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As Veias Fechadas da América Latina Leandro Karnal1 ... Unicamp (1)

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1 
As Veias Fechadas da América Latina 
 
Leandro Karnal1 
 
Este artigo pretende analisar um clássico de divulgação histórica da América 
Latina: As Veias Abertas da América Latina, do autor uruguaio Eduardo Galeano.2 
Qual seria o sentido de analisar uma obra como esta? Independente de qualquer 
opinião ideológica é uma obra não-acadêmica e não realizada por um profissional da 
sociologia ou da história. Assim, mesmo compartilhando de alguma de suas 
conclusões, os professores universitários de primeira linha quase nunca a incluem 
nas suas referências. Trinta anos depois da sua estréia editorial, permanece a 
dúvida: por que analisar esta obra em particular? Quais conclusões podemos tomar 
da obra e, principalmente, do seu sucesso? Para responder em parte a estas 
questões, realizamos este artigo. 
 
Origem e sucesso 
 
Os anos setentas foram marcados pelas ditaduras militares na América Latina. A 
Argentina vivia instabilidades relacionadas à volta e à morte de Perón, bem como a 
ascensão da Junta Militar liderada pelo General Jorge Rafael Videla. No caso 
brasileiro viveu-se, no início desta década, um endurecimento do regime militar no 
governo Médici (1969-1974), com aumento da repressão interna e valorização de 
um modelo que concentrava a renda e abria ainda mais o país ao capital 
estrangeiro. No caso do Uruguai nativo do autor, houve o colapso da decantada 
democracia uruguaia e uma grande crise política no governo Juan María Bordaberry, 
 
1
 Professor de História da América no Departamento de História da UNICAMP, doutor em História social 
pela USP. Texto publicado originalmente em KARNAL, Leandro (Coordenador); As Veias Fechadas da 
América Latina, 01/12/2001, www.ceveh.com.br, Revista, SP, BRASIL (site atualmente desativado) 
2
 Eduardo Hughes Galeano nasceu em 1940 na capital do Uruguai. Sua função principal, tem sido de 
jornalista e escritor, mas já foi desenhista, operário de fábrica de inseticidas e caixa de banco. Suas obras 
estão traduzidas em cerca de 20 línguas. Uma lista parcial da sua vasta produção: Guatemala, país 
ocupado (1967), Las venas abiertas de América Latina (1971), Vagamundo (1973), La canción de nosotros 
(1975), Días y noches de amor y de guerra (1978), Memoria del fuego (trilogia completada em 1986: Los 
nacimientos , Las caras y las mascaras, El siglo del viento) , Nosotros decimos no (1989), El libro de los 
abrazos (1989), Ser como ellos y otros artículos (1992), Las palabras andantes (1993), El fútbol a sol y 
sombra (1995), Las aventuras de los jóvenes dioses (1998), Patas arriba. La escuela del mundo al revés 
(1998). Naturalmente o grosso da sua produção está nos artigos, alguns reunidos em coletâneas. Foi 
premiado com o importante “Casa das Américas”; prêmio da Fundação Lannan dos Estados Unidos e o 
American Book Award, distinção outorgada pela Universidade de Washington. No Brasil podemos encontrar 
muitos dos seus livros pela Paz e Terra, como a 37ª Edição das Veias Abertas da América Latina, ou pela 
L& PM, como Futebol ao Sol e à Sombra e O Século do Vento. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
que levaria a um regime mais autoritário em 1973. O Chile enfrentava a franca 
oposição da direita interna e a pressão dos EUA contra o governo Allende, levando 
ao colapso da experiência democrática em 1973, com o assassinato do presidente 
eleito e a ascensão de Pinochet. 
Além do recrudescimento das ditaduras no continente, havia, segundo a tese de 
Rouquié3, um aumento expressivo de interpretações que associavam as ditaduras 
às pressões do capital externo, especialmente dos EUA. Estas interpretações, 
extrapolando Rouquié, podem ter estimulado análises interpretativas que 
enfatizassem o papel da exploração externa na constituição de quadros internos de 
desigualdade e exploração social. De alguma forma, estas interpretações a partir do 
capital norte-americano, poderiam ter estimulado uma visão retroativa do papel da 
exploração externa, iniciando-se com o período colonial ibérico, passando pelo 
imperialismo britânico do século XIX e chegando, teleologicamente, à exploração 
estadunidense do XX.4 
 No plano exterior à América Latina, apesar da Guerra Fria viver um momento 
menos polarizado, com o fim das hostilidades no Vietnã (1973) e a aproximação 
Nixon/Mao, a realidade da década de 70 foi de aumento da polarização ideológica 
com amplo apoio (direto e indireto) dos EUA e de seu serviço secreto, pelo menos 
até o advento do governo Carter. 
 Assim, observamos no cone Sul o solapamento dos valores democráticos como 
liberdade de imprensa e habeas-corpus acompanhado de um processo de 
“modernização” econômica profundamente excludente. Ainda que o modelo 
soviético tivesse perdido muito do seu encanto após o episódio de Praga, optar pelo 
modelo oposto (o capitalista norte-americano) implicava posições muito difíceis de 
serem defendidas. 
 Neste contexto, há trinta anos, surgia uma obra que logo encontrou ampla 
difusão em espanhol e, logo em seguida, em quase todas as línguas da América e 
da Europa: As Veias Abertas da América Latina. Denúncia contundente da situação 
do continente, o livro faz um traçado histórico para desenvolver uma tese central: a 
exploração da América Latina, desde o século XV até o XX, provoca pobreza, fome 
e formas políticas autoritárias em associação ao explorador estrangeiro. A metáfora 
do título expressa esta tese central: a América Latina é um corpo com as veias 
abertas, com seu sangue abastecendo “vampiros” da Europa e dos EUA. 
 Talvez ao lado de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o livro 
tornou-se um dos ícones da cultura contemporânea e crítica sobre a América Latina. 
Tornou-se uma das mais conhecidas e citadas obra de divulgação da história da 
América Latina. Um geração inteira tinha como itens quase obrigatórios um pôster 
de Che Guevara, poesias de Pablo Neruda, música andina no toca-discos, uma 
edição de Cem Anos de Solidão e outra das Veias Abertas da América Latina5. 
 Nossa preocupação analítica não está contida na obra em si, mas entender uma 
gramática da percepção que justifica o sucesso da obra. Ainda que pudéssemos 
circunscrever este sucesso ao talento narrativo de Eduardo Galeano e ao espírito 
contestador da década de 60 (que influencia a obra ainda em 1971), bem como ao 
contexto generalizado de ditaduras militares francamente abertas ao capital externo 
e violadoras de direitos humanos básicos. Estes tópicos, porém, não esgotariam a 
explicação sobre esta obra e sua fortuna crítica. 
 
3
 ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo, Alfa-Ômega, 1984. P. XIX da Introdução. 
4
 Claro que este enfoque pode ter crescido nos anos 70 do século XX, mas á um dos mais clássicos. A 
Carta da Jamaica de Simón Bolívar já dá a mesma fórmula ainda antes da independência final dos países 
hispano-americanos: BOLÍVAR, Simón. Escritos Políticos. Unicamp, Editora da Unicamp, 1992. P. 53 e ss. 
5
 Doravante: VAAL. 
 3 
 Queremos partir de um pressuposto importante: o gosto por uma obra ou a 
rejeição de outras mostra muito da forma como uma sociedade age e pensa. Aquilo 
que é lido ou que não é lido mostra, com clareza, uma gramática da percepção e os 
valores de uma época. 
 No contexto do Quinto Centenário do Descobrimento da América, por exemplo, 
Janice Theodoro já alertava que muito pode ser concluído na análise do sucesso e 
do desconhecimento de alguns textos coetâneos como Las Casas e Durán. 6 O 
extraordinário sucesso do primeiro está fundado numa narrativa trágica palatável ao 
gosto dos leitores, enquanto que o segundo, por conhecer muito mais da cultura pré-
hispânica, produz um texto mais hermético ao padrão ocidental e menos lido.Em 
outras palavras, certas obras reforçam conhecimentos e concepções que o leitor já 
possui e apresentam narrativas e explicações que são consideradas corretas sobre 
uma determinada realidade porque não introduzem uma ruptura epistemológica com 
a concepção do leitor. Outras obras, ao demandarem esgarçamentos da 
epistemologia do leitor (ou derrubada de concepções tradicionais) ou são 
contestadas ou simplesmente ignoradas.7 
 O que queremos demonstrar é que, além do talento narrativo do autor e de um 
contexto favorável à difusão das VAAL, há características específicas na forma de 
Eduardo Galeano construir o texto que mostram como a própria América Latina se 
concebe e como o mundo europeu e norte-americano a concebe. Antes de 
chegarmos a este ponto central, é importante analisar uma crítica nascida às VAAL 
nascida em outra conjuntura. 
 
 
A Crítica da Direita Neoliberal 
 
O texto mais ferino contra Eduardo Galeano foi O Manual do Perfeito Idiota 
Latino Americano.8 Em linguagem panfletária e pouco analítica, usando largamente 
de adjetivos fortes9, os autores identificam várias premissas que, no entender deles, 
caracterizam o máximo do hebetismo da esquerda latino-americana. Dentre estes 
princípios, enumeram como aforismos equivocados: somos pobres por culpa da 
exploração externa (um dos axiomas de Galeano). 
Mais adiante, reforçando ainda mais o tom polêmico, os autores classificam 
Galeano e as VAAL como a Bíblia do idiota. Em outras palavras, o livro de Galeano 
seria a referência básica e máxima de uma geração equivocada ao Sul do Rio 
Grande. 
 O Manual encontrou um relativo sucesso, ancorado tanto na onda neoliberal 
como na sua própria linguagem panfletária. A obra acusa Galeano de fazer uma 
 
6
 THEODORO, Janice. América Barroca. América Barroca: temas e variações. São Paulo: Edusp-Nova 
Fronteira, 1992. 
7
 Naturalmente esta não é uma explicação universal do sucesso ou fracasso de todas as obras, pois 
incorreria no seguinte princípio: toda obra fracassada é boa porque revela muito e toda obra de sucesso é 
ruim porque é apenas um reforço do universo do leitor. 
8
 MENDOZA, Plínio Apuleyo (et alt). Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. 3a ed. Rio de Janeiro: 
Bertrand-Brasil/Instituto Liberal, 2000. Os autores: Plinio Apuleyo Mendoza é jornalista colombiano; Carlos 
Alberto Montaner é jornalista cubano e Alvaro Vargas Llosa é jornalista peruano. Apesar de todos serem 
também escritores, trazem esta marca do texto contundente que a escrita do jornal (especialmente nos 
países hispânicos) apresenta. Curiosamente, apresentam isto em comum com Eduardo Galeano. Em 2007, 
com o crecsimento de governos como Chávez e Evo, eles lançaram uma continuação: A volta do idiota. (Ed. 
Odisseia) 
9
 O uso de adjetivos em larga escala parece ser um recurso para imobilizar a capacidade de ração do leitor. 
Na obra aparecem muitas vezes as palavras idiotas. Desta forma, ao desqualificar uma obra desta forma, 
deixa pouca possibilidade de reflexão da parte do leitor, pois se ele gostar da obra ou concordar pode estar 
se tornando um idiota também. 
 4 
leitura equivocada dos EUA, em particular. Para atacar a análise do uruguaio, os 
autores lembram que os EUA fizeram o NAFTA “com o declarado propósito de que 
as três nações se beneficiem”.10 Ao atacar as posições das Veias Abertas, os 
autores fazem uma hipótese: já que a América Latina perde ao exportar seu bens ( a 
metáfora das veias) os governos latinos deveriam proibir as exportações. 
Resultado? Milhões de desempregados e caos econômico na América Latina, mas 
pouca alteração no resto do mundo, já que os países latinos correspondem a 8 % do 
comércio mundial. 11 Assim, a crítica central dos autores liberais seria à visão de 
comércio de Galeano, baseado sempre no prejuízo de uma parte, quando, ainda 
segundo os autores liberais, o comércio pode beneficiar as duas partes. Segundo O 
Manual, seria tudo isto derivado de um “horror ao mercado” e a ignorância dos 
mecanismos de flutuação dos preços neste mesmo mercado. Da mesma forma, 
Galeano estaria influenciado por ideias “paelocristãs” de condenação ao juro dos 
empréstimos. Toda a visão das Veias Abertas estaria marcada por uma teoria 
conspiratória de história. Evidenciando seu ponto de vista de história, os autores do 
Manual chegam a afirmar que Galeano “não é capaz de entender que o conceito 
classe não existe, e que uma sociedade se compõe de milhões de pessoas cujo 
acesso aos bens e serviços disponíveis não se escalona em compartimentos 
estanques, mas em gradações quase imperceptíveis e móveis que tornam 
impossível traçar a fronteira dessa suposta justiça ideal perseguida por nossos 
incansáveis idiotas”.12 
 Ao elaborarem a sua “filosofia da História econômica”, os autores do Manual 
afirmam que as nações, por menores que sejam, podem prosperar se souberem 
utilizar o comércio com inteligência. Assim, dando como exemplo a Nova Zelândia, o 
progresso ocorre à medida em que as pessoas abandonam estas ideias “do estilo 
Galeano” e passam a trabalhar muito na prosperidade. A riqueza maior destes 
lugares como EUA e Nova Zelândia derivaria da sua maior capacidade de gerar 
riquezas. Assim, se um habitante de Detroit consome 50 vezes mais do que um 
índio do altiplano, esta disparidade está relacionada às diferentes capacidades de 
produção de bens e serviços (a metáfora é dos autores do Manual). 
 Na estocada final contra Galeano, aproveitam os autores do Manual para atacar 
Cuba, apontada como modelo. A ilha socialista teria uma taxa alta de suicídios e 
abortos, 14 vezes mais alta do que a vizinha Porto Rico. 
 As ideias e o livro de Galeano não estariam sós na enumeração de “asneiras” 
para os autores do Manual. Eles enumeram os “Dez Livros que Comoveram o Idiota 
Latino Americano”. Assim, além das Veias Abertas, temos: 
 
-A História me absolverá (Fidel Castro – 1953) 
-Os Condenados da Terra (Frantz Fanon –1961) 
-A Guerra de Guerrilhas (Che Guevara –1960) 
-Revolução Dentro da Revolução? (Régis Debray – 1967) 
-Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico (Marta Harnecker – 1969) 
-O Homem Unidimensional (Herbert Marcuse –1964) 
-Para Ler o Pato Donald (A. Dorfman e A. Mattelart –1972) 
-Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Fernando Henrique Cardoso e 
Enzo Faletto – 1969) 
-Para Uma Teologia da Libertação (Gustavo Gutiérrez – 1971) 
 
10
 MENDOZA, Plínio Apuleyo (et alt). Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. 3a ed. Rio de Janeiro: 
Bertrand-Brasil/Instituto Liberal, 2000. P. 55 
11
 MENDOZA, Plínio. Op. Cit. P. 56 
12
 MENDOZA, Plínio Apuleyo (et alt). Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. 3a ed. Rio de Janeiro: 
Bertrand-Brasil/Instituto Liberal, 2000. P. 64. 
 5 
 
 Assim, à pretensa leviandade da análise de Galeano, os autores opõem uma 
crença muito forte no valor neutro do mercado como fator de geração de riqueza. 
Simplificando, temos Marx contra Adam Smith, ou o mercado como demônio e o 
mercado como demiurgo celeste. Para demonstrarem suas teorias, ambos utilizam 
uma linguagem próxima, apaixonada, pouco analítica, voltada ao objetivo de prender 
o leitor com frases bombásticas e uma seletiva coleta de dados que sirvam aos 
interesses que se pretendem demonstrar. Não existem matizes numa e noutra obra, 
não há espaço para o que não for ou o perfeito explorado e o perfeito explorador 
(Galeano) ou o perfeito idiota de esquerda e o perfeito inteligente liberal (Manual). 
 Por uma série de motivos, acreditamos que o texto de Galeano encontrará maior 
permanência do que o Manual. Primeiro porque ele dialoga mais coma pobreza da 
América Latina e desperta mais a utopia do que o texto liberal. As utopias baseadas 
na justiça, como o próprio Cristianismodemonstra, encontram muita durabilidade. As 
Utopias da Cocanha sempre foram muito respeitáveis... Segundo porque Galeano 
situa o problema, basicamente, num plano externo, e estas explicações costumam 
(pela negação da ideia da responsabilidade sartreana) ser bem aceitas. Em terceiro 
lugar a linguagem de Galeano, mesmo panfletária, instiga no leitor uma 
cumplicidade com os fracos, com os explorados, cumplicidade mais fácil de ser 
assumida do que a cumplicidade com os ricos e “eficientes” que o Manual aponta. 
Assim, o texto de Galeano parece “construtivo” e o Manual parece “destrutivo”. Por 
fim, As Veias centram seus argumentos no conceito de justiça social e o Manual 
centra seu argumento na visão econômica da esquerda, sendo de mais difícil 
absorção, malgrado o texto linear do Manual. Uma explicação mais densa sobre o 
sucesso de Galeano tentaremos no item seguinte. 
 
 
 
O Texto As Veias Abertas e sua Estrutura 
 
O livro começa com um forte apelo dramático: “Cento e Vinte Milhões de 
Crianças no Centro da Tormenta”. Sua primeira frase evidencia o traço da perfeita 
divisão em duplos: “Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que 
alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em 
perder”.13 
Esta divisão em duplos: índios/espanhóis; ricos/pobres; latinos/anglo-saxões etc é 
uma das chaves do sucesso da obra. Torna fácil a compreensão e vai ao encontro 
pleno da compreensão do leitor. Talvez pela própria tradição religiosa da América, 
divisões perfeitas entre princípios antípodas sempre funcionam bem no palco ou no 
texto. 
Devido à importância, transcrevemos integralmente o parágrafo da página 14, 
que, de muitas formas, sintetiza toda a obra: 
 “É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até 
nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-
americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes 
centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, 
os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os 
recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm 
sido sucessivamente determinados, de fora, ou a incorporação à engrenagem 
universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do 
 
13
 VAAL. p. 13. Utilizaremos como referência a 12 a edição, de 1981, da Editora Paz e Terra (RJ). A 
tradução Galeno de Freitas. 
 6 
desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das 
dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo 
também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por 
seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as 
grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-
de-obra. “14 
 Está estabelecida a metáfora central que será exaustivamente ilustrada ao longo 
do texto: somos os explorados, os imperialistas europeus e norte-americanos são os 
exploradores e, por isto, somos um continente de veias abertas. As riquezas aqui 
jorraram para o exterior e, quanto mais rico o lugar maior a miséria dele. 
 As fontes para este desenvolvimento são as melhores possíveis. Galeano cita os 
maiores cronistas do período colonial, como Gonzalo Fernández de Oviedo, 
Sahagún, Guamán Poma (grafado na forma alternativa: Huamán Poma) e Las 
Casas. Dentro os historiadores e analistas mais contemporâneos, passamos pelos 
indispensáveis John Lynch, Miguel Léon-Portilla, Earl Hamilton e Manuel Moreno 
Fraginals. Os autores que embasam sua visão marxista ou suas especulações mais 
teóricas vão de Darcy Ribeiro a Gunder Frank, de Celso Furtado a Caio Prado 
Júnior, sem omitir os tradicionais relatórios da Cepal. Além de autores clássicos, o 
onívoro Galeano cita artigos da revista seleções Seleções (Reader´s Digest), trechos 
de jornais de todo o continente, revistas sociais e trechos de muitas obras literárias 
antigas e contemporâneas. Difícil seria criticar esta abundância de fontes. Como é 
natural, algumas passagens apresentam uma visão defasada mesmo considerando 
a reflexão disponível do início dos anos 70, como é visível ao citar Nina Rodrigues 
para entender a estruturação dos negros na África antes da barbárie da escravidão 
ou suas fontes sobre Potosí. Também sua visão sobre ciclos econômicos 
representam uma simplificação da já esquemática ideia de Caio Prado, mas seria 
injusto dizer que isto era muito diferente do que muitos historiadores profissionais 
faziam no mesmo período. 
 O grande problema da obra não reside nas fontes, pelo contrário. Como é 
frequente em jornalistas que se dedicam à coleta e organização de dados históricos, 
econômicos e sociológicos; o fluxo do texto tende a impor-se mais do que uma 
análise densa dos pressupostos historiográficos de cada autor. De resto, este não é 
o objetivo de Galeano. Nosso objetivo não é cobrar neste artigo o que o autor não 
desejou fazer, mas tentar entender qual tipo de compreensão esta opção 
proporciona. No item sobre o cacau do Brasil, por exemplo, temos como fontes 
citadas um relatório da Cepal (que apresenta os dados numéricos) e diversas 
citações do recém-falecido Jorge Amado. Sem entrar na hoje densa discussão das 
relações entre literatura e história, o que podemos observar é que o fluxo ficcional de 
Amado dirige a narração do cacau, e, após esta narração, os dados da Cepal 
entram como elemento confirmador das afirmações de personagens como Gabriela, 
Cravo e Canela. 15 Assim, já no título deste item, encontramos a tradição de coronéis 
do cacau que acendiam charutos com notas de quinhentos mil réis, usada mais do 
que como anedota, como referência histórica para exemplificar uma era de fausto e 
esbanjamento. Bem, qual a fonte deste caso de anti-capitalismo explícito? A 
personagem Maneca Dantas, da obra de Jorge Amado... Na verdade, estes títulos 
bombásticos, são a marca de toda obra, como já vimos no caso das crianças no 
centro das tormentas. Para a crise dos anos 30 temos como subtítulo: “é crime maior 
matar uma formiga do que matar um homem”.16 
 
14
 VAAL p. 14 
15
 VAAL. p. 105 
16
 VAAL. p. 123 
 7 
 Talvez este seja o problema maior do historiador-jornalista. Não que o estilo não 
seja um elemento central na análise de qualquer obra da área de humanas. A 
questão retórica como influenciadora da própria concepção narrativa já foi alvo de 
obras de Hayden White e Peter Burke. Porém, quanto a retórica é o único objetivo, 
temos problemas como o anteriormente citados e a submissão de toda a análise às 
frases bombásticas e às ideias de efeito. 
Vejamos, por exemplo, a análise dos diamantes das Minas Gerais. Ela ocupa 
um parágrafo, a partir da p. 65. Não há referência ao estanco real. Naturalmente, o 
maior desenvolvimento é dado à Xica da Silva. Xica, como recurso retórico e 
narrativo, supera imensamente o dado do monopólio real dos diamantes. Mesmo a 
figura central do contrabando adamantino, um dos eixos da região, não merece 
atenção. Xica domina tudo e o parágrafo encerra-se com uma visão tradicional de 
Tiradentes como herói e mártir da Inconfidência. Curiosamente o mito de Tiradentes 
deve mais sua construção ao pensamento conservador e militar que o autor tanto 
combate ao longo da obra. Os outros inconfidentes, apesar de serem também 
membros desta elite exploradora que ele tanto ataca ao longo da obra, são tratados 
como vítimas do sistema “rumo ao cárcere e ao exílio”.17 
 E como encerra a análise sobre a decadência das Minas Gerais? Com uma 
metáfora pouco adequada a um materialista histórico: “A lenda assegura que na 
igreja de Nossa Senhora das Mercêse Misericórdia, de Minas Gerais, os mineiros 
mortos celebram ainda missa nas frias noites de chuva. Quando o sacerdote se 
volta, levantando as mãos do altar-mor, se vêem os ossos do rosto”. 18 Esta não é 
uma anedota metafórica contada para encerrar uma análise econômica ou de 
denúncia social: é a própria narrativa-síntese do intento de Galeano. Este intento é 
comover, revoltar, despertar compaixão, purgar, talvez provocar o início da 
transformação que ele, por certo, anseia. Nisto se aproxima da definição aristotélica 
de tragédia e nisto reedita o sucesso de quatro séculos de Las Casas, da denúncia 
pungente e emotiva, sem preocupação precisa com o real. Melhor dizendo: o real é 
concebido pela emoção, pela descrição trágica, pela dor e pelo sentimento de 
indignação diante da exploração. Constitui-se, por efeito lógico, uma sensação de 
derrota generalizada para o leitor crítico: não importa o grau de riqueza ou de 
organização, tudo termina em esmagamento de forças populares e progressistas. 
Cria-se uma ideia de derrota inelutável, sangrenta, como a dos mineradores de 
estanho: “O vômito de sangue, a tosse, a sensação de um peso de chumbo sobre as 
costas e uma aguda opressão no peito são os sinais que a anunciam. Depois da 
análise médica vêm as peregrinações burocráticas de nunca se acabar. Dão um 
prazo de três meses para desalojar a casa.”19 
 Todas as greves descritas no livro são fracassadas. Todas as rebeliões 
terminam em sangue e os ricos cada vez mais ricos. Toda riqueza descoberta 
representa fome e derrota para a América. 
 Por fim, há no livro toda uma ideia de um passado mais glorioso. O último 
parágrafo fala da “reconstrução da América Latina”. Esta reconstrução pressupõe 
que tenha existido um período construído, de prosperidade e maior justiça. Como 
não o foi o período colonial e o independente, só podemos estar diante de um elogio 
ao período indígena pré-colombiano. Este é um dado comum a vários analistas. 
Nenhuma contradição estrutural é atribuída ao período pré-colombiano. A imensa 
expansão imperial inca, o domínio da Federação encabeça por Tenochtitlán sobre A 
Mesoamérica e outros fenômenos não são destacados na sua violência, na 
exploração de povos conquistados mediante tributos ou na imposição cultural. 
 
17
 VAAL p. 66 
18
 VAAL p. 69 
19
 VAAL p. 165 
 8 
Parece que tivemos uma idade do ouro, igualitária e a Europa trouxe a Idade do 
Ferro, baseada na desigualdade social e hierarquia política. Esta ideia é repetida 
pela descrição citada dos conquistadores, como a dos liderados de Pizarro que 
“acreditavam entrar na cidade dos césares, tão deslumbrante era a capital do 
império incaico”.20 Estas análises sempre ocultam que a ocupação humana na 
América tem sido um incessante deslocamento de populações e imposição de 
diversos níveis de subordinação de grupos sobre outros. Este domínio não era tão 
bem recebido, por exemplo, na Mesoamérica, caso contrário Cortés não teria 
contado com imenso contingente de índios revoltados contra a poder do tlatoani 
asteca. Mesma sorte teve Pizarro, que contava, em Cajamarca, com enorme reserva 
de índios rebeldes ao poder do Inca. 
 Esta idealização dos índios é fundamental para caracterizar o pensamento da 
exploração externa. Destacar a violência ou a exploração de indígenas sobre 
indígenas seria quebrar este quadro maniqueísta e ter de trabalhar com 
pressupostos distintos dos escolhidos por Galeano. Não se trata de uma influência 
do bom selvagem de Rousseau, mas na caracterização retórica de uma 
personagem, o índio. 
 Na verdade, como percebemos no livro, não é o indígena o idealizado. É 
qualquer explorado. O índio se transforma no minerador de estanho explorado pelo 
famigerado Simón Patiño21 ou dos gaúchos liderados por Brizola no enfrentamento 
do Imperialismo Norte-Americano no Brasil da década de 60.22 Brizola é o índio da 
vez. Não pode ser questionado nas suas ambiguidades. Sua posição social de 
latifundiário ou suas posturas pouco democráticas no PTB de então não vêm à tona. 
Temos a personagem, o índio, o minerador, Brizola: o lado bom da disputa. 
 O golpe de 1964 no Brasil é tratado na análise dos interesses de companhias 
estrangeiras, fato bastante óbvio para todos os analistas. Porém, há pouco ou 
nenhum destaque para as forças internas da sociedade brasileira, suas contradições 
e choques e interesses ideológicos pró-golpe que nada se beneficiavam das 
inversões norte-americanas. 
 Em síntese, numa retórica maniqueísta tradicional, as personagens exploradas 
são perfeitamente boas, fadadas à exploração pelo eu lírico onisciente prévio que 
estabelece seus papéis. As personagens exploradoras são personagens de opereta 
bufa, sem intenção específica de suscitar análise, mas de comover. Isto aproxima 
Galeano de Las Casas, já que o autor dominicano também viu na comoção profunda 
um instrumento bom para obtenção do sue objetivo político. Como vimos, também 
os autores e direita utilizaram o mesmo caminho, acrescentando à tragédia a ironia, 
como recursos para esterilizar qualquer reação ao argumento em si. 
 
 
Conclusão 
 
 
 Para nós, o problema das VAAL não está em eventuais equívocos econômicos 
que a direita neoliberal tem apontado. É mais fácil ser simpático a Galeano do que 
ao livro Manual do Perfeito Idiota. O atual fracasso de rígidas políticas neo-liberais e 
riscos de colapso político e social em países como a Argentina levariam, o leitor, 30 
anos depois, a estar muito mais ao lado de Galeano do que a defensores do FMI ou 
de Adam Smith. O tamanho e a gravidade dos problemas sociais de países como o 
 
20
 VAAL, p. 31. 
21
 VAAL, p. 161. 
22
 VAAAL. p. 168. 
 9 
Brasil levariam os leitores a fazerem um vênia: bem, ele pode ser dramático ou 
retórico, mas toca num ponto central e verdadeiro. 
 A análise da recepção desta obra mostrar como as ideias na América Latina 
ingressam mediante sua representação retórica e seu apelo. Não se trata de dizer, 
como se dizia outrora, que temos uma efetivação “imperfeita” das ideias europeias, 
como o Liberalismo, por exemplo, mas que apreendemos o Liberalismo de uma 
maneira distinta daquela que o gerou na Europa. Da mesma forma que o Socialismo 
Marxista, o Anarquismo, o Catolicismo e vários ismos, as populações da América 
Latina interagem de uma forma muito variada com estas matrizes teóricas clássicas, 
em parte pela tradição indígena de integração de legados culturais. 
 A percepção de sistemas políticos ou de ideias só pode ser indicada de forma 
indireta. Veja-se, por exemplo, o romance do cubano Pedro Juan Gutiérrez: Trilogia 
Suja de Havana.23 Nesta obra, em parte autobiográfica, aparece a percepção de um 
cidadão comum sobre a Revolução Cubana. Nela encontramos a pobreza e os 
problemas que a o país enfrenta, mas não tratados da forma que Galeano ou o 
Manual trataria, mas na apreensão de um cotidiano extremamente sexuado e na 
qual os valores de mercado ou de anti-mercado cedem espaço à busca do prazer . 
 Da mesma que um cubano branco do início deste século XXI, um índio do 
altiplano boliviano pode estar indiferente aos debates sobre sua pobreza, na medida 
em que ele não se pauta pelo critério de pobreza e riqueza estabelecido por liberais 
ou marxistas. Seria o caso de trazer à baila o conceito de Richard Morse de que a 
dita “pobreza” pode ser opção cultural? 
 Ir além destas considerações finais é produzir uma outra reflexão que fugiria ao 
propósito inicial. Queríamos identificar hipóteses para explicar o sucesso de uma 
obra e analisar seus críticos. Ao invés da metáfora de Galeano sobre riquezas sendo 
extraídas em Veias Abertas, propomos uma visão de Veias Fechadas um pouco 
mais, não por xenofobia, mas para que nós intelectuais comecemosa pensar a 
realidade cultural deste continente sem utilizar como instrumento exclusivo 
ferramentas externas. 
 
 
 
 
 
23
 São Paulo, Cia. das Letras, 1999.

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