relações ecológi- cas e tantas outras. Cada espécie se adapta melhor a cada combinação destas condições. Estas combinações são denominadas de nichos ecológicos. Em um ambien- te natural, se ocorrer determinado nicho ecológico, espécies que ocupem adequadamente este nicho encontrarão condições apropriadas para seu desenvolvimento. A bracatinga (Mimosa scabrella Benth.), por exemplo, é uma árvore que se adaptou às condições de clareiras do ecossistema de Floresta Ombró- fila Mista, ou Floresta de Araucária. Quando se forma uma clareira em florestas desse ecossistema, a temperatura do solo se eleva, quebrando a dormência das sementes da espécie que se encontram no solo. A árvore cresce aceleradamente, contribuindo para fechar rapidamente a clareira e criar condições para as outras espécies florestais se desenvolverem. A partir de poucos anos de vida, a árvore já produz floradas anuais em grande intensidade, fornecendo alimento para uma grande quantidade de insetos, que chegam à clareira e polinizam também outras espécies. Todo ano, são produzidas muitas sementes, que vão formando o banco de se- mentes do solo. As árvores de bracatinga morrem entre vinte e vinte e cinco anos, mas o banco de sementes originado desse curto período fará com que, quando uma nova clareira se abrir, mesmo que décadas depois, a bracatinga encontre seu espaço e cumpra seu papel nas relações ecológi- cas e processos vitais daquela floresta, ou seja, ocupe seu nicho ecológico (Steenbock, 2009). Existe uma forte relação entre a biodiversidade e a variação de nichos ecológicos. Quanto mais espécies convivendo, maior a quantidade de ni- 41 chos formados. Quanto maior a variação entre os nichos, mais pressão de seleção para a geração de variabilidade genética das espécies, e conse- quentemente mais biodiversidade (Figura 12). Assim, a heterogeneidade ambiental proporciona às espécies a coexistência em meio à biodiversi- dade, porque elas podem se especializar em diferentes partes do espaço de nicho (Ricklefs, 2003). Por outro lado, as substâncias produzidas pelas espécies, as condições diferenciais de umidade, luminosidade e outras ca- racterísticas geradas a partir de sua presença no ambiente determinam a formação de novos nichos. Usando novamente o exemplo da bracatinga, o fato de a espécie produzir floradas abundantes, logo após o inverno (perío- do de menor oferta de recursos tróficos aos insetos polinizadores), contribui para o estabelecimento de nichos ecológicos para estes insetos, entre tan- tas outras relações; o fato de as raízes da espécie apresentarem associa- ções com bactérias fixadoras de nitrogênio gera condições adequadas para várias espécies da micro e mesofauna do solo; e assim por diante. Figura 12. Representação esquemática da relação entre nichos ecológicos e biodiversidade. Em um ambiente natural, portanto, cada nicho vai aparecendo na me- dida em que o espaço vai sendo ocupado por diferentes espécies. A este 42 processo dá-se o nome de sucessão ecológica, ou sucessão natural. Mar- galef (1968) definiu sabiamente a sucessão ecológica como o acréscimo de informação em um ecossistema, refletindo justamente o incremento de relações e da biodiversidade a partir da sucessão. A Figura 13 demonstra essa lógica de interação em que o surgimento de novos nichos ecológicos conduz à sucessão ecológica, e a sucessão ecológica é o resultado da gera- ção de novos nichos ecológicos. Figura 13. Representação esquemática dos nichos ecológicos como produto da sucessão ecológica. Em uma clareira, ou em uma área de cultivo abandonada, as primeiras espécies vegetais a aparecer são chamadas de pioneiras, seguidas pelas secundárias e depois pelas climácicas. As espécies pioneiras estão presentes no solo em forma de sementes, produzidas em grande quantidade, quando as plantas adultas dessas espé- cies viviam ali. As sementes dessas espécies, em geral, mantêm a viabili- dade de germinação por muito tempo, permanecendo dormentes no solo até que condições adequadas de temperatura e luminosidade estimulem 43 sua germinação, o que acontece quando clareiras – especialmente clarei- ras grandes – são formadas. Após a germinação, as plantas de espécies pioneiras crescem muito rapidamente, em elevada densidade e, em pouco tempo, iniciam ciclos de produção de flores e frutos em grande quantidade. A estratégia dessas espécies é justamente garantir sua sobrevivência na forma de sementes viáveis no solo – em muitas espécies pioneiras, enquan- to a planta adulta não chega a viver uma década, suas sementes chegam a durar por várias décadas no solo. Dessa forma, essas espécies têm um papel fundamental no incremento da biodiversidade, seja promovendo a umidade do ar e o sombreamento na área, seja aumentando a permeabilidade do solo (e com isso possibilitando a vida de vários organismos edáficos), ou ainda atraindo, a partir da dispo- nibilização de abrigo e da grande quantidade de alimento que fornecem em suas flores e frutos, uma grande variabilidade de insetos, pássaros, morcegos e outros animais. Estes animais, por sua vez, trazem uma grande quantidade de pólen e de sementes, de várias espécies. É através desse transporte de sementes que muitas espécies secundárias e climácicas chegam à área. As espécies secundárias não crescem na mesma densidade das espécies pioneiras, ou seja, elas são mais esparsas na área. Muito embora possam haver plantas jovens de espécies secundárias em elevada densidade, formando núcle- os, a tendência é a sobrevivência de apenas uma ou algumas delas naquele es- paço, ao longo do tempo. A seleção natural, portanto, atua sobre esses núcleos, estimulando a sobrevivência daqueles indivíduos mais adaptados ao nicho local. As sementes de espécies secundárias, frequentemente, não apresentam dormência. Estas espécies crescem mais vagarosamente que as espécies pioneiras, apresentando, em geral, momentos de maior velocidadede cres- cimento, quando quedas de galhos ou de árvores inteiras, próximas a elas, liberam a passagem de maior intensidade luminosa. Muitas vezes, plantas dessas espécies ficam por muitos anos praticamente do mesmo tamanho, aguardando maior intensidade luminosa para crescerem. Em cada evento reprodutivo, a quantidade de flores e de sementes é, usual- 44 mente, menor nas espécies secundárias do que nas espécies pioneiras. Porém, as espécies secundárias permanecem na área por décadas, fornecendo alimento e abrigo para um fauna diversificada. Em muitos casos, a polinização e a dispersão de sementes é feita por grupos de espécies característicos a arquitetura e a cor das flores e a forma e a consistência dos frutos, entre outras características, são direcionadas para a polinização e a dispersão de sementes por determina- das espécies animais, que acabam “preferindo” essas a outras plantas. Assim, a estratégia de vida das espécies secundárias se baseia na rela- ção mais próxima com determinadas espécies animais e na adaptação mais refinada ao nicho em que cada planta se insere, mantendo-se mais esparsas na paisagem e ocupando, com suas populações, diferentes ambientes. Finalmente, as espécies climácicas são aquelas que tendem a se adap- tar a ambientes que “já foram trabalhados” pelas espécies pioneiras e pe- las espécies secundárias. Assim, são espécies que vivem em ambientes mais sombreados e onde o solo apresenta maior quantidade de matéria orgânica. Ocorrem, com maior frequência, em fundos de vale, em matas ciliares. Seu crescimento é relativamente lento, e árvores climácicas adultas chegam a ter de 30 a 45 metros de altura, ocupando em geral o dossel (ou “teto”) da flores- ta. Chegam a viver por mais de 100 anos, havendo uma tendência de produzi- rem frutos adaptados à alimentação por mamíferos e servindo como suporte para uma grande quantidade de espécies epífitas. Em geral, produzem uma grande variabilidade de compostos secundários, que têm função de defesa contra o ataque de parasitas ou predadores. Por esse motivo, garantem sua sobrevivência em densidades variadas e em meio a populações de parasitas e herbívoros (Budowski, 1965; Kageyama & Gandara, 2000). Considerando a existência da sucessão ecológica, um espaço de uma floresta apresenta, a cada momento, determinadas plantas de espécies mais velhas (geralmente, aquelas mais adaptadas ao momento anterior da sucessão), ocupando frequentemente estratos mais altos, e espécies em di- ferentes estratos do sub-bosque, em distintas fases de suas vidas. Há, por- tanto, uma diversidade vertical de espécies na floresta. Além disso, como as 45 florestas se constituem em mosaicos de clareiras de diferentes tamanhos e idades, há também uma diversidade horizontal de espécies, gerando e sendo produto de conjuntos de nichos diferentes na área da floresta como um todo. Tanto a diversidade vertical quanto a diversidade horizontal são influenciadas pela diversidade de condições de solo, relevo, hidrografia, ge- ologia e tantas outras condições abióticas. Estes diferentes fatores contri- buem para a imensa biodiversidade das florestas tropicais. Uma vez que a existência dos nichos ecológicos é dinâmica, ou seja, um nicho não existe o tempo todo e nem no mesmo espaço sempre, as plantas evoluíram para produzir uma grande quantidade de sementes e múltiplas estratégias de dispersão das mesmas. As angiospermas, ramo mais evoluí- do entre as plantas, em geral fazem isso muito bem. Isso porque nem todas as sementes produzidas atingirão o solo, e nem todas as que atingirem o solo encontrarão condições imediatas para ger- minar. Lambers et al. (1998) propõem que, para que haja a ocorrência de uma espécie, são importantes três filtros: o filtro histórico, que age sobre as razões históricas que determinam se uma espécie pode se dispersar para uma determinada área; o filtro fisiológico, que permite que apenas as espécies com um aparato fisiológico apropriado possam germinar, crescer, sobreviver e reproduzir em um dado ambiente; e o filtro biológico, que eli- mina espécies capazes de sobreviver em um dado ambiente, mas que não são capazes de suportar as interações com a biota local. Como normalmente as sementes apresentam estruturas de proteção e de relativo isolamento com o meio exterior, o banco de sementes dos solos, em ambiente natural, é geralmente muito rico em espécies, especialmente espé- cies pioneiras, aguardando nichos ecológicos adequados para sua germinação. Hall & Swaine (1980) registraram, em Ghana, cerca de 100 espécies flo- restais no banco de sementes, sendo 88% de espécies pioneiras. Garwood (1989), revisando trabalhos realizados em florestas tropicais da Malásia, Costa Rica e Venezuela, caracterizou a ocorrência de uma média de 300 se- mentes/m2 de solo, de diferentes espécies. Em bracatingais no sul do Brasil, 46 Carpanezzi (1997) identificou de 90 a 190 sementes da espécie/m2 de solo. Na medida em que existe uma grande relação entre a ocorrência das espécies e a ocorrência de seus nichos, pode-se conceber a sucessão ecoló- gica também como uma sucessão de nichos, como demonstrado na Figura 13. Seguindo esse raciocínio, uma vez que a formação de nichos é dinâmica e dependente da presença de conjuntos de espécies, pode-se conceber a su- cessão ecológica também como a sucessão de consórcios de espécies, ou uma sucessão de situações em que determinadas espécies conseguem con- viver bem umas com as outras, em encontros interespecíficos. Neste sentido, Hurlbert (1971) propôs que o conhecimento das probabilidades de encontros interespecíficos de cada espécie se constitui em uma ferramenta básica para o entendimento da estabilidade e da sucessão ecológica de uma comunidade. Não há, portanto, em ambientes naturais, uma separação completa en- tre as etapas da sucessão, se considerarmos essas etapas como “retratos” em que um determinado conjunto de espécies está presente. Há sim um fluxo contínuo, um “filme”, no qual as espécies vão desempenhando diferen- tes papéis no processo de sucessão ao longo de sua vida. Em uma floresta tropical, por exemplo, por mais que logo após a formação de uma clareira predominem as espécies pioneiras e que estas em seguida ocupem o dos- sel, abaixo delas já estarão plântulas de espécies secundárias e plântulas de espécies climácicas. Após um certo período de tempo, as pioneiras vão deixando o ambiente, pois seu nicho vai desaparecendo e novos nichos já estão formados, contando com a sua participação. Cada espaço da floresta contém um consórcio de espécies, com dife- rentes características ou síndromes adaptativas, em diferentes idades. É muito importante considerar que cada indivíduo de árvore adulta não apa- rece adulto, mas sim foi ocupando seu nicho (o qual inclusive pode variar bastante) ao longo de seu desenvolvimento. A não consideração dessa observação pode gerar caracterizações e práticas equivocadas. A araucária (Araucaria angustifolia (Bertol.) Kuntze), por exemplo, por vezes tem sido caracterizada na literatura como espécie 47 climácica, pois ocorre em florestas em estágios avançados de sucessão. O fato de ocorrer, como planta adulta, nessas condições, não reduz a plastici- dade da espécie, que germina e se desenvolve rapidamente a pleno sol e em condições de restrição hídrica, situações típicas dos Campos de Altitude, por exemplo, em cujos capões no sul do Brasil a espécie é predominante. Além disso, mesmo dentro de uma floresta fechada, suas plântulas podem permanecer por vários anos mais baixas do que um arbusto, esperando con- dições de maior luminosidade para crescer. Assim, caracterizar a araucáriacomo espécie climácica, por mais que indique a sua condição de vida em florestas maduras, é uma classificação insuficiente para contemplar suas adequações de nicho em diferentes fases da vida, bem como os consórcios de espécies em que ela faz parte em cada uma dessas fases. Cada consórcio de espécies, em cada fase da sucessão ecológica, in- fluencia e é influenciado pelos nichos criados durante a mesma (Figura 14). Figura 14. Representação esquemática da formação de consórcios de espécies a partir de conjuntos de nichos. 48 Entre um consórcio de espécies e outro, as espécies com maiores proba- bilidades de encontros interespecíficos são justamente as que mais contri- buem para o aceleramento do ritmo de sucessão de uma comunidade (Hurl- bert, 1971). Espécies que atuam dessa maneira, ou seja, que contribuem de forma mais acentuada para a formação de novos nichos, são chamadas de “espécies facilitadoras” (Ricklefs, 2003). Usando um termo emprestado da química, pode-se dizer que as espécies facilitadoras contribuem mais forte- mente para que os nichos ecológicos funcionem em níveis quânticos mais elevados, até porque, de fato, quanto mais avançada a sucessão, mais com- plexas as relações ecológicas e maior a capacidade de auto-organização da vida (Figura 15). Figura 15. Representação esquemática da atuação de espécies facilitadoras na sucessão de consórcios de espécies e na formação de novos nichos ecológicos. 49 Após o trabalho de aceleramento da sucessão ecológica realizado pelas espécies facilitadoras, a sua saída do sistema, após novos nichos criados, não é instantânea. Espécies que facilitaram as formações de novos nichos podem permanecer ainda alguns anos no sistema, saindo aos poucos, ape- sar de não mais estarem determinando fortemente a formação de novos nichos. Para ilustrar este aspecto, podemos fazer também outra compara- ção, a partir da química: assim como na termoquímica estuda-se o “calor la- tente”, que se constitui na manutenção constante de temperatura enquanto uma substância está se transformando do estado sólido para o líquido, ou do líquido para o gasoso, na sucessão ecológica existe o trabalho das pró- prias espécies, especialmente das espécies facilitadoras, que vai deixando de existir gradativamente, enquanto outras espécies facilitadoras vão pas- sando a atuar nos novos nichos formados. Voltando ainda ao exemplo da bracatinga, podemos dizer que ela é uma espécie facilitadora no período inicial da sucessão, em uma clareira aberta. Ao apresentar grande densidade, crescimento rápido e elevada produção de flores e de sementes, contribui para o estabelecimento de várias rela- ções ecológicas. Decorridos em torno de vinte anos, novos nichos foram criados e sua função como espécie facilitadora não tem mais sentido. Ela vai saindo aos poucos do sistema, o que ocorre a partir da senescência e morte gradativa dos indivíduos da população, durante um período que pode durar mais uma década. Neste período, outras espécies facilitadoras vão passando a atuar; é a saída da bracatinga – e não as relações ecológicas que seus indivíduos vivos mantêm – que se constitui na sua contribuição à sucessão ecológica. 50 O uso do conhecimento da sucessao ecologica na pratica agroflorestal Na prática agroflorestal, o foco está no direcionamento aos processos necessários para que a agrofloresta se estabeleça. O manejo da sucessão ecológica é um desses direcionamentos. No texto de Ernst Götsch de 1992, intitulado Natural sucession of species in Agroforestry and in soil recovery, ele descreve o seu próprio caminho na construção desta concepção de que o sucesso de um sistema agroflorestal está no seu mecanismo de estabelecimento e manejo, e não tanto em seus elementos estruturais. Este texto já tem mais de vinte anos e, ao longo desse período de tempo, Ernst desenvolveu várias técnicas para o manejo agroflorestal. Entretanto, o documento é muito valioso para ilustrar o de- senvolvimento da percepção da importância do uso do conhecimento da sucessão ecológica na prática agroflorestal. Quando esteve na Costa Rica (entre 1979 e 1982), Ernst desenvolveu um programa de reflorestamento, utilizando a estratégia de cultivo em aleias (alley-croping). Foram plantadas linhas de espécies arbóreas leguminosas, como leucena, ingá e eritrina, alternadas com linhas de árvores frutíferas, como banana, caimito, zapote, etc. O espaço entre as linhas foi utilizado para culturas anuais (milho, feijão, mandioca e hortaliças). Na medida em que era necessário o uso de fertilizantes, a partir do segundo ou terceiro ano, as árvores inibiam o crescimento das culturas anuais, sem substituir as mesmas em termos de produtividade. Então, ele passou a combinar apenas quatro frutíferas arbóreas (ba- nana, cacau, abacate e pupunha) com eritrina, ingá e outras leguminosas para sombreamento. Apesar deste sistema ter funcionado relativamente bem em solos ricos, tanto na Costa Rica quanto em Itabuna, no sul da Bahia (Brasil), ele não funcionou em solos pobres, de pastagens abandonadas dessa região. Tentou-se, então, trabalhar para a melhoria destes solos empobrecidos, 51 plantando primeiramente espécies pioneiras (mandioca, eritrina e ingá) que vão bem em solos pobres do sul da Bahia. Entretanto, somente a mandio- ca se estabeleceu, tendo se desenvolvido muito pouco. Um grande número de espécies pioneiras nativas, porém, cresceu vigorosamente nestas áreas. Ernst conta que, por isso, passou a fazer uma seleção dessas plantas que eram eliminadas – retirou apenas as gramíneas, herbáceas e trepadeiras que já haviam amadurecido ou que haviam sido substituídas por espécies cultivadas. Todas as outras ervas nativas, árvores e palmeiras foram au- torizadas a crescer e cumprir sua função importante na melhoria do solo. As plantas cultivadas passaram a crescer bem na presença de espécies nativas. Essa percepção possibilitou o desenvolvimento da prática que ele passou a denominar capina seletiva (Götsch, 1992). Aqui, é importante relembrar os filtros propostos por Lambers et al. (1998), descritos anteriormente. Muito embora as espécies plantadas por Ernst, neste relato, sejam classificadas como pioneiras, isso não significa que seriam estas as pioneiras que se desenvolveriam bem naquele solo, nos nichos ecológicos existentes naquele momento e sob toda a combinação de condições de fertilidade, relevo, insolação e demais fatores abióticos. A percepção das espécies pioneiras que de fato tinham condições de desen- volvimento naquela área específica, por meio de suas estratégias reprodu- tivas características - ou seja, as espécies que ali passaram pelos filtros de Lambers et al. (1998) -, foi fundamental para o enriquecimento da área. A partir de então, Ernst procurou tirar o máximo proveito do potencial biológico e genético da flora e da fauna que ocorriam espontaneamente na área. Muitas plantas espontâneas nativas são, se bem manejadas, excelen- tes plantas companheiras. Quando jovens, elas estimulam o crescimento das espécies cultivadas e afastam pragas e doenças. Elas também prote- gem e melhoram o solo, ou indiretamente, corrigem o seu pH. Além disso, estas espécies aumentam a matéria orgânica do solo, constituindo uma fonte valiosa de substâncias fertilizantes (Götsch, 1992). Em outras pala- vras, a ocorrência natural das populações de espécies pioneiras nativas, na 52 área de cultivo, favorece a complexificação das relações interespecíficas e a formação de novos nichos ecológicos, propriedades emergentes nos sistemas agroflorestais. Nessas relações e nichos, as espécies cultivadas podem participar, aproveitando o benefício mútuo da complexificação da auto-organização do sistema. Trazendo
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