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1 
 
 
 
 
 
 
BIBLIOTECA REFERENTE AO CURSO DE 
 
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
 
 
Selecionamos para você uma série de artigos, livros e endereços na Internet 
onde poderão ser realizadas consultas e encontradas as referências necessárias 
para a realização de seus trabalhos científicos, bem como, uma lista de sugestões 
de temas para futuras pesquisas na área. 
Primeiramente, relacionamos sites de primeira ordem, como: 
www.scielo.br 
www.anped.org.br 
www.dominiopublico.gov.br 
 
SUGESTÕES DE TEMAS 
 
1. A DEMANDA PELA ALFABETIZAÇÃO E OS RECURSOS 
DISPONÍVEIS PARA O SEU FINANCIAMENTO 
 
2. CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE: relatos de educadores de 
alfabetização e letramento 
 
3. A FORMAÇÃO DE EDUCADORES E A CONSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO DE 
JOVENS E ADULTOS, COMO CAMPO PEDAGÓGICO 
 
4. ALFABETIZAÇÃO: perspectivas e desafios 
 
5. PROMOÇÃO DA QUALIDADE E AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO: 
uma experiência 
 
6. FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: o curso de 
pedagogia em questão 
 
7. CONCEPÇÕES DA PROFESSORA ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO 
 
8. A ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 
 
9. O BRINCAR E A INTERVENÇÃO MEDIACIONAL NA 
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA O 
LETRAMENTO 
 
 2 
10. A TEORIA DOS SISTEMAS ECOLÓGICOS: um paradigma para letramento 
 
11. FUNDAMENTOS E METODOLOGIA DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
12. EDUCAÇÃO BÁSICA: crescendo e aparecendo 
 
13. AS TEORIAS PEDAGÓGICAS PARA A ALFABETIZAÇÃO 
 
14. ENCONTROS E ENCANTAMENTOS NA ALFABETIZAÇÃO E 
LETRAMENTO: partilhando experiências de estágios 
 
15. ATUAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO ITINERANTE FACE À 
INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM BAIXA VISÃO NA 
ALFABETIZAÇÃO 
 
16. A FONOAUDIOLOGIA NA RELAÇÃO ENTRE ESCOLAS REGULARES DE 
ENSINO FUNDAMENTAL E ESCOLAS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NO 
PROCESSO DE INCLUSÃO 
 
17. AS CRIANÇAS NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL: 
educação infantil e ensino fundamental 
 
18. O ESTADO DA ARTE DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL 
 
19. O LETRAMENTO: perspectivas e desafios 
 
20. A LEGISLAÇÃO ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
NOS ÚLTIMOS 50 ANOS 
 
21. A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A ALFABETIZAÇÃO 
E LETRAMENTO: um estudo de caso 
 
22. A PERCEPÇÃO DOS PROFESSORES ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO E 
LETRAMENTO E SUA IMPORTANCIA PARA A FORMAÇÃO DO 
EDUCANDO 
 
23. A UTILIZAÇÃO DO LÚDICO COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA PARA 
A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
24. ANÁLISE DOS FATORES QUE INTERFEREM NO SUCESSO 
DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
25. ANÁLISE DOS FATORES QUE CAUSAM OU INTERFEREM NO 
FRACASSO ESCOLAR NA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
 
26. PERSPECTIVAS PARA A ALFABETIZAÇÃO NO SÉCULO XXI 
 
27. O AFETO E OS RESULTADOS PEDAGÓGICOS NA ALFABETIZAÇÃO 
E LETRAMENTO 
 
28. A LDB E A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 3 
29. AS DIRETRIZES CURRICULARES PARA A ALFABETIZAÇÃO E 
LETRAMENTO 
 
30. AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS PARA O LETRAMENTO 
 
31. A CRIANÇA DE SEIS ANOS NO ENSINO FUNDAMENTAL 
 
 
32. A LINGUAGEM ESCRITA COMO UMA DAS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA 
CRIANÇA 
 
33. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ORAL E DA LINGUAGEM ESCRITA PELA 
CRIANÇA 
 
34. COMPETÊNCIAS ENVOLVIDAS NO APRENDIZADO DA LEITURA E DA 
ESCRITA PELA CRIANÇA 
 
35. A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ALFABÉTICO DE REPRESENTAÇÃO PELA 
CRIANÇA 
 
36. A LEITURA E A ESCRITA E SEUS DIFERENTES USOS E FUNÇÕES. 
 
 
37. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO E O PAPEL DO 
PROFESSOR 
 
38. A FUNÇÃO FORMADORA DA LEITURA LITERÁRIA 
 
39. MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO 
 
40. DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM NA LEITURA E ESCRITA 
 
41. AVALIAÇÃO EM LEITURA E ESCRITA 
 
42. O BILINGÜISMO E A ALFABETIZAÇÃO 
 
43. CONTEXTUALIDADE NA LEITURA 
 
44. FORMANDO FUTUROS LEITORES 
 
45. CONSTRUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA NAS SÉRIES INICIAIS DE 
ALFABETIZAÇÃO 
 
46. MOTIVAÇÃO PARA LEITURA 
47. DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM EM LEITURA E ESCRITA 
 
 4 
48. LER E ESCREVER: a importância dessas habilidades na etapa inicial de 
alfabetização 
 
 
ARTIGOS PARA LEITURA, ANÁLISE E UTILIZAÇÃO COMO 
 FONTE OU REFERÊNCIA 
 
Revista Brasileira de Educação 
Print version ISSN 1413-2478 
 
Rev. Bras. Educ. no.25 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2004 
 
doi: 10.1590/S1413-24782004000100002 
 
 
LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: AS MUITAS FACETAS* 
 
 
Magda Soares 
Universidade Federal de Minas Gerais, 
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita 
 
 
RESUMO 
 
 
Busca recuperar a evolução dos conceitos de letramento e alfabetização ao longo 
das duas últimas décadas, identificando, nesse período, um movimento de 
progressiva invenção da palavra e do conceito de letramento e concomitante 
desinvenção da alfabetização, entendida como a perda de especificidade desse 
processo, o que vem tendo como conseqüência uma nova modalidade de fracasso 
escolar: o precário nível de domínio da língua escrita em ciclos ou séries em que 
esse domínio já deveria ter sido alcançado. Discutem-se as causas dessa perda de 
especificidade do processo de alfabetização, e propõe-se uma distinção entre 
alfabetização e letramento que preserve a peculiaridade de cada um desses 
processos, ao mesmo tempo em que se afirma sua indissociabilidade e 
interdependência. Caracteriza-se o momento atual como sendo de tentativas de 
reinvenção da alfabetização, considerada necessária desde que entendida não 
como a volta a paradigmas do passado, mas como recuperação da especificidade 
da alfabetização em suas múltiplas facetas, e sua integração com o processo de 
letramento. 
 
Palavras-chave: alfabetização; letramento; métodos de alfabetização 
 
 
 5 
ABSTRACT 
 
 
Describes how the concepts of literacy and initial reading instruction developed in 
Brazilian education throughout the last two decades, characterising this development 
as a progressive invention of the word and concept of literacy and a concomitant dis-
invention of the concept of initial reading instruction, which lost its specific 
characteristics, bringing about a new type of school failure: the serious reading and 
writing difficulties among students at advanced levels of schooling. The text 
discusses the causes of this phenomenon and stresses the need to distinguish 
clearly between initial reading instruction and literacy, so that each process is seen 
as specific and, at the same time, as associated with and dependent on the other. 
The present situation is characterised as an attempt to re-invent initial reading 
instruction, meaning not a turning back to past methodologies, but as a recovery of 
the distinctive features of the initial reading instruction process in its multiple facets, 
guaranteeing at the same time its integration with the literacy process. 
 
Key-words: initial reading instruction; literacy; initial reading instruction methods 
 
Introdução 
 
 
O título e tema deste texto pretendem ser um contraponto ao título e tema de outro 
texto de minha autoria, publicado há já quase vinte anos: "As muitas facetas da 
alfabetização" (Cadernos de Pesquisa, nº52, de fevereiro de 1985). Uso a palavra 
contraponto para indicar que o que aqui intento fazer é um entrelaçamento dos dois 
textos, não uma reformulação, muito menos um confronto. É que, relendo, hoje, "As 
muitas facetas da alfabetização", encontro ali já anunciado, sem que ainda fosse 
nomeado, o conceito de letramento, que se firmaria posteriormente, e, de forma 
implícita, as relações entre esse conceito e o conceito de alfabetização; segundo, 
porque, passados quase vinte anos, as questões ali propostas à reflexão parecem 
continuaratuais, e grande parte dos problemas ali apontados parece ainda não 
resolvida. O contraponto que pretendo desenvolver é a retomada de conceitos e 
problemas, buscando identificar sua evolução ao longo das duas últimas décadas, 
em um movimento que vou propor como sendo de progressiva invenção da palavra 
e do conceito de letramento, e concomitante desinvenção da alfabetização, 
resultando na polêmica conjuntura atual que me atrevo a denominar de reinvenção 
da alfabetização. 
 6 
Para prevenir sobressaltos, adianto, já neste momento inicial de minhas reflexões, 
que meu objetivo será defender, numa proposta apenas aparentemente 
contraditória, a especificidade e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois 
processos alfabetização e letramento, tanto na perspectiva teórica quanto na 
perspectiva da prática pedagógica. 
 
A invenção do letramento1 
 
É curioso que tenha ocorrido em um mesmo momento histórico, em sociedades 
distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e culturalmente, a 
necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais 
avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da 
aprendizagem do sistema de escrita. Assim, é em meados dos anos de 1980 que se 
dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, 
da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado 
alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a 
palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também 
nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua 
inglesa se conhece como reading instruction, beginning literacy tornou-se foco de 
atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem, o que se evidencia 
no grande número de artigos e livros voltados para o tema, publicados, a partir 
desse momento, nesses países, e se operacionalizou nos vários programas, neles 
desenvolvidos, de avaliação do nível de competências de leitura e de escrita da 
população; segundo Barton (1994, p. 6), foi nos anos de 1980 que the new field of 
literacy studies has come into existence. É ainda significativo que date 
aproximadamente da mesma época (final dos anos de 1970) a proposta da 
Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) 
de ampliação do conceito de literate para functionally literate, e, portanto, a sugestão 
de que as avaliações internacionais sobre domínio de competências de leitura e de 
escrita fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever. 
 
Entretanto, se há coincidência quanto ao momento histórico em que as práticas 
sociais de leitura e de escrita emergem como questão fundamental em sociedades 
distanciadas geograficamente, socioeconomicamente e culturalmente, o contexto e 
as causas dessa emersão são essencialmente diferentes em países em 
 7 
desenvolvimento, como o Brasil, e em países desenvolvidos, como a França, os 
Estados Unidos, a Inglaterra. Sem pretender uma discussão mais extensa dessas 
diferenças, o que ultrapassaria os objetivos e possibilidades deste texto, destaco a 
diferença fundamental, que está no grau de ênfase posta nas relações entre as 
práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de escrita, ou 
seja, entre o conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de 
alfabetização (alphabétisation, reading instruction, beginning literacy). 
 
Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as práticas sociais de leitura e de 
escrita assumem a natureza de problema relevante no contexto da constatação de 
que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de 
escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais 
e profissionais que envolvem a língua escrita. Assim, na França e nos Estados 
Unidos, para limitar a análise a esses dois países, os problemas de illettrisme, de 
literacy/illiteracy surgem de forma independente da questão da aprendizagem básica 
da escrita. 
 
Na França, como esclarece Lahire, em L'invention de l'illettrisme (1999), e Chartier e 
Hébrard, em capítulo incluído na segunda edição de Discours sur la lecture (2000), o 
illettrisme a palavra e o problema que ela nomeia surge para caracterizar jovens e 
adultos do chamado Quarto Mundo2 que revelam precário domínio das 
competências de leitura e de escrita, dificultando sua inserção no mundo social e no 
mundo do trabalho. Partindo do fato de que toda a população independentemente de 
suas condições socioeconômicas domina o sistema de escrita, porque passou pela 
escolarização básica, as discussões sobre o illettrisme se fazem sem relação com a 
questão do apprendre à lire et à écrire, expressão com que se denomina a 
alfabetização escolar, e com a questão da alphabétisation, este termo em geral 
reservado às ações desenvolvidas junto aos trabalhadores imigrantes, analfabetos 
na língua francesa (Lahire, 1999, p.61). 
 
O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde o foco em problemas de literacy/illiteracy 
emerge, no início dos anos de 1980, como resultado da constatação, feita sobretudo 
em avaliações realizadas no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980 pela 
National Assessment of Educational Progress (NAEP), de que jovens graduados na 
high school não dominavam as habilidades de leitura demandadas em práticas 
sociais e profissionais que envolvem a escrita (Kirsch & Jungeblut, 1986, p. 2). 
 8 
Também neste caso as discussões, relatórios, publicações não apontam relações 
entre as dificuldades no uso da língua escrita e a aprendizagem inicial do sistema de 
escrita a reading instruction, ou a emergent literacy, a beginning literacy; assim, 
Kirsch e Jungeblut, como conclusão da pesquisa sobre habilidades de leitura da 
população jovem norte-americana, afirmam que o problema não estava na illiteracy 
(no não saber ler e escrever), mas na literacy (no não-domínio de competências de 
uso da leitura e da escrita). 
 
Essa autonomização, tanto na França quanto nos Estados Unidos, das questões de 
letramento em relação às questões de alfabetização não significa que estas últimas 
não venham sendo, elas também, objeto de discussões, avaliações, críticas. Como 
se verá adiante, neste texto, tem sido também intensa, nos últimos anos, nesses 
países, a discussão sobre problemas da aprendizagem inicial da escrita; o que se 
quer aqui destacar é que os dois problemas o domínio precário de competências de 
leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas e as 
dificuldades no processo de aprendizagem do sistema de escrita, ou da tecnologia 
da escrita são tratados de forma independente, o que revela o reconhecimento de 
suas especificidades e uma relação de não-causalidade entre eles. 
 
No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa forma, em direção contrária: o 
despertar para a importância e necessidade de habilidades para o uso competente 
da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da escrita, 
desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito 
alfabetização. Assim, ao contrário do que ocorre em países do Primeiro Mundo, 
como exemplificado com França e Estados Unidos, em que a aprendizagem inicial 
da leitura e da escrita a alfabetização, para usar a palavra brasileira mantém sua 
especificidade no contexto das discussões sobre problemas de domínio de 
habilidades de uso da leitura e da escrita problemas de letramento , no Brasil os 
conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, freqüentemente 
se confundem. Esse enraizamento doconceito de letramento no conceito de 
alfabetização pode ser detectado tomando-se para análise fontes como os censos 
demográficos, a mídia, a produção acadêmica. 
 
Assim, as alterações no conceito de alfabetização nos censos demográficos, ao 
longo das décadas, permitem identificar uma progressiva extensão desse conceito. 
 9 
A partir do conceito de alfabetizado, que vigorou até o Censo de 1940, como aquele 
que declarasse saber ler e escrever, o que era interpretado como capacidade de 
escrever o próprio nome; passando pelo conceito de alfabetizado como aquele 
capaz de ler e escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só saber ler e 
escrever, mas de já exercer uma prática de leitura e escrita, ainda que bastante 
trivial, adotado a partir do Censo de 1950; até o momento atual, em que os 
resultados do Censo têm sido freqüentemente apresentados, sobretudo nos casos 
das Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domicílios (PNAD), pelo critério de 
anos de escolarização, em função dos quais se caracteriza o nível de alfabetização 
funcional da população, ficando implícito nesse critério que, após alguns anos de 
aprendizagem escolar, o indivíduo terá não só aprendido a ler e escrever, mas 
também a fazer uso da leitura e da escrita, verifica-se uma progressiva, embora 
cautelosa, extensão do conceito de alfabetização em direção ao conceito de 
letramento: do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura e 
da escrita. 
 
O mesmo se verifica quando se observa o tratamento que a mídia dá, 
particularmente ao longo da última década (anos de 1990), às informações e notícias 
sobre alfabetização no Brasil.3 Já em 1991, a Folha de S. Paulo, ao divulgar 
resultados do Censo então realizado, após declarar que, pelos dados, apenas 18% 
eram analfabetos, acrescenta: "mas o número de desqualificados é muito maior". 
 
Desqualificados, segundo a matéria, eram aqueles que, embora declarando saber ler 
e escrever um bilhete simples, tinham menos de quatro anos de escolarização, 
sendo, assim, analfabetos funcionais. Durante toda a última década e até hoje a 
mídia vem usando, em matérias sobre competências de leitura e escrita da 
população brasileira, termos como semi-analfabetos, iletrados, analfabetos 
funcionais, ao mesmo tempo que vem sistematicamente criticando as informações 
sobre índices de alfabetização e analfabetismo que tomam como base apenas o 
critério censitário de saber ou não saber "ler e escrever um bilhete simples". A mídia 
vem, pois, assumindo e divulgando um conceito de alfabetização que o aproxima do 
conceito de letramento. 
 
Interessante é observar que também na produção acadêmica brasileira alfabetização 
e letramento estão quase sempre associados. Uma das primeiras obras a registrar o 
 10 
termo letramento, Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, de Leda Verdiani 
Tfouni (1988), aproxima alfabetização e letramento, é verdade que para diferenciar 
os dois processos, tema a que retorna em livro posterior, em que a aproximação 
entre os dois conceitos aparece já desde o título: Letramento e alfabetização (1995). 
Essa mesma aproximação entre os dois conceitos aparece na coletânea organizada 
por Roxane Rojo, Alfabetização e letramento (1998), em que está também presente 
a proposta de uma diferenciação entre os dois fenômenos, embora não inteiramente 
coincidente com a proposta por Leda Verdiani Tfouni. Ângela Kleiman, na coletânea 
que organiza Os significados do letramento (1995) -, também discute o conceito de 
letramento tomando como contraponto o conceito de alfabetização, e os dois 
conceitos se alternam ao longo dos textos da coletânea. No livro Letramento: um 
tema em três gêneros (1998), procuro conceituar, confrontando-os, os dois 
processos alfabetização e letramento. São apenas exemplos que privilegiam as 
obras mais conhecidas sobre o tema, da tendência predominante na literatura 
especializada tanto na área das ciências lingüísticas quanto na área da educação: a 
aproximação, ainda que para propor diferenças, entre letramento e alfabetização, o 
que tem levado à concepção equivocada de que os dois fenômenos se confundem, 
e até se fundem. Embora a relação entre alfabetização e letramento seja inegável, 
além de necessária e até mesmo imperiosa, ela, ainda que focalize diferenças, 
acaba por diluir a especificidade de cada um dos dois fenômenos, como será 
discutido posteriormente neste texto. 
 
Em síntese, e para encerrar este tópico, conclui-se que a invenção do 
letramento,entre nós, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a 
invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto 
nesses outros países a discussão do letramento illettrisme, literacy e illiteracy se fez 
e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização apprendre 
à lire et à écrire, reading instruction, emergent literacy, beginning literacy , no Brasil a 
discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, o 
que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, 
a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do 
conceito de letramento, por razões que tentarei identificar mais adiante, o que tem 
conduzido a um certo apagamento da alfabetização que, talvez com algum exagero, 
denomino desinvenção da alfabetização, de que trato em seguida. 
 
 11 
A desinvenção da alfabetização 
 
 
O neologismo desinvenção pretende nomear a progressiva perda de especificidade 
do processo de alfabetização que parece vir ocorrendo na escola brasileira ao longo 
das duas últimas décadas.4 Certamente essa perda de especificidade da 
alfabetização é fator explicativo evidentemente, não o único, mas talvez um dos mais 
relevantes do atual fracasso na aprendizagem e, portanto, também no ensino da 
língua escrita nas escolas brasileiras, fracasso hoje tão reiterado e amplamente 
denunciado. É verdade que não se denuncia um fato novo: fracasso em 
alfabetização nas escolas brasileiras vem ocorrendo insistentemente há muitas 
décadas; hoje, porém, esse fracasso configura-se de forma inusitada. Anteriormente 
ele se revelava em avaliações internas à escola, sempre concentrado na etapa 
inicial do ensino fundamental, traduzindo-se em altos índices de reprovação, 
repetência, evasão; hoje, o fracasso revela-se em avaliações externas à escola 
avaliações estaduais (como o SARESP, o SIMAVE), nacionais (como o SAEB, o 
ENEM) e até internacionais (como o PISA)-,5 espraia-se ao longo de todo o ensino 
fundamental, chegando mesmo ao ensino médio, e se traduz em altos índices de 
precário ou nulo desempenho em provas de leitura, denunciando grandes 
contingentes de alunos não alfabetizados ou semi-alfabetizados depois de quatro, 
seis, oito anos de escolarização. A hipótese aqui levantada é que a perda 
deespecificidade do processo de alfabetização, nas duas últimas décadas, é um, 
entre os muitos e variados fatores, que pode explicar esta atual "modalidade" de 
fracasso escolar em alfabetização. 
 
Talvez se possa afirmar que na "modalidade" anterior de fracasso escolar aquela 
que se manifestava em altos índices de reprovação e repetência na etapa inicial do 
ensino fundamental6 a alfabetização caracterizava-se, ao contrário, por sua 
excessiva especificidade, entendendo-se por "excessiva especificidade" a 
autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em 
relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita, 
ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da 
língua escrita. O que parece ter acontecido, ao longo das duas últimas décadas,é 
que, em lugar de se fugir a essa "excessiva especificidade", apagou-se a necessária 
especificidade do processo de alfabetização. 
 
Várias causas podem ser apontadas para essa perda de especificidade do processo 
 12 
de alfabetização; limitando-me às causas de natureza pedagógica, cito, entre outras, 
a reorganização do tempo escolar com a implantação do sistema de ciclos, que, ao 
lado dos aspectos positivos que sem dúvida tem, pode trazer e tem trazido uma 
diluição ou uma preterição de metas e objetivos a serem atingidos gradativamente 
ao longo do processo de escolarização; o princípio da progressão continuada, que, 
mal concebido e mal aplicado, pode resultar em descompromisso com o 
desenvolvimento gradual e sistemático de habilidades, competências, 
conhecimentos. Não me detenho, porém, no aprofundamento das relações entre 
esses aspectos sistema de ciclos, princípio da progressão continuada e a perda de 
especificidade da alfabetização, porque me parece que a causa maior dessa perda 
de especificidade deve ser buscada em fenômeno mais complexo: a mudança 
conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a 
partir de meados dos anos de 1980. 
 
Segundo Gaffney e Anderson (2000, p. 57), as últimas três décadas assistiram a 
mudanças de paradigmas teóricos no campo da alfabetização que podem ser assim 
resumidas: um paradigma behaviorista, dominante nos anos de 1960 e 1970, é 
substituído, nos anos de 1980, por um paradigma cognitivista, que avança, nos anos 
de 1990, para um paradigma sociocultural. Segundo os mesmos autores, se a 
transição da teoria behaviorista para a teoria cognitivista representou realmente uma 
radical mudança de paradigma, a transição da teoria cognitivista para a perspectiva 
sociocultural pode ser interpretada antes como um aprimoramento do paradigma 
cognitivista que propriamente como uma mudança paradigmática. 
 
Embora Gaffney e Anderson situem essas mudanças paradigmáticas no contexto 
norte-americano, pode-se reconhecer as mesmas mudanças no Brasil, 
aproximadamente no mesmo período;7 em relação ao período que aqui interessa, 
pode-se afirmar que, tal como ocorreu nos Estados Unidos, também no Brasil os 
anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio hegemônico, na área da alfabetização, 
do paradigma cognitivista, que aqui se difundiu sob a discutível denominação de 
construtivismo (posteriormente, socioconstrutivismo). Ao contrário, porém, dos 
Estados Unidos, em que esse paradigma foi proposto para todo e qualquer 
conhecimento escolar, tomando como eixo uma nova concepção das relações entre 
aprendizagem e linguagem, traduzida no movimento que recebeu a denominação de 
whole language,8 entre nós ele chegou pela via da alfabetização, através das 
pesquisas e estudos sobre a psicogênese da língua escrita, divulgada pela obra e 
 13 
pela atuação formativa de Emilia Ferreiro.9 
 
Não é necessário retomar aqui a mudança que representou, para a área da 
alfabetização, a perspectiva psicogenética: alterou profundamente a concepção do 
processo de construção da representação da língua escrita, pela criança, que deixa 
de ser considerada como dependente de estímulos externos para aprender o 
sistema de escrita concepção presente nos métodos de alfabetização até então em 
uso, hoje designados "tradicionais" 10 e passa a sujeito ativo capaz de 
progressivamente (re)construir esse sistema de representação, interagindo com a 
língua escrita em seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com material "para 
ler", não com material artificialmente produzido para "aprender a ler"; os chamados 
pré-requisitos para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam a criança 
"pronta" ou "madura" para ser alfabetizada pressuposto dos métodos "tradicionais" 
de alfabetização são negados por uma visão interacionista, que rejeita uma ordem 
hierárquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se dá por uma 
progressiva construção do conhecimento, na relação da criança com o objeto "língua 
escrita"; as dificuldades da criança, no processo de construção do sistema de 
representação que é a língua escrita consideradas "deficiências" ou "disfunções", na 
perspectiva dos métodos "tradicionais" passam a ser vistas como "erros 
construtivos", resultado de constantes reestruturações. 
 
Sem negar a incontestável contribuição que essa mudança paradigmática, na área 
da alfabetização, trouxe para a compreensão da trajetória da criança em direção à 
descoberta do sistema alfabético, é preciso, entretanto, reconhecer que ela conduziu 
a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar a desinvenção da 
alfabetização, de que se fala neste tópico podem explicar a perda de especificidade 
do processo de alfabetização, proposta anteriormente. 
 
Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de 
escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto de conhecimento 
em construção, que é, fundamentalmente, um objeto lingüístico constituído, quer se 
considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais 
e freqüentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras, 
privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se sua faceta 
lingüística fonética e fonológica. 
 
 14 
Em segundo lugar, derivou-se da concepção construtivista da alfabetização uma 
falsa inferência, a de que seria incompatível com o paradigma conceitual 
psicogenético a proposta de métodos de alfabetização. De certa forma, o fato de que 
o problema da aprendizagem da leitura e da escrita tenha sido considerado, no 
quadro dos paradigmas conceituais "tradicionais", como um problema sobretudo 
metodológico contaminou o conceito de método de alfabetização, atribuindo-lhe uma 
conotação negativa: é que, quando se fala em "método" de alfabetização, identifica-
se, imediatamente, "método" com os tipos "tradicionais" de métodos sintéticos e 
analíticos (fônico, silábico, global etc.), como se esses tipos esgotassem todas as 
alternativas metodológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. Talvez se 
possa dizer que, para a prática da alfabetização, tinha-se, anteriormente, um 
método, e nenhuma teoria; com a mudança de concepção sobre o processo de 
aprendizagem da língua escrita, passou-se a ter uma teoria, e nenhum método. 
 
Acrescente-se a esses equívocos e falsas inferências o também falso pressuposto, 
decorrente deles e delas, de que apenas através do convívio intenso com o material 
escrito que circula nas práticas sociais, ou seja, do convívio com a cultura escrita, a 
criança se alfabetiza. A alfabetização, como processo de aquisição do sistema 
convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma 
obscurecida pelo letramento, porque este acabou por freqüentemente prevalecer 
sobre aquela, que, como conseqüência, perde sua especificidade. 
 
É preciso, a esta altura, deixar claro que defender a especificidade do processo de 
alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento, como se 
defenderá adiante. Entretanto, o que lamentavelmente parece estar ocorrendo 
atualmente é que a percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão 
sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece 
estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo autônomo, 
independente do letramento e anterior a ele. É o que estou considerando ser uma 
reinvenção da alfabetização que, numa afirmação apenas aparentemente 
contraditória, é, ao mesmo tempo, perigosa se representar um retrocesso a 
paradigmas anteriores, com perda dos avanços e conquistas feitosnas últimas 
décadas e necessária se representar a recuperação de uma faceta fundamental do 
processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita. É do que se tratará no 
próximo tópico. 
 15 
A reinvenção da alfabetização 
 
 
Temos usado com freqüência na área da educação a metáfora da "curvatura da 
vara", a que os americanos preferem a metáfora do "pêndulo", ambas representando 
a tendência ao raciocínio alternativo: ou isto ou aquilo; se isto, então não aquilo. 
 
A autonomização do processo de alfabetização, em relação ao processo de 
letramento, para a qual se está tendendo atualmente, pode ser interpretada como a 
curvatura da vara ou o movimento do pêndulo para o "outro" lado. O "lado" contra o 
qual essa tendência se levanta, aquele que, de certa forma, dominou o ensino da 
língua escrita não só no Brasil, mas também em vários outros países, nas últimas 
décadas, baseia-se numa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, 
de que decorre o princípio de que aprender a ler e a escrever é aprender a construir 
sentido para e por meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos 
prévios; no quadro dessa concepção, o sistema grafofônico (as relações fonema-
grafema) não é objeto de ensino direto e explícito, pois sua aprendizagem decorreria 
de forma natural da interação com a língua escrita. É essa concepção e esse 
princípio que fundamentam a whole language, nos Estados Unidos, e o chamado 
construtivismo, no Brasil. 
 
Entretanto, resultados de avaliações de níveis de alfabetização da população em 
processo de escolarização, que se multiplicaram nas duas últimas décadas, no 
Brasil e em muitos outros países, têm levado a críticas a essa concepção holística 
da aprendizagem da língua escrita, incidindo essa crítica particularmente na 
ausência, no quadro dessa concepção, de instrução direta e específica para a 
aprendizagem do código alfabético e ortográfico. Em países que, tradicionalmente, 
têm inspirado a educação brasileira França e Estados Unidos , essa crítica e 
recomendações dela decorrentes foram recentemente expressas em documentos 
oficiais e programas de ensino, de que convém dar rápida notícia, uma vez que o 
movimento que começa a esboçar-se entre nós nessa mesma direção tem buscado 
neles (embora não só neles) fundamento e justificação. 
 
Na França, a constatação de dificuldades de leitura e de escrita na população em 
fase de escolarização levou o Observatório Nacional da Leitura, órgão consultivo do 
Ministério da Educação Nacional, da Pesquisa e da Tecnologia, a divulgar, no final 
dos anos de 1990, o documento Apprendre à lire au cycle des apprentissages 
 16 
fondamentaux (Observatoire National de la Lecture, 1998), em que, com apoio em 
dados de pesquisas sobre a aprendizagem da leitura, afirma-se que o conhecimento 
do código grafofônico e o domínio dos processos de codificação e decodificação 
constituem etapa fundamental e indispensável para o acesso à língua escrita, 
"condition nécessaire, bien que non suffisante, de la comprehénsion des textes" 
(grifo do original), etapa que não pode ser vencida 
 
[...] sans une instruction explicite, visant d'une part la prise de conscience du fait que 
la parole peut être décrite comme une séquence linéaire de phonèmes, d'autre part, 
que les caractères (ou groupes de caractères) alphabétiques représentent les 
phonèmes. (p. 93) 
 
Nos Estados Unidos, desde o início dos anos de 1990 tem sido intensa a discussão 
sobre a aprendizagem da língua escrita na escola, discussão que se concentra, 
sobretudo, em polêmicas que contrapõem a concepção holística whole language à 
concepção grafofônica phonics.11 Em meados dos anos de 1990, a whole language, 
que vinha tendo grande difusão no país desde meados dos anos de 1980, passou a 
ser contestada, sobretudo por negar o ensino do sistema alfabético e ortográfico e 
das relações fonema-grafema de forma direta e explícita. Já em de 1990, a 
publicação da obra de Marilyn Jager Adams, Beginning to read: thinking and learning 
about print, levara à substituição da oposição phonics versus whole-word, em torno 
da qual se desenvolvia, até então, o debate, pela oposição phonics versus whole 
language. Identifica-se um paralelo com o que ocorreu no Brasil aproximadamente 
na mesma época, quando o debate que até então se fazia em torno da oposição 
entre métodos sintéticos (fônico, silabação) e métodos analíticos (palavração, 
sentenciação, global) foi suplantado pela introdução da concepção "construtivista" na 
alfabetização, bastante semelhante à whole language. 
 
Os defensores do ensino direto e explícito das relações fonema-grafema, no 
processo de alfabetização, nos Estados Unidos, encontraram reforço no relatório 
produzido, em 2000, pelo National Institute of Child Health and Human Development 
(NICHD), em resposta à solicitação do Congresso Nacional, alarmado com os baixos 
níveis de competência em leitura que avaliações estaduais e nacionais de crianças 
em processo de escolarização vinham denunciando: o National Reading Panel: 
teaching children to read é um estudo de avaliação e integração das pesquisas 
existentes no país sobre a alfabetização de crianças, com o objetivo de identificar 
 17 
procedimentos eficientes para que esse processo se realizasse com sucesso. O 
subtítulo do relatório esclarece bem sua natureza: An evidence-based assessment of 
the scientific research literature on reading and its implications for reading 
instruction.12 O relatório conclui que, entre as facetas consideradas componentes 
 
essenciais do processo de alfabetização consciência fonêmica, phonics13 (relações 
fonema-grafema), fluência em leitura (oral e silenciosa), vocabulário e compreensão, 
as evidências a que as pesquisas conduziam mostravam que têm implicações 
altamente positivas para a aprendizagem da língua escrita o desenvolvimento da 
consciência fonêmica e o ensino explícito, direto e sistemático das correspondências 
fonema-grafema. 
 
Retomando o título deste subtópico, pode-se perguntar: nesse contexto francês e 
norte-americano o que constitui a reinvenção da alfabetização? Uma análise tanto 
do documento francês Apprendre à lire quanto do relatório americano o National 
Reading Panel evidenciam que a concepção de aprendizagem da língua escrita, em 
ambos, é mais ampla e multifacetada que apenas a aprendizagem do código, das 
relações grafofônicas; o que ambos postulam é a necessidade de que essa faceta 
recupere a importância fundamental que tem na aprendizagem da língua escrita; 
sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto, explícito, sistemático. Entretanto, a 
questão tem se colocado, particularmente nos Estados Unidos, e começa a se 
colocar assim também entre nós, em termos de antagonismo de concepções, uma 
oposição de grupos a favor e grupos contra o movimento que tem sido denominado 
a "volta ao fônico" (back to phonics) como se, para endireitar a vara, fosse mesmo 
necessário curvá-la para o lado oposto, ou como se o pêndulo devesse estar ou de 
um lado, ou de outro. É essa tendência a radicalismos que torna perigosa a 
necessária reinvenção da alfabetização.14 
 
O que é preciso reconhecer é que o antagonismo, que gera radicalismos, é mais 
político que propriamente conceitual, pois é óbvio que tanto a whole language, nos 
Estados Unidos, quanto o chamado construtivismo, no Brasil, consideram a 
aprendizagem das relações grafofônicas como parte integrante da aprendizagem da 
língua escrita ocorreria a alguém a possibilidade de se ter acesso à cultura escrita 
sem a aprendizagem das relações entre o sistema fonológico e o sistema alfabético? 
 
 
A diferença entre propostas como a do Apprendre à lireou do National Reading 
Panel, e propostas como a whole language e o construtivismo está em que, 
 18 
enquanto nas primeiras considera-se que as relações entre o sistema fonológico e 
os sistemas alfabético e ortográfico devem ser objeto de instrução direta, explícita e 
sistemática, com certa autonomia em relação ao desenvolvimento de práticas de 
leitura e escrita, nas segundas considera-se que essas relações não constituem 
propriamente objeto de ensino, pois sua aprendizagem deve ser incidental, implícita, 
assistemática, no pressuposto de que a criança é capaz de descobrir por si mesma 
as relações fonema-grafema, em sua interação com material escrito e por meio de 
experiências com práticas de leitura e de escrita. Pode-se talvez dizer que, no 
primeiro caso, privilegia-se a alfabetização, no segundo caso, o letramento. O 
problema é que, num e noutro caso, dissocia-se equivocadamente alfabetização de 
letramento, e, no segundo caso, atua-se como se realmente pudesse ocorrer de 
forma incidental e natural a aprendizagem de objetos de conhecimento que são 
convencionais e, em parte significativa, arbitrários o sistema alfabético e o sistema 
ortográfico. 
 
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais 
concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a 
entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre 
simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional 
de escrita a alfabetização - e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse 
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a 
língua escrita o letramento. Não são processos independentes, mas 
interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e 
por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de 
letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio 
da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da 
alfabetização. A concepção "tradicional" de alfabetização, traduzida nos métodos 
analíticos ou sintéticos, tornava os dois processos independentes, a alfabetização a 
aquisição do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como decodificação e 
a escrever como codificação precedendo o letramento o desenvolvimento de 
habilidades textuais de leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros variados 
de textos e de portadores de textos, a compreensão das funções da escrita. Na 
concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos são 
simultâneos, o que talvez até permitisse optar por um ou outro termo, como sugere 
Emilia Ferreiro em recente entrevista à revista Nova Escola,15 em que rejeita a 
 19 
coexistência dos dois termos com o argumento de que em alfabetização estaria 
compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa, em letramento estaria 
compreendido o conceito de alfabetização o que seria verdade, desde que se 
convencionasse que por alfabetização seria possível entender muito mais que a 
aprendizagem grafofônica, conceito tradicionalmente atribuído a esse processo, ou 
que em letramento seria possível incluir a aprendizagem do sistema de escrita. A 
conveniência, porém, de conservar os dois termos parece-me estar em que, embora 
designem processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos 
de natureza fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e 
competências específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas e, 
conseqüentemente, procedimentos diferenciados de ensino. Sobretudo no momento 
atual, em que os equívocos e falsas inferências anteriormente mencionados levaram 
alfabetização e letramento a se confundirem, com prevalência deste último e perda 
de especificidade da primeira, o que se constitui como uma das causas do fracasso 
em alfabetização que hoje ainda se verifica nas escolas brasileiras, a distinção entre 
os dois processos e conseqüente recuperação da especificidade da alfabetização 
tornam-se metodologicamente e até politicamente convenientes, desde que essa 
distinção e a especificidade da alfabetização não sejam entendidas como 
independência de um processo em relação ao outro, ou como precedência de um 
em relação ao outro. Assegurados esses pressupostos, a reinvenção da 
alfabetização revela-se necessária, sem se tornar perigosa. 
 
É que, diante dos precários resultados que vêm sendo obtidos, entre nós, na 
aprendizagem inicial da língua escrita, com sérios reflexos ao longo de todo o ensino 
fundamental, parece ser necessário rever os quadros referenciais e os processos de 
ensino que têm predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer a 
possibilidade e mesmo a necessidade de estabelecer a distinção entre o que mais 
propriamente se denomina letramento, de que são muitas as facetas imersão das 
crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a 
escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito 
e o que é propriamente a alfabetização, de que também são muitas as facetas 
consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, 
habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e 
reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma 
gráfica da escrita. Por outro lado, o que não é contraditório, é preciso reconhecer a 
 20 
possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões 
da aprendizagem da língua escrita,16 integrando alfabetização e letramento, sem 
perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica 
reconhecer as muitas facetas de um e outro e, conseqüentemente, a diversidade de 
métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro 
desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, 
há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos 
procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e 
até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica.17 
Desnecessário se torna destacar, por óbvias, as conseqüências, nesse novo quadro 
referencial, para a formação de profissionais responsáveis pela aprendizagem inicial 
da língua escrita por crianças em processo de escolarização.18 
 
Em síntese, o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reconhecimento 
da especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e 
apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico; em segundo lugar, e 
como decorrência, a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto 
de letramento - entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da 
escrita, como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o 
conseqüente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas 
práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a 
essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto a alfabetização 
quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou facetas, a natureza de cada uma 
delas demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem inicial da 
língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas caracterizadas por ensino 
direto, explícito e sistemático-particularmente a alfabetização, em suas diferentes 
facetas-outras caracterizadas por ensino incidental, indireto e subordinado a 
possibilidades e motivações das crianças; em quarto lugar, a necessidade de rever e 
reformular a formação dos professoresdas séries iniciais do ensino fundamental, de 
modo a torná-los capazes de enfrentar o grave e reiterado fracasso escolar na 
aprendizagem inicial da língua escrita nas escolas brasileiras. 
 
 
 
 
 
 
 21 
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MAGDA SOARES, livre-docente em educação, é professora titular emérita da 
Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Centro de Alfabetização, 
Leitura e Escrita - CEALE, dessa Faculdade. Autora de vários artigos, capítulos de 
livros e livros sobre ensino da língua escrita, é também autora de coleções didáticas 
para o ensino de português, sendo a mais recente: Português - uma proposta para o 
 
letramento (8 volumes para o ensino fundamental, Editora Moderna). Publicações 
recentes sobre o tema do artigo: Letramento:um tema em três gêneros (Autêntica, 
1996) e Alfabetização e letramento (Contexto, 2003), os capítulos de livros 
"Letramento e escolarização" (no livro Letramento no Brasil, organizado por Vera 
Masagão Ribeiro, Global, 2003), "Aprender a escrever, ensinar a escrever" (no livro 
A magia da linguagem, organizado por Edwiges Zaccur, DP&A, 1999), "A 
escolarização da literatura infantil e juvenil" (no livro A escolarização da leitura 
literária, organizado por Aracy Alves Martins Evangelista et al., Autêntica, 1999), o 
documento Alfabetização, em co-autoria com Francisca Maciel, produto de pesquisa 
sobre o estado do conhecimento a respeito da alfabetização, no Brasil (publicação 
MEC/INEP/COMPED, 2001, na série Estado do Conhecimento). Organizou o dossiê 
sobre letramento, publicado no periódico Educação e Sociedade, nº 81, dezembro 
de 2002. E-mail:mbecker.soares@terra.com.br. 
 
* Trabalho apresentado no GT Alfabetização, Leitura e Escrita, durante a 26ª 
Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas, MG, de 5 a 8 de outubro 
 24 
de 2003. 
 
1 A expressão é inspirada no título do livro de Bernard Lahire: L'invention de 
l'"illettrisme" (1999). Entretanto, é aqui outro o sentido que se pretende dar a 
"invenção": Lahire usa a palavra para caracterizar a construção social de um 
discurso sobre o "illettrisme", discurso que, em seu livro, busca desconstruir;aqui, 
atribui-se à palavra "invenção" o sentido de criação, descoberta, concepção do 
fenômeno do letramento. 
 
2 A expressão Quarto Mundo designa a parte da população, nos países do Primeiro 
Mundo, mais desfavorecida. A expressão é usada também para nomear os países 
menos avançados, entre os países em desenvolvimento. 
 
3 Uma análise mais detalhada da progressiva ampliação do conceito de 
alfabetização na mídia é apresentada em Soares (2003). 
 
4 Convém esclarecer que as reflexões aqui desenvolvidas têm como objeto 
privilegiado de análise a escola pública. 
 
5 SARESP - Sistema de Avaliação da Rede Estadual de São Paulo; SIMAVE - 
Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública ; SAEB - Sistema Nacional de 
Avaliação da Educação Básica; ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio; PISA - 
Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. 
 
6 É preciso reconhecer que esta modalidade de fracasso escolar aqui caracterizada 
como anterior continua presente, ainda não superada; o adjetivo anterior é aqui 
usado apenas para diferenciá-la de uma nova modalidade que se vem revelando nas 
últimas décadas . 
 
7 Gaffney e Anderson identificam as mudanças de paradigma na área da 
alfabetização, nos Estados Unidos, nas três últimas décadas (1970, 1980 e 1990), 
analisando relatos de pesquisa publicados nas revistas Reading Research Quarterly 
(697 artigos) e The Reading Teacher (3.018 artigos), no período de 1966 a 1998. 
Uma comparação entre os resultados a que chegam esses autores e os resultados 
da pesquisa sobre o estado do conhecimento a respeito da alfabetização no Brasil, 
que vem sendo desenvolvida no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - CEALE, 
da Faculdade de Educação da UFMG (Soares & Maciel, 2000), mostram que as 
 25 
mesmas tendências ocorrem também no Brasil. 
 
8 A whole language tem sua origem em um conjunto de princípios teóricos, com 
raízes basicamente psicolingüísticas, sobre a natureza holística da linguagem, da 
aprendizagem e, conseqüentemente, do ensino, que se difundiu nos Estados Unidos 
nos anos de 1970, sob a liderança de Kenneth Goodman, tendo se concretizado em 
proposta pedagógica; embora voltados para todas as áreas do currículo (cf. Smith, 
Goodman & Meredith, 1970, uma das primeiras obras sobre os princípios teóricos 
dessa visão holística), esses princípios ganharam lugar e relevância sobretudo na 
área do ensino da língua, e particularmente do ensino e aprendizagem da língua 
escrita, tendo, nesta área, recebido apoio e reforço de Frank Smith e sua teoria 
psicolingüística do processo de leitura (cf. Smith, 1973 e 1997, para citar uma de 
suas primeiras obras e uma recente, publicada quase 25 anos depois). A proposta 
pedagógica da whole language para a alfabetização aproxima-se das que, a partir de 
meados dos anos de 1980, no Brasil, derivaram dos estudos sobre a psicogênese da 
língua escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1985). 
 
9 A relação entre a concepção "construtivista" da aprendizagem e a alfabetização foi 
compreendida de forma tão absoluta no Brasil que se difundiu amplamente o 
conceito equivocado de que só na fase da aprendizagem da língua escrita poderia 
um professor ser "construtivista". 
 
10 Não se atribui, aqui, ao adjetivo "tradicional" o sentido pejorativo que costuma ter; 
o termo é aqui utilizado para caracterizar, de forma descritiva e não avaliativa, os 
métodos vigentes até o momento da introdução da perspectiva "construtivista" na 
área da alfabetização; é preciso lembrar que esses métodos hoje considerados 
"tradicionais" um dia foram "novos" ou "inovadores" - o tradicional não se esgota no 
passado, é fruto de um processo permanente que não termina nunca: estamos 
construindo hoje o "tradicional" de amanhã, quando outros "novos" surgirão. 
 
11 Na verdade, a discussão, nos Estados Unidos, em torno de teorias e métodos de 
alfabetização antecede o debate em torno de whole language e phonics, pois ela se 
vem desenvolvendo desde os anos de 1960, configurando o que a literatura 
educacional daquele país tem denominando The Reading Wars. Assim, já em 1967 
foram realizados dois estudos sobre a alfabetização no país: The cooperative 
 26 
research program in first-grade reading instruction, mais conhecido comofirst-grade 
studies (Bond & Dykstra, 1967/1997) e Learning to read: the great debate (Chall, 
1967); em 1985, foram apresentados os resultados de um outro estudo, o relatório 
Becoming a nation of readers (Anderson et al., 1985); novo estudo, realizado por 
Marilyn Jager Adams, foi publicado em 1990, Beginning to read: thinking and 
learning about print (Adams, 1990); em 1998, novo relatório é publicado: Preventing 
reading difficulties in young children (Snow, Burns & Griffin, 1998); o último estudo 
realizado, aquele que neste texto se comenta, é de 2000, publicado com o título de 
Report of the National Reading Panel: teaching children to read (National Institute of 
Child Health and Human Development, 2000). Uma análise e crítica desses 
relatórios pode ser encontrada em Cowen (2003). 
 
12 Foge aos limites deste texto uma reflexão, no entanto necessária, sobre as 
estreitas relações entre pesquisa e ensino que se consolidaram nos Estados Unidos, 
particularmente em decorrência do No Child Left Behind Act, lei de 2001, que 
vinculou a concessão de recursos a escolas com problemas na área da 
alfabetização à fundamentação dos projetos em pesquisa quantitativa, experimental 
ou quase-experimental; sobre isso, pelo menos três aspectos mereceriam discussão: 
em primeiro lugar, o pressuposto de que resultados de pesquisa, sobretudo com alto 
grau de controle de variáveis, podem ser generalizados para toda e qualquer escola 
e sala de aula, para todo e qualquer professor, todo e qualquer grupo de alunos; em 
segundo lugar, o privilégio concedido à pesquisa quantitativa e experimental, em 
detrimento da pesquisa qualitativa e das abordagens etnográficas; em terceiro lugar, 
a exclusividade atribuída às evidências "científicas" como fundamento para o ensino, 
ignorando-se a contribuição das evidências decorrentes de práticas bem-sucedidas. 
Para a reflexão sobre essas questões, sugere-se a leitura de Cunningham (2001) e 
da "declaração de princípios" (position statement) da International Reading 
Association, What is evidence-based reading instruction? (IRA, 2002). 
 
 
 
13 Não há substantivo em português correspondente ao substantivo phonics da 
língua inglesa; isso tem levado à equivocada interpretação, no Brasil, de que 
phonics, na literatura de língua inglesa, traduz-se por método fônico de 
alfabetização. 
 
 27 
 
14 Alguns exemplos do antagonismo entre phonics e whole language são: a 
coletânea de textos organizada por Kenneth Goodman (1998); a veemente crítica de 
Elaine Garan (2002) ao National Reading Panel; em posição oposta, a veemente 
crítica da whole language e defesa do National Reading Panel por Louisa Moats 
(2000). 
 
 
15 Ano XVIII, nº 162, p. 30, maio 2003. 
 
 
16 A busca de conciliação entre letramento - whole language- e alfabetização - 
phonics - já vem sendo tentada nos Estados Unidos, com a sugestão de superação 
dos antagonismos pela opção por uma balanced instruction, que admite a 
compatibilidade entre as duas propostas e reconhece a possibilidade de sua 
coexistência (cf. Cowen, 2003; Blair-Larsen & Williams, 1999; Freppon & Dahl, 1998; 
Johnson, 1999). 
 
17 A respeito da necessária multiplicidade de métodos para o ensino inicial da leitura 
e da escrita, é elucidativa a "declaração de princípios" (position statement) da 
International Reading Association, Using multiple methods of beginning reading 
instruction(IRA, 1999). 
 
18 O que aqui se diz sobre a aprendizagem inicial da língua escrita por crianças em 
processo de escolarização também se aplica a adultos; a diferença está, 
fundamentalmente, na natureza das experiências e práticas de leitura e escrita 
proporcionadas a estes, e na necessária adequação do material escrito envolvido 
nessas experiências e práticas. Convém, assim, destacar a necessidade de uma 
formação para o responsável pela aprendizagem inicial da escrita por adultos tão 
específica e complexa quanto é a formação para o responsável pela aprendizagem 
inicial da escrita por crianças. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 28 
 
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: conceitos e relações 
 
 
 
Carmi Ferraz Santos 
Márcia Mendonça 
 
Apresentação 
 
Conceituando alfabetização e letramento 
 
Eliana Borges Correia de Albuquerque 
 
Alfabetização e escolarização: a instituição do letramento escolar 
 
Carmi Ferraz Santos 
 
Gêneros: por onde anda o letramento? 
 
Márcia Mendonça 
 
Progressão escolar e gêneros textuais 
 
Márcia Mendonça, Telma Ferraz Leal 
 
Organização do trabalho escolar e letramento 
 
Telma Ferraz Leal 
 
Alfabetizar letrando 
 
Carmi Ferraz Santos, Eliana Borges Correia de Albuquerque 
 
Alfabetização e letramento nos livros didáticos 
 
Carmi Ferraz Santos, Eliana Borges Correia de Albuquerque, Márcia Mendonça 
 
Letramento digital e ensino 
 
Antonio Carlos dos Santos Xavier 
 
Os autores 
 
 
APRESENTAÇÃO 
 
Preocupado com a consolidação de uma escola que cumpra efetivamente seu papel 
de ensino, o Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal 
de Pernambuco (CEEL - UFPE) tem estabelecido, como um dos seus desafios, 
oportunizar a criação de práticas pedagógicas eficientes e inovadoras, mediante um 
processo de formação que contribua para a reflexão e a atuação docente. 
 
Entre as ações propostas pelo CEEL para o alcance desse objetivo, estão: a) a 
consolidação e ampliação de uma rede de formação de professores; b) a produção 
de materiais didáticos para a formação docente e c) o desenvolvimento de cursos de 
 
formação de educadores-tutores. Para cada uma dessas ações, foram escolhidos 
eixos temáticos que norteassem todo o processo de formação promovido pelo 
 29 
CEEL, sendo um deles a problemática da relação entre alfabetização e letramento, 
importante para os docentes das classes de alfabetização e do 1o e 2o ciclos do 
ensino fundamental. 
 
 
A construção deste livro resulta, portanto, do esforço de produção de um material 
pedagógico para formação de professores na área de língua portuguesa que 
contribuísse para articular e sistematizar a discussão acerca dos conceitos de 
alfabetização e letramento, buscando estabelecer sua relação com o processo de 
escolarização. 
 
 
Organizado em oito capítulos que se complementam, a seqüência proposta neste 
livro tem o objetivo de apresentar gradualmente, e sob vários pontos de vista, as 
reflexões a respeito do tema – alfabetização e letramento –, de modo que o 
professor se sinta contemplado nas suas dúvidas e necessidades, apropriando-se, a 
cada momento, dos saberes relativos ao eixo temático focalizado. 
 
 
No primeiro capítulo, Eliana Albuquerque procura definir e diferenciar tais conceitos 
de alfabetização e letramento, mostrando que, apesar de tratarem de aspectos 
diferentes do processo de apropriação da escrita, esses estão intimamente 
relacionados. Para realizar essa discussão, a autora se apóia em depoimentos de 
professoras sobre suas memórias de alfabetização. 
 
 
No capítulo seguinte, Carmi Ferraz Santos discute questões relativas a relação que 
se tem estabelecido entre a alfabetização e o processo de escolarização, analisando 
de que forma o caráter assumido pela escolarização interferiu na construção de 
determinado conceito de alfabetização na sociedade ocidental. Analisa, ainda, a 
influência dessa relação na criação e na expansão dos métodos de alfabetização. 
 
As relações entre gêneros textuais, letramento e ensino é o tema central do terceiro 
capítulo, de Márcia Mendonça. A autora discorre sobre como os gêneros se inserem 
nas teorias sociointeracionista e socioconstrutivista, além de questionar aspectos do 
trabalho com os gêneros na sala de aula. Para isso, apresenta definições e quadros 
explicativos sobre gêneros, além de exemplificar com depoimentos e trechos de 
aulas. 
 
 
 30 
O quarto capítulo, de autoria de Márcia Mendonça e Telma Ferraz Leal, aborda os 
gêneros na progressão escolar, ou seja, o modo como se pode selecionar e ordenar 
os gêneros para o trabalho pedagógico. Priorizando a clareza dos objetivos 
pedagógicos, as autoras apresentam critérios de exploração e retomada dos 
gêneros ao longo dos anos, em uma perspectiva de letramento. 
 
O capítulo posterior, de Telma Ferraz Leal, trata da organização do trabalho escolar, 
o que implica a necessidade de se (re)planejar o cotidiano na escola, para melhor 
aproveitamento do tempo pedagógico. Nesse processo, a autora analisa a 
pertinência de atividades permanentes, projetos didáticos, atividades seqüenciais, 
atividades esporádicas e jogos como alternativas para viabilizar tal organização. 
 
A proposta de alfabetizar letrando é o tema do capítulo seis, escrito por Carmi 
Santos e Eliana Albuquerque. No texto, as autoras discutem como, para dar conta 
do desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita, é preciso, simultaneamente, 
apropriar-se de conhecimentos do sistema alfabético e das convenções da norma 
culta. 
 
Duas situações didáticas são analisadas, de modo a esclarecer ao professor as 
possibilidades dessa proposta. 
 
No sétimo capítulo, Carmi Ferraz Santos, Eliana Albuquerque e Márcia Mendonça 
analisam, com exemplos, o tratamento dado por livros didáticos (LDs) de língua 
portuguesa às atividades de leitura, escrita e apropriação do sistema alfabético. 
Apontam que, mesmo os LDs apresentando avanços ou lacunas, o professor é 
sempre o autor das aulas, cabendo-lhe o papel de fazer o melhor uso do material 
disponibilizado para seu trabalho. 
 
O letramento digital é o foco do capítulo oito, escrito por Antônio Carlos Xavier. 
Nesse texto, o autor discute como, a partir do surgimento de novas tecnologias, 
configuram-se novos eventos de letramento e novos gêneros (e-mails, webblogs, 
chats, e-foruns, etc.), com conseqüências diretas para a formação dos cidadãos, daí 
a necessidade de se letrar digitalmente. 
 
Esperamos que, ao lerem os capítulos deste livro, os professores, participando de 
um processo de formação continuada, reflitam sobre suas práticas e pensem com os 
autores – e não necessariamente como os autores –, resultando em aprimoramento 
profissional e, desejamos, melhor qualidade de ensino nas escolas. 
 
 
 
 31 
Definir o termo “alfabetização” parece ser algo desnecessário, visto que se trata de 
um conceito conhecido e familiar. Qualquer pessoa responderia que alfabetizar 
corresponde à ação de ensinar a ler e a escrever. No entanto, o que significa ler e 
escrever? Ao longo da nossa história, essas ações foram tornando-se mais 
complexas, e suas definições se ampliaram, passando a envolver, a partir da década 
de 1990 principalmente, um novo termo: o letramento. Buscaremos discutir neste 
artigo como esses dois termos – alfabetização e letramento – se relacionam; para 
isso, haveremos de nos apoiar em depoimentos de professoras1 sobre sua memória 
de alfabetização. 
 
A alfabetização considerada como o ensino das habilidades de “codificação” e 
“decodificação” foi transposta para a sala de aula, no final do século XIX, mediante a 
criação de diferentes métodos de alfabetização – métodossintéticos (silábicos ou 
fônicos) x métodos analíticos (global) –, que padronizaram a aprendizagem da leitura 
e da Conceituando alfabetização e letramento escrita. As cartilhas relacionadas a 
esses métodos passaram a ser amplamente utilizadas como livro didático para o 
ensino nessa área. 
 
No contexto brasileiro, a mesma sucessão de oposições pode ser constatada 
(MORTATTI, 2000). 
 
O escritor Graciliano Ramos, em seu livro autobiográfico Infância, lembra que se 
alfabetizou – ainda no final do século XIX, início do século XX – através da carta do 
ABC em que primeiro aprendeu todas as letras para, só no final da carta, ter contato 
com os primeiros textos – alguns provérbios que, embora soubesse decodificá-los, 
desconhecia seus significados: 
 
Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. Gaguejei sílabas um mês. No 
fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevesadas, que me 
atordoavam. 
 
Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos 
sisudos: “A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes 
acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. Esse Terteão para mim era um 
homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. – Mocinha, quem é 
Terteão? Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse 
homem. Talvez fosse. Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. 
 
1 Eliana Borges Correia de Albuquerque 
Os depoimentos aqui utilizados foram produzidos por professoras do ensino fundamental da rede 
pública do Recife, participantes do primeiro curso de extensão promovido pelo CEEL, no segundo 
semestre de 2004 
 32 
E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções. 
Assim, o referido escritor chegou no final da Carta do ABC sabendo “decodificar” 
bem as palavras, mas não conseguia entender o que estava lendo. E, para surpresa 
dele, nem a sua professora compreendia o que lia. A maioria de nós, que passamos 
pela alfabetização até as décadas finais do século passado, também teve uma 
experiência escolar com ênfase na “codificação” e “decodificação”. Para muitos, 
essa experiência foi traumatizante, como relataram algumas professoras: 
 
O que eu não esqueci até hoje, que para mim foi traumatizante, foi minha 
experiência na alfabetização, o meu aprender a ler e escrever, porque foi assim: a 
gente usava uma cartilha onde a gente tinha que decorar mesmo aquelas sílabas e 
todos os padrões silábicos. E para mim foi traumatizante porque em casa minha mãe 
todo dia tomava a lição e para mim aquilo era uma chatice. E chegava na escola a 
professora cobrava individualmente e quando a gente errava era aquela tortura. Ela 
não admitia de forma alguma que a gente errasse. (DANIELLE FÉLIX2) 
 
A experiência “traumatizante” de alfabetização na escola devia-se não só aos 
castigos aos quais muitos de nós fomos submetidos, mas às próprias atividades 
desenvolvidas, com ênfase na repetição e na memorização de letras, sílabas e 
palavras sem significados. Mas essa experiência escolar muitas vezes era 
amenizada pelas práticas de leitura vivenciadas no ambiente familiar, mesmo 
quando os instrumentos utilizados eram os mesmos – as cartilhas –, como bem nos 
relatou a professora Maria de Fátima Ribeiro Soares3: 
 
Na minha casa o processo foi muito feito na brincadeira, no jogo e muito recheado 
de fantasia. Então, eu me lembro que a primeira letra que eu aprendi foi o F do meu 
nome, que minha mãe dizia que era meu: “é sua letra”. Eu lembro quanto tempo eu 
acreditei que o F era meu, eu era a dona. Então se eu passasse no ônibus e visse o 
F que era meu, perguntava porque estava ali. Depois eu comecei a lembrar disso e o 
B era da minha mãe, o A era da minha irmã, o P era do meu pai e aos poucos eu 
sabia o alfabeto todo, quer dizer era a letra das pessoas com quem eu era próxima. 
 
2
 Danielle Felix Trindade da Silva é professora da Escola Municipal Jaboatão dos Guararapes, 
no município de Jaboatão dos Guararapes. 
 
 
³A professora Maria de Fátima Ribeiro Soares ensinava, em 2004, na 1ª série da Escola Pontezinha, 
pertencente à Secretaria da Educação de Jaboat 
 33 
E aí, lá em casa você brincava com isso, brincar de escola era uma coisa assim todo 
dia [...] 
 
Na escola o que é que se fazia? Muito trabalho de cópia e memorização, a carta de 
ABC. A mesma carta de ABC da minha casa era diferente na escola, porque na 
escola você pegava todos os alfabetos para decorar ordenado, não é? Aí a 
professora fazia um negócio assim: ela pegava um pedacinho de papel cortava um 
furinho no meio e ia colocando para você dizer as letras salteadas, mostrar que você 
aprendeu o alfabeto. Por exemplo: aparecia o P, aí você demonstrava que não 
decorou só a seqüência, você decorou a letra. [...] 
 
Em casa, as lições não eram seguidas, porque minha mãe trabalhava a letra do 
nome de cada um. Então eu poderia escrever só F durante muito tempo, que era o 
que eu gostava. 
 
Era a mesma carta do ABC, que minha mãe usava de outro jeito. Por exemplo, as 
lições do fim, que na escola você só tinha acesso àqueles textos depois que 
decorava as letras e padrões, minha mãe pegava a Carta e lia os textos, aquelas 
frases: “Deus ajuda quem cedo madruga”, “Paulina mastigou pimenta”, etc. A gente 
achava ótimo porque era cantando. E assim, ela não seguia a seqüência da escola; 
mas ela nunca disse que a professora estava errada, porque ela achava que, do jeito 
que ela estava ensinando, a gente não aprenderia todas as letras. Então o processo 
se complementava. 
 
A professora Tânea Valéria Coelho4 também lembrou que as letras ensinadas na 
escola, por sua mãe-professora, a partir de uma ordem preestabelecida presente na 
cartilha, em casa ganhavam significados através da brincadeira de escola e da 
leitura dos contos clássicos: 
Quem me ensinou foi a minha mãe. Então, eu criança queria ser professora. Aí 
minha mãe se preocupava em ensinar e usava a cartilha que tinha uma boneca e um 
boneco na frente. 
 
4
 A professora Tânea Valéria Coelho trabalhava, em 2004, na Educação Infantil da Escola José 
Clarindo Gomes, pertencente à Rede Municipal de Ensino da cidade do Cabo de Santo Agostinho – 
PE 
 
 
 34 
Então, mainha fazia assim: mostrava as vogais maiúsculas e minúsculas da forma 
tradicional e eu não achava isso ruim. E em casa minha mãe fazia: escrevia o nome 
das minhas bonecas que eram alunas, nunca foram filhas. Minha mãe escrevia o 
nome das minhas bonecas, dos meus primos num papel velho e quando eu queria 
escrever alguma palavra, ela dizia: é igual o nome de tal boneca, igual o nome de tal 
primo. E ler, para mim, era maravilhoso. Tinha os livros de capa dura e atrás tinha 
outros contos que não eram ilustrados. Com 5 anos já tava na alfabetização. Entrei 
logo na alfabetização numa escola pública e minha mãe tinha duas filhas bem mais 
velhas, uma de 18 e a outra de 11, então a vida era cuidar de mim. Mas teve a parte 
tradicional na escola que eu não achava ruim e em casa era só a leitura dos contos 
mesmo. A cartilha eu já sabia, queria ler o difícil: palavras com: PRA, TRA, tipo 
Branca de Neve, eu queria ler o BRAN. 
 
Outras professoras lembraram, também, de outras práticas de leitura no ambiente 
familiar, como a de escutar os adultos lerem ou contarem histórias/contos infantis, 
como relatou a professora Danielle Félix, que, conforme depoimento apresentado 
anteriormente, teve uma experiência traumatizante de alfabetização na escola, mas 
não em casa, como pode ser observado na continuidade de seu relato: 
 
E eu gostava muito quando chegava em casa e minha mãe tinha aquela coleção “Os 
Clássicos”,por exemplo: o lobo mau. E eu adorava aquilo. Ela lia pra mim, assim, 
todo dia. 
 
Pra mim aquilo era fabuloso: ficar todo dia escutando ela ler aquelas histórias. Eu 
amava tanto que até hoje eu me lembro bem que quando eu aprendi a ler, a primeira 
leitura que eu fiz foi daqueles contos, né? Eu adorava, amava. Em casa eu passava 
a tarde lendo aquilo. 
 
A partir da década de 1980, o ensino da leitura e da escrita centrado no 
desenvolvimento das referidas habilidades, desenvolvido com o apoio de material 
pedagógico que priorizava a memorização de sílabas e/ou palavras e/ou frases 
soltas, passou a ser amplamente criticado. Nesse período, pesquisadores de 
diferentes campos – Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia, etc. – tomaram 
como temática e objeto de estudo a leitura e seu ensino, buscando redefini-los. 
 
 35 
No campo da Psicologia, foram muito importantes as contribuições dos estudos 
sobre a psicogênese da língua escrita, desenvolvidos por Emília Ferreiro e Ana 
Teberosky (1984). Rompendo com a concepção de língua escrita como código, o 
qual se aprenderia considerando atividades de memorização, as autoras 
defenderam uma concepção de língua escrita como um sistema de notação que, no 
nosso caso, é alfabético. E, na aprendizagem desse sistema, elas constataram que 
as crianças ou os adultos analfabetos passavam por diferentes fases que vão da 
escrita pré-silábica, em que o aprendiz não compreende ainda que a escrita 
representa os segmentos sonoros da palavra, até as etapas silábica e a alfabética. 
No processo de apropriação do sistema de escrita alfabética, os alunos precisariam 
compreender como esse sistema funciona e isso pressupõe que descubram que o 
que a escrita alfabética nota no papel são os sons das partes orais das palavras e 
que o faz considerando segmentos sonoros menores que a sílaba. É interagindo 
com a língua escrita através de seus usos e funções que essa aprendizagem 
ocorreria, e não a partir da leitura de textos “forjados” como os presentes nas 
“cartilhas tradicionais”. 
 
 
O discurso da importância de se considerar os usos e funções da língua escrita com 
base no desenvolvimento de atividades significativas de leitura e escrita na escola foi 
bastante difundido a partir da década de oitenta. No que diz respeito à alfabetização 
especificamente, surge o conceito de “analfabetismo funcional” para caracterizar 
aquelas pessoas que, tendo se apropriado das habilidades de “codificação” e 
“decodificação”, não conseguiam fazer uso da escrita em diferentes contextos 
sociais. Assim, o fenômeno do analfabetismo passou a envolver não só aqueles que 
não dominavam o sistema de escrita alfabética, mas também as pessoas com pouca 
escolarização. 
 
Nos últimos vinte anos, principalmente a partir da década de 1990, o conceito de 
alfabetização passou a ser vinculado a outro fenômeno: o letramento. Segundo 
Soares (1998), o termo letramento é a versão para o Português da palavra de língua 
inglesa literacy, que significa o estado ou condição que assume aquele que aprende 
a ler e a escrever. Esse mesmo termo é definido no Dicionário Houaiss (2001) “como 
um conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de 
material escrito”. 
 36 
No Brasil, o termo letramento não substituiu a palavra alfabetização, mas aparece 
associada a ela. Podemos falar, ainda nos dias de hoje, de um alto índice de 
analfabetos, mas não de “iletrados”, pois, sabemos que um sujeito que não domina a 
escrita alfabética, seja criança, seja adulto, envolve-se em práticas de leitura e 
escrita através da mediação de uma pessoa alfabetizada, e nessas práticas 
desenvolve uma série de conhecimentos sobre os gêneros que circulam na 
sociedade. Assim, por exemplo, crianças pequenas que escutam freqüentemente 
histórias lidas por adultos, são capazes de pegar um livrinho e fingir que lêem a 
história, usando, para isso, a linguagem característica desse gênero. Nos 
depoimentos das professoras acima citados, observamos como elas vivenciavam a 
leitura de histórias e contos pela mediação de pessoas da família que liam para elas. 
E, nessas experiências, elas desenvolviam uma série de conhecimentos sobre a 
língua e os textos lidos. 
 
O depoimento de D. Maria José, aluna de um projeto de alfabetização de jovens e 
adultos desenvolvido em Recife, no período de 2003/2004, no âmbito do Programa 
Brasil Alfabetizado, é representativo dessa questão: 
 
Meu marido recebeu uma carta e eu, brincando, comecei a dizer o que tinha na 
carta. E muitas coisas eu acertei. Aí minha filha disse: mainha, a senhora já sabe ler! 
Que bom! 
 
Por outro lado, o domínio do sistema alfabético de escrita não garante que sejamos 
capazes de ler e produzir todos os gêneros de texto. Esse fenômeno foi evidenciado, 
pela primeira vez, na primeira metade do século 20, durante a 1ª Guerra Mundial. 
Percebeu-se, naquele momento, que soldados americanos que possuíam elevado 
grau de escolarização apresentavam dificuldades em ler e compreender textos 
instrucionais da guerra. Assim, mesmo em países desenvolvidos onde o índice de 
analfabetismo é praticamente inexistente, o fenômeno do letramento passou a ser 
amplamente discutido. 
 
Embora a escola, nas sociedades contemporâneas, represente a instituição 
responsável por promover oficialmente o letramento, pesquisas têm apontado para o 
fato de as práticas de letramento na escola serem bem diferenciadas daquelas que 
 37 
ocorrem em contextos exteriores a ela. Nessa perspectiva, os alunos saem da 
escola com o domínio das habilidades inadequadamente denominadas de 
“codificação” e “decodificação”, mas são incapazes de ler e escrever funcionalmente 
textos variados em diferentes situações. Como apontado por Soares(1998), muitos 
adultos de países desenvolvidos, tendo alcançado um letramento escolar, são 
capazes de comportamentos escolares de letramento (ler e produzir textos 
escolares), mas são incapazes de lidar com os usos cotidianos da leitura e da escrita 
em contextos não-escolares. 
 
As práticas de leitura e produção de textos desenvolvidas na escola, relacionadas a 
um “letramento escolar”, não se adequaria, conforme certas expectativas, ao 
desenvolvimento socioeconômico-cultural de nossa sociedade, em que os indivíduos 
convivem em contextos em que a escrita se faz presente de forma mais complexa. O 
ensino tradicional de alfabetização em que primeiro se aprende a “decifrar um 
código”5 a partir de uma seqüência de passos/etapas, para só depois se ler 
efetivamente, não garante a formação de leitores/escritores. 
 
Por outro lado, é importante destacar que apenas o convívio intenso com textos que 
circulam na sociedade não garante que os alunos se apropriem da escrita alfabética, 
uma vez que essa aprendizagem não é espontânea e requer que o aluno reflita 
sobre as características do nosso sistema de escrita. Nessa perspectiva, 
concordamos com a distinção que Soares (1998a) faz entre alfabetização e 
letramento. Para essa autora: alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não 
inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e 
escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o 
indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado (p. 47). 
 
Sabemos que, para a formação de leitores e escritores competentes, é importante a 
interação com diferentes gêneros textuais, com base em contextos diversificados de 
comunicação. Cabe à escola oportunizar essa interação, criando atividades em que 
 
 
5 Dispomos hoje de evidências para julgar errado, conceber ou denominar a escrita alfabética como 
“código”. Cremosque o fato de muitos lingüistas e estudiosos da linguagem continuarem assim 
designando o sistema de escrita (ou notação) alfabética talvez reflita ainda um descuido em avaliar a 
complexidade da alfabetização inicial, no que concerne ao aprendizado da escrita alfabética em si 
como objeto de conhecimento. 
 38 
os alunos sejam solicitados a ler e produzir diferentes textos. Por outro lado, é 
imprescindível que os alunos desenvolvam autonomia para ler e escrever seus 
próprios textos. Assim, a escola deve garantir, desde cedo, que as crianças se 
apropriem do sistema de escrita alfabético, e essa apropriação não se dá, pelo 
menos para a maioria das pessoas, espontaneamente, valendo-se do contato com 
textos diversos. É preciso o desenvolvimento de um trabalho sistemático de reflexão 
sobre as características do nosso sistema de escrita alfabético. 
 
A professora Ana Luzia da Silva Pedrosa6, que leciona há mais de 15 anos na rede 
pública de ensino, parece ter se apropriado bem do discurso da importância de se 
trabalhar a leitura e a produção de diferentes gêneros na sala de alfabetização e 
buscava desenvolver uma prática com base na perspectiva do letramento. Assim, 
diariamente ela realizava com seus alunos uma seqüência de atividades que 
envolvia as seguintes etapas: leitura de um texto feita oralmente por ela, já que seus 
alunos não sabiam ainda ler; atividade de interpretação oral do texto; atividade de 
produção de texto coletivo tomando-se por base o texto lido; cópia do texto 
produzido no quadro e, por último, realização de desenhos relacionados ao texto. 
Nos nossos encontros de formação, ela, no entanto, sempre falava da angústia que 
sentia porque seus alunos, mesmo no final do ano, não estavam alfabetizados e 
tinham muitas dificuldades para ler e escrever sozinhos. Durante o curso, a 
professora percebeu que faltava, na sua prática, o desenvolvimento de atividades 
que levassem os alunos a refletir sobre o sistema alfabético de escrita. Em um dos 
encontros ela desabafou: 
Agora eu sei por que meus alunos não se alfabetizam! Eu não faço atividades no 
nível da palavra, atividades de análise fonológica, Fico só fazendo leitura e produção 
de texto coletivo, e pedindo para eles copiarem e desenharem. Assim, eles não 
podem se alfabetizar. Agora vou fazer diferente! 
 
A leitura e a produção de diferentes textos são tarefas imprescindíveis para a 
formação de pessoas letradas. No entanto, é importante que, na escola, os 
contextos de leitura e produção levem em consideração os usos e funções do 
 
 
6
 A professora Ana Luzia da Silva Pedrosa ensinava, em 2004, em uma turma de 2a série na escola 
Professor Fontainha de Abreu, pertencente à Rede Estadual de Ensino de Pernambuco, e na Escola 
Municipal Engenho do Meio, da Secretaria de Educação da cidade do Recife, no 1o ano do 1o ciclo. 
 
 39 
 
gênero em questão. É preciso ler e produzir textos diferentes para atender a 
finalidades diferenciadas, a fim de que superemos o ler e a escrever para apenas 
aprender a ler e a escrever. 
 
Por outro lado, um trabalho sistemático de reflexão sobre o sistema de escrita 
alfabético não pode ser feito apenas através da leitura e da produção de textos, 
como pensava a professora Luzia. É preciso o desenvolvimento de um ensino no 
nível da palavra, que leve o aluno a perceber que o que a escrita representa (nota no 
papel) é sua pauta sonora, e não o seu significado, e que o faz através da relação 
fonema/grafema. Assim, é imprescindível que, diariamente, em turmas de 
alfabetização em que os alunos estão se apropriando do sistema de escrita, a 
professora realize atividades com palavras que envolvam, entre outras coisas: 
 uma reflexão sobre suas propriedades: quantidade de letras e sílabas, ordem 
e posição das letras, etc. 
 a comparação entre palavras quanto à quantidade de letras e sílabas e à 
presença de letras e sílabas iguais; 
 a exploração de rimas e aliteração (palavras que possuem o mesmo som em 
distintas posições (inicial e final, por exemplo) 
Essas atividades de reflexão sobre as palavras podem estar inseridas na leitura e na 
produção de textos, uma vez que são muitos os gêneros que favorecem esse 
trabalho, como os poemas, as parlendas, as cantigas, etc. Por outro lado, o trabalho 
com palavras estáveis, como os nomes dos alunos, é fundamental, principalmente 
no início da alfabetização. No capítulo 6 deste livro, discutiremos algumas práticas 
de professores que buscaram articular o trabalho de apropriação do sistema de 
escrita alfabético com a leitura e a produção de textos, ou seja, que tentaram 
desenvolver uma prática de “alfabetizar letrando”. 
 
Enfim, considerando o que foi discutido até agora, sabemos que ser alfabetizado, 
hoje, é mais do que “decodificar” e “codificar” os textos. É poder estar inserido em 
práticas diferenciadas de leitura e escrita e poder vivenciá-las de forma autônoma, 
sem precisar da mediação de outras pessoas que sabem ler e escrever. 
 
Como cabe à escola garantir a formação de cidadãos letrados, resta-nos construir 
estratégias de ensino que permitam alcançar aquela meta: alfabetizar letrando. 
 40 
REFERÊNCIAS 
 
 
CHARTIER, Anne-Marie; HEBRARD, Jean. Discours sur la lecture (1880-2000). 
Paris: BPI-Centre Pompidou/Librairie Arthème Fayard, 2000. 
 
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. 
Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. 
 
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001. 
 
MORAIS, Artur; ALBUQUERQUE, Eliana. Alfabetização e letramento: o que são? 
Como se relacionam? Como “alfabetizar letrando”? In: ALBUQUERQUE, Eliana; 
LEAL, Telma. Alfabetização de jovens e adultos em uma perspectiva de letramento. 
Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 
 
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo: 
1876-1994). São Paulo: Ed. UNESP; CONPED, 2000. 
 
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 
1998. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 41 
ALFABETIZAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO: a instituição do letramento escolar 
 
 
Carmi Ferraz Santos 
 
 
 
Alguns estudiosos da história da leitura atribuem essa presença cada vez maior de 
leitores comuns sendo representados nas artes plásticas ao aumento do número de 
leitores que se inicia no século XV com a invenção da imprensa e que se expande 
ainda mais com o processo 
 
de alfabetização efetivado através de uma escolarização de massa ocorrido a partir 
do século XVIII como uma exigência da sociedade em pleno processo de 
industrialização. 
 
Entretanto, pesquisadores voltados para discussões sobre o letramento têm 
questionado essa visão da alfabetização popular como meramente um produto 
desse processo de escolarização de massa impulsionado pela industrializacão.1 
Nossa proposta neste capítulo é discutir algumas questões relativas à ligação que se 
tem estabelecido entre a alfabetização e o processo de escolarização, analisando de 
que forma o caráter assumido pela escolarização interferiu na construção de 
determinado conceito de alfabetização na sociedade ocidental. 
 
 
Alfabetização sem escolas 
 
 
 
Embora a idéia de uma escola para todos subsidiada pelo Estado remonte à Platão 
na Grécia Antiga, é apenas no século XVIII que se vai instaurar, na sociedade 
ocidental, um processo de escolarização em massa mediante uma educação 
pública. 
 
Assiste-se nesse período ao desenvolvimento de uma sociedade industrial e urbana 
que vai aos poucos substituindo o antigo regime baseado numa economia rural e 
agrária. Com o estabelecimento de uma nova ordem econômico-social, a exigência 
de uma instrução universal torna-sepremente. Segundo Manacorda (1989), fábrica e 
escolas nascem juntas, uma vez que este duplo processo, de morte da antiga 
produção artesanal e do renascimento da nova produção da fábrica, gera o espaço 
para o surgimento da moderna instituição escolar pública (p. 249)! 
 
Entretanto, apesar de se poder estabelecer relação linear e causal entre a 
industrialização e a constituição de uma escola universal, não se pode afirmar que, a 
 42 
partir do século XVIII, passou-se do total analfabetismo para a alfabetização graças 
apenas à escolarização. 
 
Pelo contrário, estudos têm mostrado quanto autônoma tem sido a história da 
alfabetização em relação à história da escola. Ou seja, não foi preciso que primeiro 
fosse implantada uma escolarização em massa para que as pessoas comuns 
fossem alfabetizadas. 
 
Cook-Gumperz (1991), discutindo essa relação entre alfabetização e escolarização, 
afirma que a alfabetização de uma parcela considerável da população da Europa 
precedeu o desenvolvimento industrial. Antes do desenvolvimento de um sistema 
burocrático de ensino, o processo de alfabetização ocorria de modo informal, a 
aprendizagem da leitura e da escrita se dava nos grupos aos quais as pessoas 
faziam parte e nos mais variados ambientes, como a própria casa ou local de 
trabalho: 
 
A maioria das crianças aprendia a ler e, talvez, a escrever com seus pais ou 
vizinhos, sem licença e sem treinamento, em ambientes que hoje e até mesmo no 
século dezenove os observadores teriam hesitado em chamar de escolas 
(LAQUEUR, 1976 apud COOK-GUMPERZ, 1991, p. 37) 
 
Embora considerada elementar, essa alfabetização, argumenta Cook-Gumperz, foi 
capaz de permitir o crescimento de uma cultura popular letrada, que passou a fazer 
parte da vida diária das pessoas comuns. A princípio, as práticas de leitura, 
primeiramente, e a escrita mais tarde, possuíam valor nas áreas recreativas e 
sociais, assumindo apenas posteriormente um papel na vida econômica dessas 
pessoas. 
 
Investigando a cultura popular na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e na Europa, 
diferentes pesquisadores revelaram a presença de cartas pessoais, diários, notas, 
registros, livros, folhetos e almanaques como parte essencial da vida cotidiana das 
populações já no século XVIII, tanto na cidade quanto no campo. Entre esses 
pesquisadores, citamos Laqueur, que nos lança as seguintes questões: como e 
porque essa cultura letrada veio a existir? Por que razões homens e mulheres foram 
impelidos a aprender a ler e a escrever? Questões que ele próprio se propõe a 
responder: 
 
Nenhum fator isolado, considerado em si mesmo, pode explicar isso [...] As pessoas 
não se alfabetizavam por esta ou aquela razão em particular, mas porque se sentiam 
mais e mais tocadas em todas as áreas de suas vidas pelo poder da comunicação 
 43 
que apenas a palavra escrita torna possível. 
 
Havia, portanto, uma motivação para aprender a ler e a escrever; estas habilidades 
permitiam que homens e mulheres funcionassem mais efetivamente em uma 
variedade de contextos sociais. Isto explica por que, na ausência de escolas 
externamente patrocinadas, ambientes apoiados internamente eram responsáveis 
pela criação e transmissão da alfabetização. 
 
Embora não possamos, como diz Laquer, deter-nos em um único elemento como 
fator motivador dessa expansão da alfabetização, não podemos desconsiderar a 
influência dos conflitos religiosos ocorridos a partir do século XVI, na Europa. 
 
Conforme destaca Manacorda (1989), os movimentos populares ligados à Reforma 
Protestante promoveram a difusão da instrução como meio de garantir a leitura e a 
interpretação da Bíblia por cada fiel. A mediação do clero entre Deus e os fiéis passa 
a ser questionada, e a leitura das sagradas escrituras torna-se o modo pelo qual 
cada indivíduo teria acesso ao caminho da salvação. A partir desse posicionamento, 
as igrejas protestantes passaram a preocupar-se em ensinar a ler aos seus 
seguidores e estimularam a prática da leitura familiar diária pelo chefe da família. 
Nesse contexto, o material para a aprendizagem se constituía das sagradas 
escrituras, dos livros de oração e de catecismo. 
 
Entretanto, não apenas a Reforma, mas também o movimento de Contra-Reforma, 
buscou a instrução de seus fiéis como forma de introduzi-los na verdade da fé 
católica: 
 
Nos territórios católicos, as ordens religiosas missionárias encarregavam-se da 
pregação da doutrina cristã. [...] As crianças deveriam ir à escola para aprender a ler 
as orações que constituíam o ritual da missa e aprender o catecismo até a primeira 
comunhão (CHARTIER, 2002). 
 
Assim sendo, parece que a primeira alfabetização em massa levada a cabo na 
Europa Ocidental esteve ligada muito mais à catequese cristã que ao processo de 
industrialização. E as práticas de alfabetização que então eram efetivadas estavam 
intimamente ligadas aos usos e material escrito que faziam parte das práticas 
cotidianas. Ou seja, não havia separação entre o processo de alfabetização e as 
práticas de letramento presentes na comunidade. A alfabetização anterior à 
instituição da escolarização em massa estava marcada por “uma idéia pluralista 
acerca da alfabetização como um conjunto de diferentes habilidades relacionadas 
com a leitura e escrita para muitas e diferentes finalidades” (COOK-GUMPERZ, 
 44 
1991, p. 34). 
 
Como podemos perceber, não foi a escolarização que promoveu a alfabetização. 
Pelo contrário, a escolarização foi uma conseqüência do desenvolvimento de uma 
alfabetização popular que promoveu uma cultura popular letrada que se constituiu 
como parte de um movimento em favor de mudanças sociais, entre elas o acesso à 
escola. 
 
 
Alfabetização na escola 
 
 
 
Se não foi a alfabetização, qual a motivação para a implantação de uma instrução 
pública? Segundo Cook-Gumperz (op. cit), a demanda por uma escola formal partiu 
de pelo menos duas forças: 1) da pressão das pessoas comuns que defendiam a 
alfabetização e a conquista da escolarização como parte de seu desenvolvimento 
pessoal e social; 2) da crescente necessidade de uma força de trabalho com um 
senso de disciplina e de competências escolares. 
 
Uma visão otimista e a favor da instrução pública não foi a princípio um consenso. 
Durante o final do século XVIII e início do XIX, alguns políticos e alguns líderes 
religiosos acreditavam que permitir a escolarização para toda a população levaria à 
perda de controle sobre ela. 
 
Entretanto, para outros o valor da instrução institucionalizada estava em possibilitar 
a retirada da alfabetização das mãos de grupos populares, promovendo, assim, um 
ensino sob controle do sistema público, como destaca Graff (1984) 
 
 
[...] de forma crescente, eles (políticos e religiosos) vieram a concluir que a 
alfabetização, se fornecida em instituições formais, cuidadosamente controladas, 
criadas para o propósito da educação e estreitamente supervisionadas, poderia ser 
uma força poderosa e útil na obtenção de uma variedade de importantes fins. (p. 48) 
Assim sendo, a implantação de um sistema público de instrução nos séculos XVIII e 
XIX parece não ter ocorrido como estímulo à alfabetização da população, mas, pelo 
contrário, buscou subjugá-la, controlando “tanto as formas de expressão quanto de 
pensamento” (COOK-GUMPERZ, op cit. , p. 40). Um dos objetivos desse controle 
vinha, sem dúvida, da necessidade de uma mão de obra capaz de adequar-se à 
disciplina do trabalho fabril: 
 
Mas o que a alfabetização difundida faz a um país em desenvolvimento? No mínimo 
ela constitui um treinamento em ser treinado. O homem que na infância se submeteu 
 45 
a alguns processos de disciplina e aprendizagem consciente tem maiorpossibilidade 
de responder a um treinamento adicional, seja em um exército de recrutas, em uma 
fábrica... (R. P. DORE, 1967, apud GRAFF, 1984, p. 231). 
 
Essa alfabetização levada a efeito por meio da escolarização teve por base um 
processo de ensino no qual a capacidade de ler e escrever foi sendo associada a 
características morais e sociais. Isso levou a uma nova divisão da sociedade entre 
os educados (escolarizados) e os não-educados (não-escolarizados). Dessa forma, 
os detentores do saber escolar passaram a ser considerados sujeitos letrados, 
enquanto aqueles deixados à margem da escola eram vistos como sujeitos iletrados, 
já que não dominavam o saber da leitura e da escrita requerido pela escola, antes 
detinham um saber de “segunda” categoria. A aprendizagem da língua escrita 
assume, a partir da escolarização formal, um caráter de alfabetização escolar, 
passando a considerar como verdadeiramente alfabetizado apenas o sujeito que 
passasse pela escola. 
 
Embora a noção de uma escolarização pública tenha sido construída com base 
nessas duas forças contraditórias apresentadas acima, à medida que o processo de 
escolarização estava sendo implantado, as práticas populares passaram a ser 
controladas, modificadas ou substituídas. Essa relação de domínio da escolarização 
sobre a alfabetização popular trouxe profundas conseqüências para a aprendizagem 
da escrita e da leitura. 
 
Uma das primeiras conseqüências dessa relação que passa a se estabelecer entre a 
alfabetização e a escolarização foi a instituição de um processo de alfabetização 
distanciado dos usos e do material de leitura e de escrita presentes no cotidiano das 
pessoas. O que passa a ser ensinado mediante a alfabetização escolarizada não faz 
parte de uma cultura letrada local, uma vez que um ensino que se quer universal 
necessita de um saber padronizado e sistematizado. 
 
Cook-Gumperz (1991), citando Good e Watt (1968), afirma que o movimento em prol 
da igualdade através da escolarização e do acesso ao conhecimento escrito estava, 
com efeito, cancelando alguns benefícios de um conhecimento anteriormente menos 
sistematizado que existia numa tradição oral e letrada pluralista (p. 43). 
 
Os sistemas burocráticos de ensino, embora permitissem o acesso de muitos à 
alfabetização, ao redefinirem a alfabetização valendo-se de um sistema de 
 46 
conhecimentos descontextualizados, serviu para separar o povo de sua base cultural 
local. A partir de então, o processo de ensino da leitura e da escrita deixa de ser 
realizado baseando-se em textos utilizados no cotidiano e passa a utilizar material 
escrito elaborado especificamente para uso escolar. 
 
Ou seja, o letramento como prática social de leitura e escrita do cotidiano passa a 
ser substituído por um letramento eminentemente escolar. Este último, marcado por 
uma interlocução artificial, separa o processo de aprendizagem da língua escrita das 
reais situações de interlocução. A alfabetização efetivada na escola deixa de 
trabalhar as habilidades discursivas e trata a linguagem meramente como fenômeno 
lingüístico abstrato. Segundo Soares (1998), essa relação estreita entre 
escolarização e letramento controla muito mais do que expande as práticas de 
letramento, já que desconsidera as práticas de leitura e escrita vividas fora do 
espaço escolar. Isso acaba por levar, na verdade, à desaprendizagem da escrita, 
visto que o que passou a ocorrer na escola foi a aprendizagem pelo aluno de uma 
escrita na qual a produção de texto é ou uma situação de demonstração de suas 
habilidades de grafar as palavras que lhe foram ensinadas ou, em etapas mais 
avançadas do processo de alfabetização, de demonstração da capacidade de usar a 
escrita com aquelas funções consagradas pela escola, uma escrita que devolva a 
essa escola o discurso que ela impõe. (SOARES, 2004, p. 81). 
 
Outra consequência da escolarização do processo de alfabetização resulta do 
próprio caráter teleológico que a escola tem assumido desde suas origens. 
Objetivando garantir o acesso a um saber padronizado, a escola se estruturou de 
forma orgânica e sistematizada. O conhecimento foi, então, dividido e distribuído em 
programas escolares que determinavam o que deveria ser conhecido, em que 
tempo, de que modo e como deveria ser avaliado. 
 
Um exemplo clássico dessa sistematização proposta para a alfabetização pode ser 
encontrado na “Conduite des écoles chrétiennes”, redigido por Jean Baptiste de La 
Salle e impresso em 1720: 
 
Haverá nove espécies de lições nas escolas cristãs: 1ª) a tábua (mural) do alfabeto; 
2ª) a tábua das sílabas; 3ª) o silabário; 4ª) o segundo livro, para aprender a soletrar 
e a silabar; 5ª) ainda no segundo livro, em que aqueles que sabem silabar 
perfeitamente começarão a ler; 6ª) o terceiro livro, que serve para aprender a ler com 
pausas; 7ª) o Saltério; 8ª) a Civilização Cristã; 9ª) as letras escritas à mão (LA 
 47 
SALLE, p. 16 apud MANACORDA, 1989). 
 
Essas lições, por sua vez, eram divididas de modo a atender aos alunos, que eram 
classificados, de acordo com o seu rendimento, em principiantes, médios e 
avançados. Havia também orientações que determinavam como deveria ser 
apresentada a seqüência mostrada 
 
no trecho transcrito acima. 
 
É no contexto da sistematização proposto por La Salle e também por outros que se 
iniciam os debates acerca do melhor método para melhor ensinar a um maior 
número de alunos. Conforme Chartier (2000), o século XIX constituiu-se como o 
século dos manuais de leitura, 
 
quando se instalou a disputa entre os partidários de diferentes métodos: métodos de 
leitura com soletração ou sem ela, depois métodos simultâneos de leitura e escrita, 
que não utilizavam mais soletração. 
 
Havia ainda os abecedários compostos de uma variedade de listas: de sílabas sem 
significado, de palavras classificadas pelo tamanho (uma, duas, três sílabas), etc. E 
o sucesso, durante o século dezenove, dos novos manuais de leitura [...] no alto da 
 
página, uma vinheta com uma legenda (ilha, usina), enquadrada pela letra I ou letra 
U, em suas diferentes formas de escrever (maiúscula e minúscula de imprensa, à 
esquerda; maiúscula e minúscula cursiva à direita), uma linha de sílabas e depois, 
palavras ilustrando o som trabalhado, e enfim, uma pequena frase nas duas formas 
de escrever. À medida que se avança, os sons aprendidos são combinados aos 
novos (CHARTIER, 2000). 
 
Embora estejamos falando do processo de escolarização da alfabetização iniciado 
entre os séculos XVIII e XIX, essa forma de se estruturar o processo de aquisição da 
língua escrita parece ainda ser algo bem presente e nos lembra as cartilhas 
utilizadas ainda hoje. 
 
Vejamos um trecho do relato de uma professora sobre seu processo de 
alfabetização7: 
 
Eu me lembro que eu me alfabetizei num processo muito longo, talvez assim dos 
dois anos de idade aos doze e talvez, assim, o maior diferencial nesse processo, 
que eu vejo as pessoas da minha geração dizer, é que havia um processo na minha 
família e um processo na escola e os dois eu entendo que se complementavam [...] 
na minha casa o processo muito feito na brincadeira, no jogo e muito recheado de 
fantasia. 
 
Então, eu lembro que a primeira letra que eu aprendi foi o F do meu nome [...] Isso 
 48 
era em casa, agora na escola. O que se fazia na escola? Muito trabalho de cópia e 
memorização. A carta de ABC, a mesma carta de ABC da minha casa era diferente 
na escola, porque na escola você pegava todo o alfabeto para decorar ordenado, 
não é?[...] Era a mesma carta do ABC que minha mãe usava de outro jeito. Por 
exemplo, as lições do fim que na escola você só tinha acesso àqueles textos depois 
quedecorava as letras padrões, minha mãe pegava a carta e lia os textos. 
 
Podemos observar pelo relato da professora o quanto o processo de alfabetização 
vivenciado por ela nos remete ao mesmo modelo vivido pelas crianças dos séculos 
XVIII e XIX. No processo vivido por ela na escola, a seqüência das lições 
apresentada na carta de ABC deveria ser rigidamente seguida e só no final era 
permitida a leitura de textos. Assim como proposto na “Conduite” de La Salle e nos 
manuais de leitura do século XIX, o ensino deveria ser iniciado pelas unidades 
menores (letras, sílabas) e levar à sua memorização; passar, então, para às 
palavras e, só depois introduzir os textos. 
 
Assim como os mestres dos séculos XVIII e XIX, muitos professores ainda hoje 
concebem o ato de ler e escrever como algo neutro e universal e acreditam que o 
problema fundamental da alfabetização é uma questão de escolha do método a ser 
utilizado. 
 
Entretanto, a professora também nos fala de uma prática de alfabetização que 
acontecia em casa, com as pessoas da família, que não parece, a princípio, 
preocupada em seguir determinado método. Fala-nos da preocupação dos pais em 
ensinar a escrita antes que se chegasse à escola, pois “tinha de desarnar antes de ir 
para a escola porque se não, não aprende”. Parece, então, que a prática de uma 
alfabetização (ou pelo menos sua iniciação) realizada em casa é uma prática que, 
apesar da instituição da escola, ainda perdura entre determinadas parcelas da 
população. Diferentes estudos sobre histórias de vida de professores observaram 
esse investimento dos familiares numa aprendizagem da escrita antes da entrada 
das crianças na escola em famílias cujos pais apresentam baixo grau de 
escolaridade. 
 
 
7
 Professora Maria de Fátima Ribeiro Soares participou da 1ª turma do Módulo de Alfabetização e 
Letramento do curso de formação do CEEL-UFPE. 
 
 49 
 
Embora no relato da professora Fátima a experiência de alfabetização vivenciada 
em casa pareça diferenciar-se, em alguns aspectos, do que acontecia na escola, os 
estudos mencionados acima mostram que o investimento em uma alfabetização 
anterior à escola se traduz, muitas vezes, na reprodução em casa de tarefas 
escolares. Isso reflete o peso da alfabetização escolarizada pela qual passaram 
gerações e gerações, formadas e influenciadas pela visão de leitura e de escrita na 
qual a escola tem fundamentado seu ensino. Essa visão acaba por levar, muitas 
vezes, a se considerar apenas como verdadeiros exemplos de material escrito 
aqueles prestigiados pela escola, desconsiderando assim as práticas de leitura e 
escrita efetivamente utilizadas pelas pessoas no cotidiano. 
 
É o que demonstra Santos (2004), estudando as representações de escrita de 
professoras das séries iniciais. A autora observa essa marca do letramento escolar 
nos relatos das professoras quando elas trataram das práticas de escrita atuais ou 
as vivenciadas em suas famílias quando crianças. Nesse momento, as professoras 
desconsideravam os gêneros de caráter mais doméstico8 e se concentravam nos 
gêneros valorizados pela escola e, por isso, não se consideravam leitoras ou 
produtoras de textos. 
 
Batista (1998) argumenta que os professores também não se consideram 
“verdadeiros” leitores em razão de, apesar de terem acesso a material escrito 
valorizado pela escola, não conseguem fazer uso das “competências e esquemas de 
percepção e apreciação transmitidos pela escola” (p. 31). 
 
As análises dos estudos mencionados nos levam a perceber o quanto a noção 
ampliada de alfabetização do século XVIII, que considerava as práticas de 
letramento efetivamente produzidas no cotidiano das pessoas comuns, foi 
abandonada, em favor de práticas de letramento eminentemente escolar. 
 
Entretanto, não se pode negar o papel que a escola exerce hoje em nossa 
sociedade e que, para muitos indivíduos, ela seja, talvez, o único meio de acesso à 
aprendizagem sistemática da escrita. É preciso considerar também que a escola 
apresenta suas especificidades e, por isso, discutir as práticas de alfabetização 
realizadas dentro de seus muros não se trata apenas de substituir as formas de 
 50 
trabalho escolar. 
 
Portanto, a questão central parece ser como conciliar as especificidades da escola 
que tem uma forma de conduzir suas atividades e gêneros textuais próprios com o 
trabalho com os gêneros que circulam na sociedade, sem que esses percam suas 
peculiaridades? Como possibilitar a construção do sistema alfabético de escrita 
pelos alunos, possibilitando-lhes o uso dos gêneros textuais que circulam na 
sociedade e, não apenas na escola? 
 
Talvez a resposta esteja em começar a fazer uma reflexão acerca dos objetivos e 
valores que têm sustentado as práticas de ensino da língua escrita na escola. 
Discutindo a noção de método que tem sido entendido como sinônimo de manual, de 
regras a ser seguidas, e começar a considerá-lo como soma de ações baseadas em 
conjunto de princípios que responde a objetivos determinados (SOARES, 2004), 
considerando que a alfabetização e a letramento, embora fenômenos diferenciados, 
são interdependentes e intercomplementares. 
 
Dessa forma, será possível recuperar a noção ampliada de alfabetização que 
estabelece os usos e as práticas efetivas de leitura e escrita vividas na sociedade e 
que foi, aos poucos, sendo substituída por uma visão meramente escolar do 
processo de aprendizagem da língua escrita. 
 
REFERÊNCIAS 
 
 
BARRÉ-DE-MINIAC, Christine. Apprentissage et usages de l’ecriture: 
représentation d’enfantes et des parents d’élèves. Repères. n. 15, 1997. 
 
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MARINHO, Marildes; SILVA, Ceres Salete Ribas. Leituras do professor. Campinas: 
Mercado das Letras, 1998. 
 
CHARTIER, Anne Marie. A escola obrigatória e o ofício de ensinar. Palestra 
proferida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. 2002. 
 
 
 
8
 A autora se refere aos gêneros mais utilizados no cotidiano, tais como: anotação em agenda, lista 
de compras, bilhetes, preenchimento de cheques, etc.
 51 
CHARTIER, Anne Marie. Réussite et ambivalence de I’innovation pédagogique: le 
cas de l’enseignement de la lecture. Recherche et Formation pour professions de l’ 
éducation. Innovation et réseaux sociaux, INRP, n. 34, p. 41-56, 2000. 
 
COOK-GUMPERZ, Jenny. A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes 
Médicas, 1991. 
 
GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Rememorando trajetórias de professoras-
alfabetizadoras: a leitura como prática constitutiva de sua identidade e formação 
profissionais. Campinas: Mercado de Letras: Faep/UNICAMP, 2002. 
 
GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 
 
MANACORDA, Mario Alighiero. Historia da educação – da Antigüidade aos nossos 
dias. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. 
 
SANTOS, Carmi Ferraz. O professor e a escrita: entre práticas e representações. 
Campinas: UNICAMP, 2004. 
 
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 
1998. 
 
________. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2004. 
 
 
GÊNEROS: por onde anda o letramento?9 
 
 
Márcia Mendonça 
 
 
Neste capítulo, discutiremos questões relativas aos gêneros textuais e seu 
tratamento na alfabetização e no ensino de língua materna. Para isso, situaremos o 
aumento do interesse por essa temática, relacionaremos o conceito de gênero ao de 
letramento e a outros conceitos pertinentes ao ensino de língua e questionaremos 
aspectos da didatização dos gêneros na sala de aula. 
 
 
A “moda” dos gêneros: inserção no sociointeracionismo e no 
socioconstrutivismoOs estudos sobre gêneros estão em voga, mas não são um modismo. Sejam eles 
denominados “gêneros textuais”, “gêneros de texto”, “gêneros discursivos”, sejam 
“gêneros do discurso”, o grande interesse pelo tema no Brasil, nos últimos 5 anos 
especialmente, fez proliferar inúmeros trabalhos acadêmicos a respeito, com boa 
diversidade de abordagem (SANTOS, 2002). 
 
 52 
Para entender por que esse interesse crescente pelos gêneros é uma opção 
respaldada e consistente, e não mero modismo, é necessário remeter aos 
paradigmas do socioconstrutivismo e do sociointeracionismo, que vêm se firmando 
como referência nas pesquisas teórica e aplicada da Lingüística e da Educação. 
Apesar de tais denominações não abrigarem, em cada uma, posições homogêneas, 
podemos dizer que se assemelham em certos pontos. 
 
Por exemplo, para o socioconstrutivismo, um princípio básico é a compreensão da 
aprendizagem não como uma transferência de saberes, neutra e linear, mas como 
processo dinâmico de (re)construção e (re)acomodação de conceitos, mediado pelos 
interlocutores (professor, pais e colegas, por exemplo) e também pela linguagem 
(VYGOTSKY, 1989a). 
 
9
 Mantivemos, neste artigo, o termo letramento no singular, embora já se discuta que, na verdade, 
são vários letramentos, dependendo das práticas de leitura e escrita. Por exemplo, já se fala em 
letramento digital (ver cap. 8 deste livro). 
 
 
 
 
 53 
 
De modo similar, para o sociointeracionismo, o ensino de língua não pode restringir-
se à análise de formas lingüísticas em si, como portadoras de significados 
invariáveis e pré-definidos. De fato, a língua não existe em estado de dicionário, com 
sentidos sempre determinados e estáveis, mas tem complexo funcionamento, 
influenciado por fatores sociocognitivos (representações, expectativas, papel social 
dos interlocutores, conflito/convergência de identidades, etc.). 
 
Por essa razão, na escola, as análises morfológica e sintática, realizadas sem 
qualquer referência aos usos da linguagem – identifique e classifique os 
substantivos; classifique as frases em interrogativa, exclamativa; diga se o período é 
composto por subordinação ou coordenação -, não se justificariam. Também o 
estudo de vocabulário feito com palavras soltas, desvinculadas de seu contexto de 
uso, teria sua validade questionada. 
 
É um pressuposto essencial do sociointeracionismo o fato de que os sentidos não 
existem por si sós; na verdade, os sentidos constroem-se na interação verbal e são, 
portanto, resultado das condições de produção dos discursos: quem diz o que, para 
quem, em que situação, através de que gênero textual, com que propósito 
comunicativo e com que escolhas lingüísticas e extralingüísticas. 
 
Os gêneros se definem justamente por serem a intersecção dessas condições de 
produção, ou seja, são respostas às necessidades humanas de comunicação, são 
fenômenos ou entidades sociocomunicativas, conforme detalharemos no tópico a 
seguir. 
 
 
Gêneros: afinal de que estamos falando?10 
 
 
As ações de linguagem se concretizam discursivamente dentro de um gênero de 
discurso como um processo de decisão. 
 
Nas mesmas condições contextuais, para um mesmo referente, os discursos 
produzidos podem apresentar características diferentes. Por exemplo: no quadro de 
uma mesma ação (convencer o aluno a ler um determinado livro) o professor pode 
escolher entre redigir um texto teórico, contar a história de seu próprio percurso de 
 
10 Privilegiaremos os comentários sobre os gêneros escritos, embora reconheçamos 
o importante papel dos gêneros orais no letramento, conforme aponta ROJO (2001). 
 
5
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 54 
 
 
leitor ou persuadi-lo em uma conversa livre etc. Essa decisão vai depender do 
gênero discursivo em uso no grupo social e de um cálculo de sua pertinência e de 
sua eficácia em relação ao objetivo da ação. (BRANDÃO, 2000, p. 26) 
 
Da leitura da epígrafe acima, infere-se que os gêneros são como são porque devem 
funcionar para propósitos diversos, assumindo configurações diferentes. Portanto, 
podemos dizer que os gêneros são formas culturais e cognitivas de ação social, 
estabilizadas ao longo da história, corporificadas de modo particular na linguagem, 
caracterizadas pela função sociocomunicativa que preenchem (BAKHTIN, 2000; 
MARCUSCHI, 2000, 2002). Uma receita, tal como a conhecemos hoje, tem a função 
de registrar, por escrito, a forma como se prepara certo prato, o que possibilita que 
outras pessoas, em tempos e lugares diferentes, repitam esse preparo. Por essa 
razão, é imprescindível listar os ingredientes e suas quantidades, a forma de 
misturá-los e, e alguns casos, o modo de servir. 
 
Quanto à estabilização dos gêneros ao longo do tempo, podemos citar o caso do 
que hoje se conhece como artigo científico (o gênero primordial das revistas 
científicas), que nem sempre teve a configuração atual. Na verdade, para comunicar 
suas reflexões e experimentos, os cientistas utilizavam anotações e cartas pessoais, 
estas últimas enviadas a amigos e colegas de ofício. Com o desenvolvimento da 
ciência e o estabelecimento das universidades, foi preciso registrar mais 
sistematicamente as descobertas e os avanços, além de socializá-los. Começava a 
surgir um propósito comunicativo bem específico, em dada situação de interação: 
surgia, por isso, um novo gênero, o artigo científico. Este seguiria se modificando ao 
longo da história, até chegar a sua forma atual que também continuará a mudar nas 
próximas décadas, porque, decerto, haverá alterações nas funções 
sociocomunicativas, nas formas de utilizar e de fazer circular o artigo científico. 
 
A propósito, o gênero que você está lendo agora é um artigo de divulgação 
científica, semelhante ao artigo científico, mas que difere: a) quanto ao público leitor, 
neste caso, o professor, e não apenas os cientistas e acadêmicos; b) quanto ao 
propósito comunicativo, o de 
 
servir como material para formação de professores, e não o de apenas socializar 
reflexões acadêmicas. Por isso, é comum, nos artigos de divulgação científica, incluir 
 
 
 
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7 
 56 
 
 
mais exemplos (o que estamos fazendo neste parágrafo), parafrasear, tudo isso para 
tornar o texto mais didático. 
 
Continuando o que foi exposto acima, pode-se dizer que os gêneros se definem, em 
primeiro lugar, por seu propósito comunicativo, e não por sua forma lingüística. 
Como apresentam um caráter de relativa estabilidade, conforme postula Bakhtin 
(2000), os gêneros apresentam plasticidade, ou seja, são maleáveis, mudam de 
forma para se adaptar às necessidades humanas, aos diversos eventos de 
letramento que vivenciamos a cada dia. A forma dos gêneros é, portanto, resultado 
das suas condições de produção: quem diz o que, para quem, em que situação, 
através de que gênero textual, com que propósito comunicativo. 
 
Assim, na escola, seria um equívoco trabalhar com os gêneros como se fossem 
 
“moldes” prontos, que o aluno só teria de “preencher”, sem levar em conta a situação 
de interação. Mesmo havendo características comuns a vários exemplares do 
gênero, ocorrem variações. Por exemplo, no gênero carta pessoal, a saudação 
poderá ser bem variada, dependendo dos interlocutores e do grau de intimidade - 
 
Querido papai; Amiga, Fofinho, Prezada Tia Maria, Meu amor, Gabriela, Mainha, 
entre outros – ou até poderá nem existir. Os modelos fixos, portanto, podem ser uma 
“armadilha”, pois desconsideram que os gêneros são intrinsecamente ligados à 
situação de interação social e cultural específica, logo, são maleáveis até certo 
ponto. 
 
Os textos, qualquer que seja o gênero, apresentam seqüências textuais típicas, 
normalmente divididas emcinco categorias: narrativa, descritiva, expositiva, 
argumentativa e injuntiva. As seqüências textuais são o modo de organização 
lingüístico-discursiva dos textos. 
 
Por exemplo, as seqüências narrativas são caracterizadas pelo uso de verbos no 
passado, indicando o decorrer do tempo, além de marcadores de espaço (naquela 
cidade, no Brasil, na Assembléia Legislativa, num reino distante, etc.) e tempo 
(então, logo depois, passadas duas horas, etc.). No conto abaixo, produzido por uma 
aluna da Rede Municipal do Recife, predominam as seqüências narrativas: 
 
Salientamos que é possível categorizar as seqüências textuais de modo diferente, 
de acordo com a linha de investigação adotada. Por exemplo, os pesquisa dores 
Dolz, Pasquier e Schneuwly, integrantes do chamado grupo de Genebra, 
 
 57 
 
 
categorizam as seqüências textuais nas seguintes ordens discursivas: narrar 
(ficção), relatar (não-ficção), expor, argumentar e descrever ações (instruções e 
prescrições). Apesar das pequenas divergências, há sempre mais semelhanças, o 
que aponta para um núcleo comum, de consenso, conforme se pode constatar pela 
comparação entre as classificações. 
 
A seqüência expositiva, por sua vez, caracteriza-se por preferir os verbos no 
presente, além de predicados com declarações sobre fenômenos ou entidades. 
Como em outros gêneros de caráter didático, neste artigo de divulgação científica 
que você está lendo agora, há varias seqüências expositivas, como esta: “A forma 
dos gêneros é, portanto, resultado das suas condições de produção”. 
 
Cada texto, via de regra, apresenta seqüências textuais variadas. 
 
Gêneros como fábula, conto, crônica e notícia, por exemplo, abrigam trechos tanto 
narrativos quanto descritivos. 
 
Assim, o termo “narrativo” não se refere a um gênero em especial, mas a uma 
seqüência que pode estar presente em vários gêneros diferentes. Por exemplo, diz-
se que um gênero é narrativo se predominam seqüências narrativas, como no caso 
da notícia, da biografia e da lenda. Reforçando o que já dissemos, esses mesmos 
gêneros, no entanto, podem apresentar outras seqüências, não-predominantes: a 
notícia pode trazer também trechos descritivos das pessoas e do local em que o fato 
ocorreu, além dos trechos narrativos sobre o fato em si; a biografia pode trazer 
trechos expositivos sobre a situação do país do biografado em dada época; a lenda 
pode trazer trechos argumentativos, com um personagem tentando convencer outro. 
Ensinar a narrar, a descrever, a argumentar, apenas de modo geral, sem considerar 
o modo como se narra, se descreve ou se argumenta nos vários gêneros, pode ser 
insuficiente para que o aluno domine a constituição de cada um deles. 
 
Vistos os conceitos de gênero e tipo, trataremos das relações entre gêneros e 
letramento. 
 
Gêneros e letramento: entrecruzando caminhos Em sociedade, são múltiplos e 
diversificados os usos da leitura. Lê-se para conhecer. Lê-se para ficar informado. 
Lê-se para aprimorar a sensibilidade estética. Lê-se para fantasiar e imaginar. Lê-se 
para resolver problemas. E lê-se também para criticar e, dessa forma, desenvolver 
 
 
 58 
 
posicionamento diante dos fatos e das idéias que circulam através dos textos 
(SILVA, 1998, p. 27). 
 
A citação de Silva poderia ser parafraseada, acrescentando-se, a cada propósito 
comunicativo citado, alguns gêneros, para exemplificar as variadas práticas de 
letramento por que passamos, dentro e fora da escola. 
 
Em sociedade, são múltiplos e diversificados os gêneros que lemos, escrevemos, 
falamos/dizemos e ouvimos. 
 
Na enumeração acima, apresentam-se práticas de letramento variadas, que 
atendem a objetivos distintos, contemplados nos processos de letramento, escolares 
e não-escolares. Para entendermos melhor a relação entre o conceito de letramento 
e os gêneros, é necessário retomar alguns pontos. 
 
“Letramento” é um termo relativamente recente, visto que surgiu há cerca de 30 
anos, e nomeia o conjunto de práticas sociais de uso da escrita em diversos 
contextos socioculturais. Tais práticas de letramento sempre existiram nas 
sociedades letradas, ou seja, nas sociedades que fazem uso da escrita. É preciso, 
portanto, atentar para o fato de que o conceito de letramento, como prática social de 
uso da escrita, não é algo criado pelos meios científicos sem relação com o mundo 
que nos rodeia. Menos ainda se trata de um método de alfabetização, como 
equivocadamente alguns professores passaram a compreendê-lo. As práticas de 
letramento são um fenômeno existente na realidade, que passou a ser estudado, 
tendo sido nomeado e definido. 
 
O conceito de letramento (e, por extensão, de sujeito letrado) surgiu para dar conta 
da complexidade de eventos que lidam com a escrita. Mais amplo que o conceito 
restrito de alfabetização, a noção de letramento inclui não só o domínio das 
convenções da escrita, mas também o impacto social que dele advém. 
 
Cada vez mais, o conceito de letramento é considerado central para a compreensão 
dos processos de ensino-aprendizagem e para a intervenção dos professores em 
sala de aula. Um dos princípios que norteiam a perspectiva do letramento é que a 
aquisição da escrita não se dá desvinculada das práticas sociais em que se 
inscreve: ninguém lê ou escreve no vazio, sem propósitos comunicativos, sem 
interlocutores, descolado de uma situação de interação; as pessoas escrevem, lêem 
e/ou interagem por meio da escrita, guiadas por propósitos interacionais, desejando
 59 
 
alcançar algum objetivo, inseridas em situações de comunicação. Cabe lembrar 
ainda que esse processo é atravessado por valores e crenças dos mais diversos 
tipos. 
 
Para alcançar esses objetivos, as pessoas fazem uso dos gêneros, artefatos a 
respeito dos quais todos nós temos um impressionante conhecimento intuitivo. Tanto 
isso se confirma que é possível identificarmos certos gêneros apenas por sua 
abertura e seu fechamento. Tal identificação só é possível em razão da relativa 
estabilidade dos gêneros, ao fato de que, em dado gênero, há recorrência de 
formas, conteúdos e estratégias. Vejamos: 
 
Pode haver algumas variações, mas boa parte dos exemplares de cada gênero do 
QUADRO 2 (verbete, notícia, receita, ata, aula e conto de fadas) começam ou 
iniciam de forma similiar: o verbete traz informações relativas a origem, classe 
gramatical do termo, entre outras; a notícia inicia com o fato narrado; a receita 
começa pelos ingredientes; a ata tem o final marcado explicitamente; a aula pode 
finalizar com uma “ponte” para a próxima aula; o conto tem o final feliz clássico. 
 
Bronckart (1999, p. 103) aponta: “A apropriação dos gêneros é um mecanismo 
fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas 
humanas”. A escola deve, portanto, proporcionar aos alunos o contato com uma 
grande diversidade de gêneros orais e escritos, abrangendo várias esferas de 
circulação: a familiar ou pessoal – cartas pessoais, bilhetes, diários, e-mails 
pessoais, listas de compras, etc. –; a literária – fábulas, contos, lendas da tradição 
oral, peças teatrais, poemas, romances, crônicas, contos de fadas, poemas de 
cordel, etc. –; a midiática – notícias, reportagens, anúncios publicitários, charges, 
cartas do leitor, artigos de opinião, etc., veiculados por distintos meios (rádio, TV, 
jornal, revista, internet, etc.) –; a do entretenimento – piadas, histórias em 
quadrinhos, trava-línguas –; a jurídica ou de regulação da convivência – estatutos, 
leis, regimentos, normas, etc. 
 
É importante lembrar que o acesso aos usos sociais da escrita e da leitura, que se 
concretizam nos diversos gêneros textuais, ocorre mesmo com indivíduos 
analfabetos. Vejamos oque diz Soares a respeito: 
 
[...] um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser um analfabeto, mas ser, 
de certa forma, letrado (atribuindo a esse adjetivo sentido vinculado a letramento).
 60 
 
Assim, um adulto pode ser analfabeto porque marginalizado social e 
economicamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm 
presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, 
se recebe cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado 
as escreva (e é significativo que, em geral, dita usando vocabulário e estrutura 
próprios da língua escrita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações 
afixados em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso 
da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e escrita. Da mesma forma, a 
criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca de 
escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e 
percebe seu uso e função, essa criança ainda é “analfabeta” porque ainda não 
aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no mundo do letramento, já é, de certa 
forma, letrada. (SOARES, 2001, p. 24) 
 
Por isso, não é preciso esperar que a criança esteja alfabetizada para deixá-la entrar 
em contato com textos dos mais diversos gêneros. Este é, a propósito, o princípio 
básico da proposta de alfabetizar letrando: a apropriação do sistema de escrita e a 
inserção nas práticas de leitura e escrita se dariam de forma simultânea e 
complementar . 
 
Em vista dessas considerações a respeito da noção de gênero e de sua relação com 
o conceito de letramento, podemos passar às questões mais específicas do trabalho 
em sala de aula, no tópico a seguir. 
 
 
Desafios da didatização no trabalho com os gêneros na escola 
 
 
 
A escola, entendida, no nosso contexto sociocultural, como a principal agência do 
letramento, tem por objetivo maior ampliar as experiências de letramento dos alunos, 
isto é, promover eventos de letramento relevantes para a formação de sujeitos 
amplamente letrados. Espera-se que os alunos, ao final da escolarização, tenham 
condições de se inserir com autonomia e segurança nas diversas práticas de 
letramento, inclusive e principalmente aquelas mais valorizadas por uma sociedade, 
compreendendo (criticamente) e produzindo os gêneros relativos a tais práticas. A 
esse respeito, dizem os PCN do Ensino Fundamental II (p. 49): 
 
A escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno 
 61 
desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da 
linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do texto 
(lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s) e seu lugar social; finalidade 
ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, 
a partir disso, os gêneros adequados para a produção de texto e a leitura, operando 
sobre as dimensões pragmática, semântica e gramatical. 
 
Entretanto, é preciso realizar um processo de didatização para atingir os objetivos 
pedagógicos na abordagem dos gêneros. Esse processo de didatização é 
desencadeado pela necessidade de ensinar, que exige a modificação do 
conhecimento, convertendo-o em objeto de ensino: é preciso selecionar, adaptar e 
organizar conteúdos, além de elaborar estratégias e material didático pertinentes aos 
objetivos pedagógicos. Assim, o trabalho com gêneros na escola não deve ser a 
mera transmissão de conhecimentos construídos na área da lingüística sobre os 
gêneros. Por exemplo, o essencial, na escola, não é classificar, definir, conceituar os 
gêneros, embora isso possa até fazer parte de alguma situação de ensino-
aprendizagem. O fundamental é que, com base em uma situação-problema, se 
selecionem os gênero(s) que pode(m) atender às necessidades de leitura e/ou 
escrita, para o desenvolvimento das competências lingüísticas, textuais e 
discursivas, como veremos no tópico a seguir. 
 
A situação como ponto de partida 
 
Criar situações-problema (ou aproveitá-las) é uma alternativa adequada para a 
exploração dos gêneros na escola, uma vez que a situação mobiliza uma série de 
referenciais para a leitura/produção: interlocutores, esfera de produção/circulação, 
suporte, etc., tudo isso influenciando na configuração do gênero. 
 
Por exemplo, se o tema da reciclagem do lixo está sendo trabalhado, pode-se 
discutir com os alunos o que eles querem fazer a respeito do problema de acúmulo 
de lixo nas cercanias da escola. 
 
Assim, pode-se decidir que é preciso: a) enviar um abaixo-assinado ou uma carta de 
reclamação às autoridades competentes e/ou b) realizar uma palestra educativa 
para os moradores (que necessitará da produção de convites ou cartazes para pais 
e alunos) e/ou c) produzir e distribuir uma cartilha educativa para os moradores, 
entre outras possibilidades. Começa, então, o trabalho de produção de gêneros orais 
e escritos, que pode inserir atividades de leitura, escrita, comparação, reflexão sobre 
 62 
adequação de registro (do mais formal ao menos formal), sobre as características 
lingüísticas e discursivas de cada gênero, entre outras. 
 
O depoimento de Andréa Souza, professora do 3º ano do 1º ciclo, da Escola 
Municipal Severina Lira, em Recife-PE, demonstra que mesmo uma situação 
corriqueira de sala de aula – a necessidade de organização do tempo pedagógico 
para as atividades - pode permitir um trabalho significativo com gêneros: 
 
Bom, isso começou porque eu observei que as crianças [...] queriam saber o que 
nós iríamos fazer no dia. Então era a aquela coisa: “O que é que vai ter hoje? O que 
 
é que a gente vai fazer hoje? Hoje vai ser o quê? Hoje vai ser Matemática? Hoje vai 
ser Português?”.... [...] E aí foi que surgiu a idéia de registrar isso no quadro, de 
realmente estar colocando a agenda....Então, a gente conversou sobre isso, né?.... 
 
Sobre o que era uma agenda, pra que que ela servia...E aí, eu comecei a realmente 
a fazer uso disso no dia-a-dia. [...] Bom, a finalidade dessa agenda é realmente 
deles se organizarem. E também pra mim é importante por causa do tempo. [...] E, 
com a agenda, é como se eles realmente se organizassem e se preparassem pra 
fazer as atividades que vão precisar ser feitas. 
 
A professora ressaltou objetivos claros para o uso da agenda, com o auxílio das 
crianças as finalidades. 
 
Como os fatores sociais são constitutivos da linguagem e do próprio conhecimento 
de maneira geral, o tratamento didático deve, portanto, considerar as condições de 
produção dos discursos – quem diz o que, para quem, em que circunstâncias, com 
que propósitos comunicativos, em que gênero, etc. – como centrais na produção de 
sentido. É nessa acepção que o trabalho com a análise lingüística – e não apenas o 
ensino de gramática normativa – ganha relevância: promover a reflexão sobre as 
possibilidades lingüísticas e discursivas à disposição dos falantes, que as escolhem 
em função dos usos, da situação, dos gêneros. Por exemplo, mais do que saber 
conceituar ambigüidade e identificá-la numa frase solta, é importante ajudar os 
alunos a perceber que esse recurso cria efeitos de sentido bastante interessantes, 
por exemplo, em poemas, publicidades e mesmo na conversação cotidiana. Esses 
 63 
efeitos variarão, dependendo, como já dissemos, dos interlocutores, de seu papel 
social, do propósito do gênero, etc. 
 
Leitura: estratégias diferentes para gêneros diferentes No trabalho com leitura, a 
diversidade de gêneros já é uma realidade na maioria das salas de aula. Um 
levantamento feito em uma turma de formação de professoras-alfabetizadorasrevelou uma listagem variada de gêneros explorados em sala de aula: agenda, 
adivinhações, calendário, conto*, conto de fadas, histórias em quadrinhos*, lendas, 
músicas*, parlendas*, poemas*, trava-línguas*. 
 
Entretanto, a variedade de material de leitura é apenas um dos aspectos a que o 
professor deve atentar. 
 
Outro fator que deve ser levado em conta é que há uma dinâmica de interrelações 
entre o funcionamento social dos gêneros e as estratégias lingüísticas e discursivas 
que permitem esse funcionamento. 
 
Em outras palavras, como já apontamos, os gêneros se constituem para preencher 
certas funções sociais, para atender a certos propósitos comunicativos. Assim, se as 
características lingüísticas e discursivas dos gêneros são diretamente relacionadas 
ao seu funcionamento social, as estratégias de leitura usadas e as atividades de 
compreensão de texto variarão, dependendo do gênero. 
 
Por exemplo, não se lê um poema do mesmo modo que se lê uma piada ou uma 
notícia. Se a notícia tem por objetivo informar, são as informações dadas e o modo 
como foram apresentadas que devem ser enfocados preferencialmente. Já no caso 
do poema, a leitura de prazer, a leitura-deleite, a leitura de fruição, deve sempre vir 
em primeiro lugar ou, muitas vezes, apenas esse tipo de leitura deve ser objeto de 
trabalho. 
 
Junto às atividades de compreensão textual, a análise lingüística ajuda a promover a 
reflexão sobre as características dos gêneros. 
 
No caso do gênero classificados, é comum o uso das abreviaturas, para reduzir o 
 64 
custo de quem anuncia. Por isso, a compreensão das abreviaturas é fundamental 
para a leitura desse gênero, aspecto explorado pela Profa. Andréa: 
 
P- [...] Vocês também devem procurar as palavras abreviadas...O que são palavras 
abreviadas? 
 
A - A primeira letra e um pontinho. 
 
P: Pode ser....mas às vezes são algumas letras.... [...] (momentos depois) 
 
P - Vamos ver aqui (a professora pegou o anúncio deles)...O que é isso? (apontou 
para a palavra experiência que no anúncio estava abreviada: exp.) 
 
A: Não sei! 
 
P: Isso significa: experiência....Por exemplo:....Se tem um emprego que está 
oferecendo um trabalho de cozinheiro e pedem pessoas que tenham experiência. 
 
...Se eu for nesse emprego...eles vão me contratar? 
A: Não! 
 
P: Por quê? 
 
A: Porque a senhora é professora. 
 
P: Isso...porque eu tenho experiência como professora e não como cozinheira, 
certo? 
 
Já no caso da notícia impressa, outros aspectos podem ser enfocados no trabalho 
com leitura, conjugado com análise lingüística: identificar as informações básicas 
sobre os fatos (o que, quem, quando, onde, como e por quê); discutir sobre o modo 
como foram apresentadas; analisar a estruturação dos títulos e manchetes (frases 
curtas, resumindo o fato central, omissão de artigos, omissão de certos adjetivos 
qualificativos para efeito de objetividade, etc.); refletir sobre a contribuição do não-
verbal e do extralingüístico para a produção de sentido (fotos, negritos, tamanho das 
letras, diagramação, etc.); estabelecer relação entre as temáticas das notícias e os 
cadernos do jornal em que são publicadas; debater sobre o viés ideológico da notícia 
e sua relação com o veículo – jornal ou revista – e sua linha político-ideológica 
(reflexão possível apenas em séries mais avançadas); comparar o mesmo fato 
tratado em jornais ou revistas diferentes para discutir sobre a (suposta) neutralidade 
da notícia (fato X versão do fato). 
 
Pode-se dizer que não há nada mais “insosso” do que atividades de compreensão 
de texto padronizadas, que se pretende aplicar a qualquer gênero e independem dos 
objetivos pedagógicos. É preciso, portanto, ensinar a usar estratégias de leitura 
 65 
distintas e a enfocar aspectos distintos para análise lingüística, de acordo com o 
gênero e sua função social. 
 
Considerações finais 
 
A resposta à questão posta no título – Gêneros: por onde anda o letramento? – pode 
ocorrer em duas vertentes. 
 
A primeira delas é a que entende a pergunta como uma provocação: “O letramento 
passará mesmo pela questão dos gêneros?” A resposta seria um “claro que sim”, 
justificado pelo fato de que os gêneros nos são inescapáveis: sempre que falamos e 
escrevemos, fazemos isso por meio de gêneros; e sempre que ouvimos ou lemos, 
ouvimos gêneros orais (conversas, palestras, entrevistas, anúncios radiofônicos, 
novelas de tevê, discussões, etc.), e lemos gêneros escritos (bulas, receitas, 
poemas, notícias, avisos, entrevistas, etc.). 
A segunda vertente é a que entende a pergunta como “por onde está o letramento 
quando se trabalha com gêneros na escola?” A resposta seria “em todas as práticas 
de leitura e de escrita”, além das práticas orais que envolvem a escrita, de alguma 
maneira, como no caso das apresentações orais que tiveram a escrita como base ou 
da contação de histórias que já foram registradas na tradição escrita. 
 
Em outras palavras, não se pode falar em gêneros sem considerar os processos de 
letramento; não se pode falar em letramento sem considerar os gêneros. Por isso, se 
a inserção no mundo da escrita passa pelo domínio das formas de interação, 
mediadas pelos gêneros, o trabalho com gêneros na escola pode ser um dos eixos 
do ensino voltado à formação para a cidadania, inclusiva e crítica por definição. 
 
É preciso ainda não esquecer que, se trabalhar com os gêneros é transbordar as 
fronteiras do lingüístico, a abordagem interdisciplinar será ainda mais necessária na 
sala de aula, e a aula de português deverá ser cada vez mais centrada em práticas 
de letramento, em que a língua(gem) desempenha papel central, por meio dos 
gêneros. 
 
O sabor do trabalho com os gêneros está justamente nas suas particularidades, no 
seu papel nas práticas de letramento relevantes para as diversas comunidades, na 
sua variedade, que, em suma, reflete a própria multiplicidade da experiência 
humana. Esses aspectos devem ser (re)conhecidos, explorados e valorizados, seja 
nas atividades de leitura, seja nas de produção textual, seja nas de análise 
lingüística. 
 
 66 
REFERÊNCIAS 
 
 
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 
[1953] 2000. 
 
BRANDÃO, Helena Nagamine. Texto, gêneros do discurso e ensino. In: Gêneros do 
discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica. 
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 67 
 
 
PROGRESSÃO ESCOLAR E GÊNEROS TEXTUAIS 
 
 
Márcia Mendonça 
 
Telma Ferraz Leal 
 
 
 
Algumas perguntas são freqüentemente elaboradas por professoras e professores 
preocupados com a organização e os objetivos do ensino. Entre essas perguntas, 
temos nos deparado com algumas que são particularmente relevantes para nossas 
discussões nesta obra: “Que textos (ou gêneros textuais) devemos levar para os 
alunos que estão em diferentes graus de ensino (séries, ciclos, blocos)?”, “Como 
distribuí-los ao longo de cada ano letivo?”, “O que pode vir antes e o que pode vir 
depois?”. 
 
A seleção do material textual é, no nosso ponto de vista, uma das tarefas mais 
importantes do professor ou professora. Saber que textos são interessantes para ser 
trabalhados com os alunos e saber explorar esses textos são habilidades que 
exigem consciência acerca dos objetivos do ensino em cada grau escolar e domínio 
de um repertório variado de textos que permita escolher material adequado aos 
propósitos didáticos. Dessa forma, precisamos, para decidir acerca dos melhores 
textos, refletir sobre as metas a ser atingidas. 
 
 
Definindo as metas, definindo os gêneros 
 
Defendemos, que, tanto na educação infantil quanto na educação básica, 
objetivamos ampliar as capacidades de produção e compreensão de textos dos 
alunos, ajudando-os a melhor interagir através da oralidade e da escrita, adotando 
variados gêneros textuais e atendendo a diversos tipos de finalidade social a que 
tais gêneros textuais estão vinculados. 
 
Através da intervenção didática, queremos que os alunos desenvolvam diferentes 
estratégias discursivas para produzir textos, sejam orais, sejam escritos, e diferentes 
estratégias para compreender textos, seja mediante escuta, leitura. Assim, nossa 
meta principal é ampliar as práticas de letramento dos alunos, de modo que eles 
desenvolvam a capacidade de usar textos diversos, de modo crítico.
 68 
 
Se tivermos a concepção de que o objetivo central na educação infantil, no ensino 
fundamental e ensino médio é formar alunos leitores e produtores de variadas 
espécies de textos, como dissemos acima, podemos ter como ponto de partida a 
concepção de que: 
 
Os objetivos e propósitos das atividades de leitura e escrita são estabelecidos a 
partir do reconhecimento do caráter sócio-interativo da linguagem, da consciência de 
que as várias configurações textuais são determinadas pelo conjunto de convenções 
estabelecidas socialmente. Assim, as atividades de leitura e produção devem ser 
realizadas de forma que o aluno possa refletir sobre o texto, considerando: autor, 
destinatário, situação de produção, situação de recepção, projeções das dificuldades 
do leitor ou escritor, intenções e fatores motivadores do texto, enfim, suas condições 
de produção (LEAL, 1999, p. 37-38). 
 
Nessa perspectiva, tendo os objetivos gerais anteriormente referidos, consideramos 
fundamental que nós, professoras e professores, tenhamos clareza de que cada 
gênero textual tem especificidades e que, entre os gêneros textuais, existem 
semelhanças que podem ser usadas como critérios para que nós os agrupemos. 
Tais critérios envolvem objetivos específicos de ensino. Se pensarmos em gêneros 
textuais, como, por exemplo, carta de reclamação e artigo de opinião, podemos 
decidir que levar os alunos a identificar pontos de vista dos autores e saber localizar 
ou inferir seus principais argumentos na defesa desse ponto de vista pode ser um 
objetivo didático fundamental para saber lidar com outros textos parecidos com 
esses. Saber produzir um texto para defender seus próprios pontos de vista, 
justificá-los e antecipar objeções de outros interlocutores acerca do que se está 
defendendo pode ser outro objetivo relacionado aos gêneros usados nesse exemplo. 
Estamos, assim, apontando que muitos objetivos específicos podem permear nossos 
planejamentos didáticos, e precisamos refletir sobre eles e delimitá-los. 
 
Nossas metas e objetivos, portanto, são múltiplos, mas o cerne de nosso trabalho 
pedagógico é o de que os alunos precisam aprender a refletir sobre as situações de 
interação em que os textos circulam e sobre os diferentes gêneros textuais, a fim de 
poder transferir o que aprendem na sala de aula para os contextos diversos em que 
convivem fora da escola. 
 
 
 69 
 
Defendemos, portanto, a idéia de que cabe ao professor promover situações de 
reflexão sobre os textos, considerando as características particulares dos gêneros 
textuais (sociointerativas e estruturais) e as peculiaridades dos textos em foco. Para 
que essa escolha seja consciente, é preciso saber que não há consenso a respeito 
desse tema. Ou seja, nem todos os autores acham que devemos levar os alunos a 
atividades de reflexão sobre os textos. 
 
Vinson e Privat (1994, citados por DOLZ e SCHNEUWLY, 1996), ao refletirem sobre 
o ensino da leitura e produção dos diferentes gêneros textuais, defendem que a 
aprendizagem sobre os textos dá-se naturalmente através da interação entre o aluno 
e as propriedades culturais do gênero, ou seja, bastaria propiciar situações de leitura 
e produção de textos para que os alunos aprendessem sobre a linguagem. Não 
haveria necessidade de sistematizar situações de reflexão sobre os textos utilizados, 
nem sobre os gêneros textuais. 
 
Em contraposição a essa perspectiva, Dolz (1994) defende que a intervenção 
sistemática do professor, levando o aluno a refletir sobre as características dos 
textos e seus contextos de uso, é indispensável a uma boa apropriação da 
capacidade de produzir diferentes gêneros textuais. Dolz e Schneuwly (1996) 
denominam o primeiro modelo de “interacionismo intersubjetivo” e o segundo de 
“interacionismo instrumental”. 
 
Além dessas duas abordagens, podemos destacar também aquelas mais 
tradicionais, segundo as quais, bastaria ensinar as regras de gramática para que os 
alunos se tornassem leitores e produtores de textos. 
 
Essas observações nos levam a concluir que as diferentes concepções sobre o 
ensino da língua levam, na escola, a diferentes formas de tratamento dos gêneros 
textuais e, portanto, diferentes maneiras de acesso a eles pelos alunos. 
 
 
O lugar dos gêneros na escola 
 
Em um estudo posterior, Schneuwly e Dolz (1999) tentaram descrever os tipos de 
intervenção didática presentes hoje, na escola, a respeito da leitura e da escrita. 
Eles apontaram três maneiras mais freqüentes de abordar os gêneros textuais na 
escola, as quais aparecem, geralmente, em forma mista: desaparecimento da 
comunicação; escola como lugar de comunicação; negação da escola como lugar 
específico de comunicação. 
 
a) Desaparecimento da comunicação. 
 70 
Nas abordagens mais tradicionais de ensino, não há preocupação em inserir no 
contexto escolar os textos que circulam na sociedade. 
 
A preocupação central é com o domínio das normas gramaticais, com base no 
pressuposto de que, sabendo escrever corretamente, o indivíduo poderá se 
comunicarde forma eficaz. Quando os diversos gêneros textuais são utilizados, eles 
são desprovidos de qualquer relação com uma situação de comunicação autêntica, 
ou seja, os alunos lêem e escrevem sem finalidade, apenas para ser avaliados pelos 
professores. O plano de trabalho (planejamento) é pensado fundando-se na reflexão 
sobre os tipos textuais (descrição, narração, dissertação), e não, sobre os gêneros 
textuais. São freqüentes, também, os gêneros eminentemente escolares, tais como 
os textos cartilhados e as “redações” de 20 linhas. Os alunos, em geral, sabem que 
estão escrevendo para o professor, que irá avaliar se dominam a ortografia e a 
norma culta da língua. 
 
b) A escola como lugar de comunicação 
 
Nessa perspectiva, a escola é tomada como lugar de comunicação, e o professor 
tem por função favorecer situações escolares de produção e recepção de textos. 
Assim, a escola torna-se um espaço de interação por meio de textos que assumem 
algumas características tipicamente escolares (jornal escolar, correio escolar, 
romance coletivo...). No entanto, os gêneros não são descritos, nem prescritos, nem 
tematizados e são naturalmente utilizados como instrumentos de comunicação, e 
não como objetos de reflexão. Não há, nessa abordagem, ênfase em levar os alunos 
a ler e a escrever textos para interagir com interlocutores externos ao contexto 
escolar ou mesmo a discutir sobre textos inseridos em outros suportes textuais que 
circulam fora da escola (jornais, revistas, livros diversos, etc.). 
 
c) Negação da escola como lugar específico de comunicação 
 
Nessa perspectiva, os gêneros escolares que funcionam nas práticas de linguagem 
são trazidos para a escola sem que se constituam como objeto de reflexão. A 
preocupação central é com as exigências de diversificação de textos e de uso de 
material autêntico (textos retirados de diversos suportes textuais, e não textos 
criados para a escola). Busca-se levar o aluno ao domínio do gênero exatamente 
como esse funciona nas práticas de linguagem de referência. Aqui, perde-se de vista 
o papel da escola como instituição de ensino, ou seja, não se considera que o 
professor possa sistematizar situações para levar os alunos a pensar sobre os textos 
e sobre as estratégias usadas por autores em diferentes situações de interação. 
 
Partindo dessas reflexões conduzidas por Dolz e Scheneuwly (1999), defendemos 
 71 
que é necessário sistematizar o ensino da leitura e a produção de textos, 
reafirmando a necessidade de diversificação dos gêneros textuais e de promoção de 
situações em que os alunos leiam e escrevam para atender a finalidades diversas e 
a destinatários variados. Assim, concebemos que é preciso considerar, em primeiro 
lugar, que o acesso a um variado leque de gêneros textuais permite ao produtor 
construir esquemas sobre o que fazem as pessoas quando precisam interagir 
através de gêneros. Não adianta, no nosso ponto de vista, apenas suprir os alunos 
com uma grande quantidade de espécies textuais, é preciso mais que isso; é preciso 
criar situações sistematizadas de reflexão sobre os aspectos sociodiscursivos e 
estruturais desses gêneros textuais. 
 
Parece-nos fundamental reconhecer, então, que são os gêneros textuais que 
articulam as práticas sociais aos objetos escolares, já que é através dos gêneros 
que os aprendizes reconhecem o funcionamento social da língua, inclusive as 
funções dos vários gêneros, delimitadas no exterior da escola. No entanto, conforme 
afirmam Schneuwly e Dolz (1999), “a aprendizagem que conduz à interiorização das 
significações de uma prática social implica levar em conta as características desta 
prática e as aptidões e capacidades iniciais do aprendiz” (p. 5). Há, então, que se 
reconhecer os conhecimento prévio dos alunos e a capacidade que eles já 
desenvolveram, para promover situações de ensino adequadas ao grupo-classe. 
 
Dessa forma, Schneuwly e Dolz (1999, p. 10) defendem que: Toda introdução de um 
gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos 
precisos de aprendizagem que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a 
dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo, melhor produzi-lo na 
escola e fora dela, e, em segundo lugar, para desenvolver capacidades que 
ultrapassam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros. 
 
Esse princípio acima exposto ajuda-nos a pensar sobre a progressão escolar no que 
se refere às escolhas dos textos a ser usados. 
 
Já discutimos anteriormente (Cf. cap. 3, “Gêneros: por onde anda o letramento?”) 
que existe uma multiplicidade de gêneros textuais em cada sociedade e que, 
historicamente, eles são mutáveis. Discutimos, também, que novos gêneros textuais 
emergem e outros desaparecem. 
 
Desse modo, não temos como, na escola, ensinar todos os gêneros textuais. Por 
outro lado, como Schneuwly e Dolz defendem, não seria necessário tal ensino, visto 
que aprendizagens relativas a um gênero são transferíveis para outros gêneros. 
 72 
Além dos fatores já citados, não devemos deixar de considerar que cada situação de 
interação tem especificidades que impõem uma construção singular do texto que a 
mediará. Schneuwly (1994) aponta que, no processo de construção de um texto, o 
agente da escrita realiza um cálculo acerca da adequação de um dado gênero à 
situação específica de interação e, ao mesmo tempo, adapta o novo texto às 
características do gênero, modificando-o quando necessário. 
 
Bronckart (1999) conclui, então, que: 
 
Esse processo de adoção-adaptação gera novos exemplares de gêneros, mais ou 
menos diferentes dos exemplares préexistentes, e que, conseqüentemente, é pelo 
acúmulo desses processos individuais que os gêneros se modificam 
permanentemente e tomam um estatuto fundamentalmente dinâmico ou histórico (p. 
103). 
 
Esse movimento contínuo dos gêneros (que se modificam, desaparecem, 
reaparecem, emergem, segundo a dinâmica da vida social) dificulta as 
classificações. A falta de fronteiras claras entre muitos gêneros, provocada pelos 
processos de adoção-adaptação também é um elemento que impede uma 
formalização mais rígida. No entanto, podemos reconhecer que existem 
semelhanças entre alguns gêneros textuais que podem servir de referência para 
adotarmos um plano de trabalho em que diferentes capacidades textuais e diferentes 
conhecimentos sobre a língua possam ser inseridos em cada grau de ensino. 
 
 
Agrupamentos de gêneros: uma proposta de trabalho 
 
Dolz e Schneuwly (1996) defendem que diversos gêneros textuais podem ser 
agrupados em função de algumas características estruturais e sociocomunicativas: 
Segundo esses autores, essa forma de agrupamento pode ser o ponto de partida 
para pensarmos na organização curricular. A proposta consiste em estabelecer, em 
cada ano escolar, gêneros de cada um dos agrupamentos, de modo que os alunos 
possam, ao longo da escolaridade, deparar-se com gêneros que tenham 
semelhanças entre si e com gêneros diferentes que proporcionem possibilidade de 
reflexão sobre diversas dimensões da nossa linguagem. É a proposta da 
aprendizagem em espiral, segundo a qual um mesmo gênero poderia ser revisitado 
em diferentes momentos da escolarização – na mesma série (ou ciclo) ou em séries 
diferentes (ou ciclos) – de modo que, a cada momento, uma outra abordagem fosse 
feita, cada vez mais complexa ao longo dos anos. Essa proposta nada tem a ver 
 73 
com a tradição de se trabalhar primeiro a narração, depois a descrição e, por último, 
a dissertação (ou os textos expositivo-argumentativos). Na verdade, em todos os 
anos, trabalhar-se-ia com gêneros de todos os agrupamentos (relatar, narrar, 
descrever ações, expor e argumentar), mudando-se apenaso enfoque: o aspecto 
enfatizado, a habilidade explorada, a competência desenvolvida. 
 
Dolz e Scheneuwly (1996) concebem que, dessa forma, os alunos poderão transferir 
para outras situações aprendizagens construídas com base na reflexão sobre 
gêneros textuais que tenham sido foco de reflexão no contexto escolar. Os autores 
chegam a sugerir uma possibilidade – bastante provisória, conforme fazem questão 
de ressaltar – de organização da progressão escolar quanto ao tratamento dos 
gêneros da ordem do argumentar, ao longo de nove ciclos, como mostra o Quadro 2, 
uma adaptação da tabela que eles apresentam: Ver o link do artigo. 
 
Analisando o quadro 2, percebemos que diversos gêneros são recorrentes em vários 
ciclos, como é o caso do debate. Entretanto, a cada ciclo, tanto as competências e 
habilidades quanto as unidades lingüísticas que serão objeto do trabalho sistemático 
em sala de aula diferem. Por exemplo, percebe-se uma progressão quanto à 
complexidade do tratamento da elaboração de argumentos: inicia-se pela exposição 
de pelo menos um argumento (ciclos 1-2), passa-se a solicitar a hierarquização de 
uma seqüência de argumentos em função da situação (ciclos 3-4), depois a 
sustentação por meio de exemplos (ciclos 5-6), até a exploração dos argumentos de 
cada uma das teses possíveis sobre o tema em debate (ciclos 8-9). A mesma 
progressão quanto aos recursos e estratégias lingüísticas pode ser percebida no 
quadro 
 
1, desde a simples utilização de organizadores de causa nos ciclos 1- 
 
2 (porque, por isso, etc.) até o uso de verbos declarativos neutros (dizer, falar), 
apreciativos (assegurar), depreciativos (titubear). 
 
Tal proposta de progressão, no entanto, não pode ser encarada como uma grade 
fechada, em que os alunos não possam utilizar os recursos colocados como foco de 
reflexão em dada série nos ciclos anteriores. Ou seja, para produzir um texto da 
ordem do argumentar, as crianças, desde muito cedo, usam exemplos e 
hierarquizam argumentos. Estudos como o de Leal (2004) mostram que, já aos 8 
anos de idade, as crianças podem ser capazes de usar articuladores de vários tipos 
 74 
e podem construir textos escritos com marcação de diferentes pontos de vista 
acerca de um tema. Estamos, assim, propondo que uma progressão desse tipo seja 
uma forma de orientar o trabalho docente quanto aos focos principais de reflexão 
sistemática, e não como um conjunto de “habilidades” que só poderiam começar a 
emergir a partir do trabalho em sala de aula. As crianças e os adultos, quando 
envolvidos em atividades de leitura e produção de textos, estão sempre se 
deparando com os recursos lingüísticos comuns aos gêneros que estão usando. A 
sistematização planejada das situações didáticas é que pode ser realizada valendo-
se de previsões como as exemplificadas acima. 
 
Para melhor explicitar nossa proposta (construída com base nos pressupostos 
defendidos pelos autores citados até este momento), exemplificaremos com um 
projeto de abordagem de gêneros textuais em uma turma de 7ª série, ao longo de 
quatro semanas. 
 
O projeto temático, intitulado “Violência na mídia: assunto de menor?” teve como um 
dos objetivos a sensibilização dos alunos para o tratamento que a mídia (rádio, 
televisão, jornal e revista) dá à violência praticada por menores, o que ajuda a 
construir determinada imagem desses menores. O produto final do projeto consistia 
em uma campanha de conscientização sobre a questão em pauta, através da 
produção dos seguintes gêneros: manifesto, panfleto, cartazes, faixas, propaganda 
de rádio e de televisão. Além disso, seria produzido, ao longo de todo o projeto, um 
jornal temático para circulação no espaço da escola, em que estariam publicados os 
seguintes gêneros: artigo de opinião, carta do leitor, pesquisa de opinião pública, 
entrevista e charge. 
 
Na primeira semana, para apresentação do tema e sensibilização dos alunos, 
trabalhou-se com letras de música e paródias sobre o tema. Os alunos foram 
levados à leitura crítica das letras de música e, posteriormente, à produção de 
paródias, para que expusessem sua opinião de modo lúdico, inicialmente. Nessa 
primeira abordagem, os alunos foram conduzidos a perceber que mesmo gêneros do 
universo do entretenimento, como a música, podem ter caráter argumentativo. 
 
Na segunda semana, em atividades de escuta, os alunos assistiram a uma palestra 
de especialista e a noticiários televisivos, além de terem escutado noticiários 
radiofônicos, todos sobre o tema central do projeto. Nessas atividades, o foco 
constituiu a observação da escolha vocabular feita pelos autores dos textos, ao se 
referirem ao menor infrator. Essa observação serviu para que os alunos refletissem 
 75 
sobre como a imagem dos menores – positiva ou negativa - pode ser construída com 
as escolhas lingüísticas feitas nos gêneros da mídia. 
 
Após esse trabalho de leitura crítica, os alunos deveriam escrever, ao final da 
semana, uma notícia, buscando reproduzir o tratamento dado à temática violência 
praticada por menores, encontrado nos diversos gêneros jornalísticos lidos (e/ou 
ouvidos): tratamento neutro, desfavorável, sensacionalista, etc. Nessa atividade de 
produção, os alunos seriam desafiados a tomar posições a respeito do tema e a 
marcá-las lingüisticamente nos textos, por meio de recursos e estratégias 
específicas. Isso pode contribuir para que ao aluno perceba, com maior clareza, o 
quanto os textos revelam das posições dos seus autores e o quanto devemos 
atentar para isso. 
 
A terceira semana se dedicou à preparação mais intensa da culminância do projeto. 
Dividindo-se o trabalho em equipes, a produção dos gêneros componentes da 
campanha publicitária – faixa, cartaz, panfleto, manifesto e propaganda de rádio e 
televisão – e do jornal - artigo de opinião, carta do leitor, pesquisa de opinião pública, 
entrevista e charge – foi orientada pelos professores. Vale salientar que houve 
momentos anteriores à produção em que se refletiu sobre as especificidades desses 
gêneros, para possibilitar que os alunos estivessem mais instrumentalizados para 
escrever sobre eles. 
 
Na última semana, os alunos se envolveram na divulgação e circulação tanto da 
campanha publicitária quanto do jornal temático. 
 
Nesse momento, houve a avaliação sobre a contribuição do projeto tanto para a 
formação do leitor crítico, quanto para o desenvolvimento de competências, 
principalmente a argumentativa, foco do projeto. 
 
Percebe-se, pela análise do trabalho realizado, que a leitura crítica e o 
desenvolvimento da competência argumentativa foram os dois eixos estruturadores. 
Para isso, a seleção de gêneros explorados pautou-se pela aproximação gradual do 
tema, partindo dos de caráter lúdico (letras de música e paródias), passando pelos 
noticiosos (notícias e reportagens) até chegar aos persuasivos e argumentativos 
propriamente (panfletos, cartazes, propagandas de rádio e televisão, artigo de 
opinião). Em todos os momentos, entretanto, o caráter argumentativo dos diversos 
gêneros foi evidenciado, observado, refletido, contraposto. Nesse sentido é que as 
semelhanças entre os gêneros foram tratadas – no caso, a argumentatividade e a 
temática abordada - de modo que os alunos pudessem perceber e se apropriar, a 
 76 
cada momento, das estratégias argumentativas usadas nos diversos gêneros. 
 
Nesse exemplo, quisemos mostrar que, em um mesmo momento, podemos 
trabalhar com diferentes gêneros textuais, salientando para os alunos as 
semelhanças entre alguns deles e o quanto se prestam a uma mesma finalidade. 
Gêneros da ordem do relatar, como as notícias, e da ordem do argumentar, como as 
cartas de leitores e os artigos de opinião, entreoutros, foram lidos e produzidos 
pelos alunos. Esses mesmos alunos, na perspectiva adotada, poderiam, em outros 
momentos, ler e produzir gêneros da ordem do narrar, como contos ou crônicas; do 
descrever ações, como os regulamentos; e do expor, como as notas de 
enciclopédias. Nesse mesmo ano, eles seriam desafiados a ler, a escrever e a 
refletir sobre textos dos cinco agrupamentos citados. 
 
Seguindo a proposta de progressão apresentada anteriormente, teríamos que 
garantir que esses mesmos alunos se deparassem com outras situações, nas séries 
seguintes (8a série e Ensino Médio), em que gêneros textuais dos cinco 
agrupamentos fossem foco de leitura, produção de textos e reflexão em sala de aula. 
Assim, eles iriam rever conceitos focalizados na 7a série, pensar sobre novos 
conceitos e desenvolver nova capacidade textual. 
 
 
Para finalizar 
 
O projeto descrito acima exemplifica, em parte, a proposta de Dolz e Schneuwly 
(1996), de que trabalhar com competências – no caso, a argumentativa – implica a 
escolha de gêneros em função dos objetivos pedagógicos e, não apenas, em função 
de suas características internas. No projeto, privilegiou-se o trabalho com gêneros 
dos agrupamentos do relatar e do argumentar, já que se procurava desenvolver a 
leitura crítica de textos midiáticos e a competência argumentativa dos alunos. 
 
Não se trata, portanto, de haver gêneros mais fáceis e mais difíceis, 
independentemente da situação escolar em que serão explorados. Trata-se, antes, 
de realizar uma exploração dos gêneros mais aprofundada ou mais superficial, mais 
ampla ou mais restrita, mais focalizada ou mais geral, o que depende, 
fundamentalmente, dos objetivos do trabalho. Em princípio, salvo algumas exceções, 
qualquer gênero pode ser trabalhado em mais de uma série ou ciclo, depende 
apenas de como se dá o encaminhamento pedagógico. A espiral do ensino se 
concretizaria nesse “revisitar” constante de gêneros ao longo do processo de 
escolarização com um novo olhar a cada um desses momentos, nos quais se pode 
 77 
descobrir sempre outra faceta, outra peculiaridade do gênero, antes não explorada. 
 
Assim, organizar a progressão do trabalho com gêneros na escola implica decidir 
sobre as competências e habilidades que se deseja explorar. Por essa razão, 
clareza sobre os objetivos pedagógicos é o requisito de base, com base no qual todo 
o planejamento pedagógico deve ser construído. 
 
 
 
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 78 
 
 
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCOLAR E LETRAMENTO 
 
 
Telma Ferraz Leal 
 
 
 
Nos capítulos anteriores, vimos discutindo sobre o princípio fundamental que rege 
hoje as propostas de ensino da língua portuguesa numa perspectiva sócio-histórica: 
“Ensinamos língua para que o aluno aprenda a problematizar o cotidiano através da 
linguagem, para que possa interagir de forma intensa e consciente nas diferentes 
esferas de participação social”. É nessa perspectiva que trataremos sobre a 
organização da prática pedagógica e sobre os fenômenos interdisciplinares com os 
quais obrigatoriamente lidamos quando encaramos o ensino da língua numa 
abordagem sociointeracionista. 
 
As propostas curriculares que vêm sendo construídas a partir da década de 80 do 
século passado têm alguns aspectos em comum, oriundos das tentativas de 
aproximação desse princípio básico que acima explicitamos: (1) tomam como núcleo 
central do ensino da língua portuguesa o desenvolvimento das capacidades de 
compreensão e de produção de textos; (2) afirmam a necessidade de utilização de 
textos autênticos e pertencentes a diversos tipos e gêneros textuais; (3) propõem 
práticas de ensino que aproximem as atividades escolares dos usos e funções da 
linguagem nos ambientes extra-escolares, entre outros. 
 
Para atender a esses postulados, essas propostas têm, na maior parte das vezes, 
delimitado os objetivos didáticos em quatro eixos básicos: prática de leitura; 
produção de textos escritos; análise lingüística e língua oral. O fundamental, nesse 
contexto, é entendermos que esses eixos não são independentes, e que diferentes 
dimensões da língua se entrecruzam nas práticas de produção e compreensão de 
textos orais e escritos, exigindo de nós, agentes nesses processos interlocutivos, 
diferentes habilidades, conhecimentos e atitudes ante os eventos de interação 
mediados pela língua. É papel da escola ajudar os alunos a desenvolver tais 
habilidades, conhecimentos e atitudes. 
 
Na verdade, todos esses eixos, quando tratados na perspectiva que estamos 
defendendo, visam à ampliação do grau de letramento dos alunos. Quando tratamos 
do ensino da língua portuguesa nas séries iniciais, essa proposta parece, às vezes, 
 
 79 
 
 
incompatível com as possibilidades reais dos alunos nesses graus de escolaridade. 
A pergunta geralmente feita é: como ler e produzir textos sem saber ler nem 
escrever? 
 
Percebendo a complexidade dessa questão, muitas vezes negligenciada por autores 
que tratam da alfabetização, propomos que tenhamos que, como primeira tarefa, 
delimitar os objetivos principais do ensino da língua portuguesa, de modo a não 
termos a impressão de que precisaremos “dar conta de tudo” nos anos iniciais de 
escolarização. 
 
Nossa proposta é que centremos nossa atenção na apropriação do sistema 
alfabético e na capacidade de produção e de compreensão de diversos gêneros 
orais e escritos, levando os alunos a atentar para as diferentes finalidades que 
orientam nossas atividades de leitura, escuta, fala e escrita. Alertamos, portanto, que 
não nos detenhamos em conteúdos ligados à definição, classificação, identificação 
de classes gramaticais, nem em conhecimentos relativos à análise sintática ou à 
memorização de partículas formadoras de palavras (prefixos e sufixos, por exemplo) 
em turmas que não tenham de fato desenvolvido a capacidade básica de leitura e de 
produção de textos. 
 
Assim, estamos defendendo que, no eixo da análise lingüística, priorizemos 
aspectos/objetivos que auxiliem os alunos a produzir/compreender textos, tais como: 
sistema alfabético, ortografia, pontuação, paragrafação, concordância, coesão, 
estruturação dos períodos, sempre numa perspectiva de criar condições para que os 
alunos produzam e compreendam textos. Os objetivos ligados à reflexão sobre os 
gêneros textuais, que também vêm permeando as salas de aula, podem, nesse bojo, 
também ser considerados nessa mesma concepção. Ou seja, a reflexão sobre os 
gêneros deve servir muito mais para que os alunos pensem sobre aspectos 
sociodiscursivos dos textos do que para aprender a definir, a classificar, a identificartextos. 
 
Nosso esforço em delimitar tais objetivos, como foi dito acima, advém da clareza que 
temos de que a aprendizagem do sistema alfabético é muito complexa e que aliar 
isso ao ensino da leitura e produção de textos, também dotado de alto grau de 
complexidade, é tarefa que exige planejamento, atenção, apropriação de saberes 
pelos professores, que não podem se sentir solitários diante de tais demandas. 
 
 80 
 
 
Por isso, neste capítulo, tentaremos compartilhar alternativas didáticas discutidas e 
vivenciadas por professores que encontraram, coletivamente, muitas respostas ao 
como conciliar o ensino da escrita alfabética ao ensino da produção e compreensão 
de textos orais e escritos. Sabemos que muito temos ainda para aprender, mas 
vamos compartilhar o que já construímos até agora. 
 
 
Por que planejar o cotidiano da sala de aula? 
 
Na introdução deste capítulo, falamos da necessidade de delimitar os objetivos 
principais do ensino nas séries iniciais para que não nos dispersemos, uma vez que, 
centrando atenção no que é essencial, temos mais chances de conseguir atingir as 
nossas metas. Essa delimitação leva-nos a perceber que o que queremos, como 
objetivos principais, é levar os alunos a produzir e a compreender textos e que, para 
isso, eles precisam apropriar-se do sistema alfabético e de normas ortográficas 
básicas; desenvolver capacidades de localizar informações em textos; elaborar 
inferências; estabelecer relações intertextuais; estabelecer relações sintático-
semânticas entre partes do texto; organizar seqüencialmente informações em um 
texto, atendendo à finalidade proposta e adequando o texto aos seus destinatários; 
revisar textos quanto ao conteúdo, quanto à clareza, quanto à coesão textual (uso de 
articuladores textuais, pontuação, paragrafação) e quanto ao atendimento a normas 
cultas básicas (estruturação de períodos, concordância); conhecer diferentes 
gêneros textuais, lendo e produzindo exemplares desses gêneros; entre outras 
ações lingüísticas. E tudo isso precisa ser abordado ao mesmo tempo, desde a 
educação infantil. 
 
Dessa forma, estamos querendo evidenciar a necessidade de organizarmos o tempo 
pedagógico, de modo a garantirmos que essas habilidades, conhecimentos, atitudes 
possam ser de fato inseridos no ensino da língua. Assim, acreditamos que, através 
da atividade de planejar, podemos refletir sobre nossas decisões, considerando as 
habilidades e os conhecimentos prévios dos alunos, e podemos conduzir melhor a 
aula, prevendo dificuldades dos alunos, organizando o tempo de forma mais 
sistemática e avaliando os resultados obtidos.
 81 
 
 
Para realizarmos planejamento no sentido acima exposto, precisamos desenvolver 
atitudes de registro e armazenamento de material, possibilitando-nos reaproveitar 
idéias e repensar o que já foi feito. 
 
Magalhães e Yazbek (1999, p. 37), a esse respeito, afirmam que: são as 
observações, os registros de situações e as reflexões sobre essas observações que 
lhe possibilitam (o professor) distanciar-se de seu fazer e compreendê-lo de forma 
mais ampla, não mais como simples agir, mas como uma ação didática possível de 
ser generalizada e transferida para novas situações. Sem uma ação reflexiva, suas 
experiências, por melhores que sejam, mantém-se no âmbito da vivência, 
circunscritas àquele grupo e momentos únicos em que foram concebidas. 
 
Assim, o planejamento assume um papel também de autoformação profissional, na 
medida em que permite que retomemos o que fizemos e pensemos sobre o que 
faremos em outras situações, possibilitando-nos replanejamentos contínuos e 
sistemáticos. Em suma, o que queremos é salientar o quão importante é essa etapa 
do ensino e o quanto temos a ganhar quando desenvolvemos boas estratégias de 
planejamento e registro do nosso dia-a-dia. A seguir, haveremos de nos deter em 
reflexões relativas às diferentes maneiras de organizar as atividades de sala de aula 
quando fazemos nossos planejamentos. 
 
 
As múltiplas formas de organização das atividades didáticas 
 
Para pensarmos sobre a organização das atividades didáticas, fizemos uma 
classificação dos tipos de situação de sala de aula que temos encontrado em nossas 
observações. As modalidades de organização que serão expostas com base nos 
exemplos dos professores e das professoras que pensaram conosco este capítulo 
são principalmente de cinco tipos: (1) atividades permanentes; (2) projetos didáticos; 
 
(3) atividades seqüenciais; (4) atividades esporádicas, e (5) 
jogos. ATIVIDADES PERMANENTES 
 
A leitura faz parte da rotina de sala de aula da turma de Infantil VI (alfabetização) 
que ensino. Todos os dias, após a colocação da data no quadro, realizamos leituras 
de textos diversos (poemas, contos, parlendas, história em quadrinhos, entre 
outros). Os alunos ficam muito ansiosos por esse momento. A princípio era eu que 
 82 
levava o material que ia ser lido para a sala (do acervo da escola ou do meu acervo 
pessoal). 
 
Levava dois ou três para eles escolherem qual gostariam de ler naquele dia, mas 
sempre dizia que quem tivesse em casa podia trazer para a gente ler. Depois de um 
tempo, os alunos foram se empolgando cada vez mais e faziam questão de 
participar, trazendo materiais que tinham em casa, como livrinhos de conto de fadas, 
gibis e histórias bíblicas. Notei que com esses momentos meus alunos despertaram 
mais para a leitura. Já conseguem perceber, entre outras coisas, se o texto lido se 
trata, por exemplo, de um conto, de uma poesia ou de uma história em quadrinhos. 
Várias vezes os vi ensaiando leituras de livrinhos e mesmo que ainda não tenham 
muito domínio não ficam desestimulados. Isso tornou bem mais fácil o trabalho com 
a leitura na sala de aula. (Leila Nascimento da Silva, turma: Infantil VI 
(alfabetização), Escola Municipal Santa Catherine Labouré, em Jaboatão dos 
Guararapes). 
 
Leila deu um exemplo de uma atividade permanente que realizava: leitura diária. Os 
jovens alunos da professora mostraram interesse pelos textos que ela levava para a 
sala de aula. Interessante observar, no relato da docente, que, aos poucos, os 
próprios alunos começaram a levar textos para a sala. Esse relato leva-nos a 
perceber que muitas vezes nós subestimamos nossos alunos, quando dizemos que 
não podemos fazer tal solicitação em escolas públicas porque os alunos não 
dispõem de livros de literatura. Na verdade, em grande parte dos lares isso se 
confirma, mas, na medida em que um ou outro aluno traz esses livros, podemos 
verificar que existe a possibilidade, que não pode ser desperdiçada, de conhecermos 
melhor o que nossos alunos dispõem em casa ou em outros ambientes nos quais 
eles circulam, e que nós não sabemos. 
 
A leitura diária na escola já vem sendo apontada como uma das estratégias mais 
eficazes para inserir os alunos no mundo da literatura, da mídia, do humor. 
Participando dessas situações, os alunos se familiarizam com variados gêneros 
textuais e ampliam seus repertórios de textos, o que pode levá-los a querer ter 
acesso a outros textos do mesmo gênero, ou do mesmo autor, ou do mesmo tema. 
 
 83 
Entre outros “ganhos”, podemos citar a ampliação do vocabulário, que, sem dúvida, 
gera mais compreensão em textos de diferentes gêneros. Purcell-Gates (2004, p. 
33) salienta a esse respeito que: foi demonstrado que a prática de leitura influi no 
aumento de vocabulário. A leitura de contos provoca a aprendizagem de palavras 
novas, introduzindo palavras de baixa freqüência no repertório léxico do menino ou 
da menina. Por exemplo, Crain-Thoreson e Dale (1999), em um estudo sobre a 
leitura de contos, concluíram que a freqüência de leitura decontos aos 2 anos de 
idade era um dos melhores indicadores do domínio posterior da linguagem, medido 
em conhecimento de sintaxe e vocabulário aos 12 anos. 
 
Além da ampliação do vocabulário e do aumento do grau de letramento, como maior 
familiarização com os diferentes gêneros textuais, os alunos aprendem sobre as 
características da linguagem escrita. O melhor argumento, no entanto, para 
realizarmos atividades permanentes de leitura de textos é a construção de uma 
identidade leitora, em que diferentes finalidades de leitura constituam práticas 
permanentes desses alunos, incluindo-se, aí, as práticas de leitura para fruição, para 
deleite. O fundamental é que os alunos gostem/queiram ler cada vez mais. 
 
Lembramo-nos, ao falar sobre tal tema, da crônica “Concertos de leitura”, de Rubem 
 
Alves (1996), quando ele se refere a sua professora de infância: 
 
Foi Dona Iva – não sei se ela ainda vive – quem me ensinou que ler pode ser 
delicioso como voar ou como patinar. Ela lia para nós. Não era para aprender nada. 
Não havia provas sobre os livros lidos. Ela lia para que tivéssemos o prazer nos 
livros. Era pura alegria. Poliana, Heidi, Viagem ao céu, O saci. 
 
Ninguém faltava, ninguém piscava. A voz de dona Iva nos introduziu num mundo 
encantado. O tempo passava rápido demais. Era com tristeza que víamos a 
professora fechar o livro. 
 
Apesar de ser uma das mais citadas e mais importantes, a leitura diária não é a 
única atividade permanente que encontramos nas escolas. Hora da conversa, 
chamada, hora da música, hora da arte são outros tipos de atividade permanentes 
 84 
que também são ótimas para desenvolver capacidade de compreensão e produção 
de textos dos alunos. Mas, o que são atividades permanentes realmente? 
 
Entendemos que as atividades permanentes são intervenções pedagógicas 
realizadas com alta freqüência, através de certa repetição de procedimentos, num 
intervalo de tempo, orientados por objetivos atitudinais (relativos ao desenvolvimento 
de atitudes e valores) e/ou procedimentais (relativos ao desenvolvimento de 
estratégias de ação, ao “como fazer”). 
Na hora da leitura, por exemplo, busca-se construir uma identidade leitora, 
aumentando o repertório de textos a que os alunos têm acesso, ajudando-os a 
desenvolver o gosto pela literatura, pela música ou pela leitura de jornal, entre 
outras, dependendo do material escolhido para ser lido. 
 
Na hora do desenho, podemos ter como objetivo procedimental fazer com que os 
alunos desenvolvam estratégias de representar de diferentes modos a realidade, 
diversificando as técnicas de desenho ou pintura. 
 
PROJETOS DIDÁTICOS 
 
 
A professora Zidinete combinou com as demais professoras da escola que iriam 
realizar um projeto sobre o índio para apresentação no Dia do Índio. Zidinete decidiu 
propor aos alunos que eles abordassem o tema “O que mudou na vida dos índios 
nos últimos 500 anos?” Assim, o problema a ser investigado era a vida dos índios no 
período em que os portugueses chegaram ao Brasil e no período atual (2002), 
procurando identificar o que mudou e o que permaneceu apesar do tempo. O 
produto final foi um livro a ser doado à Biblioteca no dia da comemoração do Dia do 
Índio. Juntamente com os alunos, definiu que as etapas do projeto seriam: 
levantamento bibliográfico sobre o tema, leitura dos materiais conseguidos (dois 
textos por aula, fazendo sempre esquemas dos textos em cartazes), discussões 
sobre o tema a partir das informações colhidas nos materiais, produção de texto 
individual (que seria a apresentação do livro - cada aluno teria a sua cópia do livro 
com a sua apresentação), produção coletiva do relato histórico a partir dos 
esquemas produzidos. A professora comentou como fez levantamento bibliográfico: 
 
“Eu pedi pra que eles pegassem os livros e procurassem ver quais livros estavam 
falando sobre o Índio. Aí foram. Depois que eles pegaram os livros, aí eu selecionei 
 85 
seis livros e aí foram lidos de dois em dois. Segunda, quarta e sexta é aula de 
Português, aí eu pegava, lia os livros e fazia um esquema. 
 
Foram três esquemas que eu fiz com a leitura de dois livros”. 
 
O apoio da figura, segundo a professora, era importante porque muitos ainda não 
sabiam ler. Esses alunos escolhiam os livros que tinham figuras de índios. Os 
esquemas eram feitos coletivamente, após a leitura dos textos. A professora lia o 
texto e perguntava quais informações eram importantes para o que eles estavam 
pesquisando. Os alunos destacavam as informações mais importantes dos textos do 
dia e ela ia escrevendo em uma cartolina em forma de esquema, que deixou 
expostos na sala. Ela falou de sua função enquanto mediadora do processo de 
produção de textos: “Eu estava observando [...] Vendo quem estava fazendo... Por 
que não estavam... Todos fizeram, entendeu? [...] Foram 32 alunos que conseguiram 
fazer”. (Zidinete Maria Alves Caribé, 1ª série, Escola Municipal Marcelo José do 
Amaral, Camaragibe - PE). 
 
Zidinete forneceu um ótimo exemplo de projeto didático. Durante um mês, os alunos 
trabalharam junto à professora para elaborar o livro sobre os índios, que foi 
combinado por eles desde o início do processo. 
 
De fato, os projetos didáticos são excelentes modos de levar os alunos a planejar e 
a executar um plano de ação para chegar a um produto estabelecido no grupo. Os 
PDs, tal como propõe Leite (1998), implicam intencionalidade; busca de respostas 
autênticas e originais para o problema levantado pelo grupo; seleção de conteúdos 
em função da necessidade de resolução do problema e da execução do produto final 
(conhecimento em uso) e a co-participação de todos os envolvidos nas diversas 
fases do trabalho (planejamento, execução, avaliação). Essa forma de trabalho 
favorece, de maneira dinâmica, a construção do pensamento científico e de atitudes 
de pesquisa. Assim, vários objetivos procedimentais são visados nos projetos 
didáticos. Muitos desses procedimentos que são desenvolvidos na execução de um 
projeto didático são os que pesquisadores utilizam na construção do conhecimento 
científico. 
 
García-Milà (2004, p. 133) assinala que a construção do conhecimento científico 
envolve processos estratégicos de dois tipos: básicos e integrados. Segundo a 
autora: os processos estratégicos básicos são observar, classificar, comunicar, 
tomar medidas, fazer estimativas e predizer. Os processos estratégicos integrados 
requerem uma combinação dos anteriores e representam os processos de 
investigação científica: identificar, controlar e operacionalizar variáveis, formular 
 86 
hipóteses, projetar experimentos, compilar, representar e interpretar dados, projetar 
modelos, fazer inferências, argumentar conclusões, e, finalmente, elaborar informes 
científicos. 
Essa mesma autora defende que: 
 
Ao aprender ciências, desenvolvem-se formas para compreender o mundo; para 
isso, os meninos e as meninas têm de construir conceitos que os ajudem a conectar 
experiências. 
 
São também desenvolvidas estratégias para adquirir e organizar informação e 
aplicar e comprovar idéias, ao mesmo tempo em que se adquirem atitudes 
científicas. Tudo isso contribui para dar sentido ao mundo e também os prepara para 
tomar decisões e solucionar problemas na vida. 
 
Tudo isso que foi dito pela autora pode ser realizado via execução de projetos 
didáticos que levem os alunos a elaborar um problema, decidir como vão solucionar 
tal problema e que tenham uma meta a ser atingida. 
 
O ensino de língua é bastante incorporado na execução de projetos didáticos, desde 
que as diferentes estratégias de coleta e organização de informações, registro de 
resultados e de divulgação dessesresultados são realizados, via de regra, através 
de textos orais e escritos de diferentes gêneros. 
 
De modo geral, os alunos precisam ler textos científicos, com informações sobre o 
tema pesquisado, textos instrucionais, com orientações sobre como fazer 
experiências, textos jornalísticos, quando o tema assim o exige. Esses diversos 
textos precisam ser estudados, e as informações relevantes precisam ser anotadas 
ou mesmo organizadas em esquemas, resumos, tabelas, gráficos, que são gêneros 
textuais de importância crucial no processo de escolarização. Além desses, são, 
ainda, produzidos outros textos para divulgar os resultados do trabalho ou mesmo 
para intervir na sociedade, em projetos que envolvem intervenção na comunidade. 
 
No caso do projeto desenvolvido por Zidinete, as informações foram inicialmente 
organizadas em esquemas, e, posteriormente, foi produzido o relato histórico de 
forma coletiva. 
 
Na atividade de produção coletiva, os alunos têm muito a aprender. Teberosky e 
Ribera (2004), por exemplo, salientam que, através da mediação da professora, a 
escrita lhes facilita novas formas de analisar a linguagem que utilizam, os conteúdos 
que comunicam, seus pensamentos e, nesse caso, sentimentos. A escrita lhes ajuda 
a analisar seus sentimentos e os dos demais, a compartilhá-los e a buscar 
 87 
soluções.(p. 64) 
 
Não devemos, também, esquecer que, na produção de textos escritos coletivos, os 
alunos utilizam seus conhecimentos oriundos das práticas orais de uso da língua. 
Conforme salientam Val e Barros (2003, p. 136), o domínio da modalidade oral da 
língua, que significa a capacidade de interpretar e produzir adequadamente textos 
falados, no ambiente social cotidiano, é a base sobre a qual se assenta o processo 
de construção e desenvolvimento dos conhecimentos necessários à interação verbal 
mediada pela escrita. 
 
Assim, vemos, nos projetos didáticos, espaço para produção e compreensão de 
textos exemplares de diferentes gêneros textuais, o que contribui enormemente para 
a ampliação do grau de letramento dos alunos. 
 
 
ATIVIDADES SEQÜENCIAIS 
 
 
Obtive a informação sobre a exposição “História em Quadrões”, de Maurício de 
 
Sousa, e fui ao Departamento de Atividades Culturais e Desportuais - DACD/SE - da 
Prefeitura do Recife para agendar uma visita com os meus alunos à referida 
exposição. Recebi a orientação para procurar o Departamento do 1º e 2º ciclos. 
Neste departamento, fui informada que existiam critérios a serem considerados na 
escolha das escolas que iriam prestigiar o evento. No dia seguinte, retornei ao 
 
Departamento e descobri que o nome da “minha” escola não fazia parte da lista. Na 
escola, conversei com os alunos e expliquei a situação. Sugeri que eles 
escrevessem um bilhete para a diretora do Departamento do 1º e 2º ciclos, 
solicitando a nossa ida a Brennand (local onde estava ocorrendo o evento). 
Entreguei os mesmos à secretária e retornei posteriormente para saber a resposta. 
Como a mesma foi positiva, pedi aos alunos que escrevessem outro bilhete, de 
agradecimento. No período que antecedeu a visita, realizamos as seguintes 
atividades: assistimos o vídeo “cinegibi”, com a turma da Mônica; os alunos leram e 
folhearam gibis da turma da Mônica; listamos os personagens da turma da Mônica; 
os alunos produziram histórias em quadrinhos (desenho e texto); os alunos 
produziram histórias a partir de tiras das histórias em quadrinhos, da turma da 
Mônica, (atividade com os gibis); os alunos produziram uma história a partir de tiras 
das histórias em quadrinhos, da turma da Mônica (atividade xerocada); os alunos 
leram uma história em quadrinhos que foi afixada no quadro e concluíram a mesma 
 88 
(o diálogo do último quadrinho); fizeram leitura do exemplar diarinho (sobre a 
exposição); fizeram votação para a escolha do nome da biblioteca (Maurício de 
Sousa era um dos candidatos). Após a visita, os alunos fizeram uma releitura de um 
quadro de Van Gogh e Maurício de Sousa e atividades com o objetivo de 
apropriação do sistema alfabético. As situações didáticas foram positivas, a princípio 
porque fizemos uso da escrita e leitura dentro de uma situação real (os bilhetes); 
realizamos ainda diversas leituras de imagens (vídeos, gibis, quadros de Maurício de 
Sousa e Van Gogh) e trabalhamos em sala com diversos gêneros de texto (jornal, 
bilhetes, história em quadrinhos, cédulas de votação). (Maria Solange Barros, 1ª 
ciclo do 1ª ano, Escola Municipal Cidadão Herbert de Souza, em Recife-PE). 
 
As atividades seqüenciais são formas que tradicionalmente os professores e as 
professoras têm adotado para articular diferentes partes de uma aula ou de aulas 
seguidas. O princípio fundamental é fazer com que não haja rupturas bruscas entre 
uma atividade e outra. 
 
Diferentes formas de conduzir atividades seqüenciais podem ser adotadas. Um tema 
geral, um conteúdo de ensino, um tema de um texto lido ou um gênero textual pode 
ser o elo de articulação entre atividades didáticas. 
 
No exemplo da professora Solange Barros, houve uma organização das atividades, 
tomando-se como elo de articulação um gênero textual – história em quadrinhos – e 
personagens criados por Maurício de Souza Turma da Mônica. Cada atividade 
sugerida guardava, em algum grau, relação com essas personagens. Conhecer as 
histórias em quadrinhos de Maurício de Souza e seus personagens era fundamental 
para entender a exposição que iriam visitar. Atividades interessantes foram 
realizadas. O uso da escrita para conseguir ter acesso à exposição, através da 
escrita do bilhete, foi importante, já que os alunos produziram um texto com uma 
finalidade real. 
 
A proposta de outro bilhete, com uma finalidade diferente (agradecer o apoio dado 
para o grupo), foi também fundamental para inserir diferentes práticas de uso da 
língua. As atividades seguintes, que envolveram leitura e escrita de textos de dois 
gêneros (histórias em quadrinhos e tiras), favoreceram o conhecimento dos alunos 
sobre os gêneros trabalhados e sobre um autor específico – Maurício de Souza. A 
ampliação do repertório de textos dos alunos foi, assim, garantida através de 
diferentes situações didáticas articuladas. A leitura do texto em que a exposição que 
iriam assistir foi apresentada (diarinho) também contribuiu para introduzir a leitura 
 89 
com outra finalidade presente em nossa sociedade: saber informações sobre 
eventos culturais e criar expectativas sobre tais eventos, ativando conhecimentos 
prévios sobre o que será visto. Após a visita, a discussão sobre os quadros 
favoreceu uma retomada sobre o tema da exposição e possibilitou que novos 
questionamentos fossem feitos. Assim, a professora fez uma seqüência de 
atividades articuladas, utilizando diferentes estratégias didáticas para chegar a 
objetivos previamente pensados. 
 
Outro exemplo de atividade seqüencial foi realizado pela professora Ana Luzia da 
Silva Pedrosa, da 2a série da Escola Estadual Professor Fontainha de Abreu, em 
Recife – PE: 
 
A aula teve início com a história “O aniversário do Saci”, em um álbum seriado. 
Depois da leitura feita pela professora, foi retomada a conversa sobre o que é 
folclore, e as crianças construíram uma definição coletiva sobre o tema. Depois 
dessa conversa, as crianças ouviram novamente a história lida pela professora. Feita 
a leitura, foi iniciada uma conversa sobre o texto e foram realizadas as seguintes 
atividades: lista de convidados do Saci (os personagens da lenda); construção 
coletiva do convite da festa; produção da lista de comidas e bebidas típicas e, para 
finalizar, reconto livre da história ouvida. As atividades continuaram por toda a 
semana, tratando de uma lendapor dia. 
 
Como podemos ver na descrição feita por Ana Luzia, as atividades realizadas em 
cada dia tinham como eixo de articulação os textos lidos. Dessa forma, havia uma 
seqüência em cada dia, articulada pelo texto, e, durante toda a semana, as 
seqüências se articulavam pelo tema “lendas”. 
 
O trabalho por meio de tema gerador é também uma organização através de 
atividades seqüenciais. Nessa forma de organização, os alunos respiram 
determinado tema durante um intervalo de tempo, havendo, geralmente, uma 
situação de culminância, em que os trabalhos dos alunos realizados durante aquele 
período são expostos para um público convidado. Há uma adoção desse tema por 
professores de diferentes áreas de conhecimento, de modo a favorecer ao aluno 
diferentes momentos para agregar conhecimentos relativos ao assunto. 
 
As atividades seqüenciais são boas por conduzirem os alunos a compreender 
determinado conceito, ou regra, ou mesmo a desenvolver procedimentos, em 
diversas situações, apreendendo diferentes facetas desse saber em construção. A 
esse respeito, Sadovsky (1994, p. 7) diz-nos que: não é admissível que as crianças 
 90 
adquiram de uma vez e para sempre todos os significados de um conceito, mas sim 
que o façam através da resolução de diferentes tipos de problemas. 
 
Estamos pensando, portanto, num processo de sucessivas aproximações, 
organizações e reorganizações. 
 
 
ATIVIDADES ESPORÁDICAS 
 
A professora, após recordar histórias do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” que já haviam 
sido trabalhadas com os alunos, propôs a seguinte atividade: 
 
P: Vamos fazer uma lista com os nomes dos personagens (a professora colou uma 
cartolina no quadro, com o título “lista dos personagens do sítio do pica-pau 
amarelo”). Qual é o primeiro personagem?”. 
 
A: Emília. 
 
A professora chamou três alunos para escrever o nome Emília no quadro. Ela 
comparava suas escritas e discutia questões de apropriação do sistema alfabético 
pertinentes à palavra. 
 
Quando descobriam como era a escrita correta, colocavam a palavra na cartolina. 
 
O mesmo procedimento acontecia com todas as palavras da lista. Os alunos, após 
debate sobre como escrever as palavras, copiavam no caderno a palavra correta 
que a professora colocava na cartolina. 
 
P: Qual é o segundo personagem que a gente vai escrever? 
A: Pedrinho. 
 
A professora chamou mais três alunos para escrever “Pedrinho”... 
Escreveram Tia Anastácia, Saci, Rabicó, Cuca... 
 
No Final da atividade, propôs: 
 
P: Vamos ler o que a gente já fez? (A professora apontou para as palavras e leu com 
os alunos cada nome da lista)”. (Relatório de aula elaborado por Kaasy Mary, após 
observação de uma aula de Danielle Felix da Silva, 1ª série, Escola Municipal 
Jaboatão dos Guararapes, Jaboatão dos Guararapes-PE). 
 
As atividades esporádicas são aquelas que realizamos de modo descontínuo, sem 
haver articulação com outras atividades de sala de aula. Aparecem, geralmente, 
para estabelecermos objetivos que não estão sendo considerados em outras formas 
de trabalho que estamos realizando naquele momento específico. 
 
Um exemplo claro de atividade esporádica foi observado por Kasy Mary, na aula de 
 91 
Danielle. Nesse caso, ela queria realizar a atividade de reflexão sobre a escrita das 
palavras. Escrever listas para refletir com os alunos acerca dos princípios do sistema 
é uma atividade comum. A docente escolheu um tema para seleção das palavras 
que, provavelmente, provocou interesse das crianças: personagens do Sítio do Pica-
Pau Amarelo. Os alunos já tinham conhecido esses personagens em outras 
situações – assistindo à televisão e escutando as histórias lidas pela professora em 
sala de aula – e estavam, naquela aula, aprendendo a escrever essas palavras que 
tinham um conteúdo significativo para elas. A apropriação do sistema alfabético era 
a preocupação da docente nessa aula. Assim, verificamos que, embora a atividade 
não tivesse articulação com nenhuma outra do dia, não era uma proposta estranha 
às crianças. Tentar trabalhar com tarefas que provoquem interesse dos alunos é, 
portanto, um desafio que precisamos enfrentar. 
 
Outras atividades que criamos para refletir sobre a escrita alfabética, sobre 
pontuação, concordância, ou mesmo atividades de produção de textos para atender 
a alguma demanda isolada (bilhete para os pais, carta para uma colega ausente, 
convite para uma festa da escola) podem ser pensadas, sem que necessariamente 
tenhamos uma seqüência para executar. 
 
É importante frisar que, quando a atividade é clara e a condução é apropriada, não 
há estranhamento por parte dos alunos. Eles, na verdade, sabem que há uma 
articulação daquela atividade com outras realizadas durante o ano letivo, em função 
dos objetivos de ensino da professora. No capítulo 5 desta obra, as autoras 
discutiram sobre essa dimensão escolar das relações que se travam no interior da 
sala de aula. 
 
 
JOGOS 
 
Tenho na sala 3 caixas com rótulos separados em grupos temáticos: alimentos, 
higiene e remédios. Esses rótulos são sempre lidos e trabalhados em sala. Nesse 
dia, confeccionei cartelas com 12 lacunas para colar o rótulo. Mandei que cada aluno 
escolhesse os 12 rótulos para colar em sua cartela. 
 
Depois que fizemos todas as cartelas, fomos jogar o bingo. 
 
 92 
Cada rótulo chamado era escrito e lido junto com os alunos e quem tinha o rótulo em 
sua cartela marcava com um X. A atividade foi muito proveitosa, pois primeiro os 
próprios alunos escolheram seus rótulos, lendo o que queriam ou levantando a 
hipótese sobre o que escolhiam. E depois a própria leitura e escrita com toda a sala 
e leitura individual na hora de marcar o rótulo (Rosenaide Moreira dos Santos, 2ª 
ano do 1ª ciclo, Escola Municipal Monte Castelo, em Olinda-PE). 
 
Os jogos são atividades que existem na nossa sociedade e que, portanto, fazem 
parte da vida dos alunos. Na escola, eles adquirem uma dimensão diferente, dado 
que existem objetivos didáticos associados às finalidades dos jogadores. 
 
A professora Rosenaide, ao trazer para a sala de aula jogos de alfabetização, tinha 
como propósito fazer com que os alunos compreendessem diferentes princípios do 
nosso sistema. Por serem atividades lúdicas, temos, em geral, boa aceitação dos 
alunos: tanto as crianças quanto os jovens e adultos envolvem-se em jogos na sala 
de aula. O bingo proposto levava os alunos a tentar ler os rótulos que já tinham tido 
acesso em outros momentos na sala de aula, a pensar sobre a escrita desses 
rótulos, através da intervenção da professora, e a construir um repertório de palavras 
estáveis que podem servir como referência para a escrita de outras palavras. Assim, 
os alunos participaram de uma atividade em que leram textos que circulam na nossa 
sociedade e tiveram a oportunidade de mobilizar e socializar conhecimentos sobre 
nosso sistema de escrita. 
 
No exemplo que usamos, utilizamos um jogo de regras. No entanto, diferentes tipos 
de jogo são encontrados no dia-a-dia, tal como os jogos de enredo. Nesse tipo de 
brincadeira, as crianças exercitam papéis do mundo adulto e inserem-se, nesse 
mundo imaginário, em diferentes esferas de interação, produzindo diversos gêneros 
textuais adequados às situações vividas (bilhetes, listas, convites...). Consideramos, 
portanto, que, através de diferentes tipos de jogo, os alunos podem participar de 
eventos de letramento, com acesso a variados gêneros textuais, e podem centrar-se 
em especificidades do sistema alfabético de escrita, que é uma das prioridades 
nesse grau de escolaridade. 
 
Planos de ação: a questão da rotina periódica 
 
Todas as formas de organização do trabalho de sala de aula acima discutidas93 
favorecem múltiplas aprendizagens. No entanto, é importante perceber que existem 
algumas estratégias mais apropriadas que outras para determinados objetivos. Por 
exemplo, para apropriação do sistema alfabético, nem sempre conseguimos 
trabalhar com projetos didáticos. Ou melhor, embora esse eixo possa estar sendo 
inserido em vários projetos didáticos, essa aprendizagem requer uma constância e 
uma sistematização que exige que planejemos situações freqüentes e que 
disponibilizemos material para fazer com que os alunos se apropriem de diferentes 
princípios do sistema. Dessa forma, fica difícil abrirmos mão de reservarmos um 
tempo diariamente (ou quase diariamente) para dar conta desse propósito. Os jogos 
de alfabetização e as atividades seqüenciais ou mesmo as atividades esporádicas 
podem ser mais facilmente pensadas com essa freqüência do que os projetos 
didáticos. 
 
Por outro lado, para levar os alunos a ler e a produzir textos, atendendo a diferentes 
finalidades, o projeto didático é especialmente rico. Nesses casos, é possível 
planejarmos, com os alunos, produtos que exigirão atitudes de pesquisa, elaboração 
e revisão textual, numa dimensão sociodiscursiva clara. 
 
À primeira vista, poderia parecer que estamos dissociando a aprendizagem da base 
alfabética da aprendizagem acerca dos usos da escrita. No entanto, não é essa a 
nossa intenção. Na verdade, concordamos com Soares (2004, p. 15) quando ela 
defende que é necessário reconhecer as especificidades de um e outro tipo de 
aprendizagem: 
 
A conveniência, porém, de conservar os dois termos (alfabetização e letramento) 
parece-me estar em que, embora designem processos interdependentes, 
indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza fundamentalmente 
diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e competências específicos, que 
implicam formas de aprendizagem diferenciadas e, conseqüentemente, 
procedimentos diferenciados de ensino. 
Assim, reafirmamos que diferentes procedimentos didáticos são imprescindíveis 
para atendermos à multiplicidade de objetivos que temos em vista no ensino da 
língua portuguesa. Por exemplo, o ensino de conteúdos que exigem trabalho de 
reflexão consciente acerca de conceitos, regras e princípios gerativos (como 
 94 
ortografia, pontuação, concordância) é muito bem conduzido no formato de 
seqüências didáticas, tal como exemplificamos acima. 
 
Por outro lado, objetivos atitudinais e procedimentais que perpassam todas as 
habilidades acima descritas, que se circunscrevem num espiral em que se torna 
necessário permanente contato do aprendiz com o objeto de aprendizagem, são 
eficazmente tratados sob a forma de atividades permanentes. Para ampliar o 
repertório dos alunos de gêneros textuais, de conhecimentos sobre determinado 
tema, de suportes textuais, essas atividades são de relevância inquestionável. As 
atividades de leitura diária pelo professor podem propiciar, acima de tudo, ampliação 
do grau de letramento dos alunos, desenvolvimento do gosto literário e curiosidade 
para os diferentes suportes textuais, e também fornecer modelos de leitores, 
conforme já dissemos. 
 
Além de considerarmos os objetivos didáticos ao decidirmos sobre que tipos de 
organização do trabalho adotaremos, precisamos, também, estar alertas às 
características do grupo e às formas de interação que já se desenvolveram entre os 
alunos. A esse respeito, Jacobson (2004, p. 95) atenta que: cada menina ou cada 
menino pode provir de uma comunidade com modelos diferentes de comunicação; 
portanto não há maneiras fixas, únicas, de proporcionar o que necessitam. Os 
professores e as professoras e as escolas precisam educar-se a si mesmos em 
relação a seus estudantes para criar estruturas de gestão da aula culturalmente 
sensíveis. 
 
Perante essa constatação, assumimos que é possível e necessário variar, ao longo 
do ano letivo, as modalidades de tratamento dos conteúdos em língua portuguesa. 
Diferentes modalidades podem conviver num mesmo período de tempo, favorecendo 
a adoção de diferentes objetivos de naturezas diversas, de forma paralela. 
 
 
Para ajudar os alunos a prever o que será feito em cada dia e para que possamos 
planejar nosso dia-a-dia a fundamentados num quadro de expectativa geral, 
sugerimos a adoção de quadros de rotinas, uma vez que os alunos, através do 
acesso a esses textos, podem participar do planejamento da aula, assumindo, com a 
professora, a responsabilidade sobre a utilização do tempo. 
 95 
 
Para concluir nossa conversa, reafirmamos o princípio geral de que, variando as 
formas de gestão da sala de aula, com base nos objetivos didáticos e necessidades 
dos nossos alunos, estaremos inserindo-os em situação com diferentes demandas 
de engajamento no mundo da linguagem. Em todos os exemplos usados, buscamos 
salientar que precisamos conciliar a aprendizagem do sistema alfabético de escrita e 
o desenvolvimento de estratégias de compreensão e produção de textos orais e 
escritos, sem negligenciarmos nenhuma dessas duas dimensões da escolarização 
inicial. Realizando uma ação planejada, temos mais condições de dar conta dessa 
complexa tarefa que é alfabetizar letrando. 
 
Vimos refletindo ao longo deste livro sobre o ensino da língua escrita com base na 
perspectiva do letramento. No 1o capítulo, Eliana Albuquerque trata dos conceitos 
de alfabetização e letramento, e de que modo esses conceitos, embora se refiram a 
aspectos diferentes do aprendizado da língua escrita, são complementares e 
indissociáveis. No capítulo 2, Carmi Santos analisa como a instituição da 
escolarização obrigatória levou à construção de determinado conceito de 
alfabetização. No terceiro capítulo, Márcia Mendonça discute questões relativas aos 
gêneros textuais e seu tratamento na alfabetização e no ensino de língua materna. 
Já o artigo de Telma Leal discute diferentes formas de organização da prática 
pedagógica em função do ensino da escrita. 
 
Na verdade, embora tratando de aspectos diferentes com respeito à relação entre 
alfabetização e letramento, todos os autores chamam a atenção para a importância 
de se alfabetizar letrando. Ou seja, levar os alunos a apropriarem-se do sistema 
alfabético ao mesmo tempo em que desenvolvem a capacidade de fazer uso da 
leitura e Alfabetizar letrando da escrita de forma competente e autônoma, tendo 
como referência práticas autênticas de uso dos diversos tipos de material escrito 
presentes na sociedade. 
 
Mas, afinal, em que consiste realmente um processo de alfabetização na perspectiva 
do letramento? Como conciliar o trabalho com o ensino do sistema alfabético de 
escrita com as situações de leitura e produção de textos? Como possibilitar 
situações de leitura e produção de textos a sujeitos que ainda não sabem ler e 
 96 
escrever de forma autônoma? 
 
Na tentativa de responder a essas questões, discutiremos inicialmente alguns 
equívocos cometidos ao falar-se do que vem a ser alfabetizar letrando. Discutiremos, 
posteriormente, o que, para nós, deve ser entendido como um processo de 
alfabetização pautado na perspectiva do letramento. E, por fim, objetivando 
esclarecer melhor em que consiste o alfabetizar letrando, analisaremos duas 
situações didáticas em que professoras das séries iniciais objetivaram proporcionar 
a seus alunos a aprendizagem da escrita, inserindo-os em situações de leitura e 
produção textual. 
 
Alguns equívocos na compreensão do que vem a ser alfabetizar letrando 
Preocupados com a crítica de que os textos utilizados na escola eram artificiais e 
não representavam as práticas reais de leitura e de escrita presentes na sociedade, 
muitos professores começarama introduzir em suas aulas diferentes gêneros 
textuais. Entretanto, ao 
 
fazerem isso, acreditavam que os textos que funcionam na realidade extra-escolar 
pudessem entrar na escola da mesma forma como funcionam fora dela. Dessa 
maneira, nega-se a escola como um lugar específico de ensino-aprendizagem, o 
que, pelas suas peculiaridades, acaba por transformar as práticas de referência nas 
quais os textos vão ser utilizados e produzidos. Sendo a escola lugar específico de 
ensino-aprendizagem, não é possível reproduzir dentro dela as práticas de 
linguagem de referência tais quais aparecem na sociedade. Ao entrar no processo 
de ensino, as situações de produção textual, embora remetendo às situações nas 
quais tais textos são utilizados nas práticas de linguagem na sociedade, apresentam 
características peculiares à situação de ensino em que estão inseridas. Como 
destacou Marinho (1998, p. 77), 
 
A necessidade de que a criança faça uso da língua escrita interagindo com uma 
multiplicidade de textos é, de fato, importante, mas seria importante, também, uma 
explicitação das condições de “transferência” de alguns textos para o cotidiano da 
sala de aula, já que o texto, por si só, não garante o seu funcionamento ou as suas 
possibilidades de significação.
 97 
 
Outro equívoco no entendimento do que seja alfabetizar letrando, é utilizar a leitura 
de diferentes textos apenas como pretexto para o trabalho com palavras que, após 
escolhidas do texto lido, são divididas em sílabas para depois ser trabalhadas 
valendo-se do estudo das famílias (ou padrões) silábicas. Ou ainda, cair-se em outro 
extremo. Acreditar que, apenas com a oportunização da leitura e produção coletiva 
de textos, os alunos que ainda não dominam o sistema de escrita podem vir a, 
sozinhos, apropriar-se desse conhecimento. Sendo assim, não oportunizam 
atividades de reflexão sobre a palavra nem sistematizam o ensino do sistema de 
escrita alfabético. 
 
Afinal, em que consiste alfabetizar letrando? 
 
Propiciar aos aprendizes a vivência de práticas reais de leitura e produção de textos 
não é meramente trazer para a sala de aula exemplares de textos que circulam na 
sociedade. Ao se ler ou escrever um texto, tem-se a intenção de atender a 
determinada finalidade. É isso que faz com que a situação de leitura e escrita seja 
real e significativa. 
 
Portanto, ao se ler ou escrever um texto em sala de aula, deve-se objetivar uma 
finalidade clara e explícita para os envolvidos na situação de leitura ou produção. 
Discutindo a natureza do ato da leitura, Foucambert (1994) nos faz a seguinte 
afirmação: 
 
Para aprender a ler, enfim, é preciso estar envolvido pelos escritos os mais variados, 
encontrá-los, ser testemunha de e associar-se à utilização que os outros fazem 
deles...Ou seja, é impossível tornar-se leitor sem essa contínua interação com um 
lugar onde as razões para ler são intensamente vividas – mas é possível ser 
alfabetizado sem isso.... (p. 31) 
 
Que finalidades ou razões poderiam ser essas? A leitura para conseguir alguma 
informação, para estudo de determinado tema ou, simplesmente, por prazer. Com 
relação à produção escrita, poder-se-ia escrever para sistematizar e/ou guardar uma 
informação, para se comunicar com alguém, para relatar um fato, etc. 
 
 98 
Entretanto, a garantia do acesso à leitura e à produção de diferentes gêneros 
textuais por si só não assegura a construção de sujeitos leitores e escritores 
autônomos. Se Foucambert destaca que se pode até ser alfabetizado, mas não ser 
leitor, Albuquerque, no 1o capítulo deste livro, chama-nos a atenção para o fato de 
que se pode ser letrado sem ser alfabetizado. Em ambos os casos, não há a 
construção de sujeitos leitores e escritores autônomos. É preciso, portanto, que, 
nesses momentos de leitura e escrita, seja oportunizado aos alunos compreender a 
linguagem que se usa ao escrever os diferentes textos, ou seja, compreender as 
características textuais de cada gênero em razão das funções que cumpre na 
sociedade. Mas é preciso também que eles se apropriem da escrita que usamos ao 
escrever textos, que, no nosso caso, é a escrita alfabética. Não adianta muito o 
indivíduo saber identificar a que gênero o texto se refere e para que ele serve, se ele 
não é capaz de recuperar sozinho as marcas registradas no papel. 
 
Alfabetizar letrando é, portanto, oportunizar situações de aprendizagem da língua 
escrita nas quais o aprendiz tenha acesso aos textos e a situações sociais de uso 
deles, mas que seja levado a construir a compreensão acerca do funcionamento do 
sistema de escrita alfabético. 
 
Em uma situação de aprendizagem na qual os alunos ainda não dominam o sistema 
de escrita alfabético, faz-se necessário que o professor atue como mediador, seja 
lendo, seja registrando por escrito os textos produzidos oralmente pelos alunos. No 
entanto, não se pode deixar para que o aluno produza escritos ou leia apenas 
quando já dominar o nosso sistema de escrita. É importante que eles possam, desde 
o início do processo de alfabetização, testar suas hipóteses a respeito da escrita. Se 
o conhecimento que esses têm da escrita ainda não é suficiente para que leiam ou 
produzam textos extensos, pode-se levá-los a ler textos memorizados, tais como 
cantigas, quadrinhas, assim como tentar escrevê-los na íntegra ou parte deles. 
 
Analisaremos a seguir como duas professoras organizaram situações de 
aprendizagem da escrita nas quais os princípios acima colocados foram abordados. 
Chapeuzinho amarelo: ler e brincar com as palavras A professora Rosivânia Barbosa 
de Aguiar Carneiro1, juntamente com outras professoras que participaram do curso 
de extensão “Alfabetização e letramento: leitura e produção de textos”, promovido 
 99 
pelo CEEL, planejaram uma seqüência de atividades que envolvia a leitura do livro 
de literatura infantil “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque com ilustração de 
Ziraldo. A seguir, apresentaremos como as atividades foram desenvolvidas na turma 
da referida professora, cuja aula foi observada pela bolsista Irlânia do Nascimento 
Silva. 
 
Destacaremos, do relato de observação da aula, como a professora Rosivânia 
conseguiu desenvolver uma atividade de leitura deleite, ao mesmo tempo em que 
envolveu os alunos em um trabalho de brincar com as palavras, seguindo a proposta 
do autor do livro. As atividades desenvolvidas foram as seguintes: 
 
Antes de ler o livro, a professora conversou com os alunos sobre a temática da 
história que seria lida, que falava do ”medo”. 
 
P.: “Vejam só trouxe uma surpresa pra vocês. Quem gosta de 
surpresa?” A.: “ Eu”( responderam todas os alunos) 
 
1 A professora Rosivânia Barbosa de Aguiar Carneiro lecionava, em 2004, em uma 
turma do 1º ano do 1º ciclo, na Escola Municipal Zumbi dos Palmares, pertencente à 
Secretaria de Educação da cidade do Recife. 
 
P.: “ Mas antes de mostrar a surpresa nós vamos conversar”... “ Ou todo mundo é 
corajoso?” 
 
A.: “ Eu” ( alguns alunos afirmaram que tinham 
medo) A.: “ Eu não”(um aluno negou ter algum medo) 
 
A.: “ Não tem medo de nada, é Lúcio?” (a professora perguntou ao aluno que havia 
negado ter medo de alguma coisa) 
 
P.: “ Pois eu tenho medo e vocês já sabem do quê” 
A.: “De gato” (responderam alguns alunos) 
 
P.: “É, vocês já sabem que eu não posso ver um gato que eu tenho pavor”... 
 
“Glebison, Douglas e vocês têm medo de quê?” 
 
A.: “De jibóia” (Glebison responde para a professora) 
 
P.: “Só de jibóia, Glebison?” 
 
A.: “ Tubarão” (Glebison acrescentou a resposta anterior) 
 
A.: “Mas tubarão não faz medo não” (outro aluno afirmou para a professora e para os 
seus colegas) 
 
(E a conversaprosseguiu com cada aluno falando sobre seus medos). 
 
Em seguida, antes de apresentar o livro que seria lido – Chapeuzinho Amarelo - ela 
 100 
quis avaliar o conhecimento dos alunos sobre a história de Chapeuzinho Vermelho: 
 
P.: “Olha, tem uma história que todo mundo conhece. É uma história de uma menina 
que usa um chapeuzinho vermelho”. 
 
 
A.: “Chapeuzinho Vermelho” (um aluno afirmou ser esse o nome da história a qual a 
professora estava se referindo) 
 
P.: “ Eita, eu ia dar mais pistas” ( a professora fez um comentário para a 
turma) P.: “Olha, o que tinha nesta história?” 
 
A.: “ Lobo” ( respondeu um 
aluno) P.: “Quem tem medo do 
lobo?” 
 
A.: “Chapeuzinho Vermelho e todo mundo” (um outro aluno respondeu para a 
professora) 
 
P.: “ Quem mais tinha na história?” 
 
Os alunos falaram dos personagens: Chapeuzinho Vermelho, a vovó, e a professora 
lembrou do caçador. 
 
A professora mostra o livro que iria ser lido e explora o autor e o ilustrador, fazendo 
questões sobre eles: 
 
P. “Mas, olhem. A surpresa que eu trouxe é uma história que eu acho que ninguém 
conhece. Eu vou só mostrar a capa pra vocês verem” 
 
(a professora afirmou isso para os alunos enquanto mostrava a capa do livro de 
Chapeuzinho Amarelo para toda a turma) ... 
 
P. “Olha, Chico Buarque é o autor. Ele fez o que mesmo?” 
 
(perguntou a turma) 
 
A.: “Escreveu a história” ( responderam alguns alunos) 
P.: “ E a ilustração fala de quê?” 
 
A.: “Quem desenhou a história”( afirmou um aluna) 
 
P.: “Isto sim. Olha, Chico Buarque escreveu a história e deu para Ziraldo desenhar” 
P.: “Alguém já ouviu falar de Chico Buarque e Ziraldo? 
 
A.: “ Chico” ( afirmou um aluno) 
 
P.: “ É mesmo? O que ele faz?” ( a professora perguntou a este aluno) 
A.: “ Escritor”( respondeu o aluno) 
 
P.: “Sim, mas o que ele é mais? Alguém sabe?” 
 
Como os alunos não se pronunciaram, então a professora revelou-lhes os outros 
talentos de Chico Buarque: 
 101 
P.: “Ele é autor. Escreve letras de músicas e dá pra os outros cantarem”.... “E 
 
Ziraldo. Olhem ele também inventou uma história de outro menino... É um menino 
que tinha um panela na cabeça” 
 
A.: “Ah! Eu conheço. É o menino maluquinho” ( afirmou um aluno) 
 
P.: “Mas, olha. Quer dizer que Chico Buarque escreveu a história e quem 
desenhou?” 
 
A.: “Ziraldo”( respondeu um aluno) 
 
Logo depois de obter essa resposta do aluno, a professora informou à classe que iria 
começar a leitura do livro “Chapeuzinho Amarelo”. Enquanto ia lendo a história, ela 
apresentava as ilustrações. Os alunos se mostraram interessados durante a leitura. 
Em alguns momentos, a professora solicitava que eles completassem a frase, 
fazendo antecipações, como no trecho apresentado a seguir: 
 
P.: “E de todos os medos que tinha o medo mais medonho era o medo do tal do?”(a 
professora interrompeu a leitura e fez uma pergunta a respeito desse trecho da 
história) 
 
A.: “Lobo” ( responderam alguns alunos) 
 
A professora continuou com a leitura: 
 
P.: “Um lobo que nunca se via, que morava lá pra longe, do outro lado da montanha, 
num buraco da Alemanha, cheio de teia de...?” (mais uma vez a professora 
interrompe a leitura deste parágrafo e faz uma pergunta aos alunos) 
 
A.: “Aranha” (responderam alguns alunos) 
 
A professora continua a leitura: 
 
P.: “ [...] numa terra tão estranha, que vai ver que o tal do lobo nem existia” 
 
 
Depois de terminar de ler o livro, a professora conversou com os alunos sobre a 
história, retomando os medos que a personagem Chapeuzinho Amarelo tinha e 
perguntando como ela conseguiu vencer esses medos, principalmente o medo do 
lobo. 
 
 
Em seguida, a professora iniciou uma seqüência de atividades relacionadas à 
apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, que envolvia um trabalho de reflexão 
no nível da palavra e de escrita de palavras e frases. As atividades foram as 
seguintes: 
 
 
 102 
1. Comparação de palavras: 
 
P.: “Olhe, como é que se escreve a palavra lobo?” 
 
À medida que os alunos iam dizendo as letras, a professora ia registrando na lousa. 
Depois voltou a perguntar: 
 
P. E bolo? 
 
Os alunos falaram as letras. 
 
P.: “ Tem alguma coisa de parecido?” 
 
A.: “ Lobo escreve com “lo” e bolo com 
“bo”. A.: “ Tão ao contrário tia” 
 
2. Leitura das palavras presentes na história e que estavam com as sílabas 
invertidas: 
 
P.: “ Vamos ver se a gente descobre isso aqui” 
 
A professora escreveu uma lista de palavras no quadro e solicitou que os alunos 
tentassem ler, dizendo que as palavras correspondiam aos medos que Chapeuzinho 
Amarelo tinha. A lista de palavras foi a seguinte; 
 
Orrái 
 
Tabará 
 
Xabru 
 
Bodiá 
 
Gãodra 
 
Jacoru 
Barão-Tu 
Pão 
Bichôpa 
Trosmons 
 
P.: “ E aí, quem consegue dizer o que é?” 
 
A.: “ Trocando as palavras” ( sugeriu um aluno) 
 
A.: “ Orrái” ( um aluno lê em voz alta a primeira palavra da 
lista) P.: “ Quem inventou essa brincadeira aqui? Fui eu?” 
 
A.: “ Foi Chapeuzinho Amarelo” (respondeu em aluno) 
 
P.: “ Olha, como vocês viram, a Chapeuzinho Amarelo fez uma brincadeira pra 
perder esses medos que ela tinha. Então, vejam, Chapeuzinho tinha medo de raio e 
transformou o raio em orráio não foi? Vejam aqui” ( a professora deu essa 
informação aos alunos enquanto indicando a palavra da lista) 
 103 
 
P.: “ Agora vamos tentar descobrir esse aqui?” (diz para os alunos indicando a 
palavra bodiá) 
 
A.: “ Bodiá” ( lêem alguns alunos) 
 
P.: “ Quem era o bodiá?” 
 
A.: “ Diabo” ( respondem alguns alunos) 
 
P.: “ Para não ter medo do diabo ela botou o nome de bodiá” 
(Comentou com a turma)...”Quem é o Gãodra?” 
 
A.: “ Dragão pra não ter mais medo dele” 
 
E os alunos junto com a professora foram lendo e descobrindo as palavras. 
3. Escrita dos medos que a personagem Chapeuzinho Amarelo tinha. 
 
A professora dividiu a turma em dois grupos – um de meninos e um de meninas – e 
solicitou que eles escrevessem os medos que a personagem tinha. Depois, cada 
grupo leu os medos que tinham escrito, e cabia ao outro grupo confirmar se eles 
estavam presentes no livro. 
 
4. Escrita de palavras correspondentes aos medos de cada aluno. A professora 
solicitou que cada aluno escrevesse em um papel o nome de um dos medos que 
possuíam. Ela lembrou que eles tinham que escrever a palavra corretamente e se 
dispôs a ajudá-los. Depois ela informou que eles deveriam registrar o nome de seus 
medos de forma invertida, como na história de Chapeuzinho Amarelo: 
 
P.: “Agora sabe o que vai acontecer? Eu ajudei algumas pessoas porque tem que 
escrever a palavra correta. Mas olha, eu vou dar um tempo... Olha só. É pra mudar a 
sílaba, o pedacinho da palavra. Não as letras. Não muda o lugar das letras ... 
 
Agora, é pra escrever como tá aí no caderno de vocês? 
 
A.: “Não”( responderam alguns alunos) 
 
P.: “Cada um escreve seu nome igual como se fala, mas com pedacinhos trocados 
como a Chapeuzinho fazia” 
 
5. Leitura das palavras escritas de forma invertida pelos alunos. A professora 
chamava dois alunos para o quadro e solicitava que cada um lesse a palavra que o 
outro havia escrito e adivinhasse o medo correspondente: 
 
P.: “Ele botou como? Diz aí como foi?” (a professora pergunta ao aluno que palavra 
estava escrita no papelzinho do outro aluno) 
 
A.: “ Boiaji”( o aluno leu) 
 
 
 104 
 
 
P.: “Então, qual é o medo dele?” 
A.: “É jibóia”( respondeu o 
aluno) 
 
P.: “Mas ele acertou? É jibóia não é?” (a professora pergunta ao outro aluno) 
A.: “ É” (o aluno confirmou à professora) 
 
 
Considerando a temática deste artigo, o “alfabetizar letrando”, gostaríamos de 
destacar alguns pontos da seqüência desenvolvida pelaprofessora Rosivânia que se 
relaciona com essa prática. Ela leu uma história atrativa para os alunos e, no 
momento da leitura, preocupou-se em mantê-los estimulados e interessados. 
Explorou algumas estratégias de leitura, como o conhecimento prévio dos alunos 
sobre o autor e o ilustrador, assim como sobre a temática da história. Após a leitura, 
ela retomou o texto oralmente com as crianças, para ver se elas o tinham 
compreendido. E, considerando o jogo de palavras que o autor do texto usou ao 
produzi-lo, ela desenvolveu uma série de atividades envolvendo a leitura e a escrita 
de palavras, no contexto em que essas foram produzidas na história. Assim, ela não 
precisou extrair do texto uma palavra-chave para, a partir dela, trabalhar as sílabas e 
os padrões silábicos. Ao contrário, ela explorou algumas palavras-chaves do texto, 
como as palavras LOBO e BOLO, refletindo sobre suas semelhanças e diferenças, e 
outras palavras presentes no texto. E, por fim, solicitou que todos os alunos 
escrevessem palavras correspondentes aos medos que tinham, invertendo as 
sílabas, o que possibilitou que os alunos refletissem sobre a composição das 
palavras, a presença de sílabas e letras nelas, a relação entre a pauta sonora e a 
escrita das sílabas, etc. 
 
Enfim, os livros de literatura estão cada vez mais presentes na escola e podem ser 
lidos em uma atividade de leitura deleite, na qual se pode explorar não só a temática 
do livro, mas o jogo de linguagem presente neles, levando o aluno a tentar lê-los 
sozinho, identificando as palavras que já conseguem ler e refletindo sobre algumas 
delas. 
 
Trabalhando o jornal na sala de aula: ler e produzir textos, refletindo sobre algumas 
palavras Objetivando trabalhar diferentes gêneros textuais com seus alunos, a 
professora Abda Alves2, que lecionava em uma turma do 2º ano do 1º Ciclo na Rede 
 105 
Municipal de Ensino do Recife, organizou o seu planejamento de modo a trabalhar a 
cada semana um gênero específico. Como algumas alunas costumavam trazer para 
ela o caderno do jornal intitulado “Revista da TV” desejando saber o que iria 
acontecer na novela, a professora escolheu iniciar o trabalho tomando por base os 
gêneros presentes no jornal. 
 
Em primeiro lugar, a professora procurou saber de seus alunos se aquele caderno 
trazido pelas alunas era o único existente no jornal. 
 
Os alunos responderam que não e relataram o que eles conheciam da estrutura do 
jornal. A partir daí, a professora sugeriu que juntos eles lessem um jornal. Foram 
então escolhidos, em primeiro lugar, que cadernos iriam ler e durante uma semana 
foi lido, no começo de cada aula, uma reportagem de um caderno. Ao fazer a leitura, 
a professora destacava que tipo de informação aquele caderno trazia, chamava a 
atenção para a estrutura da notícia, mas de modo informal, sem a preocupação de 
sistematizar essas informações ou propor outra atividade além da leitura do jornal e 
discussão da notícia lida. 
 
2 Esse relato foi vivenciado numa turma do segundo ano do 1º ciclo (1ª série) 
descrito pela professora Abda Alves, participante do Curso “Desafios da 
Alfabetização” promovido pela Prefeitura do Recife. 
 
Na semana seguinte, a professora organizou seu planejamento de modo a trabalhar 
de forma mais sistemática alguns gêneros presentes no jornal. O primeiro gênero 
escolhido foi o anúncio, já que os alunos demonstraram interesse pela variedade de 
coisas que se anuncia na parte de Classificados. 
 
Foi trabalhado, então, um anúncio de carro. O anúncio foi lido pela professora e, 
após a leitura, ela apresentou o mesmo anúncio escrito num cartaz e destacou com 
os alunos quais as informações contidas nele e como esse se estruturava. A 
professora chamou a atenção para a necessidade de se colocar o essencial em 
relação à descrição do produto e a estratégia de abreviar as palavras, objetivando 
tornar o texto mais barato. A professora também questionou com os alunos se o 
anúncio no jornal era a única forma de se oferecer um produto para vender, ao que 
 106 
os alunos disseram que não e citaram o hábito de colocar placas na frente das casas 
quando se tinha algo para vender. 
 
Depois a professora entregou para os alunos, reunidos em duplas, o texto do 
anúncio recortado em partes e pediu que eles montassem o anúncio e o colassem 
em seus cadernos. Terminada a tarefa, a professora solicitou que as duplas 
trocassem as atividades e comparassem com o texto escrito no cartaz. 
 
Foi solicitado, então, aos alunos que destacassem do anúncio lido algumas 
informações contidas nele, tais como, modelo, ano, cor, acessórios, etc. À medida 
que os alunos destacavam as informações, a professora as escrevia no quadro, 
perguntando-lhes como se escrevia a palavra, quantas sílabas tinha, etc. Depois de 
colocadas todas as informações, a professora destacou o nome do carro PARATI e 
pediu que os alunos verificassem se era possível encontrar nele outras palavras. As 
crianças foram capazes de perceber a palavra PARA, mas o TI não conseguiram 
perceber. A professora então explicou que o TI era um pronome e assim como nós 
falamos “para mim” ao se referir à própria pessoa, ao falarmos com outra, podemos 
utilizar o “para ti” no lugar do “para tu”, como normalmente dizemos. 
 
Após a explicação, ela pediu que os alunos citassem palavras que começassem 
como a palavra PARATI e ia registrando no quadro essas palavras e refletindo com 
eles o número de sílabas que a palavra tinha, qual a primeira sílaba, qual a última, 
qual o número de letras, se havia mais letras ou mais sílabas, etc. 
 
Depois foi pedido que cada aluno em seu caderno desenhasse e escrevesse o nome 
de objetos que começavam como PARATI. Depois de realizada a tarefa, a 
professora pediu que alguns alunos lessem uma das palavras que escreveram e que 
a colocassem no quadro. 
 
Nesse momento, ela realiza a análise dessas palavras com os outros alunos, para 
que eles verificassem se estava correta, se faltava alguma letra, se alguma foi 
trocada e coisas desse tipo. 
 
No final das atividades desse dia, a professora solicitou que os alunos trouxessem 
 107 
de casa um objeto para que, no dia seguinte, eles pudessem elaborar um anúncio de 
venda para o objeto trazido de casa. 
 
Percebemos nesse relato o quanto é possível organizar o processo de ensino-
aprendizagem da escrita tendo como princípios orientadores tanto a reflexão acerca 
dos usos sociais da leitura e da escrita, refletindo sobre as especifidades dos 
gêneros, quanto a reflexão da linguagem escrita, ou seja, do sistema de escrita 
alfabético. 
Observamos como essa professora, embora em uma turma em que as crianças 
ainda não dominavam o sistema de escrita alfabético, oportunizou situações de 
leitura e de reflexão sobre textos que circulam na sociedade. A princípio, pareceria 
que o trabalho com jornal seria algo difícil de ser realizado com crianças pequenas e 
ainda não alfabetizadas. Mas o próprio fato de algumas trazerem partes de um jornal 
para ser lido pela professora mostra a familiaridade que essas têm, se não com o 
jornal como um todo, pelo menos com partes dele. 
 
A professora, então, utiliza-se desse fato para ampliar o conhecimento de seus 
alunos acerca desse veículo de comunicação tão comum em nossa sociedade e dos 
gêneros textuais nele presentes. 
 
Como eles ainda não liam, a professora fez o papel de leitora. 
 
E, a partir dessas leituras, ela sistematizou reflexões acerca da função social do 
texto lido, destacou e analisou a estrutura textual própria do gênero lido, questionou 
se aquele era o único gênero que podia ser utilizado com a função de anunciar um 
produto.Em tais questionamentos, a professora não tinha apenas a intenção de dar 
informações aos alunos do gênero lido, mas de fazê-los participar de uma situação 
real de leitura de um gênero (anúncio) e de um suporte (jornal) que circulam na 
sociedade. Pois, como destaca Ferreiro (1987), [...] é através de uma participação 
ampla e firme nesse tipo de situações sociais que a criança chega a entender alguns 
dos usos sociais da escrita. (p. 99) 
 
E, se nossos alunos vêm de um meio social onde essas situações de interação com 
o material escrito são escassas, é papel da escola oportunizar o contato com esse 
 108 
tipo de material. Entretanto, sem esquecer de garantir aos alunos atividades de 
reflexão sobre a palavra, de modo a permitir a construção de conhecimentos acerca 
do sistema alfabético de escrita. E é isso que a professora Abda faz com muita 
propriedade. 
 
Em diferentes momentos da aula, os alunos foram desafiados a pensar sobre a 
escrita das palavras. Não houve a preocupação em trabalhar determinado padrão 
silábico para, fundando-se nele, escrever outras palavras. A professora levou-os a 
pensar sobre as partes constituintes das palavras escritas, tanto no que diz respeito 
às sílabas quanto às letras, fazendo a relação entre as marcas no papel e a pauta 
sonora que essas representavam. Ao reconstruírem o texto do anúncio, os alunos 
oram levados a pensar não apenas na estrutura textual do gênero, mas, sobretudo, 
na própria lógica do sistema de escrita, na medida em que puderam perceber como 
as palavras se organizavam nas frases, onde começavam e terminavam as palavras, 
como se dava a disposição delas no texto. 
 
Embora, em muitos momentos, a professora tenha desempenhado o papel de leitora 
e escriba da turma, na medida em que foram estimulados a escrever outras palavras 
a partir do nome do carro, foi oportunizado também aos alunos o espaço para que 
lessem e escrevessem seguindo suas hipóteses. As palavras escritas pelos alunos, 
por sua vez, tornaram-se elas próprias elementos de reflexão coletiva sobre o 
sistema de escrita. 
 
No entanto, é importante que se coloque que não é a atividade em si que conduz ao 
conhecimento. Leal (2004), discutindo a aprendizagem dos princípios do sistema 
alfabético, chama-nos a atenção para a importância da ação do aprendiz mediada 
pelas informações e intervenções do professor e associada às situações de 
interação com os colegas de classe. 
 
Enfim... 
 
As professoras, cujos relatos de atividades foram aqui descritos, parecem 
compreender que não basta apenas trazer textos para ser lidos na sala de aula ou 
fazer atividades de escrita de palavras com seus alunos. É preciso que as atividades 
 109 
que contemplem os usos sociais da leitura e da escrita e aquelas que se relacionam 
à apropriação do sistema de escrita caminhem juntas. Ou seja, é preciso alfabetizar 
letrando. 
 
Esse tem sido o desafio colocado para todos os que hoje são responsáveis pela 
alfabetização de milhões de crianças deste país. 
 
Proporcionar a essas crianças o efetivo domínio tanto da linguagem escrita quanto 
da escrita da linguagem. Só assim poderemos formar sujeitos que leiam e escrevam 
com autonomia e competência. 
 
Os relatos das atividades vivenciadas pelas professoras Rosivânia e Abda nos 
mostram que é possível vencer o desafio de alfabetizar letrando. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a alfabetização. São Paulo: Cortez, 1987. 
FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. 
 
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por que é importante sistematizar o ensino? In: ALBUQUERQUE, Eliana. A 
alfabetização de jovens e adultos em uma perspectiva do letramento. Belo 
Horizonte: Autêntica, 2004. 
 
MARINHO, Marildes. A língua portuguesa nos currículos de final do século. 
In: BARRETO, Elba Sá. Os currículos do ensino fundamental para as escolas 
brasileiras. São Paulo: Autores Associados, 1998. 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
 
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Loyola, 1996. 
 
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GALLART, M. S. (Org.) Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 
2004. 
 
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2004. 
 
LEITE, L. H. A. Pedagogia dos projetos. Revista Presença Pedagógica, n. 8, 
 110 
1998, p. 24-33. 
 
MAGALHÃES, L.; YAZBEK, A. P. Parceria planejada entre o orientador e o 
professor. Seminário Intinerante. Recife: Centro de Estudos Escola da Vila, 1999. 
 
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aprendizagens da escola e as e casa. In: TEBEROSKY, A.; GALLART, M.S. (Org.) 
Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. 
 
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SAIZ. Enseñanza de la matemática – Documento curricular P.T.F.D. Buenos Aires: 
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Alegre: Artmed, 2004. 
 
VAL, M. G. C.; BARROS, L.F.P. Receitas e regras de jogo: a construção de 
textos injuntivos por crianças em fase de alfabetização. In: ROCHA, G.; VAL, M. 
G. C. 
Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto: o sujeito-autor. Belo 
Horizonte: Autêntica, 2003.
 111 
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: repensando o ensino da língua escrita 
 
 
Silvia M. Gasparian Colello 
 
 
Se, no início da década de 80, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita 
trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a 
apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração de 
hipóteses sobre a representação lingüística; os anos que se seguiram, com a 
emergência dos estudos sobre o letramento [i] , foram igualmente férteis na 
compreensão da dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seu aprendizado. Em 
estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, 
romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que aprende 
e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo que delimitava a 
sala de aula como o único espaço de aprendizagem. 
 
Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem 
se processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso 
quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente 
pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que, não só fornece 
informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e 
 
“concretude” ao aprendido, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de 
aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e o saberes próprios de sua 
cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não 
só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela 
sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida). 
 
O objetivo do presente artigo é apresentar o impacto dos estudos sobre o letramento 
para as práticas alfabetizadoras.Capitaneada pelas publicações de Angela Kleiman, (95) Magda Soares (95, 98) e 
Tfouni (95), a concepção de letramento contribuiu para redimensionar a 
compreensão que hoje temos sobre: a) as dimensões do aprender a ler e a escrever; 
b) o desafio de ensinar a ler e a escrever; c) o significado do aprender a ler e a 
escrever, c) o quadro da sociedade leitora no Brasil d) os motivos pelos quais tantos 
deixam de aprender a ler e a escrever, e e) as próprias perspectivas das pesquisas 
sobre letramento. 
 112 
As dimensões do aprender a ler e a escrever 
 
 
Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B 
+ A = BA”, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas 
e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e 
marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência fonológica 
que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/interpretar palavras (ou 
frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto. 
 
Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade 
de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da 
língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as 
pessoas que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código 
da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século 
XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais 
como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a 
sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das grandes 
transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo 
“letramento” surgiu [ii] , ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por 
alfabetização (Soares, 2003). 
 
Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é 
poder se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos 
de uma cultura grafocêntrica. Assim, 
 
Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou 
grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição 
de uma sociedade (Tfouni, 1995, p. 20). 
 
Com a mesma preocupação em diferenciar as práticas escolares de ensino da 
língua escrita e a dimensão social das várias manifestações escritas em cada 
comunidade, Kleiman, apoiada nos estudos de Scribner e Cole, define o letramento 
como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema 
simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos. As práticas específicas 
da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento 
era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia 
 113 
alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas 
um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades 
mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a 
escrita. (1995, p. 19) 
 
Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, 
 
Soares valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais 
representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental do puro 
domínio do sistema de escrita: 
 
Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das 
habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do 
conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e 
competente da tecnologia da escrita denomina-se Letramento que implica 
habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes 
objetivos (In Ribeiro, 2003, p. 91). 
 
Ao permitir que o sujeito interprete, divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, 
documente, informe, oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória, o efetivo uso 
da escrita garante-lhe uma condição diferenciada na sua relação com o mundo, um 
estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas domina o código 
(Soares, 1998). Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o 
conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a 
possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e 
comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado 
contexto cultural. Em função disso, 
 
Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (...dos professores), tanto 
na pré-escola quanto no ensino médio, seja a utilização da escrita verdadeira [iii] nas 
diversas atividades pedagógicas, isto é, a utilização da escrita, em sala, 
correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas 
sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do 
processo de alfabetização escolar é o texto: trecho falado ou escrito, caracterizado 
pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva. 
(Leite, p. 25) 
 
 114 
O desafio de ensinar a ler e a escrever 
 
 
Partindo da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, 
convenções e normas de funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso 
efetivo nas mais diversas situações e para diferentes fins, somos levados a admitir o 
paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura suficientemente 
fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição de 
inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente aberto que 
permite dizer tudo, isto é, um sistema permanentemente disponível ao poder 
humano de criação (Geraldi, 93). 
 
Como conciliar essas duas vertentes da língua em um único sistema de ensino? Na 
análise dessa questão, dois embates merecem destaque: o conceitual e o 
ideológico. 
 
1) O embate conceitual 
 
 
Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e 
letramento (processos paralelos [iv] , simultâneos ou não [v] , mas que 
indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a distinção de 
ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de 
aprendizagem (incluindo a compreensão do sistema e sua possibilidade de uso). Em 
uma concepção progressista de “alfabetização” (nascida em oposição às práticas 
tradicionais, a partir dos estudos psicogenéticos dos anos 80), o processo de 
alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma 
redundância em função de como o ensino da língua escrita já é concebido. 
Questionada formalmente sobre a “novidade conceitual” da palavra “letramento”, 
Emilia Ferreiro explicita assim a sua rejeição ao uso do termo: 
 
 
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. 
E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. 
Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o 
compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de 
decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. 
Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica. (2003, p. 30) 
 
 115 
Note-se, contudo, que a oposição da referida autora circunscreve-se estritamente ao 
perigo da dissociação entre o aprender a escrever e o usar a escrita (“retrocesso” 
porque representa a volta da tradicional compreensão instrumental da escrita). 
Como árdua defensora de práticas pedagógicas contextualizadas e signifcativas 
para o sujeito, otrabalho de Emília Ferreiro, tal como o dos estudiosos do 
letramento, apela para o resgate das efetivas práticas sociais de língua escrita o que 
faz da oposição entre eles um mero embate conceitual. 
 
Tomando os dois extremos como ênfases nefastas à aprendizagem da língua escrita 
(priorizando a aprendizagem do sistema ou privilegiando apenas as práticas sociais 
de aproximação do aluno com os textos), Soares defende a complementaridade e o 
equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da distinção terminológica: 
 
Porque alfabetização e letramento são conceitos freqüentemente confundidos ou 
sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também 
aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, 
do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do 
processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não 
só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-
se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. 
(2003, p. 90) 
 
Assim como a autora, é preciso reconhecer o mérito teórico e conceitual de ambos 
os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro 
transformadas em modismos banais e mal assimilados), a compreensão que hoje 
temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente as 
práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade 
da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio 
dos educadores em face do ensino da língua escria: o alfabetizar letrando. 
 
2) O embate ideológico 
 
 
Mais severo do que o embate conceitual, a oposição entre os dois modelos descritos 
por Street (1984) [vi] representa um posicionamento radicalmente diferente, tanto no 
que diz respeito às concepções implícita ou explicitamente assumidas quanto no que 
tange à pratica pedagógica por elas sustentadas. 
 116 
O “Modelo Autônomo”, predominante em nossa sociedade, parte do princípio de 
que, independentemente do contexto de produção, a língua tem uma autonomia 
(resultado de uma lógica intrínseca) que só pode ser apreendida por um processo 
único, normalmente associado ao sucesso e desenvolvimento próprios de grupos 
 
“mais civilizados”. 
 
 
Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legitimo se atrelada ao 
padrão elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão 
de um inflexível funcionamento lingüístico, a escola tradicional sempre pautou o 
ensino pela progressão ordenada de conhecimentos: aprender a falar a língua 
dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca) 
fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela 
sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo viés lingüístico e autoritária 
pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração 
do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar. 
 
Em oposição, o “Modelo Ideológico” admite a pluralidade das práticas letradas, 
valorizando o seu significado cultural e contexto de produção. Rompendo 
definitivamente com a divisão entre o “momento de aprender” e o “momento de fazer 
uso da aprendizagem”, os estudos lingüísticos propõem a articulação dinâmica e 
reversível [vii] entre “descobrir a escrita” (conhecimento de suas funções e formas de 
manifestação), “aprender a escrita” (compreensão das regras e modos de 
funcionamento) e “usar a escrita” (cultivo de suas práticas a partir de um referencial 
culturalmente significativo para o sujeito). O esquema abaixo pretende ilustrar a 
integração das várias dimensões do aprender a ler e escrever no processo de 
alfabetizar letrando: 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 117 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O significado do aprender a ler e a escrever 
 
 
Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos 
apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a 
aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente pedagógica 
para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o investimento na 
formação humana. Nas palavras de Emilia Ferreiro, 
A escrita é importante na escola, porque é importante fora dela e não o contrário. 
(2001) 
 
Retomando a tese defendida por Paulo Freire, os estudos sobre o letramento 
reconfiguraram a conotação política de uma conquista – a alfabetização - que não 
necessariamente se coloca a serviço da libertação humana. Muito pelo contrário, a 
história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas de 
excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo 
agravado pelo quadro nacional de baixo letramento. 
 
O quadro da sociedade leitora no Brasil 
 
 
Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, 
 118 
redimensionaram as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o 
significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a 
reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil. Ao lado do índice nacional de 
16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de 
indivíduos que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos 
longos, localizar ou relacionar suas informações. 
 
Dados do Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa em Educação (INEP) indicam 
que os índices alcançados pela maioria dos alunos de 4ª série do Ensino 
 
Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” e “muito crítico”. Isso quer dizer que 
mesmo para as crianças que têm acesso à escola e que nela permanecem por mais 
de 3 anos, não há garantia de acesso autônomo às praticas sociais de leitura e 
escrita (Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Que escola é essa que não ensina a 
escrever? 
 
Independentemente do vínculo escolar, essa mesma tendência parece confirmar-se 
pelo “Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional” (INAF), uma pesquisa realizada 
por amostragem representativa da população brasileira de jovens e adultos (de 15 a 
64 anos de idade) [viii] : entre os 2000 entrevistados, 1475 eram analfabetos ou 
tinham pouca autonomia para ler ou escrever, e apenas 525 puderam ser 
considerados efetivos usuários da língua escrita. Indiscutivelmente, uma triste 
realidade! 
 
Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever 
 
 
Por que será que tantas crianças e jovens deixam de aprender a ler e a escrever? 
Por que é tão difícil integrar-se de modo competente nas práticas sociais de leitura e 
escrita? 
 
Se descartássemos as explicações mais simplistas (verdadeiros mitos da educação) 
que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados 
 
“problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas 
na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado a 
partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma 
relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; 
se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas meramente 
 119 
instrucionais em intervenções educativas; talvez fosse possível compreender melhor 
o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de 
analfabetismo no Brasil. 
 
Nesse sentido, os estudos sobre o letramento se prestam à fundamentação de pelo 
menos três hipóteses não excludentes para explicaro fracasso no ensino da língua 
escrita. Na mesma linha de argumentação dos educadores que evidenciaram os 
efeitos do “currículo oculto” nos resultados escolares de diferentes segmentos 
sociais, é preciso considerar, como ponto de partida, que as práticas letradas de 
diferentes comunidades (e portanto, as experiências de diferentes alunos) são 
muitas vezes distantes do enfoque que a escola costuma dar à escrita (o letramento 
tipicamente escolar). Lidar com essa diferença (as formas diversas de conceber e 
valorar a escrita, os diferentes usos, as várias linguagens, os possíveis 
posicionamentos do interlocutor, os graus diferenciados de familiaridade temática, as 
alternativas de instrumentos, portadores de textos e de práticas de produção e 
interpretação...) significa muitas vezes percorrer uma longa trajetória, cuja duração 
não está prevista nos padrões inflexíveis da programação curricular. 
 
Em segundo lugar, é preciso considerar a reação do aprendiz em face da proposta 
pedagógica, muitas vezes autoritária, artificial e pouco significativa. Na dificuldade 
de lidar com a lógica do “aprenda primeiro para depois ver para que serve”, muitos 
alunos parecem pouco convencidos a mobilizar os seus esforços cognitivos em 
benefício do aprender a ler e a escrever (Carraher, Carraher e Schileimann, 1989; 
Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Essa típica postura de resistência ao 
artificialismo pedagógico em um contexto de falta de sintonia entre alunos e 
professores parece evidente na reivindicação da personagem Mafalda: 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Com ironia e bom humor, o exemplo acima explica o caso bastante freqüente de 
 120 
jovens inteligentes que aprenderam a lidar com tantas situações complexas da vida 
(aquisição da linguagem, transações de dinheiro, jogos de computador, atividades 
profissionais, regras e práticas esportivas entre outras), mas que não conseguem 
disponibilizar esse reconhecido potencial para superar a condição de analfabetismo 
e baixo letramento. 
 
Por último, ao considerar os princípios do alfabetizar letrando (ou do Modelo 
Ideológico de letramento), devemos admitir que o processo de aquisição da língua 
escrita está fortemente vinculado a uma nova condição cognitiva e cultural. 
Paradoxalmente, a assimilação desse status (justamente aquilo que os educadores 
esperam de seus alunos como evidência de “desenvolvimento” ou de emancipação 
do sujeito) pode se configurar, na perspectiva do aprendiz, como motivos de 
resistência ao aprendizado: a negação de um mundo que não é o seu; o temor de 
perder suas raízes (sua história e referencial); o medo de abalar a primazia até então 
concedida à oralidade (sua mais típica forma de expressão), o receio de trair seus 
pares com o ingresso no mundo letrado e a insegurança na conquista da nova 
identidade (como “aluno bem-sucedido” ou como “sujeito alfabetizado” em uma 
cultura grafocêntrica altamente competitiva). 
 
... a aprendizagem da língua escrita envolve um processo de aculturação – através, 
e na direção das práticas discursivas de grupos letrados - , não sendo, portanto, 
apenas um processo marcado pelo conflito, como todo processo de aprendizagem, 
mas também um processo de perda e de luta social. (...) 
 
(...) há uma dimensão de poder envolvida no processo de aculturação efetivado na 
escola: aprender – ou não – a ler e escrever não equivale a aprender uma técnica ou 
um conjunto de conhecimentos. O que está envolvido para o aluno adulto é a 
aceitação ou o desafio e a rejeição dos pressupostos, concepções e práticas de um 
grupo dominante – a saber, as práticas de letramento desses grupos entre as quais 
se incluem a leitura e a produção de textos em diversas instituições, bem como as 
formas legitimadas de se falar desses textos -, e o conseqüente abandono (e 
rejeição) das práticas culturais primárias de seu grupo subalterno que, até esse 
momento, eram as que lhe permitiam compreender o mundo. (Kleiman, 2001, p. 
271) 
 
 121 
Como exemplo de um mecanismo de resistência ao mundo letrado construído por 
práticas pedagógicas (ainda que involuntariamnete ideologizantes) no cotidiano da 
sala de aula, Kleiman (2001) expõe o caso de um grupo de jovens que se rebelaram 
ante a proposta da professora de examinar bulas de remédio. Como recurso didático 
até bem intencionado, o objetivo da tarefa era o de aproximar os alunos da escrita, 
favorecendo a compreensão de seus usos, nesse caso, chamando a sua atenção 
para os perigos da auto-medicação e para a importância de se informar antes de 
tomar uma medicação (posologia, reações adversas, efeitos colaterais, etc). Do 
ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito provavelmente à 
escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao 
qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de 
ser acompanhado por um médico e da compra de remédios. 
 
Na prática, a desconsideração dos significados implícitos do processo de 
 
alfabetização - o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, 
a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógica e a negação do 
mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas 
evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as 
tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social. 
 
Perspectivas das pesquisas sobre letramento 
 
Embora o termo “letramento” remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas 
sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um 
determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento (ou prática 
profissional) motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito de suas 
especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir 
a referência no plural “letramentos”. 
 
Mesmo correndo o risco de inadequação terminológica, ganhamos a possibilidade 
de repensar o trânsito do homem na diversidade dos “mundos letrados”, cada um 
deles marcado pela especificidade de um universo. Desta forma, é possível 
confrontar diferentes realidades, como por exemplo o “letramento social” com o 
 122 
“letramento escolar”; analisar particularidades culturais, como por exemplo o 
“letramento das comunidades operárias da periferia de São Paulo”, ou ainda 
compreender as exigências de aprendizagem em uma área específica, como é o 
caso do “letramento científico”, “letramento musical” o “letramento da informática ou 
dos internautas”. Em cada um desses universos, é possível delinear práticas 
 
(comportamentos exercidos por um grupo de sujeitos e concepções assumidas que 
dão sentido a essas manifestações) e eventos (situações compartilhadas de usos da 
escrita) como focos interdependentes de uma mesma realidade (Soares, 2003). A 
aproximação com as especificidades permite não só identificar a realidade de um 
grupo ou campo em particular (suas necessidades, características, dificuldades, 
modos de valoração da escrita), como também ajustar medidas de intervenção 
pedagógica, avaliando suas conseqüências. No caso de programas de 
alfabetização, a relevância de tais pesquisas é assim defendida por Kleiman: 
 
Se por meio das grandes pesquisas quantitativas, podemos conhecer onde e 
 
quando intervir em nível global, os estudos acadêmicos qualitativos, geralmente de 
tipo etnográfico, permitem conhecer as perspectivas específicas dos usuários e os 
contextos de uso e apropriação da escrita, permitindo, portanto, avaliar o impacto 
das intervenções e até, de forma semelhante à das macro análises,procurar 
tendências gerais capazes de subsidiar as políticas de implementação de 
programas. (2001, p. 269) 
 
Sem a pretensão de esgotar o tema, a breve análise do impacto e contribuição dos 
estudos sobre letramento aqui desenvolvida aponta para a necessidade de 
aproximar, no campo da educação, teoria e prática. Na sutura entre concepções, 
implicações pedagógicas, reconfiguração de metas e quadros de referência, 
hipóteses explicativas e perspectivas de investigação, talvez possamos encontrar 
subsídios e alternativas para a transformação da sociedade leitora no Brasil, uma 
realidade politicamente inaceitável e, pedagogicamente, aquém de nossos ideais. 
 
 
 
 
 
 123 
NOTAS 
 
 
[i] “Literacy” do inglês, traduzido por “letramento” no Brasil e por “literacia” em 
Portugal é uma terminologia não dicionarizada que, nos meios acadêmicos, vem 
sendo utilizada com diferentes sentidos. 
 
[ii] No Brasil, o termo “letramento” foi usado pela 1a vez por Mary Kato, em 1986, na 
obra “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística” (São Paulo, Ática). 
 
Dois anos depois, passa a representar um referencial no discurso da educação, ao 
ser definido por Tfouni em “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso” (São 
 
Paulo, Pontes) e retomado em publicações posteriores. 
 
 
[iii] O autor utiliza a expressão “escrita verdadeira” em oposição à “escrita escolar”, 
um modelo muitas vezes artificial, cujo reducionismo não faz justiça à 
multidimensionalidade da língua viva. 
 
[iv] Como evidência desse paralelismo, é possível, por exemplo, termos casos de 
pessoas letradas e não alfabetizadas (indivíduos que, mesmo incapazes de ler e 
escrever, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem gêneros ou 
reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade) ou de pessoas 
alfabetizadas e pouco letradas (aqueles que, mesmo dominando o sistema da 
escrita, pouco vislumbram suas possibilidades de uso). 
 
[v] Em uma sociedade como a nossa, o mais comum é que a alfabetização seja 
desencadeada por práticas de letramento, tais como ouvir histórias, observar 
cartazes, conviver com práticas de troca de correspondência, etc. No entanto, é 
possível que indivíduos com baixo nível de letramento (não raro membros de 
comunidades analfabetas ou provenientes de meios com reduzidas práticas de 
leitura e escrita) só tenham a oportunidade de vivenciar tais eventos na ocasião de 
ingresso na escola, com o início do processo formal de alfabetização. 
 
[vi] Para um estudo mais aprofundado dos modelos “Autônomo” e “Ideológico” 
descritos por Street, remetemos o leitor à leitura de Kleiman, 1985. 
 
[vii] Dinâmica porque pressupõe o movimento intenso de um pólo ao outro; 
reversível porque a experiência em qualquer um dos pólos remete ao 
amadurecimento nos demais. 
 124 
 
[viii] Para mais dados sobre a pesquisa do INAF (objetivos, população envolvida, 
critérios de análise e resultados obtidos), remetemos o leitor à leitura de Ribeiro 
(2003). 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
 
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zero. São Paulo, Cortez, 1989. 
 
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VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá, 2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com). 
 
COLELLO, S. M. G. & SILVA, N. “Letramento: do processo de exclusão social aos 
vícios da prática pedagógica” In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, 
pp. 21 – 34 (ww.hottopos.com). 
 
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Pellegrini In Nova Escola – A revista do Professor. São Paulo, Abril, maio/2003, pp. 
27 – 30. 
 
GERALDI, W. Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1993. 
 
___________ Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, 
Mercado das Letras/ABL,1996. 
 
IBGE, Censo Demográfico, Mapa do analfabetismo no Brasil, Brasília, MEC/INEP, 
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KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre 
a prática social da escrita. Campinas, Mercado das Letras, 1995. 
 
___________ “Programa de educação de jovens e adultos” In Educação e Pesquisa 
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LEITE, S. A. S. (org.) Alfabetização e letramento – contribuições para as práticas 
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RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. 
 
SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 
1998. 
 
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e perspectivas”, Revista Brasileira de Educação, n. 0, 1995, pp. 5 – 16. 
 
STREET, B. V. Literacy in theory and Practice. Cambridge, University Press, 1984. 
 125 
TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. São Paulo, Cortez,1995. 
Educação & Sociedade 
 
 
Print version ISSN 0101-7330 
Educ. Soc. vol.23 no.81 Campinas Dec. 2002 
doi: 10.1590/S0101-73302002008100008 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 126 
NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA: letramento na cibercultura 
 
 
Magda Soares* 
 
RESUMO: No contexto de uma diferenciação entre a cultura do papel e a cultura da 
tela, ou cibercultura, o artigo busca uma melhor compreensão do conceito de 
letramento, confrontando tecnologias tipográficas e tecnologias digitais de leitura e 
de escrita, a partir de diferenças relativas ao espaço da escrita e aos mecanismos de 
produção, reprodução e difusão da escrita; argumenta que cada uma dessas 
tecnologias tem determinados efeitos sociais, cognitivos e discursivos, resultando em 
modalidades diferentes de letramento, o que sugere que a palavra seja pluralizada: 
há letramentos, não letramento. 
 
Palavras-chave: Letramento. Cultura do papel. Cibercultura. Práticas de leitura. 
Práticas de escrita. 
 
Em um movimento de certa forma contrário ao mais freqüente, que é o de ampliar a 
compreensão do presente interrogando o passado que o gerou, tenta-se, neste texto, 
essa mesma compreensão do presente interrogando o futuro que nele está sendo 
gerado. Em outras palavras: o que aqui se pretende é perseguir uma mais ampla 
compreensão de letramento, buscando um novo sentido que essa palavra e 
fenômeno, recém-introduzidos no contexto de uma cultura do papel, e nela ainda não 
plenamente compreendidos, já vêm adquirindo, como conseqüência do surgimento, 
ao lado da cultura do papel, de uma cibercultura.1 
 
Conceitos de letramento 
 
 
O plural, nesse subtítulo – conceitos –, explica-se pela imprecisão que, na literatura 
educacional brasileira, ainda marca a definição de letramento, imprecisão 
compreensível se se considera que o termo foi recentemente introduzido nas áreas 
das letras e da educação.2 Entretanto, não há, propriamente, uma diversidade de 
conceitos, mas diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno. 
 
 
Há autores que consideram que letramento são as práticas de leitura e escrita: 
segundo Kleiman (1995, p. 19): "Podemos definir hoje o letramento como um 
conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e 
enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos". Em texto 
 127 
posterior, a autora declara entender letramento "como as práticas e eventos 
relacionados com uso, função e impacto social da escrita" (idem, 1998, p. 181). 
Nessa concepção, letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os eventos 
em que essas práticas são postas em ação, bem como as conseqüências delas 
sobre a sociedade. 
 
Já Tfouni(1988, p. 16), em obra que foi uma das primeiras a não só utilizar, mas 
também a definir o termo letramento, conceitua-o em confronto com alfabetização, 
conceito que reafirma em obra posterior: "Enquanto a alfabetização ocupa-se da 
aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza 
os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade" 
(idem, 1995, p. 20). A autora reafirma essa diferença entre alfabetização e 
letramento insistindo no caráter individual daquela e social deste: 
 
A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de 
habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso é levado 
a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução 
formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por 
sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. Entre outros 
casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um 
sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada; procura ainda saber quais 
práticas psicossociais substituem as práticas "letradas" em sociedades ágrafas. 
(Idem, 1988, p. 9, e 1995, p. 9-10). 
 
Assim, para Tfouni, letramento são as conseqüências sociais e históricas da 
introdução da escrita em uma sociedade, "as mudanças sociais e discursivas que 
 
ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada" (1995, p. 20). Conclui-se 
que Tfouni toma, para conceituar letramento, o impacto social da escrita, que, para 
Kleiman, é apenas um dos componentes desse fenômeno; Kleiman acrescenta a 
esse outros componentes: também as próprias práticas sociais de leitura e escrita e 
os eventos em que elas ocorrem compõem o conceito de letramento. Em ambas as 
autoras, porém, o núcleo do conceito de letramento são as práticas sociais de leitura 
e de escrita, para além da aquisição do sistema de escrita, ou seja, para além da 
alfabetização. 
 
 128 
Embora mantendo esse foco nas práticas sociais de leitura e de escrita, este texto 
fundamenta-se numa concepção de letramento como sendo não as próprias práticas 
de leitura e escrita, e/ou os eventos relacionados com o uso e função dessas 
práticas, ou ainda o impacto ou as conseqüências da escrita sobre a sociedade, mas, 
para além de tudo isso, o estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de 
leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que a escrita é parte integrante 
da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação – os 
eventos de letramento, tal como definidos por Heath (1982, p. 93): "A literacy event is 
any occasion in which a piece of writing is integral to the nature of participant's 
interactions and their interpretive processes." (Um evento de letramento é qualquer 
situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das 
interações entre os participantes e de seus processos de interpretação.) Ou seja: 
coerentemente com o conceito apresentado em Soares (1998b), letramento é, na 
argumentação desenvolvida neste texto, o estado ou condição de indivíduos ou de 
grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais 
de leitura e de escrita, participam competentemente de eventos de letramento. O que 
esta concepção acrescenta às anteriormente citadas é o pressuposto de que 
indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, 
têm as habilidades e atitudes necessárias para uma participação ativa e competente 
em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita têm uma função essencial, 
mantêm com os outros e com o mundo que os cerca formas de interação, atitudes, 
competências discursivas e cognitivas que lhes conferem um determinado e 
diferenciado estado ou condição de inserção em uma sociedade letrada.3 
 
 
 129 
 
 
Letramento é, nesta concepção, o contrário de analfabetismo (razão pela qual a 
palavra alfabetismo tem sido freqüentemente usada em lugar de letramento, e seria 
mesmo mais vernácula que esta última). Se analfabetismo é, como habitualmente 
definido nos dicionários, o estado de analfabeto (cf. Michaelis, Moderno dicionário da 
língua portuguesa), o estado ou condição de analfabeto (cf. Novo Aurélio Século XXI 
e Dicionário HouaiSS da língua portuguesa), o contrário de analfabetismo – 
alfabetismo ou letramento – é o estado ou condição de quem não é analfabeto. Aliás, 
na própria formação da palavra letramento está presente a idéia de estado: a palavra 
traz o sufixo -mento, que forma substantivos de verbos, acrescentando a estes o 
sentido de "estado resultante de uma ação", como ocorre, por exemplo, em 
acolhimento, ferimento, sofrimento, rompimento, lançamento; assim, de um verbo 
letrar (ainda não dicionarizado, mas necessário para designar a ação educativa de 
desenvolver o uso de práticas sociais de leitura e de escrita, para além do apenas 
ensinar a ler e a escrever, do alfabetizar), forma-se a palavra letramento: estado 
resultante da ação de letrar. 
 
No quadro desse conceito de letramento, o momento atual oferece uma oportunidade 
extremamente favorável para refiná-lo e torná-lo mais claro e preciso. É que estamos 
vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de 
práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de 
comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a Internet. É, assim, um 
momento privilegiado para, na ocasião mesma em que essas novas práticas de 
leitura e de escrita estão sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão 
instituindo: um momento privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de 
escrita digitais, o letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição 
diferente daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirográficas e 
tipográficas,4 o letramento na cultura do papel. Uma compreensão mais clara deste 
último pode advir de seu confronto e contraste com o primeiro, replicando, em 
sentido inverso, Ong (1986), quando busca compreender o letramento pela via de 
seu confronto e contraste com a cultura oral. 
 
 
 
 
 
 
 130 
Da oralidade à escrita 
 
Ong (1986) enfatiza a dificuldade que temos, as mentes letradas, de entender a 
oralidade primária,5 porque a tecnologia da escrita está tão profundamente 
internalizada em nós que nos tornamos incapazes de separá-la de nós mesmos, e 
assim não conseguimos perceber sua presença e influência – não temos consciência 
da natureza do fenômeno do letramento, temos dificuldade de captar as 
características do estado ou condição de ser "letrado", porque vivemos imersos nele. 
Para vencer essa dificuldade, Ong procura compreender o letramento na cultura do 
papel pela identificação das diferenças entre sociedades ágrafas e sociedades 
letradas, confrontando o mundo da oralidade primária com o mundo letrado. 
 
Também os estudos sobre poemas épicos orais, feitos por Milman Parry e Albert 
Lord, tomando como objeto de análise Homero e os poetas épicos da antiga 
Iugoslávia, relatados em Lord (1960), e ainda os estudos de Havelock (1963, 1982, 
1986) sobre a introdução da escrita na Grécia antiga, evidenciam, sempre tendo 
como termo de referência o texto escrito, as características dos textos orais, 
memorizados e recitados, características determinadas por sua forma de recepção, 
por seu gênero, por sua função (preservação da memória), por seus destinatários. 
Por outro lado, Goody (1977, 1987) analisa, fundamentando-se em pesquisas 
históricas e antropológicas, as diferenças de "mentalidade" entre povos de culturaságrafas e povos de culturas letradas. Esses autores evidenciam como a introdução e 
prática da escrita trouxeram significativas mudanças na recepção do texto, nos 
gêneros e funções do texto, nos processos cognitivos e discursivos, enfim, no estado 
ou condição dos destinatários dos textos. 
 
Para Ong, Parry, Lord, Havelock e Goody, o confronto e contraposição entre culturas 
letradas e culturas de oralidade primária permitiram uma compreensão mais ampla 
não só destas, mas também daquelas; da mesma forma, podemos buscar uma 
compreensão mais ampla da natureza do letramento na cultura do papel pela análise 
do processo em andamento, na cibercultura, de desenvolvimento de novas práticas 
digitais de leitura e de escrita, em confronto e contraposição com as já tradicionais 
práticas sociais quirográficas e tipográficas de leitura e de escrita. Ou seja: recuperar 
o significado de um letramento já ocorrido e já internalizado, flagrando um novo 
letramento que está ocorrendo e apenas começa a ser internalizado.
 131 
Tecnologias de escrita e letramento 
 
 
Considerando que letramento designa o estado ou condição em que vivem e 
interagem indivíduos ou grupos sociais letrados, pode-se supor que as tecnologias 
de escrita, instrumentos das práticas sociais de leitura e de escrita, desempenham 
um papel de organização e reorganização desse estado ou condição. Lévy (1993) 
inclui as tecnologias de escrita entre as tecnologias intelectuais, responsáveis por 
gerar estilos de pensamento diferentes (observe-se o subtítulo de seu livro As 
tecnologias da inteligência: "o futuro do pensamento na era da informática"); esse 
autor insiste, porém, que as tecnologias intelectuais não determinam, mas 
condicionam processos cognitivos e discursivos. 
 
Esse condicionamento tem sido estudado, ora defendido ora contestado, por muitos, 
em relação aos efeitos sobre culturas orais ou sobre indivíduos não-letrados, da 
introdução e prática da tecnologia de escrita quirográfica e tipográfica (basta citar 
aqui a admirável revisão e argumentação em torno desse tema feita por Olson, 
1994). O mesmo começa a ocorrer em relação aos efeitos da introdução e prática da 
tecnologia de escrita digital sobre culturas de letramento tipográfico; entre os autores 
que vêm desenvolvendo essa reflexão, destacam-se Lévy (1993, 1999) e Chartier 
(1994, 1998, 2001). 
 
Neste texto, não se pretende discutir propriamente esses efeitos, mas identificar as 
principais diferenças entre as tecnologias tipográficas e as tecnologias digitais de 
leitura e escrita, para delas tentar inferir as mudanças que provavelmente estão 
ocorrendo, ou virão a ocorrer, na natureza do letramento – do estado ou condição de 
"letrado", e assim compreender melhor o próprio conceito de letramento. 
 
Tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita 
 
 
As diferenças entre tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita serão 
consideradas, neste texto, restringindo-se a análise ao uso de ambas essas 
tecnologias para a escrita de textos informativos ou literários; não se incluirá na 
análise o uso delas para a interação a distância. Assim, discute-se aqui, para 
confrontá-lo com o texto no papel, o texto na tela – o hipertexto; embora se 
reconheça que a análise da interação on-line (os chats, o e-mail, as listas de 
discussão, os fóruns, entre outros) seria elucidativa para melhor compreensão do 
 132 
conceito de letramento, confrontando-se essas modalidades de interação entre as 
pessoas com as modalidades de interação face-a-face ou por meio da escrita no 
papel, renuncia-se a incluí-la neste texto, porque esse uso da tecnologia digital 
suscita questões específicas de natureza diversa, sobretudo lingüística, cuja 
discussão ultrapassaria os limites e objetivos deste artigo.6 
 
Para a análise das tecnologias tipográficas e digitais de leitura e escrita de textos e 
hipertextos, são aqui considerados os dois elementos mais relevantes de 
diferenciação entre elas: o espaço de escrita e os mecanismos de produção, 
reprodução e difusão da escrita. 
 
Os espaços de escrita 
 
 
Espaço de escrita, na definição de Bolter (1991), é "o campo físico e visual definido 
por uma determinada tecnologia de escrita". Todas as formas de escrita são 
espaciais, todas exigem um "lugar" em que a escrita se inscreva/escreva, mas a 
cada tecnologia corresponde um espaço de escrita diferente. Nos primórdios da 
história da escrita, o espaço de escrita foi a superfície de uma tabuinha de argila ou 
madeira ou a superfície polida de uma pedra; mais tarde, foi a superfície interna 
contínua de um rolo de papiro ou de pergaminho, que o escriba dividia em colunas; 
finalmente, com a descoberta do códice, foi, e é, a superfície bem delimitada da 
página – inicialmente de papiro, de pergaminho, finalmente a superfície branca da 
página de papel. Atualmente, com a escrita digital, surge este novo espaço de 
escrita: a tela do computador. 
 
Há estreita relação entre o espaço físico e visual da escrita e as práticas de escrita e 
de leitura. O espaço da escrita relaciona-se até mesmo com o sistema de escrita: a 
escrita em argila úmida, que recebia bem a marca da extremidade em cunha do 
cálamo, levou ao sistema cuneiforme de escrita; a pedra como superfície a ser 
escavada serviu bem, num primeiro momento, aos hieróglifos dos egípcios, mas, 
quando estes passaram a usar o papiro, sua escrita, condicionada por esse novo 
espaço, foi-se tornando progressivamente mais cursiva e perdendo as tradicionais e 
estilizadas imagens hieroglíficas, exigidas pela superfície da pedra. O espaço de 
escrita relaciona-se também com os gêneros e usos de escrita, condicionando as 
práticas de leitura e de escrita: na argila e na pedra não era possível escrever longos 
textos, narrativas; não podendo ser facilmente transportada, a pedra só permitia a 
 133 
escrita pública em monumentos; a página, propiciando o códice, tornou possível a 
escrita de variados gêneros, de longos textos. 
 
O espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre escritor e leitor, entre 
escritor e texto, entre leitor e texto. A extensa e contínua superfície do espaço de 
escrita no rolo de papiro ou pergaminho impunha uma escrita e uma leitura sem 
retornos ou retomadas. Já o texto nas páginas do códice tem limites claramente 
definidos, tanto a escrita quanto a leitura podem ser controladas por autor e leitor, 
permitindo releituras, retomadas, avanços, fácil localização de trechos ou partes; 
além disso, o códice torna evidente, materializando-a, a delimitação do texto, seu 
começo, sua progressão, seu fim, e cria a possibilidade de protocolos de leitura 
como a divisão do texto em partes, em capítulos, a apresentação de índice, sumário. 
 
No computador, o espaço de escrita é a tela, ou a "janela"; ao contrário do que 
ocorre quando o espaço da escrita são as páginas do códice, quem escreve ou 
quem lê a escrita eletrônica tem acesso, em cada momento, apenas ao que é 
exposto no espaço da tela: o que está escrito antes ou depois fica oculto (embora 
haja a possibilidade de ver mais de uma tela ao mesmo tempo, exibindo uma janela 
ao lado de outra, mas sempre em número limitado). 
 
O que é mais importante, porém, é que a escrita na tela possibilita a criação de um 
texto fundamentalmente diferente do texto no papel7 – o chamado hipertexto que é, 
segundo Lévy (1999, p. 56), "um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas 
facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor". O texto no papel é 
escrito e é lido linearmente, seqüencialmente – da esquerda para a direita, de cima 
para baixo, uma página após a outra; o texto na tela – o hipertexto– é escrito e é 
lido de forma multilinear, multi-seqüencial, acionando-se links ou nós que vão 
trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades, sem que haja uma ordem 
predefinida. A dimensão do texto no papel é materialmente definida: identifica-se 
claramente seu começo e seu fim, as páginas são numeradas, o que lhes atribui 
uma determinada posição numa ordem consecutiva – a página é uma unidade 
estrutural; o hipertexto, ao contrário, tem a dimensão que o leitor lhe der: seu 
começo é ali onde o leitor escolhe, com um clique, a primeira tela, termina quando o 
leitor fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se por satisfeito ou considerar-se 
suficientemente informado 
 134 
 
– enquanto a página é uma unidade estrutural, a tela é uma unidade temporal. Lévy 
(1993, p. 40-41), em tópico que denomina significativamente e, esperemos, também 
exageradamente de Réquiem para uma página, compara a leitura do texto na página 
com a leitura do hipertexto: 
 
Quando um leitor se desloca na rede de microtextos e imagens de uma enciclopédia, 
deve traçar fisicamente seu caminho nela, manipulando volumes, virando páginas, 
percorrendo com seus olhos as colunas tendo em mente a ordem alfabética. [...] O 
hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, 
obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas 
faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa 
esquematizada. Ele se redobra e desdobra à vontade, muda de forma, se multiplica, 
se corta e se cola outra vez de outra forma. Não é apenas uma rede de microtextos, 
mas sim um grande metatexto de geometria variável, com gavetas, com dobras. Um 
parágrafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, três capítulos sob uma 
palavra ou parágrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras destes capítulos, e 
assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso. [...] Ao ritmo regular da 
página se sucede o movimento perpétuo de dobramento e desdobramento de um 
texto caleidoscópico. 
 
Em síntese, a tela, como novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas 
formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e 
até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento. Embora os 
estudos e pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na escrita e na leitura 
de hipertextos sejam ainda poucos (ver, por exemplo, além das já citadas obras de 
Lévy, também Rouet, Levonen, Dillon e Spiro, 1996), a hipótese é de que essas 
mudanças tenham conseqüências sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, 
assim, configurando um letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que 
adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de 
leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos 
que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. Para alguns autores, os 
processos cognitivos inerentes a esse letramento digital reaproximam o ser humano 
de seus esquemas mentais; Ramal (2002, p. 84) afirma: 
 135 
 
Estamos chegando à forma de leitura e de escrita mais próxima do nosso próprio 
esquema mental: assim como pensamos em hipertexto, sem limites para a 
imaginação a cada novo sentido dado a uma palavra, também navegamos nas 
múltiplas vias que o novo texto nos abre, não mais em páginas, mas em dimensões 
superpostas que se interpenetram e que podemos compor e recompor a cada 
leitura. 
 
Também Bolter (1991, p. 21-22) afirma que a escrita no papel, com sua exigência de 
uma organização hierárquica e disciplinada das idéias, contraria o fluxo natural do 
pensamento, que se dá por associações, em rede – segundo esse autor, é o 
hipertexto que veio legitimar o registro desse pensamento por associações, em rede, 
tornando-o possível ao escritor e ao leitor. 
 
Já Lévy (1999, p. 157) afirma que a cibercultura traz uma mutação da relação com o 
saber. Para este autor, "o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que 
amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas", 
como a memória, que "se encontra tão objetivada em dispositivos automáticos, tão 
separada do corpo dos indivíduos ou dos hábitos coletivos que nos perguntamos se 
a própria noção de memória ainda é pertinente" (Lévy, 1993, p. 118); como a 
imaginação, que se enriquece com as simulações; como a percepção, que se 
amplifica com os sensores digitais, as realidades virtuais. Chartier (1994, p. 100-101) 
considera o texto na tela uma revolução do espaço da escrita que altera 
fundamentalmente a relação do leitor com o texto, as maneiras de ler, os processos 
cognitivos: 
 
Se abrem possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos 
modifica totalmente a sua condição: ela substitui a materialidade do livro pela 
imaterialidade de textos sem lugar específico; às relações de contigüidade 
 
estabelecidas no objeto impresso ela opõe a livre composição de fragmentos 
indefinidamente manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada 
visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de longo curso entre 
arquipélagos textuais sem margens nem limites. Essas mutações comandam, 
inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a 
escrita, novas técnicas intelectuais. 
 136 
 
Pode-se concluir que a tela como espaço de escrita e de leitura traz não apenas 
novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, 
novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um 
novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem 
práticas de escrita e de leitura na tela. É deste novo letramento que nos fala Bolter, 
um entusiasta das novas tecnologias, em seu já clássico livro (1991): 
 
The printed book [...] seems destined to move to the margin of our literate culture. 
[…] the idea and the ideal of the book will change: print will no longer define the 
organization and presentation of knowledge, as it has for the past five centuries. This 
shift from print to the computer does not mean the end of literacy. What will be lost is 
not literacy itself, but the literacy of print, for electronic technology offers us a new 
kind of book and new ways to write and read. The shift to the computer will make 
writing more flexible, but it will also threaten the definitions of good writing and careful 
reading that have been fostered by the technique of printing. […] The computer is 
restructuring our current economy of writing. It is changing the cultural status of 
writing as well as the method of producing books. It is changing the relationship of 
the author to the text and of both author and text to the reader. (p. 2-3)8 
 
Os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita 
 
Antes da invenção da imprensa, a produção e reprodução manuscritas dos textos 
condicionavam sua difusão, seu uso e, conseqüentemente, as práticas de escrita e 
de leitura: por um lado, os livros manuscritos da Idade Média eram objetos de luxo, a 
que poucos tinham acesso – Umberto Eco representa bem a relação do homem 
medieval com os livros manuscritos, em O nome da rosa; por outro lado, os copistas 
freqüentemente alteravam o texto, ou por erro ou por intervenção consciente, de 
 
modo que cópias do mesmo texto raramente eram idênticas; além disso, ao 
possuidor ou ao leitor do manuscrito era garantida a possibilidade de intervir no 
texto, acrescentando títulos, notas, observações pessoais, porque espaços em 
branco eram deixados para essa finalidade. 
 
 137 
Embora a invenção da imprensa, epara isso alertou Chartier (1998, p. 7-9), não 
tenha representado uma transformação tão radical como se costuma supor – "um 
livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós-
Gutemberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais, as do códex", a 
verdadeira "revolução" tendo sido, na verdade, a descoberta deste, o códex – a 
"revolução" de Gutemberg alterou profundamente as formas de produção, de 
reprodução e de difusão da escrita, e, conseqüentemente, modificou 
significativamente as práticas sociais e individuais de leitura e de escrita – modificou 
o letramento, isto é, o estado ou condição de quem participa de eventos em que tem 
papel fundamental a escrita. 
 
A tecnologia da impressão enformou a escrita, muito mais do que o tinham feito o 
rolo e o códice, em algo estável, monumental e controlado: estável, porque o texto 
se torna então reproduzível em cópias sempre idênticas; monumental porque o texto 
impresso, muito mais que o manuscrito, sobrevive e persiste como um monumento a 
seu autor e a seu tempo; controlado porque numerosas instâncias intervêm em sua 
produção e a regulam. 
 
Em primeiro lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que 
instauram a propriedade sobre a obra, propriedade que se expressa concretamente 
no surgimento da figura do autor, em geral difuso e não identificado anteriormente, 
nos livros manuscritos, e instituem, conseqüentemente, os direitos autorais, a 
criminalização da cópia e do plágio. 
 
Em segundo lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que criam 
muitas e várias instâncias de controle do texto – de sua escrita e de sua leitura: o 
texto é produto não só do autor, mas também do editor, do diagramador, do 
programador visual, do ilustrador, de todos aqueles que intervêm na produção, 
reprodução e difusão de textos impressos em diferentes portadores (jornais, revistas, 
livros...). Altera-se, assim, fundamentalmente, o estado ou condição dos que 
escrevem e dos que lêem – o letramento na cultura do texto impresso diferencia-se 
substancialmente do letramento na cultura do texto manuscrito. 
 
Atualmente, a cultura do texto eletrônico traz uma nova mudança no conceito de 
letramento. Em certos aspectos essenciais, esta nova cultura do texto eletrônico traz 
 138 
de volta características da cultura do texto manuscrito: como o texto manuscrito, e 
ao contrário do texto impresso, também o texto eletrônico não é estável, não é 
monumental e é pouco controlado. Não é estável porque, tal como os copistas e os 
leitores freqüentemente interferiam no texto, também os leitores de hipertextos 
podem interferir neles, acrescentar, alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; 
não é monumental porque, como conseqüência de sua não-estabilidade, o texto 
eletrônico é fugaz, impermanente e mutável; é pouco controlado porque é grande a 
liberdade de produção de textos na tela e é quase totalmente ausente o controle da 
qualidade e conveniência do que é produzido e difundido. 
 
Enquanto no texto impresso é grande a distância entre autor e leitor – segunto Bolter 
(1991, p. 3), o autor do texto impresso é a monumental figure (uma figura 
monumental) e o leitor é apenas a visitor in the author's cathedral (um visitante na 
catedral do autor) – no texto eletrônico, a distância entre autor e leitor se reduz, 
porque o leitor se torna, ele também, autor, tendo liberdade para construir, ativa e 
independentemente, a estrutura e o sentido do texto. Na verdade, o hipertexto é 
construído pelo leitor no ato mesmo da leitura: optando entre várias alternativas 
propostas, é ele quem define o texto, sua estrutura e seu sentido. Enquanto no texto 
impresso, cuja linearidade, por si só, já impõe uma estrutura e uma seqüência, o 
autor procura controlar o leitor, lançando mão de protocolos de leitura que definam 
os limites da interpretação e impeçam a superinterpretação, como propõe Umberto 
Eco (1995, 2001), no texto eletrônico, ao contrário, o autor será tanto mais 
competente quanto mais alternativas de estruturação e seqüenciação do texto 
possibilite, quanto mais opções de interpretação ofereça ao leitor. Na verdade, o 
hipertexto não tem propriamente um autor; em primeiro lugar, porque a 
intertextualidade, presente, no texto impresso, quase exclusivamente por alusão, no 
hipertexto se materializa, na medida em que este se constrói pela articulação de 
textos diversos, de diferentes autorias – no hipertexto, não há uma autoria, mas uma 
multi-autoria. Assim, o texto eletrônico exige uma reconceituação radical de autoria, 
de propriedade sobre a obra, de direitos autorais (questões polêmicas que vêm 
sendo amplamente discutidas, mas ainda não resolvidas), o que tem, sem dúvida, 
efeitos nas práticas de leitura e de escrita. 
 
Por outro lado, na cultura da tela, altera-se radicalmente o controle da publicação: 
 139 
enquanto, na cultura impressa, editores, conselhos editoriais decidem o que vai ser 
impresso, determinam os critérios de qualidade, portanto, instituem autorias e 
definem o que é oferecido a leitores, o computador possibilita a publicação e 
distribuição na tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade: 
qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser; por 
exemplo, um artigo científico pode ser posto na rede sem o controle dos conselhos 
editoriais, dos referees, e ficar disponível para qualquer um ler e decidir 
individualmente sobre sua qualidade ou não. 
 
Pode-se concluir que não é só este novo espaço de escrita que é a tela que gera um 
novo letramento, para isso também contribuem os mecanismos de produção, 
reprodução e difusão da escrita e da leitura. Segundo Eco (1996), os eventos de 
letramento que ocorrem com a intermediação da Internet exigem novas práticas e 
novas habilidades de leitura e de escrita: "We need a new form of critical 
competence, an as yet unknown art of selection and decimation of information, in 
short, a new wisdow" (Precisamos de uma nova forma de competência crítica, uma 
ainda desconhecida arte de seleção e eliminação de informação, em síntese, uma 
nova sabedoria). 
 
Letramentos, o plural 
 
 
Recorde-se o título do primeiro tópico deste texto, Conceitos de letramento: o plural 
foi posto na palavra conceitos, não na palavra letramento, e o objetivo, naquele 
momento, foi discutir diferentes perspectivas na caracterização do fenômeno, ali 
considerado como fenômeno singular, referindo-se, implicitamente, a práticas de 
leitura e de escrita na cultura do papel. A reflexão que a seguir se fez sobre a escrita 
na cultura da tela – na cibercultura, o confronto entre tecnologias tipográficas e 
digitais de escrita e seus diferenciados efeitos sobre o estado ou condição de quem 
as utiliza, sugere que se pluralize a palavra letramento e se reconheça que 
diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. Na verdade, essa 
necessidade de pluralização da palavra letramento e, portanto, do fenômeno que ela 
designa já vem sendo reconhecida internacionalmente,9 para designar diferentes 
efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos contextos de interação com 
a palavra escrita, ora em função de variadas e múltiplas formas de interação com o 
mundo – não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual, auditiva, 
 140 
espacial. 
 
Dados os limites e objetivos deste texto, esses muitos letramentos não são aqui 
discutidos; propõe-se o uso do plural letramentos para enfatizar a idéia de que 
diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles 
que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de leiturae de escrita: 
diferentes espaços de escrita e diferentes mecanismos de produção, reprodução e 
difusão da escrita resultam em diferentes letramentos. 
 
Voltando ao primeiro parágrafo deste texto, o que aqui se pretendeu foi perseguir 
uma mais ampla compreensão de letramento, buscando, para além do sentido com 
que essa palavra e fenômeno vêm sendo usados, limitadamente com referência 
apenas a práticas de leitura e de escrita no contexto de uma cultura do papel, um 
novo sentido, conseqüência do surgimento, ao lado da cultura do papel, de uma 
cibercultura. A conclusão é que letramento é fenômeno plural, historicamente e 
contemporaneamente: diferentes letramentos ao longo do tempo, diferentes 
letramentos no nosso tempo. 
 
Notas 
 
 
1. Segundo Lévy (1999, p. 17), cibercultura designa "o conjunto de técnicas 
(materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de 
valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço". 
Segundo o mesmo autor, ciberespaço é "o novo meio de comunicação que surge da 
interconexão mundial dos computadores". 
 
2. Na verdade, a dificuldade de formular um conceito preciso de letramento parece 
ser inerente ao próprio fenômeno; a esse propósito, ver Soares (1998a). 
 
3. Obviamente, está subjacente a esse conceito de letramento o pressuposto de que 
a aprendizagem e o exercício de práticas de leitura e escrita têm efeitos sociais, 
cognitivos, discursivos sobre indivíduos e grupos, o que, reconhece-se, é uma 
questão polêmica, não discutida neste texto, por ultrapassar seus limites e objetivos. 
Apenas convém lembrar que a principal objeção a esse pressuposto se fundamenta 
na tese de que é a escolarização, e não a aquisição da escrita e de suas práticas 
sociais, que tem efeitos cognitivos, sociais, discursivos sobre indivíduos e grupos 
 141 
sociais (cf. Scribner & Cole, 1981); essa objeção, porém, não invalida o pressuposto: 
se a escolarização tem efeitos sociais, cognitivos, discursivos sobre os indivíduos e 
grupos sociais, conseqüentemente as práticas de leitura e escrita também têm, ou 
mesmo sobretudo têm, já que o componente mais forte da escolarização são, sem 
dúvida, as práticas de leitura e de escrita. 
 
4. O adjetivo tipográfico, neste texto, usado para qualificar leitura, escrita ou 
letramento, não se refere apenas, restritamente, a textos impressos com tipos, mas 
a textos impressos de modo geral, seja qual for o processo de composição – não só 
tipográfico, mas também por fotocomposição, por editoração eletrônica etc. 
Atualmente, é com esse sentido amplo que esse adjetivo tem sido usado. 
 
5. Para Ong (1982, p. 6), oralidade primária é "the orality of cultures untouched by 
literacy"; para Lévy (1993, p. 77): "A oralidade primária remete ao papel da palavra 
antes que uma sociedade tenha adotado a escrita, a oralidade secundária está 
relacionada a um estatuto da palavra que é complementar ao da escrita, tal como o 
conhecemos hoje. Na oralidade primária, a palavra tem como função básica a 
gestão da memória social, e não apenas a livre expressão das pessoas ou a 
comunicação prática cotidiana. Hoje em dia, a palavra viva, as palavras que 'se 
perdem no vento', destaca-se sobre o fundo de um imenso corpus de textos: 'os 
escritos que permanecem'. O mundo da oralidade primária, por outro lado, situa-se 
antes de qualquer distinção escrito/falado." 
 
6. Vários autores têm discutido as características e implicações da interação on-line; 
já em 1985, Meyrowitz propõe uma análise sociológica da questão: MEYROWITZ, J. 
No sense of place: the impact of electronic media on social behavior. Oxford: Oxford 
University PreSS , 1985; coletânea organizada por David Porter, apresenta textos 
sobre comunidades virtuais: PORTER, D. (Ed.). Internet culture. New York and 
London: Routledge, 1996; Patrick Rebollar apresenta e analisa uma nova 
convivência intelectual mundializada, na área da literatura, trazendo de volta os 
"salões literários", como indica o título de seu livro: REBOLLAR, P. Les salons 
littéraires sont dans l'internet. Paris: PUF, 2002; duas obras recentes analisam a 
interação on-line sob a perspectiva da linguagem: CRYSTAL, D. Language and the 
Internet. Cambridge: Cambridge University Press , 2001; DEJOND, A. La 
cyberl@ngue française. Tournal, Belgique: La Renaissance du Livre, 2002. 
 142 
 
7. É preciso lembrar, porém, autores que, já antes do texto na tela, lançaram mão, 
no texto no papel, de estratégias do hipertexto; pode-se citar, como exemplos: O 
jogo da amarelinha, de Cortázar, O jardim de veredas que se bifurcam, de Borges, 
Se numa noite de inverno um viajante, de Calvino. 
 
8. "O livro impresso [...] parece estar destinado a afastar-se para a margem de nossa 
cultura letrada. [...] a idéia e o ideal do livro será alterado: o impresso não mais 
definirá a organização e a apresentação do conhecimento, como aconteceu nos 
últimos cinco séculos. Essa mudança da imprensa para o computador não significa o 
fim do letramento. O que será perdido não é propriamente o letramento, mas o 
letramento da imprensa, porque a tecnologia eletrônica oferece-nos um novo tipo de 
livro e novas maneiras de escrever e de ler. A mudança para o computador tornará a 
escrita mais flexível, mas também alterará as definições de escrita de boa qualidade 
e de leitura cuidadosa que foram geradas pela técnica da impressão. [...] O 
computador está reestruturando nossa atual economia de escrita. Está mudando o 
status cultural da escrita e também o método de produção de livros. Está mudando a 
relação do autor com o texto e de ambos, autor e texto, com o leitor". 
 
9. Por exemplo, em língua inglesa, são numerosas obras recentes que trazem, em 
seu próprio título, a palavra no plural, como: GEE, J.P. Social linguistics and 
literacies. London: Taylor & Francis, 1996; BARTON, D.; HAMILTON, M. Local 
literacies. London: Routledge, 1998; LANKSHEAR, C. Changing literacies. 
Buckingham, Philadelphia: Open University PreSS , 1997; BARTON, D.; HAMILTON, 
M.; IVANIC, R. (EDS .) Situated literacies. London: Routledge, 2000; GREGORY, E.; 
WILLIANS, A. City literacies. London: Routledge, 2000; COPE, B.; KALANTZIS, M. 
(EDS .). Multiliteracies. London: Routledge, 2000. Entre nós, foi recentemente 
publicado livro que propõe o conceito de letramentos múltiplos: CAVALCANTE JR., 
F.S. Por uma escola do sujeito: o método (con)texto de letramentos múltiplos. 
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. 
 
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 145 
 
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 
 
 
Catarina Gonçalves 
 
 
Como fica o trabalho com linguagem diante desses dois processos? 
 
 
Pra pensar o ensino de língua portuguesa na atualidade... 
 
As questões sobre o ensino aprendizagem da língua portuguesa hoje, psarece ser 
um assunto bastante em evidência. Pesquisar, refletir e buscar entender o processo 
pelo qual se desenvolve a alfabetização vem sendo uma atividade constante entre 
pesquisadores, pedagogos, lingüistas, psicólogos e etc. Essas investigações vêm 
priorizando, sobre tudo, os progressos teóricos e metodológicos sofrido por esse 
fenômeno do saber ler e escrever. 
 
O conceito de alfabetização vem sendo questionado, analisado e, até mesmo, 
negado nos últimos tempos. Essas modificações ocorrem em função da 
necessidade que a sociedade impõe aos sujeitos sobre o domínio da leitura e da 
escrita, o que vem a questionar se um indivíduo é ou não é alfabetizado, ampliando 
esse adjetivo para a pessoa que é capaz de transgredir a capacidade de codificar e 
decodificar. 
 
Essas mudanças sociais trazem para o âmbito acadêmico alteração, ampliação, 
além de inclusão de significados em determinados conceitos. Discorrer sobre o 
processo de alfabetização escolar como um todo e analisar os conceitos da 
alfabetização, suas possibilidades e limites, numa perspectiva crítica, parece ser 
fundamental para a compreensão e adequação “do ensino de português” nas 
escolas. 
 
Atualmente várias defesas estão ocorrendo em torno do trabalho com linguagem. 
Dentre os paradigmas aceitos nesse em sala de aula, há aquele que enfatiza uma 
reflexão contínua do aluno sobre os materiais escritos. Dentro desta perspectiva, 
uma denominação que está sendo bastante usada, é a do Letramento. As 
discussões acerca do Letramento surgem no meio acadêmico brasileiro num 
 146 
contexto de reflexões sobre a importância das habilidades necessárias para o uso 
competente da leitura e da escrita, habilidades estas que estariam para além do 
simplesmente saber ler e escrever. 
Essa proposta de mudança ocorre em virtude da contemporaneidade exigir novas 
competências dos cidadãos em relação aos usos da leitura e escrita. É fato que o 
índice de alfabetização aumentou bastante nos últimos anos, mas é fato também 
que, para a plena participação social do indivíduo, exige-se domínio da língua, pois é 
por meio dela que podemos expressar sentimentos, opiniões, idéias, experiências, 
etc. Através da língua, interagimos com a sociedade para compreendê-la, recriando-
a, tornando-nos seres ativos, pois o ato de saber se expressar faz parte das 
competências socialmente exigidas para o exercício da cidadania, e assim como 
MARCUSCHI apud DIONÍZIO (2001, p. 26), acreditamos que a língua é a grande 
ferramenta diária da qual ninguém poderá abdicar durante toda a sua vida, venha ele 
a fazer seja lá o que for. Assim, o sujeito hoje precisa ser crítico e atuante, o que 
requer que ele tenha domínio da língua escrita, esta, sendo vista como algo além de 
um sistema de códigos, mas como um sistema que possibilite uma atuação dinâmica 
e capaz de ser transformadora da realidade. 
 
Nesse contexto a literatura atual vem trazendo novas discussões acerca da 
aquisição eficiente da leitura e da escrita. Hoje o domínio dessas duas habilidades é 
visto como um processo complexo que envolve tanto o domínio do sistema de 
escrita alfabética como o uso competente da língua escrita em práticas sociais 
diversificadas. 
 
Além da literatura, documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais 
(PCNs 1997), também está contemplando a perspectiva do Letramento. 
 
Nos PCN 1997 (p.08) encontramos que para o trabalho com a linguagem, “cabe à 
escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, 
ensinar a produzi-los e a interpretá-los. Isso inclui os textos das diferentes 
disciplinas, com os quais o aluno se defronta sistematicamente no cotidiano escolar 
e que, mesmo assim, não consegue manejar, pois não há um trabalho planejado 
com essa finalidade”. Assim, percebe-se que as recomendações para o trabalho 
com linguagem escrita em sala de aula, deve-se proporcionar situações de 
 147 
aprendizagem e reflexão sobre a língua. Nessas atividades, devem ser trabalhados 
variados textos, dando a possibilidade do aluno compreender os diferentes usos, 
refletir sobre a variedade de recursos que a língua oferece para que se alcance 
diferentes finalidades comunicativas, além de possibilitarem aquisição do Sistema de 
Escrita Alfabética (SEA). 
 
 
DOMÍNIO DA LEITURA E DA ESCRITA: CAMINHOS DO PASSADO AO 
PRESENTE 
 
Durante muito tempo, no âmbito educacional, circulou a crença de que para ser 
alfabetizado, bastava aoindivíduo apropriar-se do sistema de escrita, conhecendo 
os grafemas e os seus respectivos fonemas. Os Censos realizados até os anos 40, 
tinham como critério a afirmação do indivíduo quanto ao fato de ser ou não 
alfabetizado, que era confirmada a partir da assinatura do próprio nome. 
 
Nas escolas o ensino de português era voltado para a aprendizagem dos códigos 
que possibilitavam a capacidade de ler, ou melhor, decodificar. A interação com 
textos em sala de aula era limitada, e os materiais escritos que circulavam no 
espaço escolar eram textos graduados, produzidos com um objetivo muito 
específico: Ensinar a ler e escrever. 
 
A partir dos anos 50 até o último Censo (2000) uma nova realidade começou a ser 
demandada. O critério para identificar indivíduos alfabetizados passou a ser ler e 
escrever um bilhete simples. A partir de então o cidadão deveria saber usar a leitura 
e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária, o que 
indica mudanças na expectativa social em termos da funcionalidade da leitura e 
escrita, não apenas para o indivíduo alfabetizado, mas para a sociedade como um 
todo. 
 
Nas escolas, não houve modificação na mesma época. Apenas em torno dos anos 
80, influenciada pelas pesquisas construtivistas, sócio-construtivistas e 
psicolingüísticas. 
 
Nos últimos anos, novas pesquisas vem sendo realizadas 1, tomando como base os 
anos de escolaridades dos sujeitos, o que pressupõe que o domínio da escrita exige 
 148 
habilidades para além do apenas ser capaz de ler e escrever bilhetes simples. O que 
requer portanto, que a escola prepare os indivíduos para a superação dessa 
capacidade. 
 
Dentro dessa nova perspectiva muitas discussões surgem para defender a 
aprendizagem da escrita alfabética associada à relação que os sujeitos têm com 
esse objeto de conhecimento. No Brasil há uma tendência a se valorizar a função 
social da língua, diferente da questão de aquisição do sistema. A esse processo 
chamamos de: LETRAMENTO. 
 
O vocábulo letramento passou a ser utilizado no Brasil, mais ou menos em meados 
dos anos 80, mas já está incluído em boa parte das discussões acerca das novas 
perspectivas de ensino do sistema alfabético. É uma tradução para o português da 
palavra inglesa literacy. 
 
Literacy quer dizer capacidade de ler e escrever. Nessa língua o termo é utilizado 
como sinônimo de alfabetização e habilidade de se inserir em práticas sociais de 
leitura e escrita. 
 
Nesse estudo o termo Letramento, não é utilizado como sinônimo de alfabetização. 
Em países desenvolvidos, onde o índice de analfabetismo é praticamente 
inexistente, é possível utilizar um único termo para a capacidade de ler e escrever e 
se inserir em práticas sociais de leitura e escrita. Contudo, No Brasil, onde o 
analfabetismo ainda atinge uma parcela significativa da população, a utilização de 
um único termo poderia se tornar ambígua, uma vez que “podemos falar em 
analfabeto que lê e escreve e pessoas alfabetizadas, que dominam o sistema de 
escrita alfabética, mas que são incapazes de produzir textos em situações 
específicas”. (MORAIS e ALBUQUERQUE, 2004:2) 
 
A partir dessa realidade brasileira, seria incoerente chamar de analfabeto, pessoas 
capazes de produzir e interagir com textos em situações específicas, o que leva a 
uma necessidade de utilização dos vocábulos Alfabetização para o domínio do 
sistema de escrita alfabética, e Letramento para o exercício de práticas de leitura e 
escrita. É importante ressaltar que não se pretende nesse estudo afirmar que 
 149 
Letramento e Alfabetização são práticas distanciadas, mas que no Brasil, diferente 
dos países desenvolvidos, o vocábulo Letramento não substitui o termo 
Alfabetização, mas sim são termos complementares e que tem sentido da forma 
como a cultura letrada se realiza no Brasil. 
 
Essa discussão em torno da Alfabetização e do Letramento, tem suscitado uma 
série de polêmicas e equívocos. Pode-se dizer que a causa desses equívocos é 
uma incompreensão do que venha a ser, efetivamente, o Letramento, uma vez que 
“no Brasil os conceitos de Alfabetização e Letramento se mesclam, superpõem e 
freqüentemente se confundem”, o que leva a perda das especificidades de cada um 
dos dois processos. (Soares). 
 
 
MAS AFINAL, O QUE DISTINGUE LETRAMENTO DE ALFABETIZAÇÃO? 
 
 
Alguns teóricos não fazem distinção conceitual entre Alfabetização e Letramento, 
embora apontem para práticas de alfabetização inseridas em práticas sociais de 
leitura. Ferreiro afirma que: 
 
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão Letramento. 
E o que aconteceu com a Alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. 
Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o 
compreender o que se lê.(...) Letramento no lugar de Alfabetização tudo bem. A 
coexistência dos dois termos é que não funciona. (2003: 30) 
 
A referida autora, ao fazer essa afirmação, não pretende reduzir a Alfabetização, ao 
contrario. Ao negar a coexistência dos dois termos Ferreiro preocupa-se com o 
reducionismo que pode ser dado a alfabetização, uma vez que se não tem função 
social, reduzi-se a codificação e decodificação. Para Ferreiro “a escrita pode ser 
entendida em função de três variáveis: das formas, da denotação dessas formas e 
dos contextos em que são usadas” o que leva a perceber que, embora não utilize o 
vocábulo Letramento, compreende a processo da Alfabetização em práticas de 
Letramento. 
 
Dentre os teóricos que não citam a palavra Letramento, porém o defendem, mesmo 
que de forma implícita, em suas práticas de Alfabetização, citamos Freire, que em 
 150 
seus estudos atribuía à Alfabetização a capacidade do indivíduo organizar 
criticamente o seu pensamento, desenvolver consciência critica, e introduzir-se num 
processo real de democratização da cultura e de libertação. (Freire, 1996). 
 
Outros teóricos preferem, no entanto, distinguir esses dois termos, apontando suas 
especificidades e limites. Como afirma Ribeiro (2004), o termo letramento, está 
bastante disseminado no ambiente acadêmico brasileiro e também entre os 
educadores; entretanto ainda é desconhecido pela maior parte da população. 
 
Sua aceitação e a delimitação de seu sentido ainda não são unânimes o que torna, 
nesse momento, fundamental ressaltar que é preciso além de valorizar o letramento 
como elemento fundamental nas práticas docentes, conceituar o que venha a ser 
essa prática neste estudo, pois como afirma André (2001: 58) termos como este, 
“que podem ser usados para propósitos tão variados, correm o risco de esvaziarem-
se, banalizando a própria idéia”, pois algo que serve para tudo pode não servir para 
nada. 
 
Embora haja no âmbito acadêmico um esforço no sentido de não utilizar termos 
específicos para propósitos diversificados, é importante apontar as variadas 
concepções acerca do Letramento, por ser ainda um conceito em construção, 
existindo usos distintos, o que requer um levantamento e explicitação desse termo. 
 
Kleiman (1995) define Letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a 
escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos 
específicos, para objetivos específicos. 
 
Para Soares (2003. a), Letramento é o estado ou condição em que vive o indivíduo 
que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita 
que circulam na sociedade em que vive. No que se refere ao termo Alfabetização a 
autora afirma que é o ato de saber ler e escrever. Em outro estudo, (Soares 2004), 
complementa a conceituação de Letramento definindo-o como exercício efetivo e 
competente datecnologia da escrita. 
 
Na perspectiva de Tfouni (1995: 9), a “Alfabetização refere-se à aquisição da escrita, 
 151 
já o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema 
escrito por uma sociedade”. 
 
Britto (2004) chama a atenção para a necessidade de não apenas conceituar, mas 
também delimitar o conceito de Letramento, percebendo seus usos e suas 
especificidades: 
 
(...) diferentemente de alfabetização, cujo sentido mais freqüente está associado ao 
ensino-aprendizagem do sistema de escrita (que, no caso das línguas ocidentais, é 
alfabético), letramento remeteria para um movimento mais geral, que se relaciona 
com a percepção da ordem escrita, de seus usos e objetos, bem como de ações que 
uma pessoa ou um grupo de pessoas faz com base em conhecimentos e artefatos 
da cultura escrita. Sendo assim a noção de alfabetizado implica uma condição do 
tipo tudo ou nada, a de letramento (ou de alfabetismo2) sugere uma multiplicidade 
de níveis e graus, em função do quanto o indivíduo realiza com seus conhecimentos 
de escrita. (2004:53). 
 
O apontamento feito por Brito é também discutido por Tfouni, quando a autora afirma 
que Alfabetização e Letramento são processos interligados, porém separados 
enquanto abrangência e natureza. Além de diferenciar os dois fenômenos a autora 
chama a atenção para a importância dessa consciência pois: 
 
Desse modo estaremos evitando as classificações preconceituosas decorrentes da 
aplicação das categorias “letrado” e “iletrado”, bem como a confusão que 
usualmente se faz com essas categorias e respectivamente “alfabetizado” e “não-
alfabetizado. Estaremos ainda separando o fenômeno do letramento do processo de 
escolarização, que comumente acompanha o processo de alfabetização” (Tfouni 
 
1995:25) 
 
Soares ratifica o que é afirmado por Tfouni, afirmando que Letramento e 
Alfabetização são conceitos que, embora sejam indissociáveis, são distintos. Para 
Soares (2003. b), essa distinção e a clareza da especificidade de cada um desses 
conceitos é de suma importância, uma vez que afirma que no âmbito educacional 
 152 
brasileiro vem ocorrendo uma falsa compreensão dos mesmos, acarretando altos 
índices de fracasso escolar na aquisição da leitura e escrita. 
 
Para Soares esse fato deve-se, sobretudo, a “desinvenção” da Alfabetização que 
vem acontecendo nas escolas, em função da “invenção” do Letramento. As escolas, 
com a chegada das discussões acerca do letramento, deixaram de trabalhar as 
questões relacionadas a Alfabetização, contemplando apenas trabalhos com 
gêneros textuais. Os professores começaram a conceber que os educandos se 
alfabetizariam apenas pelo contato com os textos que circulam na sociedade, sem 
que para isso fosse mais preciso trabalhar de forma sistemática o sistema de escrita 
alfabética. No meio dessa confusão, Soares afirma que esses dois processos, 
embora sejam indissociáveis, perderam suas especificidades, gerando então o 
fracasso na aprendizagem de ambos. É preciso clareza de que a aquisição e 
domínio da linguagem escrita ocorrem quando o sujeito domina as técnicas da 
escrita alfabética, ou seja, a alfabetização, e o uso social da mesma, o letramento. 
 
 
ENTÃO LETRAMENTO SERIA A MESMA COISA QUE ALFABETIZAÇÃO? 
 
Embora não haja um consenso entre os acadêmicos sobre a discussão em foco, 
além de não haver a utilização desses dois termos em países desenvolvidos, como 
é o caso dos Estados Unidos, nesse estudo consideramos ser de suma importância 
a distinção entre os dois termos, que embora sejam indissociáveis e interligados 
entre si, possuem suas especificidades, limites e possibilidades. 
 
 
E O LETRAMENTO E A ALFABETIZAÇÃO... COMO ESTÃO 
SENDO CONTEMPLADOS NAS SALAS DE AULA? 
 
 
Diante de tantas interrogações e variadas interpretações sobre esses dois conceitos, 
é necessário ser feita uma reflexão no âmbito educacional: que caminho deve ser 
trilhado no percurso da alfabetização? Como é possível que um tema tão discutido 
no cenário educacional ainda levante dúvidas entre educadores? 
 
Nos espaços escolares as práticas de aquisição da leitura e da escrita precisam se 
desenvolver através de duas vias: a técnica (que podemos chamá-la de 
alfabetização), e o uso social da língua (que nomeamos de Letramento). Porém, 
como afirma Galvão e Leal (2005: 14) “a escola tem desenvolvido práticas de 
 153 
alfabetização que se estruturam com base em uma lógica linear e seqüencial, 
segundo a qual só se passa a aprender uma coisa ao se aprender outra. Primeiro se 
aprende a ler e escrever, depois é que se aprende seus usos por práticas sociais. 
Ou então, ao revés, as práticas alfabetizadoras mergulham direto nos usos, 
esquecendo-se de considerar as especificidades do processo de apropriação do 
 
SEA”. 
 
Modificar, de fato, as práticas pedagógicas em sala de aula vem sendo o grande 
desafio para a efetivação de uma alfabetização de qualidade. Enquanto na Literatura 
essa discussão vem se desenvolvendo bastante, em sala de aula os resultados 
encontrados ainda não são tão estimulantes. Em se tratando de concepções e 
práticas acerca da Alfabetização e do Letramento, as professoras participantes de 
um estudo sobre a temática3 demonstraram entender, em sua maioria, a 
Alfabetização apenas enquanto codificação e decodificação, trabalhando o 
aprendizado da língua materna de forma fragmentada e descontextualizada. Com 
relação ao Letramento é conceito não muito assimilado pelas mesmas, que 
demonstram insegurança sobre o que seja o mesmo. 
 
Nas salas de aula das referidas professoras o aprendizado da “técnica” ainda é 
descontextualizado das situações sociais em que as crianças utilizam a leitura e a 
escrita. Não queremos dizer com isso, que não se devam ser trabalhadas técnicas 
ou métodos4 de alfabetização, mas que, como afirma Soares, “não adianta aprender 
uma técnica e não saber usá-la”, o processo de aprender a ler e escrever só faz 
sentido se soubermos para que e porque ler e escrever. 
 
Esse novo caminho exige das escolas uma revisão das práticas pedagógicas para o 
ensino das séries iniciais, o que impõe desafios aos profissionais de educação que 
atuam nas escolas. Desse modo a prática pedagógica passa a ter bastante 
relevância nas atividades de alfabetização, no sentido de se buscar um equilíbrio 
entre o trabalho de aquisição do código, articulado ao domínio da leitura e escrita. 
 
É fundamental repensar, agora, o trabalho com linguagem em sala de aula, levando 
em conta as discussões e necessidades atuais. Esse caminho não é tão fácil, uma 
vez que muitos educadores não ouviram a terminologia Letramento em sua 
 154 
formação inicial, ou apresentam uma interpretação equivocada do mesmo. Mas, 
embora compreendamos a dificuldade, acreditamos na possibilidade, pois “o saber 
dos professores não provém de uma fonte única, mas de várias fontes e de 
diferentes momentos da história de vida e da carreira profissional” o que possibilita a 
compreensão desse conceito. (Tardif, 2004:18) 
Valorizar o professor, sobretudo o alfabetizador, seus saberes e sua prática é buscar 
entender, não só a literatura, mas a dinâmica da sala de aula, uma vez que o 
conhecimento científico é ressignificado pelo professor no cotidiano escolar. 
 
Assim, à medida que o professor reconstrói seus saberes e sua prática, precisa 
pensar em metodologias de ensino que articulem a alfabetização e o letramento. O 
processo de aquisição do sistema de escrita alfabética precisa ocorrer inserido no 
trabalho com materiais escritos que circulam na sociedade, levando os alunos a 
compreenderem seu uso. Ou seja, é necessário alfabetizar emum contexto de 
letramento, é necessário ALFABETIZAR LETRANDO. Isto é, fazer com que a 
criança se aproprie do sistema alfabético e ortográfico da língua, garantindo-lhe 
plenas condições de usar a língua nas práticas sociais de leitura e escrita. 
Essa prática de alfabetização, inserida no contexto de letramento, significa ensinar 
os educandos a utilizarem a língua, escrita e falada, em diferentes contextos sociais. 
Dessa forma, as atividades pedagógicas devem ser centradas no desenvolvimento 
das capacidades fundamentais às práticas da linguagem oral e escrita. No contexto 
da sala de aula as crianças precisam ouvir e falar, ler e escrever os mais variados 
textos possíveis. A prática pedagógica organizada em torno do uso da língua e sua 
reflexão deve visar não só o processo de alfabetização em si mesmo, mas também a 
possibilidade de inserção e participação ativa dos alunos na cultura escrita, nas 
práticas sociais que envolvem a língua escrita, na produção e compreensão de 
diferentes gêneros textuais. 
 
 
1- SAEB e PISA. 
 
2- Entende-se por alfabetismo o mesmo que Letramento. (grifo 
nosso) 3- (Gonçalves e Oliveira 2005) 
 
4- No presente estudo adota-se a definição de método de Galvão e Leal 2005, no 
qual afirma que método é o caminho que conduz a um fim determinado. 
 
 
 
 155 
 
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Publicado em 21/08/2006 11:34:00 
 
 
Catarina Gonçalves - Pedagoga, especialista em Desenvolvimento da 
Aprendizagem, atua como Coordenadora Pedagogica de uma instituição particular, 
presta assessoria para escolas da cidade do Recife, e ensina Metodologia do 
Trabalho Científico na UVA- Universidade do vale do Acaraú. 
Psicologia: Reflexão e Crítica 
Print version ISSN 0102-7972 
 
Psicol. Reflex. Crit. vol.15 no.1 Porto Alegre 2002 
doi: 10.1590/S0102-79722002000100005 
 
 
AMBIENTE FAMILIAR E OS PROBLEMAS DO COMPORTAMENTO 
APRESENTADOS POR CRIANÇAS COM BAIXO DESEMPENHO ESCOLAR 
 
Marlene de Cássia Trivellato Ferreira 
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto 
Edna Maria Marturano 
12
 
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto 
 
 
 
 
 
 
Resumo 
 
 
Comportamentos externalizantes freqüentemente se desenvolvem em contextos de 
adversidade ambiental. O objetivo do estudo foi documentar essa associação em 
crianças com desempenho escolar pobre. Participaram meninos e meninas, com 
idade entre sete e 11 anos, referidos para atendimento por dificuldades escolares. 
De um universo de 141 crianças, formaram-se dois grupos com base na pontuação 
da Escala Comportamental Infantil: G1 (crianças sem problema de comportamento, 
n= 30) e G2 (crianças com problema de comportamento, n= 37). As mães foram 
entrevistadas, obtendo-se informações sobre recursos e adversidades do ambiente 
familiar. Os resultados indicaram que o ambiente familiar de G2 apresenta menos 
recursos e maior adversidade, incluindo problemas nas relações interpessoais, 
falhas parentais quanto a supervisão, monitoramento e suporte, indícios de menor 
 157 
investimento dos pais no desenvolvimento da criança, práticas punitivas e modelos 
adultos agressivos. As dificuldades escolares aumentam a vulnerabilidade da 
criança para inadaptação psicossocial. Enfatiza-se a importância de incluir a família 
em intervenções preventivas voltadas para essa clientela. 
 
Palavras-chave: Ambiente familiar; comportamentos externalizantes; desempenho 
escolar; criança. 
 
Home Enviroment and Behavior Problems presented by School 
Underachieving Children 
 
Abstract 
 
 
Externalizing behaviors frequently develop in adverse environments. The aim of this 
study was to document this association in children presenting academic 
underachievement. Participants were both boys and girls, aged seven to 11 years, 
referred for psychological treatment by virtue of school underachievement. From a 
universe of 141 children, two groups were constituted on the basis of scores in the 
Child Behavior Scale: G1 (children without behavior problems, n= 30) and G2 
(children with behavior problems, n= 37). Mothers were interviewed to obtain data 
about environment resources and adversities. Results indicated that children from G2 
live at homes with fewer resources and more adversities, presentig problems in 
interpersonal relationships, poor parent supervision, monitoring and supporting, lower 
parent involvement with child development, punitive practices and aggressive adult 
models. The school difficulties raise the child's vulnerability to maladjustment. The 
inclusion of the family in preventive interventions directed to these children is 
emphazised. 
 
Keywords: Home environment; externalizing behaviors; school achievement; child. 
 
 
 
 
 
Comportamentos marcados por hiperatividade, impulsividade, oposição, agressão, 
desfio e manifestações anti-sociais são classificados como externalizantes, em 
oposição a padrões de comportamento internalizantes – disforia, retraimento, medo 
e ansiedade. Os problemas externalizantes tendem a ser mais estáveis que os 
internalizantes e têm curso e prognóstico menos favoráveis, particularmente os 
 158 
componentes de agressividade, impulsividadee tendências anti-sociais , que 
representam as formas mais comuns e persistentes de desajustamento na meninice 
e são precursores de distúrbio de conduta na adolescência (Esser, Schmidt & 
Woerner, 1990;Fergusson, Lynskey & Horwood, 1996; Hinshaw, 1992; Institute of 
Medicine, 1994). Associados a ajustamento social pobre, têm conseqüências 
crônicas e graves não apenas para as crianças que os manifestam, mas também 
para os pais, irmãos, professores e a sociedade em geral. Essas crianças estão em 
risco de rejeição pelos companheiros, conflitos com a família e com os professores, 
fracasso escolar, dificuldades ocupacionais, além do risco mais sério para 
comportamentos socialmente desviantes (Olson, Bates, Sandy & Lanthier, 2000). 
 
Comportamentos externalizantes com componentes anti-sociais freqüentemente se 
desenvolvem em contextos de adversidade ambiental. Investigações para elucidar a 
origem e o curso de desenvolvimento dos problemas têm convergido para uma 
concepção multifatorial e transacional, em que as manifestações externalizantes 
refletem processos de trocas contínuas entre características da criança nas 
interações sociais e características dos cuidadores e seu contexto social/ecológico 
(Olson & cols., 2000). Nessas trocas, o ambiente familiar apresenta práticas de 
socialização violentas, exposição a modelos adultos agressivos, falta de afeto 
materno e conflitos entre os pais (Blanz, Schmidt, & Günther, 1991; Dodge, Pettit & 
Bates, 1994; Ramsey, Shinn, Walker & O'Neill, 1989; Shaw e Emery, 1988; 
Vuchinich, Bank & Patterson, 1992). Tais práticas, por sua vez, estão 
freqüentemente associadas a um contexto social adverso, marcado por dificuldade 
econômica e estressores psicossociais incidindo sobre a família (McLoyd, 1998). 
 
Variáveis familiares podem contribuir para a persistência dos problemas da fase pré-
escolar à escolar (Denham & cols., 2000) e da meninice à adolescência (Fergusson 
& cols., 1996). Pesquisas recentes sugerem que, embora o envolvimento do 
adolescente em atividades anti-sociais seja influenciado significativamente por seus 
relacionamentos com companheiros anti-sociais, a cadeia de eventos que conduz 
muitos adolescentes para grupos anti-sociais começa no lar, durante a meninice; os 
elos nessa cadeia incluem práticas educativas coercitivas e punitivas, que 
contribuem para o desenvolvimento de agressão e fracasso escolar; estes, por sua 
vez, levam à seleção de companheiros anti-sociais (Collins, Maccoby, Steinberg, 
 159 
Hetherington & Bornstein, 2000). 
 
Crianças com desempenho escolar pobre freqüentemente apresentam problemas de 
comportamento externalizantes (Graminha, 1992; Hinshaw, 1992; Santos, 1990). 
Nos primeiros anos da escola elementar, manifestações internalizantes também são 
comuns (Thompson, Lampron, Johnson & Eckstein, 1990), mas prevalecem sinais 
de hiperatividade e impulsividade (Hinshaw, 1992). Pesquisas têm demonstrado que 
os problemas externalizantes comumente antecedem as dificuldades escolares e 
podem ser exacerbados por estas (McGee, Willians, Share, Anderson & Silva, 1986; 
Parreira, 1995). Quando as dificuldades interpessoais já estão presentes nessa fase, 
é maior o risco de persistência dos problemas (Denham e cols., 2000). 
 
A associação entre dificuldade escolar e comportamento externalizante constitui um 
importante tema de pesquisa. Ambos os problemas representam questões centrais 
na meninice, interessando à psicologia do desenvolvimento, por interferirem no 
cumprimento de tarefas evolutivas proeminentes nessa fase, e ao campo da saúde 
mental, por terem alta prevalência e prognóstico pobre, no sentido de serem fatores 
de risco para inadaptação psicossocial na adolescência. No contexto brasileiro, o 
tema afeta, entre outros, os campos da atuação e da formação do psicólogo. Sabe-
se que problemas externalizantes e dificuldades no aprendizado escolar são os 
principais motivos de procura de atendimento psicológico para crianças na rede 
pública de saúde e nas clínicas-escola de Psicologia (Barbosa & Silvares, 1994; 
Sales, 1989; Santos 1990). E quando se comparam crianças cujas famílias 
buscaram ou não ajuda psicológica para as dificuldades escolares, a incidência e a 
intensidade dos problemas de comportamento são maiores no grupo que buscou 
atendimento (Marturano, Linhares, Loureiro & Machado, 1997). Esses dados 
sugerem que a co-ocorrência de problemas de comportamento e baixo desempenho 
na escola pode ser um dos fatores responsáveis pela elevada demanda motivada 
por dificuldades escolares, encontrada em clínicas de psicologia e serviços de saúde 
mental. 
 
Considerando que comportamentos externalizantes com componentes anti-sociais, 
com prognóstico pobre, freqüentemente estão associados à adversidade ambiental, 
a investigação relatada neste artigo focaliza o problema em crianças referidas para 
atendimento psicológico em razão de dificuldades no aprendizado escolar, buscando 
caracterizar seu ambiente de desenvolvimento. O estudo foi conduzido no 
 160 
pressuposto de que o conhecimento das condições ambientais associadas aos 
problemas de comportamento nessa população clínica pode contribuir para a 
definição de estratégias preventivas, assim como para a capacitação do psicólogo 
para o trabalho junto à clientela escolar dos serviços de saúde. Seu objetivo 
específico é investigar, em crianças com queixa de baixo desempenho escolar, a 
associação entre problemas de comportamento e características do ambiente 
familiar. Para alcançar o objetivo, emprega-se um delineamento de comparação 
entre grupos constituídos a partir da presença ou ausência dos indicadores 
comportamentais. 
 
Na seleção de variáveis ambientais, procurou-se incluir tanto aquelas adversas, que 
contribuem para os problemas quando presentes em alto grau, como aquelas 
positivas, cujo efeito é atenuador. Entre as circunstâncias adversas se encontram as 
práticas parentais punitivas e agressivas, bem como os conflitos familiares; entre os 
recursos positivos, o envolvimento e a supervisão dos pais (Ackerman, Kogos, 
Youngstom, Schoff & Izard, 1999; Gest, Neemann, Hubbard, Masten & Tellegen, 
1993; Stormshak, Bierman, McMahon, Lengua & Conduct Problems Prevention 
Research Group, 2000). Embora acatando o ponto de vista de que o acúmulo de 
condições adversas seria mais importante que o tipo ou a natureza da adversidade 
presente (Sameroff, Sameroff, Baldwin & Baldwin, 1993), procurou-se manter a 
distinção entre três conjuntos de condições, postuladas como indícios de processos 
diferentes: as que incidem diretamente sobre a criança, podendo estabelecer 
mecanismos de vulnerabilidade pessoal (por ex. hospitalização); as que incidem 
sobre a família, afetando as práticas e o envolvimento parental (transições 
familiares; pobreza); e aquelas que sinalizam processos transacionais, com 
participação ativa da criança na origem dos acontecimentos, tais como conflitos 
entre a criança e os pais e incidentes disciplinares na escola (Ackerman e cols., 
1999; Patterson, DeBaryshe e Ramsey, 1989; Rutter, 1987).
 161 
Método 
 
 
Participantes 
 
 
Os participantes foram selecionados de uma amostra de 141 crianças de ambos os 
sexos, atendidas consecutivamente em uma clínica de Psicologia vinculada a um 
hospital universitário no período de julho de 1996 a março de 1999. Todas haviam 
sido encaminhadas, através de referência do Sistema Único de Saúde, tendo por 
motivo de encaminhamento o rendimento escolar pobre. 
 
Segundo critérios expostos adiante, foram formados dois grupos a partir da amostra 
geral: Grupo 1(G1) - crianças sem problema de comportamento (n=30); Grupo 2 
(G2)-crianças com problemade comportamento (n=37). A Tabela 1 apresenta uma 
caracterização dos grupos quanto a sexo, idade, escolaridade da criança, 
escolaridade dos pais e jornada de trabalho da mãe. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 162 
 
Os dados referentes à caracterização dos dois grupos foram submetidos a análise 
estatística, através do teste Qui-quadrado para a variável sexo e do teste t de 
Student para as demais variáveis, encontrando-se diferença significativa entre os 
grupos apenas na variável escolaridade do pai (t = 2,89; p < 0,01). 
 
Local 
 
 
A investigação foi conduzida em uma clínica-escola cuja proposta de atendimento à 
clientela com dificuldades escolares focaliza os recursos da criança e da família, no 
sentido de identificá-los e mobilizá-los para enfrentamento dos problemas em curso. 
 
Instrumentos, Variáveis e Medidas 
 
 
Para composição dos grupos foi utilizada a Escala Comportamental Infantil A2 de 
Rutter (ECI), versão para pais, publicada em 1967 e adaptada por Graminha (1994), 
que relata uma fidedignidade teste-reteste aceitável para 97% dos itens da escala. A 
variável problema de comportamento foi operacionalizada através da combinação de 
dois critérios, com base nos escores da ECI: 1) escore maior que 16, caracterizando 
necessidade de apoio profissional na visão dos pais (Graminha & Coelho, 1994); 2) 
indicação de problema de conduta, correspondente à média de sete itens: "Fica mau 
humorado e nervoso (isto é, fica irritado, grita e perde completamente o humor)"; 
"Ele costuma roubar ou então pegar coisas dos outros às escondidas"; "Briga 
freqüentemente ou é extremamente briguento com outras crianças"; "Não é uma 
criança muito querida pelas outras crianças"; "Muitas vezes fala mentira"; "Maltrata 
as outras crianças"; "Fala palavrões, nomes feios" (Goodman, 1997; McGee e cols., 
1985). Os critérios combinados para inclusão nos grupos foram: 
 
Inclusão em G1: Crianças sem problemas de comportamento: escore total na ECI 
igual ou inferior a 16 e escore de problema de conduta situado no limite ou abaixo do 
percentil 25 da amostra total. 
 
Inclusão em G2: Crianças com problemas de comportamento: escore total na ECI 
superior a 16 e escore de problema de conduta situado no limite ou acima do 
percentil 75 da amostra total. 
 
Para a investigação de características do ambiente familiar foram empregados os 
 163 
seguintes instrumentos, descritos em detalhe por Santos (1999): 
 
Entrevista para Esclarecimento da Queixa - (EEQ): Desenvolvida e empregada 
rotineiramente pela equipe de psicólogos da clínica onde se realizou a coleta de 
dados, cobre tópicos como o motivo da consulta, história escolar, desenvolvimento, 
relacionamentos familiares e sociais. É composta por um roteiro de questões abertas 
e um guia para classificação de recursos e adversidades, destinado à análise dos 
relatos das entrevistas. A pontuação atribuída a cada classe de situação 
corresponde ao número de diferentes situações identificadas naquela classe. Santos 
(1999) refere um índice de concordância bruta igual a 82% para a análise de 
entrevistas feitas por dois juizes independentes, e índice de estabilidade de 84% 
para duas aplicações consecutivas do roteiro, com intervalo de 20 dias. 
 
Escala de Eventos Adversos (EEA): É formada por 36 itens descritivos de eventos 
adversos que podem ter ocorrido nos últimos 12 meses ou anteriormente na vida da 
criança. Atribui-se um ponto para a ocorrência recente e um ponto para a ocorrência 
passada, de modo que o escore em cada item pode variar de zero a dois e o escore 
total, de zero a 72. Um estudo de fidedignidade através do procedimento teste-
reteste com três mães forneceu índices de 100%, 97% e 94% de estabilidade entre 
aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). 
 
Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF): É composto de 14 tópicos. O 
número e o formato dos itens que compõem cada tópico são variados. O escore em 
cada tópico é a soma dos pontos obtidos, dividido pelo número de itens que 
compõem aquele tópico. O escore total corresponde à soma dos escores obtidos 
nos 14 tópicos do RAF. Através de procedimento semelhante ao utilizado para a 
EEA, foram obtidos índices de 100%, 99% e 92% de estabilidade entre aplicações 
feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Tanto a EEA como o RAF foram 
desenvolvidos por Marturano (1999). 
 
As variáveis ambientais incluídas na análise foram derivadas dos três instrumentos 
acima descritos, compondo-se oito medidas de recursos, dez medidas de 
circunstâncias adversas e dois indicadores sócio-econômicos. Do RAF foram 
derivados dois conjuntos de medidas de recursos e um indicador sócio-econômico: 
1) Supervisão dos pais (tópicos Atividades da criança quando não está na escola, 
 164 
Arranjo espaço-temporal para a lição de casa, Supervisão para a escola, Atividades 
diárias com horário definido); 2) Envolvimento e suporte dos pais (tópicos Passeios, 
Oferta de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento, Atividades 
compartilhadas com os pais no lar, Pessoas a quem a criança recorre para pedir 
ajuda ou conselho); 3) Indicador sócio-econômico, baseado no tópico Comodidades, 
que relaciona 13 itens de conforto disponíveis na moradia, como aparelhos 
eletrodomésticos e eletroeletrônicos, computador e veículos, entre outros, e está 
baseado na escala proposta por Soares e Fernandes (1989). 
 
Da EEA foram derivados um indicador de instabilidade financeira, dois indicadores 
de adversidade relacionada ao funcionamento parental e um indicador de 
adversidade familiar não envolvendo diretamente o funcionamento parental (Gest e 
cols., 1993), além de três indicadores de adversidade incidindo diretamente sobre a 
criança. O indicador de instabilidade financeira foi obtido a partir da soma dos itens: 
"Momentos difíceis do ponto de vista financeiro", "Perda de emprego do pai ou da 
mãe", "Mãe passou a trabalhar fora". Os indicadores de adversidade parental 
incluíram: 1) Adversidade nas relações parentais (soma dos itens "Conflitos entre os 
pais", "Separação temporária dos pais", "Divórcio dos pais", "Abandono do lar pelo 
pai ou pela mãe", "Recasamento da mãe", "Litígio judicial entre os pais"); 2) 
 
Adversidade associada a condutas parentais (soma dos itens 
"Alcoolismo/drogadição parental", "Envolvimento parental com a polícia ou a 
justiça"). O indicador de outras adversidades familiares foi obtido pela soma dos 
itens "Doença grave do pai ou da mãe", "Morte do pai ou da mãe", "Nascimento de 
um irmão", "Doença grave/hospitalização de um irmão", "Morte de um avô ou avó", 
"Gravidez de irmã solteira", "Abandono do lar por um irmão". As medidas de 
adversidade incidindo diretamente sobre a criança foram: 1) Eventos adversos na 
vida pessoal (soma dos itens "Hospitalização ou enfermidade grave da criança", 
"Acidente com seqüela", "Morte de amigo"); 2) Eventos adversos na vida escolar 
(soma dos itens "Mudança de escola", "Repetência", "Mais de uma troca de 
professora no mesmo ano letivo"); 3) Problemas nas relações interpessoais (soma 
dos itens "O relacionamento com os companheiros piorou", "A criança sofreu 
agressão por parte da professora", "A criança foi suspensa da escola"). 
 
 165 
A EEQ forneceu quatro indicadores de adversidade, correspondendo cada um à 
soma dos itens indicados entre parênteses: Condições adversas pessoais da mãe 
(sobrecarga de afazeres/tensões diárias, falha no suporte do cônjuge, interferência 
de familiares na criação dos filhos, autodepreciação, culpa); Práticas educativas 
inadequadas (ameaça, punição, superproteção, permissividade, restritividade,insegurança, discordância entre os pais); Problemas no relacionamento pais-criança 
(agressão física, agressão verbal, tratamento rude, conflitos, relacionamento 
distante, depreciação, indiferença/ rejeição); Adversidade extrafamiliar (vizinhança 
de risco, depreciação extrafamiliar, agressão extrafamiliar, abuso ou tentativa de 
abuso sexual). 
 
Procedimentos 
 
 
Na clínica-escola onde os dados foram colhidos, cada criança e sua mãe são 
entrevistadas separadamente durante a triagem clínica, realizada com a finalidade 
de verificar a queixa escolar e subsidiar o atendimento psicopedagógico caso haja 
indicação para o mesmo. Os instrumentos empregados neste estudo foram 
aplicados nessa oportunidade, junto às mães das 141 crianças. Os dados foram 
colhidos por três psicólogos da equipe do referido serviço, com formação em 
psicologia clínica e experiência profissional mínima de dez anos. Todos passaram 
por treinamento específico para aplicação dos instrumentos. 
 
Os resultados obtidos nos instrumentos de avaliação do ambiente familiar foram 
comparados através do teste t de Student. Para verificar diferenças em itens com 
formato de escala nominal, aplicou-se o Teste de Intervalo de Confiança para 
Diferenças entre Proporções. Foi considerado significativo todo resultado com 
probabilidade igual ou inferior a 0,05. Dada a assimetria por sexo entre os grupos, 
análises preliminares foram conduzidas para verificar diferenças que recomendariam 
incluir esta variável nas análises. 
 
Resultados 
 
 
A comparação entre sexos, através do teste t de Student, detectou diferença em 
apenas dois indicadores: Atividades diárias com horário definido, em que o grupo 
das meninas teve média mais alta (t= 2,10, p= 0,04), e Problemas nas relações 
interpessoais, em que a média do grupo masculino foi mais elevada (t= 2,85, p < 
 166 
0,01). Considerando que são diferenças pontuais, as análises foram conduzidas 
sobre a amostra total. 
 
Os resultados da análise estatística dos dados fornecidos pelo Inventário de 
Recursos do Ambiente Familiar são apresentados na Tabela 2. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os grupos apresentaram diferenças significativas no escore total do RAF e no 
indicador sócio-econômico, assim como nos escores obtidos nos tópicos passeios, 
atividades compartilhadas pela criança e pelos pais no lar, pessoas a quem a 
criança recorre para pedir ajuda ou conselho, oferta de brinquedos e outros materiais 
promotores de desenvolvimento. Em todas essas medidas, as médias de G1 foram 
maiores que as de G2. O Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre 
Proporções apontou diferenças significativas em alguns dos itens que compõem 
cada tópico, indicando que mais crianças do grupo sem problema de comportamento 
brincam dentro de casa quando não estão na escola, têm horário para brincar e para 
fazer a lição de casa, recebem supervisão dos pais para o estudo das provas, fazem 
 167 
viagens e passeios a shopping centers, lanchonetes e 
 
parques de diversão, brincam com os pais e contam casos para eles. Essas 
crianças, quando precisam de ajuda ou conselho, recorrem não somente à mãe, 
como as crianças de G2, mas também ao pai e a um irmão ou irmã. Ao longo do 
desenvolvimento, elas têm tido acesso a maior diversidade de brinquedos e outros 
materiais promotores do desenvolvimento. 
 
Com relação à Escala de Eventos Adversos, a Tabela 3 contém os resultados da 
análise estatística, onde se verifica que os grupos apresentaram diferença 
significativa no Escore total da EEA, assim como nos indicadores de Adversidade 
nas relações parentais, Eventos adversos na vida pessoal, Eventos adversos na vida 
escolar e Problemas nas relações interpessoais. Em todas as medidas, as médias 
de G2 foram maiores que as de G1. 
 
 168 
Os itens da EEA com incidência significativamente maior em G2, segundo o Teste 
de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, foram: divórcio dos pais 
e pai ou mãe abandonou a família (Adversidade nas relações Parentais); 
hospitalização/enfermidade grave de um irmão/irmã da criança (Outras adversidades 
familiares); hospitalização ou enfermidade grave da criança (Eventos Adversos na 
Vida Pessoal); repetência (Eventos Adversos na Vida Escolar); piora no 
relacionamento com os colegas e suspensão (Problemas nas Relações 
Interpessoais). 
 
A análise dos dados fornecidos pela Entrevista de Esclarecimento da Queixa, 
submetida ao Guia de Classificação das Adversidades do Ambiente Familiar, indicou 
diferença significativa entre os grupos no número >de adversidades presentes no 
ambiente familiar: G2, grupo com problemas de comportamento, apresentou mais 
situações de adversidade em seu ambiente familiar que G1, grupo sem problema de 
comportamento. Esse resultado e os dados relativos a cada classe de adversidade 
ambiental são apresentados na Tabela 4. 
 169 
Foi encontrada diferença significativa entre os dois grupos nos indicadores de 
práticas educativas inadequadas e problemas no relacionamento pais-criança, onde 
as médias de G2 foram maiores que as de G1. 
 
Aplicando-se o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, 
verificou-se em G2 maior incidência dos seguintes indicadores extraídos da EEQ: 
agressão física à criança; ameaça; relacionamento distante entre os pais e a 
criança; conflitos entre os pais e a criança. O item superproteção apareceu com 
maior incidência em G1. 
 
Discussão 
 
 
O presente trabalho teve como objetivo documentar, em crianças com queixa de 
dificuldade de aprendizagem, associações entre problemas de comportamento e 
variáveis do ambiente familiar. A pesquisa se definiu através de duas características 
principais. Em primeiro lugar, não só foram incluídas circunstâncias adversas, como 
vem sendo enfatizado ao longo dos anos na investigação dos transtornos de 
comportamento em crianças, mas também foram considerados, seguindo uma 
tendência mais recente, recursos facilitadores do desenvolvimento psicossocial 
(Kliewer & Kung, 1998). Em segundo lugar, a par com a informação sobre o acúmulo 
de eventos adversos, apontado como um indicador sensível do impacto ambiental 
sobre o desenvolvimento, foram preservadas informações sobre condições 
ambientais que poderiam fornecer indícios de diferentes processos em curso. 
Embora o delineamento de comparação entre grupos só tenha permitido verificar 
relações de co-ocorrência, os resultados sugerem processos compatíveis com as 
diversas concepções de ação ambiental mencionadas na Introdução. 
 
Em relação aos efeitos cumulativos de variáveis ambientais sobre o 
desenvolvimento (Fergusson e cols., 1996; Sameroff e cols., 1993), foram 
encontrados indicadores consistentes de desvantagem no grupo com problemas de 
comportamento: os escores totais dos três instrumentos utilizados diferenciaram os 
grupos significativamente, sugerindo que o grupo com problemas de comportamento 
tem seu ambiente de desenvolvimento mais prejudicado, seja pelo menor acesso a 
recursos, seja pela presença de mais circunstâncias adversas. 
 
Os resultados relativos aos indicadores específicos mostram que essa desvantagem 
 170 
estaria presente em diferentes setores da vida familiar. Incidindo diretamente sobre a 
criança, foi detectado um acúmulo de condições adversas, com probabilidade de 
estabelecer mecanismos de vulnerabilidade pessoal, como é o caso das 
hospitalizações recorrentes (Rutter, 1977). O número de hospitalizações ou doenças 
graves da criança e também dos irmãos, maior no grupo com problemas de 
comportamento,sugere que este evento seria conseqüência de condições de vida 
adversas incidindo sobre toda a prole. Essa interpretação é fortalecida pelos 
resultados relativos à vida familiar, pois o grupo com problemas apresenta maior 
índice de problemas nas relações parentais, com mais indicadores de instabilidade 
familiar, uma condição que vem sendo apontada como particularmente prejudicial ao 
desenvolvimento da criança (Ackerman e cols., 1999). 
 
Em contrapartida, o grupo de crianças sem problemas de comportamento parece 
favorecido por um ambiente mais apoiador e supridor, conforme foi detectado nos 
resultados relativos a recursos ambientais. Os recursos que diferenciam este grupo 
estão tipicamente presentes nas interações familiares envolvendo diretamente a 
criança, expressas nas oportunidades de convivência entre a criança e seus pais, no 
suporte para enfrentamento dos problemas cotidianos e no envolvimento dos pais 
em atividades facilitadoras do desenvolvimento. Na organização das rotinas 
domésticas as diferenças entre os grupos são menos pronunciadas, porém há sinais 
de que as necessidades da criança são levadas mais em conta no grupo sem 
problemas, onde há maior monitoração do uso do tempo livre e supervisão do 
estudo. 
 
Os resultados relativos a práticas educativas, indicando maior uso de ameaça no 
grupo com problemas e mais proteção no grupo sem problemas de comportamento, 
são sintomáticos de estilos parentais distintos. Nas famílias de crianças com 
problemas o que sobressai são as interações negativas, provavelmente associadas 
às manifestações externalizantes da criança, sinalizando um estilo parental reativo. 
Já os pais de crianças sem problemas de comportamento parecem ter uma 
abordagem proativa: eles organizam e planejam mais o cotidiano das crianças, estão 
mais disponíveis para ajuda e se ocupam mais com providências relativas ao estudo 
e ao lazer, parecendo mais preocupados com a segurança dos filhos. Esse perfil tem 
diversos ingredientes da chamada abordagem apoiadora nos cuidados parentais, 
cujos efeitos benéficos sobre o ajustamento da criança foram demonstrados 
 171 
recentemente, tanto através de ação direta como de mecanismos protetores frente à 
adversidade familiar (Pettit, Bates & Dodge, 1997). 
 
Nos resultados há indícios indiretos de processos compatíveis com o modelo 
transacional e multifatorial, que postula o desenvolvimento como resultante das 
interações entre a criança e seus cuidadores, no contexto das condições ambientais 
que afetam o funcionamento da família (Olson & cols., 2000). Quanto ao contexto, os 
grupos diferem no indicador sócio-econômico, apontando menos recursos no grupo 
com problemas de comportamento. Esse resultado é corroborado pelos dados 
relativos à escolaridade do pai, embora não confirmado pelo indicador de 
instabilidade financeira nem pelas informações sobre jornada de trabalho da mãe. A 
desvantagem socioeconômica tem sido apontada como fator de risco ao 
desenvolvimento, associado a variáveis como vizinhança de risco, instabilidade 
familiar e depressão parental, estas últimas influenciando as práticas educativas 
(Ackerman e cols., 1999; Conger e cols., 1992; Institute of Medicine, 1994; McLoyd, 
1998). Dodge e colaboradores (1994) verificaram que a relação entre o status sócio-
econômico e os problemas de comportamento da criança é mediada por processos 
de socialização, em que estão presentes, entre outras variáveis, uma disciplina 
punitiva, >modelos adultos agressivos e estressores incidindo sobre a família, 
ingredientes encontrados com maior freqüência, na presente investigação, entre as 
crianças com problemas de comportamento. 
 
Os processos transacionais, presentes nas interações entre a criança e seus 
cuidadores, são evidenciados naqueles resultados que mostram diferenças entre os 
grupos em eventos e situações envolvendo a participação ativa da criança: 
relacionamento com os pais e problemas nas relações interpessoais. As crianças 
com problemas de comportamento sofrem mais agressão física por parte dos pais, 
seu relacionamento com os pais é descrito mais freqüentemente como distante ou 
envolvendo conflitos, e elas recebem mais suspensão na escola. As relações com os 
companheiros também estão prejudicadas. 
 
Os resultados encontrados têm implicações para o atendimento psicológico às 
crianças encaminhadas à rede de saúde e às clínicas-escola de psicologia por 
dificuldades de aprendizagem. A mais imediata é que, nessa população, há um 
 172 
segmento em alto risco para distúrbio psicossocial na adolescência, por apresentar 
problemas externalizantes com componentes anti-sociais, em ambientes 
caracterizados por adversidade múltipla. Em uma perspectiva desenvolvimentista, a 
trajetória de desenvolvimento de muitos desses indivíduos já inclui, na meninice 
intermediária, mecanismos de vulnerabilidade envolvendo fracasso escolar, 
problemas nas relações interpessoais, falhas parentais na supervisão, no 
monitoramento e no suporte, investimento pobre dos pais no desenvolvimento da 
criança, práticas punitivas e modelos adultos agressivos. Em uma perspectiva 
ecológica, todos os contextos interpessoais significativos para seu desenvolvimento 
parecem afetados: o lar, a escola e o grupo de companheiros. 
 
Assim, o atendimento a essas crianças não pode ficar circunscrito às questões 
escolares. Conforme tem sido recomendado na literatura sobre prevenção em saúde 
mental (Conduct Problems Prevention Research Group, 2000), há necessidade de 
implementar modalidades de intervenção preventiva que incluam o sistema familiar e 
focalizem as tarefas de desenvolvimento e os mecanismos de proteção e 
vulnerabilidade da fase escolar, no contexto das condições de vida e 
desenvolvimento dessa população. 
 
(1999) refere um índice de concordância bruta igual a 82% para a análise de 
entrevistas feitas por dois juizes independentes, e índice de estabilidade de 84% 
para duas aplicações consecutivas do roteiro, com intervalo de 20 dias. 
 
Escala de Eventos Adversos (EEA): É formada por 36 itens descritivos de eventos 
adversos que podem ter ocorrido nos últimos 12 meses ou anteriormente na vida da 
criança. Atribui-se um ponto para a ocorrência recente e um ponto para a ocorrência 
passada, de modo que o escore em cada item pode variar de zero a dois e o escore 
total, de zero a 72. Um estudo de fidedignidade através do procedimento teste-
reteste com três mães forneceu índices de 100%, 97% e 94% de estabilidade entre 
aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). 
 
Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF): É composto de 14 tópicos. O 
número e o formato dos itens que compõem cada tópico são variados. O escore em 
cada tópico é a soma dos pontos obtidos, dividido pelo número de itens que 
compõem aquele tópico. O escore total corresponde à soma dos escores obtidos 
 173 
nos 14 tópicos do RAF. Através de procedimento semelhante ao utilizado para a 
EEA, foram obtidos índices de 100%, 99% e 92% de estabilidade entre aplicações 
feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Tanto a EEA como o RAF foram 
desenvolvidos por Marturano (1999). 
 
As variáveis ambientais incluídas na análise foram derivadas dos três instrumentos 
acima descritos, compondo-se oito medidas de recursos, dez medidas de 
circunstâncias adversas e dois indicadores sócio-econômicos. Do RAF foram 
derivados dois conjuntos de medidas de recursos e um indicador sócio-econômico: 
1) Supervisão dos pais (tópicos Atividades da criança quando não está na escola, 
Arranjo espaço-temporal para a lição de casa, Supervisão para a escola, Atividades 
diárias com horário definido); 2) Envolvimentoe suporte dos pais (tópicos Passeios, 
Oferta de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento, Atividades 
compartilhadas com os pais no lar, Pessoas a quem a criança recorre para pedir 
ajuda ou conselho); 3) Indicador sócio-econômico, baseado no tópico Comodidades, 
que relaciona 13 itens de conforto disponíveis na moradia, como aparelhos 
eletrodomésticos e eletroeletrônicos, computador e veículos, entre outros, e está 
baseado na escala proposta por Soares e Fernandes (1989). 
 
Da EEA foram derivados um indicador de instabilidade financeira, dois indicadores 
de adversidade relacionada ao funcionamento parental e um indicador de 
adversidade familiar não envolvendo diretamente o funcionamento parental (Gest e 
cols., 1993), além de três indicadores de adversidade incidindo diretamente sobre a 
criança. O indicador de instabilidade financeira foi obtido a partir da soma dos itens: 
"Momentos difíceis do ponto de vista financeiro", "Perda de emprego do pai ou da 
mãe", "Mãe passou a trabalhar fora". Os indicadores de adversidade parental 
incluíram: 1) Adversidade nas relações parentais (soma dos itens "Conflitos entre os 
pais", "Separação temporária dos pais", "Divórcio dos pais", "Abandono do lar pelo 
pai ou pela mãe", "Recasamento da mãe", "Litígio judicial entre os pais"); 2) 
 
Adversidade associada a condutas parentais (soma dos itens 
"Alcoolismo/drogadição parental", "Envolvimento parental com a polícia ou a 
justiça"). O indicador de outras adversidades familiares foi obtido pela soma dos 
itens "Doença grave do pai ou da mãe", "Morte do pai ou da mãe", "Nascimento de 
um irmão", "Doença grave/hospitalização de um irmão", "Morte de um avô ou avó", 
"Gravidez de irmã solteira", "Abandono do lar por um irmão". As medidas de 
 174 
adversidade incidindo diretamente sobre a criança foram: 1) Eventos adversos na 
vida pessoal (soma dos itens "Hospitalização ou enfermidade grave da criança", 
"Acidente com seqüela", "Morte de amigo"); 2) Eventos adversos na vida escolar 
(soma dos itens "Mudança de escola", "Repetência", "Mais de uma troca de 
professora no mesmo ano letivo"); 3) Problemas nas relações interpessoais (soma 
dos itens "O relacionamento com os companheiros piorou", "A criança sofreu 
agressão por parte da professora", "A criança foi suspensa da escola"). 
 
A EEQ forneceu quatro indicadores de adversidade, correspondendo cada um à 
soma dos itens indicados entre parênteses: Condições adversas pessoais da mãe 
(sobrecarga de afazeres/tensões diárias, falha no suporte do cônjuge, interferência 
de familiares na criação dos filhos, autodepreciação, culpa); Práticas educativas 
inadequadas (ameaça, punição, superproteção, permissividade, restritividade, 
insegurança, discordância entre os pais); Problemas no relacionamento pais-criança 
(agressão física, agressão verbal, tratamento rude, conflitos, relacionamento 
distante, depreciação, indiferença/ rejeição); Adversidade extrafamiliar (vizinhança 
de risco, depreciação extrafamiliar, agressão extrafamiliar, abuso ou tentativa de 
abuso sexual)
 175 
Procedimentos 
 
 
Na clínica-escola onde os dados foram colhidos, cada criança e sua mãe são 
entrevistadas separadamente durante a triagem clínica, realizada com a finalidade 
de verificar a queixa escolar e subsidiar o atendimento psicopedagógico caso haja 
indicação para o mesmo. Os instrumentos empregados neste estudo foram 
aplicados nessa oportunidade, junto às mães das 141 crianças. Os dados foram 
colhidos por três psicólogos da equipe do referido serviço, com formação em 
psicologia clínica e experiência profissional mínima de dez anos. Todos passaram 
por treinamento específico para aplicação dos instrumentos. 
 
Os resultados obtidos nos instrumentos de avaliação do ambiente familiar foram 
comparados através do teste t de Student. Para verificar diferenças em itens com 
formato de escala nominal, aplicou-se o Teste de Intervalo de Confiança para 
Diferenças entre Proporções. Foi considerado significativo todo resultado com 
probabilidade igual ou inferior a 0,05. Dada a assimetria por sexo entre os grupos, 
análises preliminares foram conduzidas para verificar diferenças que recomendariam 
incluir esta variável nas análises. 
 
Resultados 
 
 
A comparação entre sexos, através do teste t de Student, detectou diferença em 
apenas dois indicadores: Atividades diárias com horário definido, em que o grupo 
das meninas teve média mais alta (t= 2,10, p= 0,04), e Problemas nas relações 
interpessoais, em que a média do grupo masculino foi mais elevada (t= 2,85, p < 
0,01). Considerando que são diferenças pontuais, as análises foram conduzidas 
sobre a amostra total. 
 
 
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Os grupos apresentaram diferenças significativas no escore total do RAF e no 
indicador sócio-econômico, assim como nos escores obtidos nos tópicos passeios, 
atividades compartilhadas pela criança e pelos pais no lar, pessoas a quem a 
criança recorre para pedir ajuda ou conselho, oferta de brinquedos e outros 
materiais promotores de desenvolvimento. Em todas essas medidas, as médias de 
G1 foram maiores que as de G2. O Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças 
entre Proporções apontou diferenças significativas em alguns dos itens que 
compõem cada tópico, indicando que mais crianças do grupo sem problema de 
comportamento brincam dentro de casa quando não estão na escola, têm horário 
para brincar e para fazer a lição de casa, recebem supervisão dos pais para o 
estudo das provas, fazem viagens e passeios a shopping centers, lanchonetes e 
 
parques de diversão, brincam com os pais e contam casos para eles. Essas 
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crianças, quando precisam de ajuda ou conselho, recorrem não somente à mãe, 
como as crianças de G2, mas também ao pai e a um irmão ou irmã. Ao longo do 
desenvolvimento, elas têm tido acesso a maior diversidade de brinquedos e outros 
materiais promotores do desenvolvimento. 
 
Com relação à Escala de Eventos Adversos, a Tabela 3 contém os resultados da 
análise estatística, onde se verifica que os grupos apresentaram diferença 
significativa no Escore total da EEA, assim como nos indicadores de Adversidade 
nas relações parentais, Eventos adversos na vida pessoal, Eventos adversos na 
vida escolar e Problemas nas relações interpessoais. Em todas as medidas, as 
médias de G2 foram maiores que as de G1. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os itens da EEA com incidência significativamente maior em G2, segundo o Teste 
de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, foram: divórcio dos pais 
e pai ou mãe abandonou a família (Adversidade nas relações Parentais); 
hospitalização/enfermidade grave de um irmão/irmã da criança (Outras adversidades 
familiares); hospitalização ou enfermidade grave da criança (Eventos Adversos na 
Vida Pessoal); repetência (Eventos Adversos na Vida Escolar); piora no 
relacionamento com os colegas e suspensão (Problemas nas Relações 
Interpessoais). 
 
 
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A análise dos dados fornecidos pela Entrevista de Esclarecimento da Queixa, 
submetida ao Guia de Classificação das Adversidades do Ambiente Familiar, indicou 
diferença significativa entre os grupos no número >de adversidades presentes no 
ambiente familiar: G2, grupo com problemas de comportamento, apresentou mais 
situações de adversidade em seu ambiente familiar que G1, grupo sem problema de 
comportamento. Esse resultado e os dados relativos a cada classe de adversidade 
ambiental são apresentados na Tabela 4.

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