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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO E METODOLOGIA DE ENSINO CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho Acadêmico da Criança São Carlos 2011 Universidade Federal de São Carlos Centro de Educação e Ciências Humanas Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho Acadêmico da Criança João Carlos Melli Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para obtenção de diploma de graduação no curso de Licenciatura Plena em Pedagogia. Orientadora: Profa. Dra. Rachel de Faria Brino (DMed) São Carlos 2011 Ficha Catalográfica MELLi 364.153 MELLI, João Carlos As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho Acadêmico da Criança. 2011. 41 p. Trabalho apresentado como requisito para aprovação na disciplina Monografia de Conclusão de Curso em Licenciatura Plena em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor responsável: Rachel Faria Brino 1.PSICOLOGIA. 2.SEXUALIDADE. 3.ABUSO SEXUAL. 4. DESEMPENHO ESCOLAR I. Título. Pareceristas Profa. Sub. Sabrina Mazo D’Affonseca (DPsi) Prof. Dr. Eduardo Pinto e Silva (DEd) Dedico esse trabalho ao meu pai: Francisco Melli - Um homem simples e generoso que nunca frequentou uma sala de aula, um analfabeto que hoje está vendo seu filho concluir um curso superior em Pedagogia. Agradecimentos Agradeço primeiramente à minha orientadora Profa. Dra. Rachel de Faria Brino do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, pela prontidão em me orientar, pela paciência e pela atenção a mim dispensada. Agradeço aos meus amigos que acreditaram em mim, mais do que eu mesmo acreditei. A minha família pela minha ausência e pela minha obstinação em continuar até o final, apesar de alguns percalços no caminho. Sumário Introdução..........................................................................................................08 Capítulo 1- Abuso sexual infantil: aspecto histórico e geral..............................09 Capítulo 2- O desenvolvimento da sexualidade infantil....................................19 Capítulo 3- O desenvolvimento cognitivo para Jean Piaget...............................26 Capítulo 4- As consequências do abuso sexual para o desempenho acadêmico da criança.................................................................................................................30 Considerações Finais...........................................................................................37 Referências Bibliográficas..................................................................................40 Introdução Este trabalho de conclusão de curso teve como aspiração o estudo bibliográfico das consequências do abuso sexual para o desempenho acadêmico da criança nos primeiros anos de sua vida escolar. A pesquisa se propôs a fazer um levantamento bibliográfico sobre o assunto através de artigos acadêmicos e livros de autores que se debruçaram sobre o tema nos últimos dez anos, tanto no Brasil como no exterior. O trabalho foi realizado em forma de monografia como requisito básico para a conclusão do curso de graduação em licenciatura plena em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos. Neste sentido, buscou-se compreender o fenômeno do abuso sexual infantil, primeiramente no sentido de se entender o conceito de abuso sexual. Para isso foi preciso uma compreensão geral do aspecto, fazendo-se necessário uma compreensão do fenômeno ao longo da História da Humanidade. Onde se procurou fazer um apanhado da ocorrência do abuso sexual desde a Antiguidade até os dias atuais e também a compreensão dos conceitos de “infância” e “criança”. Só assim foi possível entrar no tema central da pesquisa que é o aspecto cognitivo da criança abusada sexualmente e as consequências para o seu desempenho escolar. Sabemos que o abuso sexual, um fenômeno tão atual na nossa sociedade, sempre esteve presente na Historia da Humanidade, desde os tempos mais remotos e que continua a crescer nos dias atuais. Para este trabalho foi inestimável a contribuição da Psicologia para a compreensão do abuso sexual e de suas consequências para vida da criança, não só no seu aspecto cognitivo, mas também no psíquico. Para isso foi necessário a presença de autores como Sigmund Freud, Jean Piaget, Christiane Sanderson, entre outros no sentido de se entender com mais objetividade o fenômeno. 8 Capítulo 1 Abuso sexual infantil: aspecto histórico e geral A questão do abuso sexual em crianças e adolescentes vem se tornando um assunto premente nos dias atuais nos diversos meios de comunicação e na mídia em geral. Tamanha exposição vem acompanhada de uma superficialidade, sem um aprofundamento e uma compreensão do tema por parte desses órgãos de comunicação e informação, tão somente com o objetivo de causar impacto e sensacionalismo junto a opinião pública. Para compreendermos melhor o assunto, iremos num primeiro momento abordar um pouco da história da criança e o surgimento do conceito moderno de infância com o objetivo de esclarecer que o tema não é tão recente assim na história da humanidade como apregoam os tão “transparentes” meios de comunicação. Em seguida, será situado o tema do cuidado a criança, relacionando-o aos maus-tratos e em específico ao abuso sexual infantil, passando pelo contexto histórico ao longo dos tempos. Após essa trajetória histórica, iremos abordar os vários aspectos envolvidos no abuso sexual infantil nos dias atuais, ou seja, os aspectos físico, psicológico, comportamental e social. 1.1. Conceituação de infância Em relação ao conceito moderno de infância, um nome se faz presente para entendermos tal definição: o nome do historiador francês Philippe Áries e sua obra de referência no assunto: “História social da criança e da família”. Com esse trabalho Áries inaugura – por assim dizer – uma temática até então desconhecida nos estudos históricos e nos estudos educacionais: a história da infância. O pensador francês procurará com essa obra apreender a percepção de diferentes épocas, desde o final da Idade Média, as representações simbólicas da figura infantil. 10 Para Áries, a Idade Média não conhecera o sentimento de infância ao qual os tempos modernos consolidaram. Pode-se dizer apenas que a Idade Média identificava a criança por meio de uma nítida representação que estava ligada somente a ideia de linhagem. Reconhecia-se o valor da infância pela projeção que a figura da criança inspirava quanto ao seu destacado lugar na perpetuação do sangue da família. (BOTO, 2007, p.13). Philippe Áries (1981) revela que o sentimento moderno de infância, inicialmente surgiu sob a forma da “gracinha frágil”, carente de cuidados e da “paparicação”, portanto, atrelada a concepção da criança engraçadae graciosa. A criança, que até o fim da Idade Média, era considerada como um “adulto em miniatura” e assim era representada na iconografia da época. Essa mesma criança, foi ganhando aos poucos um status próprio, passando a despertar nas pessoas uma sensibilidade que até então não existia. Nasceu, a partir do século XVII, aquilo que caracterizamos, tal como Áries (1981) de sentimento moderno de infância. Para esse autor, “o sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança dos adultos, mesmo jovem...”. (Ferreira Jr. & Santos, 2007, p.162). Até então a imagem que se tinha da criança, fica clara nas concepções de dois pensadores: Santo Agostinho (Idade Média) e Descartes (início da Idade Moderna). Para Agostinho, a criança estava imersa no pecado (um ser impuro) por não dominar totalmente a fala e, portanto, desprovida da razão, exatamente aquilo que seria o reflexo da condição divina em nós, os adultos. Descartes viu a criança como alguém que vive uma época do predomínio da imaginação, dos sentidos e sensações sobre a razão, e mais, uma época da aceitação acrítica das tradições, postas pelos preceptores – tudo aquilo que macularia nosso pensamento na fase adulta. Para os dois, Agostinho e Descartes, quanto mais cedo saíssemos da condição de criança melhor para nós. É com as palavras de Neil Postman, um outro estudioso do assunto que fechamos o primeiro item desse capítulo: “a ideia de infância é uma das grandes invenções da Renascença e talvez a mais humanitária de todas”. (Postman, 1999, p.12) 11 . 1.2. Aspectos históricos e culturais envolvidos no cuidado a criança, nos maus-tratos e no abuso sexual infantil As dificuldades relacionadas a obtenção de uma definição precisa do fenômeno do abuso sexual infantil se deve em função da sua natureza social. Uma conceituação adequada deveria envolver contextos e significados culturais, sociais e históricos, diferentes em cada momento em ocorre. Lloyd de Mause (apud Sanderson, 2005) escreveu de forma extensa sobre a evidência histórica do abuso sexual infantil, o qual relaciona-se aos conceitos de criança e de infância. Os dados e fatos vêm demonstrando que as crenças e as atitudes relacionadas a crianças e aos filhos vêm se modificando consideravelmente ao longo do tempo. O próprio autor (De Mause apud Sanderson, 2005) mostra que os modelos de cuidados dos filhos desde a Antiguidade até o século IV, que ele chamou de modo de infanticídio, tinham como base a ideia de que os pequenos (crianças) existiam para satisfazer às necessidades e à comodidade dos adultos e que crianças defeituosas eram responsáveis por suas agruras. Portanto, era comum livrar-se dessas crianças indesejadas jogando-as em desfiladeiros ou sacrificando-as em rituais religiosos. Do século IV ao XIII, que De Mause chama de modo de abandono, as crianças eram encaradas como impuras, possuidoras do mal, por isso apanhavam e eram separadas dos pais, abandonadas e escambiadas para a escravidão. Já do século XIV ao século XVII, os pais eram mais ligados emocionalmente aos filhos, mas ainda os temiam como se estivessem diante de um mal absoluto. Durante esse modo de ambivalência chamado pelo autor, a tarefa dos pais era moldar a criança, reprimindo-a e agredindo-a. No século XVIII, que De Mause chama de modo de intrusão, as crianças eram vistas como menos ameaçadoras e menos malignas, e era responsabilidade dos pais conquistar o carinho e a atenção delas. Os pais procuravam vencer a vontade das crianças, controlando seu comportamento por meio de ameaças, culpas e castigos. Nesse tempo, dizia-se que “pela criança se podia orar, mas com ela não se devia brincar”. A isso se seguiu o modo de socialização (século XIX e metade do século XX) no qual os pais tentavam dirigir, treinar e ensinar boas maneiras, bons hábitos, corrigir o comportamento em público e fazer com que a criança respondesse às expectativas dos 12 outros. As crianças continuaram a ser maltratadas por causa do desrespeito, mas não eram encaradas como intrinsicamente más. De acordo com De Mause (apud Sanderson, 2005,p.3), essa forma de cuidado dos filhos ainda é a mais comum hoje em dia. Desde a metade do século XX, os paradigmas de cuidado dos filhos têm sido caracterizados por um modo de ajuda, no qual se considera que as crianças sabem mais do que precisam do qualquer outra pessoa. A tarefa conjunta dos pais é criar empatia com a criança e responder de maneira precisa às necessidades dela em cada fase do seu desenvolvimento. A punição e a disciplina não são mais destacados, uma vez que se acredita que se o potencial da criança for cumprido em cada estágio, esta crescerá para ser original, alegre, talento sadia, criativa, sem medo da autoridade. Essas mudanças nos modos de cuidar dos filhos provocaram um grande impacto tanto nas crianças como nos pais, e alguns deles inconscientemente reproduzem as próprias experiências e modelos de como foram criados. De Mause (apud Sanderson, 2005:3) defende que, se os pais foram abusados ou traumatizados na infância, eles tendem ou podem se sentir compelidos a repetir esse trauma quando se tornarem pais, visto que “trauma exige repetição”, confirmando o fenômeno que alguns autores chamam de intergeracionalidade (McCloskey & Bailey, 2000). Isso não implica, no entanto, que todos agirão dessa maneira, pois muitos pais que sofreram abuso sexual não se tornaram abusadores de seus filhos necessariamente. Quanto as tradições culturais, elas acabam exercendo um papel destacado nos modelos e níveis de cuidado dos filhos. Em algumas culturas e subculturas ainda persistem práticas que defendem surras e castigos severos como meios para garantir a obediência e a disciplina dos filhos quanto a aceitação das normas culturais e regras de comportamento social. Isso, no entanto, não é considerado abusivo para essas culturas. No entanto, em algumas tradições ocidentais, onde deixar bebês sozinhos na própria cama ou no próprio quarto durante a noite, chorando e sem alimentação nos horários estabelecidos e sem darem atenção que essas crianças necessitam, são consideradas ações abusivas por parte da sociedade. Retomando o abuso sexual dentro da História, consta que o imperador romano Tibério, segundo a obra do escritor Suetônio sobre a vida dos Césares, tinha propensões que incluíam crianças como objeto de prazer. Há relato de que ele se refugiou para a 13 ilha de Capri com várias delas, e que as obrigava a satisfazer sua libido através da prática de diversas formas de atos sexuais (Carter-Lourensz &Jonhson-Powell, 1999). Dando um salto de mais de mil anos na história, consta que a primeira monografia na área de saúde, descrevendo a síndrome da criança espancada, Étude médico-légale sur les services et mauvais traitements exercís sur des enfants, foi escrita pelo médico-legista francês Ambroise Tardieu em 1860 (Roche et al., 2005). O mesmo autor, já em 1857, em Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs, analisara 632 casos de abuso sexual de mulheres, em sua maioria meninas, e 302 contra meninos e adolescentes do sexo masculino, descrevendo os sinais físicos conforme a gravidade do caso. No Dictionnáire d’hygiène et de salubrité, de 1862, Tardieu descreveu quase todas as formas de maus-tratos, inclusive o abuso sexual. O que ele infelizmente não conseguiu foi convencer seus pares de que o abuso e os maus-tratos contra crianças e adolescentes aconteciam não só no ambiente de fábricas, minas e estabelecimentos escolares, mas também no seio das famílias e lares cristãos (Labbé, 2005). O próprio pai da psicanálise Sigmund Freud, influenciado pelo trabalho de Tardieu, publicouum texto em 1896, conhecido como “teoria da sedução”, no qual afirmava que a causa da histeria estava ligada aos abusos sexuais sofridos na infância. O trabalho foi recusado nos meios acadêmicos, fazendo com que o próprio Freud em 1897 o abandonasse – atribuindo a etiologia da histeria em decorrência não do abuso em si – mas das fantasias do suposto abusado como está exposto na sua teoria do complexo de Édipo (Aded, Dalcin, Moraes & Cavalcanti, 2006). 1.3. Abuso Sexual Infantil: aspectos físicos e psicológicos Há muitos aspectos envolvidos no abuso sexual de crianças e adolescentes. No presente trabalho iremos nos ater especificamente aos aspectos físicos e psicológicos do fenômeno e faremos uma introdução a seguir sobre algumas definições dessa forma de maus-tratos tão presente em nossos dias. 14 1.3.1. Conceituação de abuso sexual O abuso sexual infantil dentro da literatura especializada sobre o assunto é definido como uma situação em que a criança ou o adolescente é usado para a gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho. Com base em uma relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolecência – ABRAPIA, 1997; Azevedo & Guerra, 1989). O abuso pode, ainda, ser definido como todo jogo ou ato sexual, relação hetero ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado do que a criança ou adolescente, tendo por finalidade estimulá-los sexualmente ou utilizá-los para estimulação sexual, impostas à criança ou aos adolescentes por violência física, ameaça ou indução de sua vontade (Habigzang & Caminha, 2004). Sem esquecer que o termo abuso é aqui usado por etmologicamente significar, ao mesmo tempo, uso errado, uso excessivo e uso que extrapola os limites, transgredindo-os (Gabel, 1997). Para a pesquisadora britânica Christiane Sanderson (2005) o abuso sexual em crianças é definido como: O envolvimento de crianças e adolescentes dependentes em atividades sexuais com um adulto ou com qualquer pessoa mais velha ou maior em que haja uma diferença de idade, de tamanho ou de poder, em que a criança é usada como objeto sexual para a gratificação das necessidades ou dos desejos, para qual é incapaz de dar consentimento consciente por causa de desequilíbrio no poder, ou de qualquer incapacidade mental ou física pode ser caracterizado como uma relação abusiva. (SANDERSON, 2005, p.17). Basicamente, o abuso sexual divide-se em dois tipos: sem contato físico (verbal, telefonemas obscenos, exibicionismo e voyeurismo) e com contato físico (atos físico- genitais, sadismo, pornografia e prostituição infantil) (ABRAPIA, 1997; Habigzang & 15 Caminha, 2004). Em termos sexuais, o que define o ato abusivo, é o uso da criança ou adolescente como objeto dos desejos do agressor, e a relação de poder travada entre este e a vítima. Para tanto, as marcas físicas nem sempre são comprobatórias de que o abuso tenha realmente ocorrido, como veremos mais adiante nesse trabalho. Outro aspecto envolvido na definição do abuso sexual infantil refere-se ao consentimento da vítima. O consentimento, também, não deve ser o limite entre uma relação abusiva e uma relação não abusiva. Uma criança, ou mesmo um adolescente mais novo, geralmente não têm condições de estabelecer os limites em uma relação abusiva. Uma criança não tem a capacidade de discriminar e consentir sobre uma relação sexual, sendo que o adulto é quem deve ser responsável por estabelecer este limite (ABRAPIA, 2004). • Aspectos físicos envolvidos no abuso sexual infantil Uma das maiores dificuldades para se identificar o abuso sexual infantil é que ele frequentemente costuma não deixar marcas físicas nos corpos de suas vítimas. Isto ocorre principalmente para as crianças aliciadas por um longo período, não havendo, no entanto, nenhuma penetração, tanto na vagina como no ânus, não sendo empregado também o uso da força física por parte do agressor. Quando ocorre o uso da força física por parte do abusador, fica mais fácil a detecção do abuso sexual na criança por meio de exames físicos e médicos. Se a força e a violência física foram empregadas, a criança pode apresentar hematomas e, em alguns casos, sangramento, especialmente nas coxas e na região genital. Assim como lesões nos seios, nádegas, baixo ventre e coxas podem ocorrer. No caso de práticas como a masturbação ou o sexo oral, podem não ocorrer sinais físicos. Contudo, pode haver sintomas físicos indiretos relacionados ao abuso sexual, mesmo não havendo sinais diretos relacionados a ocorrência do abuso. Isto se deve em função de que muitos abusadores não deixam sinais visíveis de hematomas, sangramento ou mesmo traumas no corpo da criança ou do adolescente. Mas a criança pode desenvolver sequelas psicossomáticas do abuso sofrido, tais como doenças de pele 16 e do trato-gastrointestinal. Em crianças mais velhas, especialmente meninas (que são as maiores vítimas de abuso sexual) pode ocorrer uma gravidez ou mesmo o risco de infecção de DST, incluindo o HIV. Alguns abusadores podem usar os dedos ou mesmo a introdução de objetos estranhos nos orifícios genitais, do reto e da uretra em suas vítimas, causando danos tão sérios quanto a introdução do pênis. Alguns sinais físicos mais sutis podem se manifestar por meio de doenças psicossomáticas, especialmente dor genital e retal sem nenhuma explicação médica ou infecção presente. Algumas crianças têm dores de garganta recorrentes, sem infecção presente, o que pode indicar o abuso sexual por via oral. Problemas estomacais frequentes, sem explicação médica, podem representar danos em decorrência da ingestão de esperma ou medo de gravidez. • Aspectos psicológicos envolvidos no abuso sexual infantil O abuso sexual deixa a maioria das pessoas incomodadas. É triste pensar que adultos causem dor física e psicológica nas crianças para satisfazer seus próprios desejos, especialmente quando esses adultos são amigos e confiáveis membros da família. (WATSON, 1994, p.12). Iniciamos esse tópico com a citação acima para mostrarmos que a ocorrência dos abusos sexuais ainda é assunto difícil de ser tratado e reconhecido por grande parte da sociedade. Nesse sentido, é importante a compreensão de que abusadores sexuais são pessoas comuns, não tendo nada de monstros e que muitas vezes vivem no seio das famílias sendo pessoas humanas queridas das próprias crianças. Serão apresentados e discutidos o impacto e as consequências psicológicas do abuso sexual para as suas vítimas, especialmente crianças e adolescentes, sendo então apresentado o conceito de violência intrafamiliar. Mesmo que o abuso sexual, em muitos casos, não deixe marcas físicas visíveis em suas vítimas – tal prática pode deixar profundas impressões no “psiquismo” de suas vítimas, tanto a curto como a longo prazo – trazendo um grande sofrimento para elas. A criança ou o adolescente sexualmente abusado pode apresentar sinais ou sintomas que indicariam ou indicam que o abuso de fato se consumou. Tais sintomas 17 com já dissemos anteriormente, podem surgir a curto ou a longo prazo. As consequências em curto prazo podem ser: curiosidade sexual excessiva, auto-conceito negativo, tentativa e/ou comportamento suicida, raiva e/ou hostilidade, ansiedade, masturbação excessiva ou pública, sentimento de vergonha e/ou culpa, baixa auto- estima, medos, pesadelos e dificuldades para dormir, ansiedade relacionada a temas sexuais, tocar e/ou coçar seus genitais, excitabilidade aumentada, falta de competência social com pares,agressividade sexual, colocar objetos no ânus ou na vagina, fuga de casa, requisitar estimulação sexual de outras pessoas, brinquedos e/ou jogos sexualizados, conhecimento sexual inapropriado para a idade, evitação a determinadas pessoas e lugares, exposição frequente dos genitais, retraimento ou isolamento e transtornos alimentares (ABRAPIA; 1997, ABRAPIA, 2002; Kendall-Tacket, Williams & Finkelhor, 1993; Meichenbaum, 1994). Para Meichenbaum (1994) estes efeitos em curto prazo podem ocorrer até dois anos após o abuso ter ocorrido. As consequências em longo prazo podem ser: risco quatro vezes maior para qualquer tipo de distúrbio psiquiátrico (aproximadamente oito por cento dos casos psiquiátricos podem ser atribuídos a abuso sexual infantil), risco três vezes maior de alcoolismo, depressão, ansiedade, ajustamento social pobre e falta de confiança em outras pessoas, esquiva, transtornos dissociativos, transtorno do estresse pós-traumático, transtornos alimentares (falta de apetite, bulimia e anorexia nervosa), transtornos psicossomáticos (doenças de pele, gastrites, fadiga e cansaço) e alterações do sono (Habigzang &Caminha, 2004; Kendall-Tacket, Williams & Finkelhor, 1993; Meichenbaum, 1994). Segundo Brino & Williams (2009), os sinais e sintomas podem variar entre as crianças que sofreram ou sofrem o abuso sexual, sendo que há diversos fatores que podem determinar o impacto do abuso sexual. Alguns estudos têm mostrado que diversos aspectos e fatores interferem no desenvolvimento e na gravidade dos sintomas. Kendall-Tackett, Williams e Finkelhor (1993) apontam que quanto mais próximo for o relacionamento com o agressor (pai ou padrasto), e quanto mais velha for a criança (especialmente adolescentes), maior e mais devastador será o impacto do abuso e mais difícil será o seu tratamento. Por isso o ambiente familiar da vítima pode contribuir significativamente para o impacto do abuso 18 sexual. Os pais e o apoio por eles fornecido têm um grande papel no impacto do trauma da criança. A escola seria também outro local ideal de proteção, detecção e intervenção nos casos de abuso sexual infantil, uma vez que o agressor contra essa população frequentemente se encontra na família (Brino & Williams, 2003). Para os autores citados acima, algumas das consequências observadas tendem a se reduzir com o passar do tempo, tal como a ansiedade (por exemplo, problemas para dormir e medo do agressor) outras, porém tendem a se intensificar se nenhuma intervenção terapêutica for realizada, como as preocupações relacionadas à sexualidade (Rodrigues, Brino &Williams, 2006). Outro aspecto importante, e que determina as consequências do abuso sexual sofrido é a classificação do mesmo em intrafamiliar ou extrafamiliar, sendo que a definição de cada um está associada ao grau de parentesco do abusado com o agressor. No caso do abuso sexual extrafamiliar ele é praticado por pessoas que geralmente não moram na mesma casa da vítima (como os estranhos) e ele é menos comum que o intrafamiliar. Para vários autores o abuso sexual intrafamiliar é o mais comum, já que os atos abusivos ocorrem dentro de casa e são praticados por pessoas próximas da criança, facilitando o acesso do agressor à vítima. 19 Capítulo 2 O Desenvolvimento da Sexualidade Infantil Em prosseguimento ao estudo do abuso sexual e suas consequências para a vida acadêmica da criança, faz-se necessário inicialmente o entendimento de como se dá o desenvolvimento da sexualidade infantil. Sabe-se que a sexualidade infantil é a primeira etapa da sexualidade humana, além de, por meio de pesquisas, fica evidente que essa área é uma das mais negligenciadas dentro do campo de estudos do desenvolvimento infantil. A discussão a ser apresentada no presente capítulo será pautada principalmente nas contribuições do neurologista austríaco e criador da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939), bem como em outros autores, para uma melhor compreensão do assunto. A escolha de Freud para esse capítulo não foi aleatória, mas foi intencional, já que ele foi um dos autores que mais lançaram luz nesse terreno árido que é a sexualidade infantil e talvez um dos primeiros a se enveredar por essas instâncias do conhecimento humano. Outra referência para esse capítulo será a da pesquisadora britânica Christiane Sanderson com larga experiência no campo do abuso sexual infantil. 2.1. As contribuições de Sigmund Freud para a compreensão da sexualidade infantil Os estudos do neurologista vienense Sigmund Freud (1856-1939) foram considerados fundamentais para o estudo e para a compreensão da sexualidade humana de uma forma mais abrangente. Ele foi o responsável por uma verdadeira “revolução” nessa área e por criar uma nova técnica de análise psicológica denominada por ele de “psicanálise”. Isso foi possível por meio da “teoria do inconsciente” por ele formulada e 20 que proporcionou um entendimento da formação dos traumas e das neuroses e de como tratá-las de uma forma mais profunda. No que concerne à criança e a sua sexualidade, Freud descobriu através de seus estudos que o comportamento neurótico dos adultos está ligado a uma educação coercitiva e a uma “repressão sexual” que sofreram de forma sistemática na infância. Para Freud, os sintomas neuróticos são substitutivos da sexualidade reprimida na infância. Eles são o resultado das inibições impostas à energia sexual por ele chamada de “libido”. Quando reprimidos tais sintomas acabam se manifestando em forma de comportamentos doentios, caracterizando um quadro clássico de neurose. Em seus estudos clássicos, Freud considerou a sexualidade infantil desde o nascimento da criança (a primeira infância que chamou de “pré-história do indivíduo”). Ele foi o primeiro homem de ciência a considerar com naturalidade os atos e efeitos sexuais das crianças como a ereção, a masturbação e mesmo as simulações sexuais que os “pequenos” projetam através das brincadeiras como “papai e mamãe”, entre outras. Em uma conferência proferida em 1909 nos Estados Unidos e mais tarde reunida na obra clássica “Cinco Lições de Psicanálise” – Freud lançou as primeiras ideias sobre a sexualidade presente na criança, até então tida como um ser assexuado. Transcreveremos a seguir um excerto das palavras do próprio autor proferidas nessa conferência para elucidar melhor a nossa argumentação a respeito da sexualidade infantil. Foram palavras que causaram um furor desconcertante em meio a plateia naqueles dias e que reverberaram nos ouvidos mais conservadores e puritanos de então: Mas agora sim estou realmente certo do espanto dos ouvintes: “existe então – perguntarão – uma sexualidade infantil?” “A infância não é, ao contrário, o período da vida marcado pela ausência do instinto sexual?” Não meus senhores. Não é verdade certamente que o instinto sexual começa na puberdade, entre no indivíduo como, segundo o Evangelho, os demônios entraram nos porcos. A criança possui, desde o nascimento, o instinto (libido) e as atividades sexuais. Ela os traz consigo para o mundo, e deles provêm, através de uma evolução rica de etapas, a chamada sexualidade do adulto. Não são difíceis de observar as manifestações da atividade sexual infantil; ao contrário, deixa-las passar despercebidas ou incompreendidas é que é que preciso considerar- se grave. (FREUD apud NUNES & SILVA, 2000, p.46). Para melhor elucidar esse conceito de sexualidade infantil, será delineado a seguir as fases e as etapas que seriam na concepção de Freud as mais universalmente 21 vivenciadas pelos “pequenos” no seu desenvolvimento sexual. Na sua concepção – eles seriam os seguintes: • A fase oral (até 1 ano de idade) – Essa fase se caracteriza basicamente pela satisfação e peloprazer que provêm da boca. Nessa fase a criança, sente uma grande satisfação libidinosa em atividades como morder, sorrir, chorar e sugar, oriundas de sua atividade oral de experimentar o mundo. Freud afirma que estas atividades são primeiramente sensoriais e que a satisfação encontrada nesta ação cristaliza-se a partir da “libido”, entendida como energia psíquica que perpassa toda a educação social da criança. • A fase anal (1 a 3 anos) – Período de internalização e educação das normas de controle do intestino, em que a criança sente prazer em produzir as fezes e urina. A fase anal inicia-se ao final do primeiro ano de vida, sendo difícil vivencia-la antes, e consolida-se durante o segundo ano. A satisfação libidinosa não é, nesta fase, puramente neurológica ou sensorial, mas ultrapassa este plano das sensações, ainda que o contenha, para situar-se nas primeiras expressões de gratificação simbólico-social da criança em cumprir com as exigências paternas da higiene e controle metódico e adequado do esfíncter, através da padronização de suas necessidades fisiológicas. • A fase fálica (3 a 6 anos) – Coincide com a descoberta dos órgãos sexuais, manipulação e prazer neste exercício, das diferenças sexuais e do afloramento da questão edipiana. Freud aponta aqui a época das descobertas das diferenças genitais, na qual o menino seria diferentemente identificado com a sociedade patriarcal através da descoberta do “pênis” e sua simbologia e a menina experimentaria a “castração” simbólica, geradora de ansiedade, a base das sublimações, pela descoberta da “ausência do pênis”. É uma fase de intensos idílios e jogos sexuais. Durante sua vivência realiza- se o auge da resolução ou não da questão edipiana, tema central da psicanálise freudiana. 22 • O período de latência (6 a 9 anos) – O impulso sexual sofre diminuição, ocorrendo maior ênfase nos aspectos de sociabilidade, gregarismo e descobertas intelectuais. Freud aponta uma “distensão”, talvez causada pelo excesso de energia psíquica empreendida na questão do idílio e uma retomada dos jogos de regras, além da vibrante internalização de diferenças sexuais e papéis sociais. • A fase genital – Tem início por volta dos 10 anos, passando por transformações corporais, biológicas, afetivas e sociais que culminam na adolescência. É um período de maturidade psíquica e organização das estruturas da psique, anteriormente consolidadas em experiências de tensão entre o “princípio de prazer” e o princípio de realidade”. 2.1. As contribuições de Sanderson para o estudo da sexualidade da criança Sabe-se que para que as crianças fiquem protegidas contra o abuso sexual e a pedofilia é necessário que elas conheçam a sua própria sexualidade e possam entendê-la em uma linguagem adequada a sua idade e de acordo com o seu desenvolvimento psíquico e cognitivo. Essa afirmação tem como base que a sexualidade é ainda hoje, em pleno século XXI, um assunto difícil para muitos pais e adultos discutirem de forma aberta e sem impedimentos com os seus filhos. Isto porque o sexo continua sendo ainda um assunto proibido, carregado de crenças religiosas e visto ainda por muitas pessoas como algo sujo e pecaminoso. A verdade é que muitos adultos sentem um certo constrangimento em falar abertamente com as crianças sobre sexo e orientá-las melhor quanto a sua sexualidade de forma mais natural e saudável. Isso pode ser transmitido a criança de forma negativa e sutil, fazendo com que as relações de dominação e submissão permaneçam na esfera do sexo e da sexualidade humana, permeando os abusos e as violências que são cometidos nessa área. Acredita-se que pais e adultos representam um papel fundamental para o 23 desenvolvimento da compreensão do mundo pela criança e de sua sexualidade, assim como da sua proteção e segurança. Portanto se os pais e adultos em geral têm uma atitude negativa quanto ao sexo, isso pode ser transmitido de forma sutil a criança, fazendo dela uma pessoa frustrada quando adulta e não se realizando sexualmente. É possível afirmar que o desenvolvimento da sexualidade é uma parte muito importante do desenvolvimento geral da criança e o que fará dela um adulto saudável tanto psíquica quanto fisicamente. Além disso, é possível afirmar também que a manifestação da sexualidade na criança começa mesmo antes dela nascer e já nos primeiros anos de vida. Alguns pesquisadores como Master & Johnson, 1986 (apud Sanderson, 2005: 34) descobriram através do uso de ultra-som que os bebês masculinos ainda no útero são capazes de ter ereções reflexas, que também podem ser observadas em recém-nascidos. Isto porque, a sexualidade infantil é um assunto complexo, e assim como a sexualidade humana não é formada somente pelo aspecto biológico. Como diz SANDERSON (2005: 29) “a sexualidade é construída biológica e socialmente e reflete crenças culturais e religiosas”. Outro aspecto da sexualidade infantil, diz respeito à sensualidade da criança ou seja de como ela vive as experiências sensoriais que lhe causam prazer em seu corpo quando tocadas. Pode-se dizer que as crianças são sensuais desde o nascimento (Shorter Oxford English Dictionary-1993 apud SANDERSON, 2005:30). E que para elas a sexualidade é bem diferente do que é para o adulto, uma vez que não é direcionada especificamente ao prazer genital, mas sim aquele experimentado pelo corpo todo. Sendo este aspecto muito importante para a descoberta não só do corpo pela criança, mas também para a sua própria sexualidade (SANDERSON, 2005:30). Alguns pesquisadores como PIAGET, 1952 (apud SANDERSON, 2005:30-31) destacam o quanto essas experiências sensoriais são importantes para a aprendizagem, pois acreditam que o recém- nascido se vale delas para aprender sobre o mundo. Essas experiências são sua fonte primária de coleta de informações sobre ele mesmo e sobre sua condição no mundo naquele período. 24 2.2. Fases ou estágios do comportamento sexual infantil para Sanderson Para Sanderson (2005:35) os comportamentos sexuais da criança se dividem em fases ou estágios – descritos a seguir: • Comportamento sexual em crianças com idade pré-escolar(0-4anos) O desenvolvimento do comportamento sexual, como outros comportamentos na infância, assume a forma de brincadeira. A brincadeira é um processo espontâneo e despreocupado de reunião de informações que representam um continuum de curiosidade sobre o mundo, auto-descoberta e deleite no corpo e em explorar diferenças e semelhanças. É uma maneira de obter um significado e de construir sentido em relação ao mundo que a criança tem dele. Outra característica dessa fase é a masturbação, sendo, portanto, uma atividade normal com potencial erótico derivado da estimulação manual, fricção das coxas, esfrega dos genitais contra brinquedos, bonecas, mobília e adultos, podendo ser vista como um processo saudável de auto-descoberta. As crianças, também nessa fase, podem despir bonecos e bonecas e colocar os bonecos em cima das bonecas, esfrega-los um no outro e emitir sons que em essência refletem o que elas sabem sobre a sexualidade adulta, incluindo parecer “paquerador” e “sedutor”. Quando brinca de “médico”, a criança pode incluir suas próprias experiências de ter os ouvidos ou a garganta examinados. De vez em quando isso pode se estender a outras partes do corpo, tal como inserir dedos ou outros pequenos objetos dentro de outras aberturas, tais como a boca, as narinas, os ouvidos, o umbigo ou os genitais. Se esse comportamento causar dor e desconforto, a criança parará; mas se persistir com esses comportamentos, em especial em orifícios genitais, isso pode indicar que a criança foi abusada sexualmente. 25 • Comportamento sexual de crianças em idade escolar(5-12anos) Esse estágio é acompanhado por um aumento de perguntas: “De onde eu vim” e “Como são feitos os bebês”. As crianças parecem ficar tanto atraídas quanto enojadas pelo comportamento afetivo ou sexual público, podendo expressar um desejo de olhar para imagens do corpo humano e, ainda assim, ficarem constrangidas ou darem risadinhas ao ver beijos na televisão ou em filmes. É também a fase em que as crianças terão tido a sua primeira experiência sociossexual. O fim desse estágio é caracterizado por um campo mais vasto de interesses sexuais, pois, à medida que há mais contato com colegas, são mais frequentes as oportunidades para experimentação, ocorrendo, no entanto, períodos de inibição e desinibição. Existe uma enorme variação durante esse estágio, em decorrência dos níveis de supressão e inibição lá pelo final da infância. • Comportamento sexual em adolescentes (13-16anos) Ao chegar à puberdade, as crianças ficam cada vez mais reticentes quanto a atividades sexuais públicas e se tornam cientes de mais restrições sociais. Dessa forma, o comportamento sexual começa a se mesclar mais com o comportamento adulto, o que está ligado à puberdade, pois as mudanças hormonais que nela ocorrem ativam o desenvolvimento de características sexuais secundárias. Os hormônios influenciam não apenas as mudanças físicas, mas também sensações e reações emocionais. 26 Capítulo 3 O desenvolvimento cognitivo para Jean Piaget O objetivo deste capítulo é apresentar de forma sucinta as ideias de um dos maiores pensadores da Psicologia do século XX, o suíço Jean Piaget (1896-1980) acerca do desenvolvimento cognitivo do ser humano. As ideias desse pensador tiveram um grande impacto não só na psicologia, mas sobretudo no campo da Educação que revolucionaram, a forma de ensino dos professores e no da aprendizagem dos alunos. A partir de Piaget ficou mais claro para os educadores como a criança aprende e como efetuar essa aprendizagem de forma mais elaborada, dentro de cada estágio que o aluno se encontra. Além do aspecto cognitivo, um outro fator envolvido na aprendizagem da criança é o da “afetividade” que esta ligado ao da cognição, também abordado por esse cientista em sua obra. Tentaremos fazer uma relação do abuso sexual para o desenvolvimento normal da criança, abordando as suas consequências na área da cognição. 3.1. Afetividade e cognição na teoria de Piaget Apesar de não ter centrado seus estudos e pesquisas no desenvolvimento afetivo das crianças e sim da lógica do pensamento das mesmas, Piaget não desconsiderou essa dimensão afetiva para o estudo da inteligência e do desenvolvimento psicológico e colocou em suas obras que é incontestável que o afeto desempenha um papel fundamental no funcionamento da inteligência. Segundo Bringuier (1977), Piaget afirma que “para que a inteligência funcione, é preciso um motor que é o afetivo. Jamais se procurará resolver um problema se ele não lhe interessa. O interesse, a motivação afetiva é o móvel de tudo”. (BRINGUIER, 1977, p.71- 72). 27 De acordo com a teoria de Piaget, o desenvolvimento intelectual é considerado como tendo dois componentes: o cognitivo e o afetivo. Assim, o desenvolvimento afetivo se dá em paralelo ao cognitivo e tem uma profunda influência sobre o desenvolvimento intelectual. Segundo Piaget o aspecto afetivo por si só não pode modificar as estruturas cognitivas. No caso da criança que é abusada sexualmente há uma ruptura dessa afetividade em função da perda de confiança que se mantinha entre ela e o adulto que lhe perpetrou o abuso. Isso acaba de forma geral se estendendo a todos os adultos, incluindo os professores e isso acaba por acarretar um prejuízo a essa criança na sua aprendizagem escolar, já que o aspecto da afetividade acaba influenciando no seu desenvolvimento cognitivo. Para uma melhor compreensão da correspondência que existe entre esses dois aspectos o cognitivo e afetivo, será delineado no item a seguir os estágios de desenvolvimento cognitivo propostos por Piaget. 3.2. Estágios de desenvolvimento cognitivo e afetivo na perspectiva de Piaget No estudo do desenvolvimento humano, Piaget defendeu a ideia de que a criança passa por diferentes estágios ou fases de desenvolvimento, que correspondem ao surgimento de diferentes estruturas mentais e diferentes perspectivas das quais a criança vê o mundo, compreende-o e nele age. Para Piaget (1964, p.11), “o desenvolvimento, portanto é uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior”. É dentro dessa perspectiva de desenvolvimento progressivo do pensamento que Piaget irá desenvolver em sua teoria os quatro estágios para explicar como se dá a estruturação e a equilibração da inteligência da criança. Segundo ele esses estágios são os seguintes: 28 • Sensório-motor (0 – 2anos) Nesse estágio, a criança está concentrada principalmente nas experiências sensoriais e motoras, ocorrendo apenas o início do desenvolvimento da linguagem e do pensamento. A criança nesse estágio é dependente da representação física de coisas e confia na orientação dos adultos para identificar e nomear objetos. • Pré-operatório (2 – 7 anos) É nesse estágio que a criança começa a usar a linguagem para se comunicar, e, embora os processos de pensamento sejam cada dia mais sofisticados, ela não é ainda capaz de conceituar ou raciocinar com a lógica do adulto. É por isso que nesse estágio, a criança tende a generalizar tudo. Tipo assim, “Todos os homens são pais”, “Todos os animais de quatro patas e cauda são cachorros”. Outra marca desse estágio é o egocentrismo da criança. Ela só pode usar a própria experiência como um requisito básico para entender as suas próprias experiências vividas. Assim, uma interpretação comum da criança é “Se me sinto má, então devo ser má”. A criança também não tem um conceito real de tempo, que é uma medida abstrata, e se tornará difícil para ela recontar de maneira detalhada um acontecimento do seu passado. Nesse estágio se dá também a incorporação das regras nos jogos e brincadeiras pela criança. As regras são tão importantes para a criança, pois é o momento em que ela começa a abandonar seu “egocentrismo”, característico dessa fase do seu desenvolvimento para uma equilibração superior. • Operacional concreto (7 a 12 anos) Nesse estágio o pensamento da criança se torna mais semelhante ao do adulto, mas ela ainda não é capaz de um pensamento abstrato sofisticado ou de um uso consistente da lógica adulta. Como o uso da lógica adulta é inconsistente, a resolução de 29 problemas pode por vezes ser bastante aleatória. Assim, no plano cognitivo, esse estágioé marcado pela capacidade de realização das operações lógicas, mesmo que ainda um pouco inconsistentes. Operações lógicas são ações cognitivas internalizadas que permitem à criança chegar a conclusões que são lógicas, não mais dominadas pela percepção. As crianças passam a desenvolver raciocínios lógicos que podem ser aplicados a situações/problemas reais. Em sua obra “Epistemologia Genética” (1990), Piaget explica que, com a aquisição da reversibilidade das ações mentais, a criança torna-se capaz de coordenar seus pensamentos afetivos de um evento para o outro. Destacando o desenvolvimento afetivo, Piaget mostra que a reversibilidade de pensamento e a descentração são marcas desse estágio. Ainda no plano afetivo, Piaget destaca dois elementos fundamentais que ocorrem nesse estágio: a vontade e a autonomia. Enquanto a vontade assume papel regulador de afeto e, portanto, é o mecanismo pelo qual os valores são conservados, a autonomia em Piaget, significaser governado por si mesmo e não mais pelos outros. • Operacional formal (12 anos em diante) Este estágio final é caracterizado por um pensamento cada vez mais sistemático e organizado, incluindo a lógica formal e o pensamento abstrato. Mesmo assim Piaget não acreditava que todas as crianças alcançassem esse último estágio, essa ideia anos depois foi revista por ele e reformulada. Portanto o desenvolvimento das operações formais nesse estágio se edifica sobre o desenvolvimento das operações concretas, as incorpora e as amplia. O desenvolvimento afetivo não é independente do desenvolvimento cognitivo. Como afirma Wadsworth (1996): Assim como o desenvolvimento cognitivo alcança um limite máximo com a plena consolidação das operações formais, o mesmo ocorre com o desenvolvimento afetivo (...) O desenvolvimento dos sentimentos normativos, autonomia e vontade no estágio das operações concretas conduzem à construção dos sentimentos idealistas e ao posterior desenvolvimento da personalidade nas operações formais (...) Ela (a personalidade) é, em parte uma submissão do “eu” à disciplina (WADSWORTH, 1996, p.139). 30 E com isso fechamos esse capítulo, vimos que na perspectiva de Piaget o desenvolvimento cognitivo da criança se dá com o seu desenvolvimento afetivo e que ambos dependem de uma maturação biológica que ocorre mediante fases ou estágios de desenvolvimento das estruturais mentais do ser humano ao longo da vida. Sendo que, quando o ocorre o abuso sexual essa progressão é de certa forma é impedida de se realizar plenamente, trazendo sérios prejuízos na aprendizagem escolar dessas crianças vítimas de abuso sexual. 31 Capítulo 4 As consequências do abuso sexual para o desempenho acadêmico da criança O abuso sexual constitui uma das categorias de maus-tratos contra crianças e adolescentes, as quais incluem ainda o abuso físico, o abuso psicológico, o abandono e a negligência. E como tal, as consequências do mesmo podem ser sentidas, na vida do abusado, de forma duradoura ao longo da sua vida. Tais conseqüências podem envolver prejuízos não só para a sua vida psíquica, mas, sobretudo, no que se refere a sua aprendizagem escolar, que envolvem os processos cognitivos da criança. Um dos fatores que contribuem para esse prejuízo é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) apontado por muitos autores como o transtorno psicológico mais associado ao abuso sexual infantil. Os autores Garbarino, Kostelny e Dubrow (1991) definem trauma como um prejuízo, um estado psíquico ou comportamental desorientado, provocado por estresse mental ou emocional ou dano físico, relacionado a eventos que podem provocar medo agudo ou crônico. E por tais características, o abuso sexual infantil pode ser descrito como um evento traumático ou simplesmente trauma e, desta forma, estar associado ao desenvolvimento do TEPT. Em decorrência do desenvolvimento do TEPT ( sendo que nem todas as vítimas de abuso sexual irão desenvolvê-lo) a criança abusada sexualmente terá uma interferência no seu processo de maturação emocional- cognitiva e na sua organização cerebral, isto ocorrendo em função a uma hiperativação dos sistemas neurais de respostas ao estresse. Adicionalmente, poderão ocorrer com isso prejuízos neuropsicológicos em funções executivas do cérebro como aprendizagem verbal, a memória e a atenção - fundamentais para o desenvolvimento cognitivo pleno da criança. Os psicólogos usam o termo cognitivo para descrever processos como a percepção, a atenção e associação, sendo estes fatores que o cérebro usa para processar a informação recebida em conhecimento e aprendizagem. Para Sanderson (2005), um dos efeitos do abuso sexual é distorcer a percepção 32 de mundo da criança. Para essa autora britânica, um relacionamento aparentemente amoroso pode se tornar um pesadelo abusivo sexualmente, levando a uma confusão sobre quais os comportamentos adequados e inadequados entre adultos e crianças. É por isso que crianças sexualmente abusadas quase sempre se sentem culpadas e, de alguma forma, culpam-se pelo que está acontecendo com elas. Essa distorção da realidade que o abuso sexual causa sobre a criança se constitui como uma das consequências do processo de maturação ainda em desenvolvimento, facilitando o trabalho para o agressor, em detrimento da vulnerabilidade da vítima. Por isso, é importante saber em que estágio de desenvolvimento cognitivo a criança se encontra para que ela possa ter uma compreensão mais acurada da realidade e de mundo e desta forma seja melhor orientada pelos adultos no tocante a sua integridade física e emocional. Quanto mais nova for a criança, menos percepção ela terá da realidade e com isso ficará mais suscetível aos desejos do agressor. É por isso que tais crianças podem crer que sexo entre adultos e crianças seja normal, internalizando este padrão, uma vez que seu conhecimento do comportamento sexual adequado ainda é muito incipiente. Além disso, a internalização deste padrão pode levar a pior conseqüência da ocorrência de abuso sexual, a intergeracionalidade, ou seja, a criança tornar-se um agressor sexual quando adulta (McCloskey &Bailey, 2000). Outro efeito da distorção da realidade, como consequência da vida cognitiva da criança ainda em formação, é a fuga por parte da criança, da realidade do abuso sexual para um mundo interior de confusão e perturbação. Esse processo é necessário para que se proteja e, assim, conseguir sobreviver à experiência traumática do abuso. É por isso que ela pode se refugiar em um mundo de fantasia todo seu, onde ela terá o poder e o controle que lhe faltam na vida real. Na escola ficam mais evidentes as consequências do abuso sexual sobre a vida cognitiva da criança e uma das consequências mais visível é a falta de concentração e o desinteresse pela aprendizagem. Segundo Sanderson: 33 Uma criança que está sempre preocupada, com medo, terror, confusão ou que antecipa o próximo acesso sexual não vai conseguir prestar atenção no que se espera que aprenda na escola. Essas crianças se comportam como se estivessem em um mundo de sonho e parecem aéreas na classe, quase rudes em suas respostas. (SANDERSON, 2005, p.220). Para essas crianças, pode ser muito difícil aprender qualquer coisa na escola. A dificuldade em se concentrar faz com que elas não absorvam ou não armazenem informações, e nem aprendam ou tentem relembrá-las. É por isso que essas crianças que são abusadas sexualmente poderão ter um aproveitamento insuficiente em seu desempenho acadêmico na escola. Poderá ocorrer por parte dos professores um equívoco com relação a essas crianças, quando estes associam um baixo desempenho acadêmico a “problemas de aprendizagem” e com isso poderão abalar a confiança dessas crianças em obter um aproveitamento acadêmico mais satisfatório. Sabemos que todas as crianças têm capacidade para aprender e para desenvolver novas habilidades, entre elas a cognitiva. Mas há também aquelas crianças que mesmo tendo sofrido abuso sexual irão desenvolver-se brilhantemente na escola. Tendo até mesmo um desempenho acadêmico acima da média em relação as outras crianças. Isto poderá ocorrer em função dessas crianças encontrarem na escola um refúgio do abuso sexual que vivencia fora dali. É que a escola propicia a essas crianças abusadas sexualmente uma distração de sua confusão emocional e fazendo com elas concentrem toda a sua energia em aquisição de conhecimentos. Esse apoio que a escola proporciona a essas crianças as mantém a salvo de uma devastação emocional mais aguda e permite que elas construam habilidades acadêmicas que não demandam muita energia emocional. Isso ocorre muitas vezes, mesmoquando a escola desconhece a violência sexual que essas crianças vêm sofrendo ao longo da sua vida escolar. Em geral, essas crianças parecem extremamente brilhantes, inteligentes, sensatas para além de sua idade. Como escreve Sanderson (2005): 34 Elas podem se tornar leitores ávidos, sempre procurando saciar sua sede de conhecimento. Ler e aprender se tornam um meio de escapar de sua realidade aterrorizante e obter significado em um mundo muito desestruturado e confuso, em que coisas inexplicáveis acontecem. Crianças sexualmente abusadas, na maioria das vezes, desenvolvem habilidades cognitivas, como estratégias de planejamento, tomada de decisão e fuga, mais cedo do que as crianças não abusadas sexualmente. Isso acontece em parte porque elas precisam decifrar o incompreensível e também desenvolver estratégias para antecipar e evitar o abuso sexual. (Sanderson, 2005, p.221). As distorções cognitivas mais comuns que as crianças abusadas sexualmente apresentam, na opinião de Sanderson (2005,) são as seguintes: “tudo ou nada”, a supergeneralização, a rotulação inadequada, a filtragem mental, a desqualificação do positivo, as conclusões precipitadas, o aumento ou a minimização, a racionalização emocional, as declarações “deveria” e a personalização. No pensamento tudo ou nada, a criança tende a ver o mundo em uma categorização como “Não tenho absolutamente nenhum valor” ou “Todo mundo é brilhante”. Esse pensamento é característico de crianças mais novas que não são capazes de levar em conta as sutilezas entre duas ideias extremas. Enquanto as crianças mais velhas, em um estágio de desenvolvimento cognitivo posterior, são mais capazes de tolerar a ambivalência, a criança mais nova sexualmente abusada tende a se engajar em pensamentos extremos. Na supergeneralização, a criança generaliza sua própria experiência para outras situações. Exemplo disso pode incluir “Sou abusada por um homem, logo todos os homens são abusadores sexuais”. Essa tese pode contribuir para um medo generalizado de todos os homens, fazendo com que essas crianças acreditem que todos os homens querem ser sexuais com elas, o que pode ser visto em uma criança mais nova que só consegue se relacionar de modo sexual com adultos do mesmo sexo que o agressor. A rotulação inadequada é caracterizada pela criação de uma auto-imagem completamente negativa, pela criança, baseada em uma única falha com “Eu não disse não e não me defendi o suficiente do abuso sexual, por isso sou fraca e patética, o que mostra quanto sou inútil”. De modo semelhante, na filtragem mental, a criança concentra-se exclusivamente em todos os aspectos negativos do eu e, 35 consequentemente, filtra os aspectos positivos. Isso está relacionado com a desqualificação do positivo, em que a criança pensa ser impossível deixar entrar qualquer experiência positiva em outras áreas de sua vida ou desconsidera qualquer atributo ou habilidade positiva. Exemplo disso poderia ser o da criança que nega sua capacidade de ir bem na escola ao dizer para si mesma que “Foi pura sorte eu ter tirado um 10” ou “O professor deve ter sentido pena de mim e resolveu me dar uma nota alta”. Nas conclusões precipitadas ou inferências arbitrárias, a criança invariavelmente imagina uma conclusão negativa, que não está baseada em nenhuma evidência real. Exemplo comum disso é “Todo mundo que me conhece vai me culpar pelo abuso sexual; eles não vão mais querer ser meus colegas”. A minimização ou o aumento pode ser extremamente devastador da auto-estima da criança. Na minimização, a criança diminui os efeitos devastadores do abuso sexual como forma de se proteger do impacto real que ele tem. Essa minimização ou negação permite que a criança sobreviva à experiência, visto que o impacto total poderia ser devastador demais para a percepção de si mesma. No aumento, ela exagera os erros e deficiências para além da proporção, o que pode levar ao fatalismo do tipo “Fui tão devastada pelo o abuso sexual que nunca mais vou ser capaz de levar uma vida normal, vou sempre permanecer ferida”. Esse tipo de pensamento está relacionado com a racionalização emocional, que pode ser própria da idade e certamente reflete com precisão a experiência da criança. Um bom exemplo disso é quando os sentimentos de vergonha e de culpa sobre o abuso são equacionados com o sentimento de responsabilidade por ele. A criança racionaliza que “Eu fui responsável pelo abuso porque me sinto muito mal sobre não ter dito não”. Muitas crianças sexualmente abusadas têm expectativas irreais de si mesmas, acreditando que deveriam sempre se comportar de acordo com essas altas expectativas. O fracasso em realizar essas expectativas causa culpa, baixa auto-estima e raiva. Essas crianças são geralmente perfeccionistas ao tentar desfazer o quão mal se sentem a respeito de si mesmas. Finalmente, na personalização, ou atribuição inadequada, a criança assume a responsabilidade de algo em que não deveria haver nenhuma. 36 Exemplo comum disso é a criança que toma para si toda a responsabilidade pelo abuso sexual ao fazer declarações como “Devo ter sido responsável pelo abuso sexual porque gostei e porque meu corpo respondeu ao abuso”. Os agressores que colocam essa responsabilidade sobre a criança ajudam a reforçar a atribuição inadequada. É por isso que quando a criança confessa o abuso sexual, é muito importante que os adultos forneçam informações factuais e precisas para corrigir qualquer informação errada dada a criança pelo abusador. As crenças da criança e o significado que ela teve do abuso sexual precisam ser confrontados e substituídos por pensamentos mais precisos e compreensivos. Uma criança nunca é responsável pelo abuso sexual, não importa como ela se comporte; e o fato de o abuso ser algo ruim e ter acontecido com ela não faz dela uma criança má. Então para finalizar esse capítulo, vimos que os principais sintomas e consequências do abuso sexual para vida cognitiva da criança são baixa concentração e atenção, dissociação, transtornos de memória em decorrência do TEPT, negação, refúgio na fantasia, tanto um sub como um superaproveitamento na escola das habilidades cognitivas da criança. Em alguns casos pode ocorrer o chamado superaproveitamento do potencial cognitivo da criança na escola. Mas o que acaba ocorrendo com mais frequência é um sub-aproveitamento das funções cognitivas da criança vítima de abuso sexual em função de todo um emaranhado de emoções e sentimentos provocados pelo trauma. 37 Considerações Finais O presente trabalho visou como objetivo um estudo teórico do abuso sexual e suas consequências para o desenvolvimento cognitivo da criança nos primeiros anos de sua vida escolar. O trabalho teve início com um levantamento bibliográfico sobre o assunto através de artigos acadêmicos e livros de autores sobre o tema, publicados nos últimos dez anos, tanto na literatura brasileira, quanto na estrangeira. O trabalho foi realizado em forma de monografia, como requisito para a conclusão do curso de graduação em pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos. Neste sentido, buscou-se compreender o fenômeno do abuso sexual infantil, em relação as suas consequências para o desenvolvimento normal das crianças, para além do aspecto cognitivo, mas também de forma mais global. Para tanto, buscou-se uma compreensão ampliada dos conceitos de “criança” e “infância”, apresentadas no curso da história social da humanidade. Para tanto, foram utilizadas, contribuições de vários autores, tanto da Psicologia, como de outras áreas do conhecimento, a fim de nos debruçarmos de forma mais abrangente sobre esse fenômeno tão presente na sociedade atual. Além desses aspectos gerais abordadosno trabalho, ficou evidente que tal fenômeno traz inúmeras consequências para o desenvolvimento da criança que sofre tal abuso ao longo da sua vida. Especialmente para o seu desenvolvimento cognitivo, o abuso sexual se mostra devastador na vida dessa criança, causando-lhe prejuízos na sua aprendizagem escolar. Apesar de ocorrer em alguns casos um superaproveitamento do conteúdo escolar, o que acaba prevalecendo na vida dessas crianças é um subaproveitamento do conteúdo escolar, por conta de um déficit de aprendizagem muito acentuado em função do trauma vivido. Isto ocorre devido ao trauma deixar marcas não só no psiquismo dessas crianças, mas também causando disfunções de ordem neurológica e cognitiva em sua formação mental e em sua memória. Um outro aspecto muito atingido é o da “afetividade”, sendo esse muito importante para a aquisição de 38 novas aprendizagens e habilidades cognitivas no meio escolar. Tão importante que autores como Piaget e Wallon se debruçaram sobre ele de forma categórica e irredutível, quanto a essa questão da aprendizagem escolar, contribuindo de forma inestimável não só para a Psicologia, mas, sobretudo, para a área da educação. Para que ocorra a aprendizagem é preciso que o educando possa estabelecer vínculos afetivos com o educador, e para isso é preciso que haja confiança entre ambos. No caso da criança que sofreu abuso sexual esse vínculo tem a tendência a ser rompido, pois a criança acaba perdendo a confiança nos adultos de forma geral. Isto ocorre em detrimento de uma proteção que a criança espera do adulto, que em alguns casos não acaba ocorrendo. Já que essa mesma criança acaba sofrendo essa violência de um adulto muito próxima a ela, como o próprio pai ou padrasto, considerando que a maioria dos casos de abuso sexual ocorre dentro da família ou são praticados por pessoas conhecidas da criança. Onde estão em jogo não só laços sanguíneos, mas também laços afetivos entre ambos. Esse fator de proteção é muito importante para que a criança crie vínculos afetivos com os adultos. E a família se constitui para a criança como um fator de proteção ímpar dentro da sociedade, permitindo que ela (criança) se reconheça como indivíduo no mundo. Quando essa ordem é rompida por meio do abuso sexual dentro da própria família, isso acarreta para a criança uma perda significativa dos vínculos afetivos e um trauma de proporções imensas para a sua vida psíquica e mental. Tudo isso acaba culminando na total disfuncionalidade dessa própria família, gerando um fator conhecido como “transgeracionalidade”, ou seja, a criança que sofre abuso sexual pode vir a tornar-se um agressor sexual, dependendo do contexto em que se desenvolve e dos fatores de risco e de proteção presentes. No tocante a esse fator, autores como Costa, Gramkow, Santana e Ferro (apud Lima, 2009) concordam que situações de violência na família extensa criam um estado de vulnerabilidade para que a violência se perpetue e ocorra em um ciclo vicioso. Nesse sentido, Rangel (apud Lima, 2009) argumenta que a violência sexual, especificamente o abuso sexual intergeracional apresenta especificidades, nem sempre visíveis como no caso do “incesto”. Como afirma Imber-Black (1994 apud Braun 2002, p.35) que o abuso sexual incorpora as 39 forças mais perversas da natureza humana. O incesto se constitui, segundo essa autora, como a história de poder mal utilizado, exploração e traição da inocência da criança. Na conclusão dessa monografia ficou evidente que os diversos fatores envolvidos no abuso sexual trazem prejuízos significativos para o desenvolvimento cognitivo da criança na sua fase escolar. Mas que a família e a escola podem atuar como fatores de proteção às consequências negativas do abuso sexual e precisam estar unidas para que esse tipo de violência seja um dia expurgado da nossa sociedade e que as crianças possam encontrar proteção, compreensão e carinho no interior dessas instituições seculares. 40 Referências Bibliográficas ADED, Naura Liane de Oliveira., DALCIN, Bruno Luís Galluzzi da Silva., MORAES, Talvane Marins de., CAVALCANTI, Maria Tavares. Abuso Sexual em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de literatura. In: Rev. Psiq. Clin. 33 (4); 204-213, 2006. ARIES, P. (1981). História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora Afiliada. Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência – ABRAPIA, 1997. Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência. (2004). Abuso Sexual Infantil. http // www.abrapia.com.br. AZEVEDO, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). 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