Prévia do material em texto
1 BIBLIOTECA REFERENTE AO CURSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Selecionamos para você uma série de artigos, livros e endereços na Internet onde poderão ser realizadas consultas e encontradas as referências necessárias para a realização de seus trabalhos científicos, bem como, uma lista de sugestões de temas para futuras pesquisas na área. Primeiramente, relacionamos sites de primeira ordem, como: www.scielo.br www.anped.org.br www.dominiopublico.gov.br SUGESTÕES DE TEMAS 1. A DEMANDA PELA ALFABETIZAÇÃO E OS RECURSOS DISPONÍVEIS PARA O SEU FINANCIAMENTO 2. CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE: relatos de educadores de alfabetização e letramento 3. A FORMAÇÃO DE EDUCADORES E A CONSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS, COMO CAMPO PEDAGÓGICO 4. ALFABETIZAÇÃO: perspectivas e desafios 5. PROMOÇÃO DA QUALIDADE E AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO: uma experiência 6. FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: o curso de pedagogia em questão 7. CONCEPÇÕES DA PROFESSORA ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO 8. A ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 9. O BRINCAR E A INTERVENÇÃO MEDIACIONAL NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA O LETRAMENTO 2 10. A TEORIA DOS SISTEMAS ECOLÓGICOS: um paradigma para letramento 11. FUNDAMENTOS E METODOLOGIA DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 12. EDUCAÇÃO BÁSICA: crescendo e aparecendo 13. AS TEORIAS PEDAGÓGICAS PARA A ALFABETIZAÇÃO 14. ENCONTROS E ENCANTAMENTOS NA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: partilhando experiências de estágios 15. ATUAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO ITINERANTE FACE À INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM BAIXA VISÃO NA ALFABETIZAÇÃO 16. A FONOAUDIOLOGIA NA RELAÇÃO ENTRE ESCOLAS REGULARES DE ENSINO FUNDAMENTAL E ESCOLAS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NO PROCESSO DE INCLUSÃO 17. AS CRIANÇAS NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL: educação infantil e ensino fundamental 18. O ESTADO DA ARTE DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL 19. O LETRAMENTO: perspectivas e desafios 20. A LEGISLAÇÃO ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NOS ÚLTIMOS 50 ANOS 21. A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: um estudo de caso 22. A PERCEPÇÃO DOS PROFESSORES ACERCA DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO E SUA IMPORTANCIA PARA A FORMAÇÃO DO EDUCANDO 23. A UTILIZAÇÃO DO LÚDICO COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA PARA A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 24. ANÁLISE DOS FATORES QUE INTERFEREM NO SUCESSO DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 25. ANÁLISE DOS FATORES QUE CAUSAM OU INTERFEREM NO FRACASSO ESCOLAR NA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 26. PERSPECTIVAS PARA A ALFABETIZAÇÃO NO SÉCULO XXI 27. O AFETO E OS RESULTADOS PEDAGÓGICOS NA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 28. A LDB E A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 3 29. AS DIRETRIZES CURRICULARES PARA A ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 30. AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS PARA O LETRAMENTO 31. A CRIANÇA DE SEIS ANOS NO ENSINO FUNDAMENTAL 32. A LINGUAGEM ESCRITA COMO UMA DAS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA CRIANÇA 33. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ORAL E DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA 34. COMPETÊNCIAS ENVOLVIDAS NO APRENDIZADO DA LEITURA E DA ESCRITA PELA CRIANÇA 35. A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ALFABÉTICO DE REPRESENTAÇÃO PELA CRIANÇA 36. A LEITURA E A ESCRITA E SEUS DIFERENTES USOS E FUNÇÕES. 37. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO E O PAPEL DO PROFESSOR 38. A FUNÇÃO FORMADORA DA LEITURA LITERÁRIA 39. MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO 40. DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM NA LEITURA E ESCRITA 41. AVALIAÇÃO EM LEITURA E ESCRITA 42. O BILINGÜISMO E A ALFABETIZAÇÃO 43. CONTEXTUALIDADE NA LEITURA 44. FORMANDO FUTUROS LEITORES 45. CONSTRUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA NAS SÉRIES INICIAIS DE ALFABETIZAÇÃO 46. MOTIVAÇÃO PARA LEITURA 47. DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM EM LEITURA E ESCRITA 4 48. LER E ESCREVER: a importância dessas habilidades na etapa inicial de alfabetização ARTIGOS PARA LEITURA, ANÁLISE E UTILIZAÇÃO COMO FONTE OU REFERÊNCIA Revista Brasileira de Educação Print version ISSN 1413-2478 Rev. Bras. Educ. no.25 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2004 doi: 10.1590/S1413-24782004000100002 LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: AS MUITAS FACETAS* Magda Soares Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita RESUMO Busca recuperar a evolução dos conceitos de letramento e alfabetização ao longo das duas últimas décadas, identificando, nesse período, um movimento de progressiva invenção da palavra e do conceito de letramento e concomitante desinvenção da alfabetização, entendida como a perda de especificidade desse processo, o que vem tendo como conseqüência uma nova modalidade de fracasso escolar: o precário nível de domínio da língua escrita em ciclos ou séries em que esse domínio já deveria ter sido alcançado. Discutem-se as causas dessa perda de especificidade do processo de alfabetização, e propõe-se uma distinção entre alfabetização e letramento que preserve a peculiaridade de cada um desses processos, ao mesmo tempo em que se afirma sua indissociabilidade e interdependência. Caracteriza-se o momento atual como sendo de tentativas de reinvenção da alfabetização, considerada necessária desde que entendida não como a volta a paradigmas do passado, mas como recuperação da especificidade da alfabetização em suas múltiplas facetas, e sua integração com o processo de letramento. Palavras-chave: alfabetização; letramento; métodos de alfabetização 5 ABSTRACT Describes how the concepts of literacy and initial reading instruction developed in Brazilian education throughout the last two decades, characterising this development as a progressive invention of the word and concept of literacy and a concomitant dis- invention of the concept of initial reading instruction, which lost its specific characteristics, bringing about a new type of school failure: the serious reading and writing difficulties among students at advanced levels of schooling. The text discusses the causes of this phenomenon and stresses the need to distinguish clearly between initial reading instruction and literacy, so that each process is seen as specific and, at the same time, as associated with and dependent on the other. The present situation is characterised as an attempt to re-invent initial reading instruction, meaning not a turning back to past methodologies, but as a recovery of the distinctive features of the initial reading instruction process in its multiple facets, guaranteeing at the same time its integration with the literacy process. Key-words: initial reading instruction; literacy; initial reading instruction methods Introdução O título e tema deste texto pretendem ser um contraponto ao título e tema de outro texto de minha autoria, publicado há já quase vinte anos: "As muitas facetas da alfabetização" (Cadernos de Pesquisa, nº52, de fevereiro de 1985). Uso a palavra contraponto para indicar que o que aqui intento fazer é um entrelaçamento dos dois textos, não uma reformulação, muito menos um confronto. É que, relendo, hoje, "As muitas facetas da alfabetização", encontro ali já anunciado, sem que ainda fosse nomeado, o conceito de letramento, que se firmaria posteriormente, e, de forma implícita, as relações entre esse conceito e o conceito de alfabetização; segundo, porque, passados quase vinte anos, as questões ali propostas à reflexão parecem continuaratuais, e grande parte dos problemas ali apontados parece ainda não resolvida. O contraponto que pretendo desenvolver é a retomada de conceitos e problemas, buscando identificar sua evolução ao longo das duas últimas décadas, em um movimento que vou propor como sendo de progressiva invenção da palavra e do conceito de letramento, e concomitante desinvenção da alfabetização, resultando na polêmica conjuntura atual que me atrevo a denominar de reinvenção da alfabetização. 6 Para prevenir sobressaltos, adianto, já neste momento inicial de minhas reflexões, que meu objetivo será defender, numa proposta apenas aparentemente contraditória, a especificidade e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois processos alfabetização e letramento, tanto na perspectiva teórica quanto na perspectiva da prática pedagógica. A invenção do letramento1 É curioso que tenha ocorrido em um mesmo momento histórico, em sociedades distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e culturalmente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita. Assim, é em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua inglesa se conhece como reading instruction, beginning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem, o que se evidencia no grande número de artigos e livros voltados para o tema, publicados, a partir desse momento, nesses países, e se operacionalizou nos vários programas, neles desenvolvidos, de avaliação do nível de competências de leitura e de escrita da população; segundo Barton (1994, p. 6), foi nos anos de 1980 que the new field of literacy studies has come into existence. É ainda significativo que date aproximadamente da mesma época (final dos anos de 1970) a proposta da Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de ampliação do conceito de literate para functionally literate, e, portanto, a sugestão de que as avaliações internacionais sobre domínio de competências de leitura e de escrita fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever. Entretanto, se há coincidência quanto ao momento histórico em que as práticas sociais de leitura e de escrita emergem como questão fundamental em sociedades distanciadas geograficamente, socioeconomicamente e culturalmente, o contexto e as causas dessa emersão são essencialmente diferentes em países em 7 desenvolvimento, como o Brasil, e em países desenvolvidos, como a França, os Estados Unidos, a Inglaterra. Sem pretender uma discussão mais extensa dessas diferenças, o que ultrapassaria os objetivos e possibilidades deste texto, destaco a diferença fundamental, que está no grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre o conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de alfabetização (alphabétisation, reading instruction, beginning literacy). Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema relevante no contexto da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita. Assim, na França e nos Estados Unidos, para limitar a análise a esses dois países, os problemas de illettrisme, de literacy/illiteracy surgem de forma independente da questão da aprendizagem básica da escrita. Na França, como esclarece Lahire, em L'invention de l'illettrisme (1999), e Chartier e Hébrard, em capítulo incluído na segunda edição de Discours sur la lecture (2000), o illettrisme a palavra e o problema que ela nomeia surge para caracterizar jovens e adultos do chamado Quarto Mundo2 que revelam precário domínio das competências de leitura e de escrita, dificultando sua inserção no mundo social e no mundo do trabalho. Partindo do fato de que toda a população independentemente de suas condições socioeconômicas domina o sistema de escrita, porque passou pela escolarização básica, as discussões sobre o illettrisme se fazem sem relação com a questão do apprendre à lire et à écrire, expressão com que se denomina a alfabetização escolar, e com a questão da alphabétisation, este termo em geral reservado às ações desenvolvidas junto aos trabalhadores imigrantes, analfabetos na língua francesa (Lahire, 1999, p.61). O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde o foco em problemas de literacy/illiteracy emerge, no início dos anos de 1980, como resultado da constatação, feita sobretudo em avaliações realizadas no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980 pela National Assessment of Educational Progress (NAEP), de que jovens graduados na high school não dominavam as habilidades de leitura demandadas em práticas sociais e profissionais que envolvem a escrita (Kirsch & Jungeblut, 1986, p. 2). 8 Também neste caso as discussões, relatórios, publicações não apontam relações entre as dificuldades no uso da língua escrita e a aprendizagem inicial do sistema de escrita a reading instruction, ou a emergent literacy, a beginning literacy; assim, Kirsch e Jungeblut, como conclusão da pesquisa sobre habilidades de leitura da população jovem norte-americana, afirmam que o problema não estava na illiteracy (no não saber ler e escrever), mas na literacy (no não-domínio de competências de uso da leitura e da escrita). Essa autonomização, tanto na França quanto nos Estados Unidos, das questões de letramento em relação às questões de alfabetização não significa que estas últimas não venham sendo, elas também, objeto de discussões, avaliações, críticas. Como se verá adiante, neste texto, tem sido também intensa, nos últimos anos, nesses países, a discussão sobre problemas da aprendizagem inicial da escrita; o que se quer aqui destacar é que os dois problemas o domínio precário de competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita são tratados de forma independente, o que revela o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de não-causalidade entre eles. No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa forma, em direção contrária: o despertar para a importância e necessidade de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito alfabetização. Assim, ao contrário do que ocorre em países do Primeiro Mundo, como exemplificado com França e Estados Unidos, em que a aprendizagem inicial da leitura e da escrita a alfabetização, para usar a palavra brasileira mantém sua especificidade no contexto das discussões sobre problemas de domínio de habilidades de uso da leitura e da escrita problemas de letramento , no Brasil os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, freqüentemente se confundem. Esse enraizamento doconceito de letramento no conceito de alfabetização pode ser detectado tomando-se para análise fontes como os censos demográficos, a mídia, a produção acadêmica. Assim, as alterações no conceito de alfabetização nos censos demográficos, ao longo das décadas, permitem identificar uma progressiva extensão desse conceito. 9 A partir do conceito de alfabetizado, que vigorou até o Censo de 1940, como aquele que declarasse saber ler e escrever, o que era interpretado como capacidade de escrever o próprio nome; passando pelo conceito de alfabetizado como aquele capaz de ler e escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só saber ler e escrever, mas de já exercer uma prática de leitura e escrita, ainda que bastante trivial, adotado a partir do Censo de 1950; até o momento atual, em que os resultados do Censo têm sido freqüentemente apresentados, sobretudo nos casos das Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domicílios (PNAD), pelo critério de anos de escolarização, em função dos quais se caracteriza o nível de alfabetização funcional da população, ficando implícito nesse critério que, após alguns anos de aprendizagem escolar, o indivíduo terá não só aprendido a ler e escrever, mas também a fazer uso da leitura e da escrita, verifica-se uma progressiva, embora cautelosa, extensão do conceito de alfabetização em direção ao conceito de letramento: do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura e da escrita. O mesmo se verifica quando se observa o tratamento que a mídia dá, particularmente ao longo da última década (anos de 1990), às informações e notícias sobre alfabetização no Brasil.3 Já em 1991, a Folha de S. Paulo, ao divulgar resultados do Censo então realizado, após declarar que, pelos dados, apenas 18% eram analfabetos, acrescenta: "mas o número de desqualificados é muito maior". Desqualificados, segundo a matéria, eram aqueles que, embora declarando saber ler e escrever um bilhete simples, tinham menos de quatro anos de escolarização, sendo, assim, analfabetos funcionais. Durante toda a última década e até hoje a mídia vem usando, em matérias sobre competências de leitura e escrita da população brasileira, termos como semi-analfabetos, iletrados, analfabetos funcionais, ao mesmo tempo que vem sistematicamente criticando as informações sobre índices de alfabetização e analfabetismo que tomam como base apenas o critério censitário de saber ou não saber "ler e escrever um bilhete simples". A mídia vem, pois, assumindo e divulgando um conceito de alfabetização que o aproxima do conceito de letramento. Interessante é observar que também na produção acadêmica brasileira alfabetização e letramento estão quase sempre associados. Uma das primeiras obras a registrar o 10 termo letramento, Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, de Leda Verdiani Tfouni (1988), aproxima alfabetização e letramento, é verdade que para diferenciar os dois processos, tema a que retorna em livro posterior, em que a aproximação entre os dois conceitos aparece já desde o título: Letramento e alfabetização (1995). Essa mesma aproximação entre os dois conceitos aparece na coletânea organizada por Roxane Rojo, Alfabetização e letramento (1998), em que está também presente a proposta de uma diferenciação entre os dois fenômenos, embora não inteiramente coincidente com a proposta por Leda Verdiani Tfouni. Ângela Kleiman, na coletânea que organiza Os significados do letramento (1995) -, também discute o conceito de letramento tomando como contraponto o conceito de alfabetização, e os dois conceitos se alternam ao longo dos textos da coletânea. No livro Letramento: um tema em três gêneros (1998), procuro conceituar, confrontando-os, os dois processos alfabetização e letramento. São apenas exemplos que privilegiam as obras mais conhecidas sobre o tema, da tendência predominante na literatura especializada tanto na área das ciências lingüísticas quanto na área da educação: a aproximação, ainda que para propor diferenças, entre letramento e alfabetização, o que tem levado à concepção equivocada de que os dois fenômenos se confundem, e até se fundem. Embora a relação entre alfabetização e letramento seja inegável, além de necessária e até mesmo imperiosa, ela, ainda que focalize diferenças, acaba por diluir a especificidade de cada um dos dois fenômenos, como será discutido posteriormente neste texto. Em síntese, e para encerrar este tópico, conclui-se que a invenção do letramento,entre nós, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto nesses outros países a discussão do letramento illettrisme, literacy e illiteracy se fez e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização apprendre à lire et à écrire, reading instruction, emergent literacy, beginning literacy , no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento, por razões que tentarei identificar mais adiante, o que tem conduzido a um certo apagamento da alfabetização que, talvez com algum exagero, denomino desinvenção da alfabetização, de que trato em seguida. 11 A desinvenção da alfabetização O neologismo desinvenção pretende nomear a progressiva perda de especificidade do processo de alfabetização que parece vir ocorrendo na escola brasileira ao longo das duas últimas décadas.4 Certamente essa perda de especificidade da alfabetização é fator explicativo evidentemente, não o único, mas talvez um dos mais relevantes do atual fracasso na aprendizagem e, portanto, também no ensino da língua escrita nas escolas brasileiras, fracasso hoje tão reiterado e amplamente denunciado. É verdade que não se denuncia um fato novo: fracasso em alfabetização nas escolas brasileiras vem ocorrendo insistentemente há muitas décadas; hoje, porém, esse fracasso configura-se de forma inusitada. Anteriormente ele se revelava em avaliações internas à escola, sempre concentrado na etapa inicial do ensino fundamental, traduzindo-se em altos índices de reprovação, repetência, evasão; hoje, o fracasso revela-se em avaliações externas à escola avaliações estaduais (como o SARESP, o SIMAVE), nacionais (como o SAEB, o ENEM) e até internacionais (como o PISA)-,5 espraia-se ao longo de todo o ensino fundamental, chegando mesmo ao ensino médio, e se traduz em altos índices de precário ou nulo desempenho em provas de leitura, denunciando grandes contingentes de alunos não alfabetizados ou semi-alfabetizados depois de quatro, seis, oito anos de escolarização. A hipótese aqui levantada é que a perda deespecificidade do processo de alfabetização, nas duas últimas décadas, é um, entre os muitos e variados fatores, que pode explicar esta atual "modalidade" de fracasso escolar em alfabetização. Talvez se possa afirmar que na "modalidade" anterior de fracasso escolar aquela que se manifestava em altos índices de reprovação e repetência na etapa inicial do ensino fundamental6 a alfabetização caracterizava-se, ao contrário, por sua excessiva especificidade, entendendo-se por "excessiva especificidade" a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da língua escrita. O que parece ter acontecido, ao longo das duas últimas décadas,é que, em lugar de se fugir a essa "excessiva especificidade", apagou-se a necessária especificidade do processo de alfabetização. Várias causas podem ser apontadas para essa perda de especificidade do processo 12 de alfabetização; limitando-me às causas de natureza pedagógica, cito, entre outras, a reorganização do tempo escolar com a implantação do sistema de ciclos, que, ao lado dos aspectos positivos que sem dúvida tem, pode trazer e tem trazido uma diluição ou uma preterição de metas e objetivos a serem atingidos gradativamente ao longo do processo de escolarização; o princípio da progressão continuada, que, mal concebido e mal aplicado, pode resultar em descompromisso com o desenvolvimento gradual e sistemático de habilidades, competências, conhecimentos. Não me detenho, porém, no aprofundamento das relações entre esses aspectos sistema de ciclos, princípio da progressão continuada e a perda de especificidade da alfabetização, porque me parece que a causa maior dessa perda de especificidade deve ser buscada em fenômeno mais complexo: a mudança conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a partir de meados dos anos de 1980. Segundo Gaffney e Anderson (2000, p. 57), as últimas três décadas assistiram a mudanças de paradigmas teóricos no campo da alfabetização que podem ser assim resumidas: um paradigma behaviorista, dominante nos anos de 1960 e 1970, é substituído, nos anos de 1980, por um paradigma cognitivista, que avança, nos anos de 1990, para um paradigma sociocultural. Segundo os mesmos autores, se a transição da teoria behaviorista para a teoria cognitivista representou realmente uma radical mudança de paradigma, a transição da teoria cognitivista para a perspectiva sociocultural pode ser interpretada antes como um aprimoramento do paradigma cognitivista que propriamente como uma mudança paradigmática. Embora Gaffney e Anderson situem essas mudanças paradigmáticas no contexto norte-americano, pode-se reconhecer as mesmas mudanças no Brasil, aproximadamente no mesmo período;7 em relação ao período que aqui interessa, pode-se afirmar que, tal como ocorreu nos Estados Unidos, também no Brasil os anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio hegemônico, na área da alfabetização, do paradigma cognitivista, que aqui se difundiu sob a discutível denominação de construtivismo (posteriormente, socioconstrutivismo). Ao contrário, porém, dos Estados Unidos, em que esse paradigma foi proposto para todo e qualquer conhecimento escolar, tomando como eixo uma nova concepção das relações entre aprendizagem e linguagem, traduzida no movimento que recebeu a denominação de whole language,8 entre nós ele chegou pela via da alfabetização, através das pesquisas e estudos sobre a psicogênese da língua escrita, divulgada pela obra e 13 pela atuação formativa de Emilia Ferreiro.9 Não é necessário retomar aqui a mudança que representou, para a área da alfabetização, a perspectiva psicogenética: alterou profundamente a concepção do processo de construção da representação da língua escrita, pela criança, que deixa de ser considerada como dependente de estímulos externos para aprender o sistema de escrita concepção presente nos métodos de alfabetização até então em uso, hoje designados "tradicionais" 10 e passa a sujeito ativo capaz de progressivamente (re)construir esse sistema de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com material "para ler", não com material artificialmente produzido para "aprender a ler"; os chamados pré-requisitos para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam a criança "pronta" ou "madura" para ser alfabetizada pressuposto dos métodos "tradicionais" de alfabetização são negados por uma visão interacionista, que rejeita uma ordem hierárquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se dá por uma progressiva construção do conhecimento, na relação da criança com o objeto "língua escrita"; as dificuldades da criança, no processo de construção do sistema de representação que é a língua escrita consideradas "deficiências" ou "disfunções", na perspectiva dos métodos "tradicionais" passam a ser vistas como "erros construtivos", resultado de constantes reestruturações. Sem negar a incontestável contribuição que essa mudança paradigmática, na área da alfabetização, trouxe para a compreensão da trajetória da criança em direção à descoberta do sistema alfabético, é preciso, entretanto, reconhecer que ela conduziu a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar a desinvenção da alfabetização, de que se fala neste tópico podem explicar a perda de especificidade do processo de alfabetização, proposta anteriormente. Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto lingüístico constituído, quer se considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais e freqüentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se sua faceta lingüística fonética e fonológica. 14 Em segundo lugar, derivou-se da concepção construtivista da alfabetização uma falsa inferência, a de que seria incompatível com o paradigma conceitual psicogenético a proposta de métodos de alfabetização. De certa forma, o fato de que o problema da aprendizagem da leitura e da escrita tenha sido considerado, no quadro dos paradigmas conceituais "tradicionais", como um problema sobretudo metodológico contaminou o conceito de método de alfabetização, atribuindo-lhe uma conotação negativa: é que, quando se fala em "método" de alfabetização, identifica- se, imediatamente, "método" com os tipos "tradicionais" de métodos sintéticos e analíticos (fônico, silábico, global etc.), como se esses tipos esgotassem todas as alternativas metodológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. Talvez se possa dizer que, para a prática da alfabetização, tinha-se, anteriormente, um método, e nenhuma teoria; com a mudança de concepção sobre o processo de aprendizagem da língua escrita, passou-se a ter uma teoria, e nenhum método. Acrescente-se a esses equívocos e falsas inferências o também falso pressuposto, decorrente deles e delas, de que apenas através do convívio intenso com o material escrito que circula nas práticas sociais, ou seja, do convívio com a cultura escrita, a criança se alfabetiza. A alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo letramento, porque este acabou por freqüentemente prevalecer sobre aquela, que, como conseqüência, perde sua especificidade. É preciso, a esta altura, deixar claro que defender a especificidade do processo de alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento, como se defenderá adiante. Entretanto, o que lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo autônomo, independente do letramento e anterior a ele. É o que estou considerando ser uma reinvenção da alfabetização que, numa afirmação apenas aparentemente contraditória, é, ao mesmo tempo, perigosa se representar um retrocesso a paradigmas anteriores, com perda dos avanços e conquistas feitosnas últimas décadas e necessária se representar a recuperação de uma faceta fundamental do processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita. É do que se tratará no próximo tópico. 15 A reinvenção da alfabetização Temos usado com freqüência na área da educação a metáfora da "curvatura da vara", a que os americanos preferem a metáfora do "pêndulo", ambas representando a tendência ao raciocínio alternativo: ou isto ou aquilo; se isto, então não aquilo. A autonomização do processo de alfabetização, em relação ao processo de letramento, para a qual se está tendendo atualmente, pode ser interpretada como a curvatura da vara ou o movimento do pêndulo para o "outro" lado. O "lado" contra o qual essa tendência se levanta, aquele que, de certa forma, dominou o ensino da língua escrita não só no Brasil, mas também em vários outros países, nas últimas décadas, baseia-se numa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, de que decorre o princípio de que aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos prévios; no quadro dessa concepção, o sistema grafofônico (as relações fonema- grafema) não é objeto de ensino direto e explícito, pois sua aprendizagem decorreria de forma natural da interação com a língua escrita. É essa concepção e esse princípio que fundamentam a whole language, nos Estados Unidos, e o chamado construtivismo, no Brasil. Entretanto, resultados de avaliações de níveis de alfabetização da população em processo de escolarização, que se multiplicaram nas duas últimas décadas, no Brasil e em muitos outros países, têm levado a críticas a essa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, incidindo essa crítica particularmente na ausência, no quadro dessa concepção, de instrução direta e específica para a aprendizagem do código alfabético e ortográfico. Em países que, tradicionalmente, têm inspirado a educação brasileira França e Estados Unidos , essa crítica e recomendações dela decorrentes foram recentemente expressas em documentos oficiais e programas de ensino, de que convém dar rápida notícia, uma vez que o movimento que começa a esboçar-se entre nós nessa mesma direção tem buscado neles (embora não só neles) fundamento e justificação. Na França, a constatação de dificuldades de leitura e de escrita na população em fase de escolarização levou o Observatório Nacional da Leitura, órgão consultivo do Ministério da Educação Nacional, da Pesquisa e da Tecnologia, a divulgar, no final dos anos de 1990, o documento Apprendre à lire au cycle des apprentissages 16 fondamentaux (Observatoire National de la Lecture, 1998), em que, com apoio em dados de pesquisas sobre a aprendizagem da leitura, afirma-se que o conhecimento do código grafofônico e o domínio dos processos de codificação e decodificação constituem etapa fundamental e indispensável para o acesso à língua escrita, "condition nécessaire, bien que non suffisante, de la comprehénsion des textes" (grifo do original), etapa que não pode ser vencida [...] sans une instruction explicite, visant d'une part la prise de conscience du fait que la parole peut être décrite comme une séquence linéaire de phonèmes, d'autre part, que les caractères (ou groupes de caractères) alphabétiques représentent les phonèmes. (p. 93) Nos Estados Unidos, desde o início dos anos de 1990 tem sido intensa a discussão sobre a aprendizagem da língua escrita na escola, discussão que se concentra, sobretudo, em polêmicas que contrapõem a concepção holística whole language à concepção grafofônica phonics.11 Em meados dos anos de 1990, a whole language, que vinha tendo grande difusão no país desde meados dos anos de 1980, passou a ser contestada, sobretudo por negar o ensino do sistema alfabético e ortográfico e das relações fonema-grafema de forma direta e explícita. Já em de 1990, a publicação da obra de Marilyn Jager Adams, Beginning to read: thinking and learning about print, levara à substituição da oposição phonics versus whole-word, em torno da qual se desenvolvia, até então, o debate, pela oposição phonics versus whole language. Identifica-se um paralelo com o que ocorreu no Brasil aproximadamente na mesma época, quando o debate que até então se fazia em torno da oposição entre métodos sintéticos (fônico, silabação) e métodos analíticos (palavração, sentenciação, global) foi suplantado pela introdução da concepção "construtivista" na alfabetização, bastante semelhante à whole language. Os defensores do ensino direto e explícito das relações fonema-grafema, no processo de alfabetização, nos Estados Unidos, encontraram reforço no relatório produzido, em 2000, pelo National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), em resposta à solicitação do Congresso Nacional, alarmado com os baixos níveis de competência em leitura que avaliações estaduais e nacionais de crianças em processo de escolarização vinham denunciando: o National Reading Panel: teaching children to read é um estudo de avaliação e integração das pesquisas existentes no país sobre a alfabetização de crianças, com o objetivo de identificar 17 procedimentos eficientes para que esse processo se realizasse com sucesso. O subtítulo do relatório esclarece bem sua natureza: An evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and its implications for reading instruction.12 O relatório conclui que, entre as facetas consideradas componentes essenciais do processo de alfabetização consciência fonêmica, phonics13 (relações fonema-grafema), fluência em leitura (oral e silenciosa), vocabulário e compreensão, as evidências a que as pesquisas conduziam mostravam que têm implicações altamente positivas para a aprendizagem da língua escrita o desenvolvimento da consciência fonêmica e o ensino explícito, direto e sistemático das correspondências fonema-grafema. Retomando o título deste subtópico, pode-se perguntar: nesse contexto francês e norte-americano o que constitui a reinvenção da alfabetização? Uma análise tanto do documento francês Apprendre à lire quanto do relatório americano o National Reading Panel evidenciam que a concepção de aprendizagem da língua escrita, em ambos, é mais ampla e multifacetada que apenas a aprendizagem do código, das relações grafofônicas; o que ambos postulam é a necessidade de que essa faceta recupere a importância fundamental que tem na aprendizagem da língua escrita; sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto, explícito, sistemático. Entretanto, a questão tem se colocado, particularmente nos Estados Unidos, e começa a se colocar assim também entre nós, em termos de antagonismo de concepções, uma oposição de grupos a favor e grupos contra o movimento que tem sido denominado a "volta ao fônico" (back to phonics) como se, para endireitar a vara, fosse mesmo necessário curvá-la para o lado oposto, ou como se o pêndulo devesse estar ou de um lado, ou de outro. É essa tendência a radicalismos que torna perigosa a necessária reinvenção da alfabetização.14 O que é preciso reconhecer é que o antagonismo, que gera radicalismos, é mais político que propriamente conceitual, pois é óbvio que tanto a whole language, nos Estados Unidos, quanto o chamado construtivismo, no Brasil, consideram a aprendizagem das relações grafofônicas como parte integrante da aprendizagem da língua escrita ocorreria a alguém a possibilidade de se ter acesso à cultura escrita sem a aprendizagem das relações entre o sistema fonológico e o sistema alfabético? A diferença entre propostas como a do Apprendre à lireou do National Reading Panel, e propostas como a whole language e o construtivismo está em que, 18 enquanto nas primeiras considera-se que as relações entre o sistema fonológico e os sistemas alfabético e ortográfico devem ser objeto de instrução direta, explícita e sistemática, com certa autonomia em relação ao desenvolvimento de práticas de leitura e escrita, nas segundas considera-se que essas relações não constituem propriamente objeto de ensino, pois sua aprendizagem deve ser incidental, implícita, assistemática, no pressuposto de que a criança é capaz de descobrir por si mesma as relações fonema-grafema, em sua interação com material escrito e por meio de experiências com práticas de leitura e de escrita. Pode-se talvez dizer que, no primeiro caso, privilegia-se a alfabetização, no segundo caso, o letramento. O problema é que, num e noutro caso, dissocia-se equivocadamente alfabetização de letramento, e, no segundo caso, atua-se como se realmente pudesse ocorrer de forma incidental e natural a aprendizagem de objetos de conhecimento que são convencionais e, em parte significativa, arbitrários o sistema alfabético e o sistema ortográfico. Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita a alfabetização - e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização. A concepção "tradicional" de alfabetização, traduzida nos métodos analíticos ou sintéticos, tornava os dois processos independentes, a alfabetização a aquisição do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como decodificação e a escrever como codificação precedendo o letramento o desenvolvimento de habilidades textuais de leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros variados de textos e de portadores de textos, a compreensão das funções da escrita. Na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos são simultâneos, o que talvez até permitisse optar por um ou outro termo, como sugere Emilia Ferreiro em recente entrevista à revista Nova Escola,15 em que rejeita a 19 coexistência dos dois termos com o argumento de que em alfabetização estaria compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa, em letramento estaria compreendido o conceito de alfabetização o que seria verdade, desde que se convencionasse que por alfabetização seria possível entender muito mais que a aprendizagem grafofônica, conceito tradicionalmente atribuído a esse processo, ou que em letramento seria possível incluir a aprendizagem do sistema de escrita. A conveniência, porém, de conservar os dois termos parece-me estar em que, embora designem processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e competências específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas e, conseqüentemente, procedimentos diferenciados de ensino. Sobretudo no momento atual, em que os equívocos e falsas inferências anteriormente mencionados levaram alfabetização e letramento a se confundirem, com prevalência deste último e perda de especificidade da primeira, o que se constitui como uma das causas do fracasso em alfabetização que hoje ainda se verifica nas escolas brasileiras, a distinção entre os dois processos e conseqüente recuperação da especificidade da alfabetização tornam-se metodologicamente e até politicamente convenientes, desde que essa distinção e a especificidade da alfabetização não sejam entendidas como independência de um processo em relação ao outro, ou como precedência de um em relação ao outro. Assegurados esses pressupostos, a reinvenção da alfabetização revela-se necessária, sem se tornar perigosa. É que, diante dos precários resultados que vêm sendo obtidos, entre nós, na aprendizagem inicial da língua escrita, com sérios reflexos ao longo de todo o ensino fundamental, parece ser necessário rever os quadros referenciais e os processos de ensino que têm predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer a possibilidade e mesmo a necessidade de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente se denomina letramento, de que são muitas as facetas imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito e o que é propriamente a alfabetização, de que também são muitas as facetas consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita. Por outro lado, o que não é contraditório, é preciso reconhecer a 20 possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita,16 integrando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e outro e, conseqüentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica.17 Desnecessário se torna destacar, por óbvias, as conseqüências, nesse novo quadro referencial, para a formação de profissionais responsáveis pela aprendizagem inicial da língua escrita por crianças em processo de escolarização.18 Em síntese, o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reconhecimento da especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência, a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento - entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o conseqüente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto a alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou facetas, a natureza de cada uma delas demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas caracterizadas por ensino direto, explícito e sistemático-particularmente a alfabetização, em suas diferentes facetas-outras caracterizadas por ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e motivações das crianças; em quarto lugar, a necessidade de rever e reformular a formação dos professoresdas séries iniciais do ensino fundamental, de modo a torná-los capazes de enfrentar o grave e reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua escrita nas escolas brasileiras. 21 REFERÊNCIAS ADAMS, Marylin Jager, (1990). Beginning to read:thinking and learning about print. Cambridge, MA: MIT Press. [ Links ANDERSON, Richard C., HIEBERT, Elfrieda H., SCOTT, Judith A., WILKINSON, Ian A.G., (1985). Becoming a nation of readers:the report of the Commission on Reading. Washington, DC: National Institute of Education. [ Links ] BARTON, David, (1994). Literacy:an introduction to the ecology of written language. Oxford, UK: Blackwell. [ Links ] BLAIR-LARSEN, Susan M., WILLIAMS, Kathryn A. (eds.), (1999). The balanced reading program: helping all students achieve success. Newark, DE: International Reading Association. [ Links ] BOND, Guy L., DYKSTRA, Robert, (1967/1997). The cooperative research program in first-grade reading instruction. Reading Research Quarterly, v. 32, nº 4, p. 345- 427. [ Links ] CHALL, Jeanne S., (1967). Learning to read:the great debate. New York: McGraw Hill. [ Links ] CHARTIER, Anne-Marie, HÉBRARD, Jean, (2000). Discours sur la lecture - 1880- 2000. 2ª ed. Paris: Centre Pompidou; Fayard. [ Links ] COWEN, John Edwin, (2003). A balanced approach to beginning reading instruction: a synthesis of six major U.S. research studies. Newark, DE: International Reading Association. [ Links ] CUNNINGHAM, James W., (2001). The National Reading Panel Report. Reading Research Quarterly, v. 36, nº 3, p. 326-335. [ Links ] FERREIRO, Emilia, TEBEROSKY, Ana, (1985). Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas. Tradução de D. M. Lichtenstein, L. Di Marco, M. Corso. [ Links ] FREPPON, Penny A., DAHL, Karin L., (1998). Balanced instruction: insights and considerations. Reading Research Quarterly, v. 33, nº 2, p. 240-251. [ Links ] GAFFNEY, Janet S., ANDERSON, Richard C., (2000). Trends in reading research in the United States: changing intellectual currents over three decades. In: KAMIL, M. L., MOSENTHAL, P. B., PEARSON, P. D., BARR, R. Handbook of reading research - v. III. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, p. 53-74. [ Links ] GARAN, Elaine M., (2002). Resisting reading mandates: how to triumph with the truth. Portsmouth, NH: Heinemann. [ Links ] GOODMAN, Kenneth S. (ed.), (1998). In defense of good teaching:what teachers need to know about the "reading wars". York, Maine: Stenhouse Publishers. [ Links ] 22 IRA - International Reading Association, (1999). Using multiple methods of beginning reading instruction. A position statement. January, 1999. Disponível em: <www.reading.org/pdf/methods.pdf>. Acesso em: 10 de julho de 2003. [ Links ] ______, (2002). What is evidence-based reading instruction? A position statement. May, 2002. Disponível em: <www.reading.org/pdf/1055.pdf> (Também reproduzido no livro: Evidence-based reading instruction: putting the National Reading Panel Report into practice. Newark, DE: International Reading Association, p. 232-236.).[ Links ] JOHNSON, Debra, (1999). Balanced reading instruction: review of literature. North Central Regional Educational Laboratory (NCREL), on-line. Disponível em: <www.ncrel.org/sdrs/timely/briiss.htm>. Acesso em: 1 set. 2003. [ Links ] KIRSCH, Irwin S., JUNGEBLUT, Ann, (1986). Literacy:profiles of America's young adults. Final report of the National Assessment for Educational Progress. Princeton: N.J.: Educational Testing Service. [ Links ] KLEIMAN, Ângela (org.), (1995). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras. [ Links ] LAHIRE, Bernard, (1999). L'invention de l'"illettrisme": rhétorique publique, éthique et stigmates. Paris: La Découverte. [ Links ] MOATS, Louisa Cook, (2000). Whole language lives on: the illusion of "balanced" reading instruction. The Thomas B. Fordham Foundation. Disponível em: <www.edexcellence.net/library/wholelang/moats.html>. Acesso em: 14 set. 2003. [ Links ] NATIONAL INSTITUTE OF CHILD HEALTH AND HUMAN DEVELOPMENT - NICHD, (2000). Report of the National Reading Panel: teaching children to read: an evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and itsimplications for reading instruction. Washington, DC: U.S. Government Printing Office. [ Links ] OBSERVATOIRE NATIONAL DE LA LECTURE. Ministère de l'Éducation Nationale de la Recherche et de la Technologie, (1998). Apprendre à lire au cycle des apprentissages fondamentaux: analyses, réflexions et propositions. Paris: Éditons Odile Jacob. [ Links ] ROJO, Roxane (org.), (1998). Alfabetização e letramento. Campinas: Mercado de Letras. [ Links ] SMITH, E. Brooks, GOODMAN, Kenneth S., MEREDITH, Robert, (1970). Language and thinking in school. New York: Holt, Rinehart and Winston. [ Links ] SMITH, Frank, (1973). Psycholinguistics and reading. New York: Holt, Rinehart and Winston. [ Links ] _____, (1997). Reading without nonsense. New York: Teachers College Press. 23 [ Links ] SNOW, Catherine E., BURNS, Susan, GRIFFIN, Peg (eds.), (1998). Preventing reading difficulties in young children. Washington, DC: National Academy Press. [ Links ] SOARES, Magda Becker, (1998). Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica. [ Links ] _____, (2003). Alfabetização: a ressignificação do conceito. Alfabetização e Cidadania, nº 16, p 9-17, jul. [ Links ] SOARES, Magda Becker, MACIEL, Francisca, (2000). Alfabetização. Brasília: MEC/INEP/Comped (série Estado do Conhecimento). [ Links ] TFOUNI, Leda Verdiani, (1988). Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes. [ Links ] _____, (1995). Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez. [ Links ] MAGDA SOARES, livre-docente em educação, é professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - CEALE, dessa Faculdade. Autora de vários artigos, capítulos de livros e livros sobre ensino da língua escrita, é também autora de coleções didáticas para o ensino de português, sendo a mais recente: Português - uma proposta para o letramento (8 volumes para o ensino fundamental, Editora Moderna). Publicações recentes sobre o tema do artigo: Letramento:um tema em três gêneros (Autêntica, 1996) e Alfabetização e letramento (Contexto, 2003), os capítulos de livros "Letramento e escolarização" (no livro Letramento no Brasil, organizado por Vera Masagão Ribeiro, Global, 2003), "Aprender a escrever, ensinar a escrever" (no livro A magia da linguagem, organizado por Edwiges Zaccur, DP&A, 1999), "A escolarização da literatura infantil e juvenil" (no livro A escolarização da leitura literária, organizado por Aracy Alves Martins Evangelista et al., Autêntica, 1999), o documento Alfabetização, em co-autoria com Francisca Maciel, produto de pesquisa sobre o estado do conhecimento a respeito da alfabetização, no Brasil (publicação MEC/INEP/COMPED, 2001, na série Estado do Conhecimento). Organizou o dossiê sobre letramento, publicado no periódico Educação e Sociedade, nº 81, dezembro de 2002. E-mail:mbecker.soares@terra.com.br. * Trabalho apresentado no GT Alfabetização, Leitura e Escrita, durante a 26ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas, MG, de 5 a 8 de outubro 24 de 2003. 1 A expressão é inspirada no título do livro de Bernard Lahire: L'invention de l'"illettrisme" (1999). Entretanto, é aqui outro o sentido que se pretende dar a "invenção": Lahire usa a palavra para caracterizar a construção social de um discurso sobre o "illettrisme", discurso que, em seu livro, busca desconstruir;aqui, atribui-se à palavra "invenção" o sentido de criação, descoberta, concepção do fenômeno do letramento. 2 A expressão Quarto Mundo designa a parte da população, nos países do Primeiro Mundo, mais desfavorecida. A expressão é usada também para nomear os países menos avançados, entre os países em desenvolvimento. 3 Uma análise mais detalhada da progressiva ampliação do conceito de alfabetização na mídia é apresentada em Soares (2003). 4 Convém esclarecer que as reflexões aqui desenvolvidas têm como objeto privilegiado de análise a escola pública. 5 SARESP - Sistema de Avaliação da Rede Estadual de São Paulo; SIMAVE - Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública ; SAEB - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica; ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio; PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. 6 É preciso reconhecer que esta modalidade de fracasso escolar aqui caracterizada como anterior continua presente, ainda não superada; o adjetivo anterior é aqui usado apenas para diferenciá-la de uma nova modalidade que se vem revelando nas últimas décadas . 7 Gaffney e Anderson identificam as mudanças de paradigma na área da alfabetização, nos Estados Unidos, nas três últimas décadas (1970, 1980 e 1990), analisando relatos de pesquisa publicados nas revistas Reading Research Quarterly (697 artigos) e The Reading Teacher (3.018 artigos), no período de 1966 a 1998. Uma comparação entre os resultados a que chegam esses autores e os resultados da pesquisa sobre o estado do conhecimento a respeito da alfabetização no Brasil, que vem sendo desenvolvida no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - CEALE, da Faculdade de Educação da UFMG (Soares & Maciel, 2000), mostram que as 25 mesmas tendências ocorrem também no Brasil. 8 A whole language tem sua origem em um conjunto de princípios teóricos, com raízes basicamente psicolingüísticas, sobre a natureza holística da linguagem, da aprendizagem e, conseqüentemente, do ensino, que se difundiu nos Estados Unidos nos anos de 1970, sob a liderança de Kenneth Goodman, tendo se concretizado em proposta pedagógica; embora voltados para todas as áreas do currículo (cf. Smith, Goodman & Meredith, 1970, uma das primeiras obras sobre os princípios teóricos dessa visão holística), esses princípios ganharam lugar e relevância sobretudo na área do ensino da língua, e particularmente do ensino e aprendizagem da língua escrita, tendo, nesta área, recebido apoio e reforço de Frank Smith e sua teoria psicolingüística do processo de leitura (cf. Smith, 1973 e 1997, para citar uma de suas primeiras obras e uma recente, publicada quase 25 anos depois). A proposta pedagógica da whole language para a alfabetização aproxima-se das que, a partir de meados dos anos de 1980, no Brasil, derivaram dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1985). 9 A relação entre a concepção "construtivista" da aprendizagem e a alfabetização foi compreendida de forma tão absoluta no Brasil que se difundiu amplamente o conceito equivocado de que só na fase da aprendizagem da língua escrita poderia um professor ser "construtivista". 10 Não se atribui, aqui, ao adjetivo "tradicional" o sentido pejorativo que costuma ter; o termo é aqui utilizado para caracterizar, de forma descritiva e não avaliativa, os métodos vigentes até o momento da introdução da perspectiva "construtivista" na área da alfabetização; é preciso lembrar que esses métodos hoje considerados "tradicionais" um dia foram "novos" ou "inovadores" - o tradicional não se esgota no passado, é fruto de um processo permanente que não termina nunca: estamos construindo hoje o "tradicional" de amanhã, quando outros "novos" surgirão. 11 Na verdade, a discussão, nos Estados Unidos, em torno de teorias e métodos de alfabetização antecede o debate em torno de whole language e phonics, pois ela se vem desenvolvendo desde os anos de 1960, configurando o que a literatura educacional daquele país tem denominando The Reading Wars. Assim, já em 1967 foram realizados dois estudos sobre a alfabetização no país: The cooperative 26 research program in first-grade reading instruction, mais conhecido comofirst-grade studies (Bond & Dykstra, 1967/1997) e Learning to read: the great debate (Chall, 1967); em 1985, foram apresentados os resultados de um outro estudo, o relatório Becoming a nation of readers (Anderson et al., 1985); novo estudo, realizado por Marilyn Jager Adams, foi publicado em 1990, Beginning to read: thinking and learning about print (Adams, 1990); em 1998, novo relatório é publicado: Preventing reading difficulties in young children (Snow, Burns & Griffin, 1998); o último estudo realizado, aquele que neste texto se comenta, é de 2000, publicado com o título de Report of the National Reading Panel: teaching children to read (National Institute of Child Health and Human Development, 2000). Uma análise e crítica desses relatórios pode ser encontrada em Cowen (2003). 12 Foge aos limites deste texto uma reflexão, no entanto necessária, sobre as estreitas relações entre pesquisa e ensino que se consolidaram nos Estados Unidos, particularmente em decorrência do No Child Left Behind Act, lei de 2001, que vinculou a concessão de recursos a escolas com problemas na área da alfabetização à fundamentação dos projetos em pesquisa quantitativa, experimental ou quase-experimental; sobre isso, pelo menos três aspectos mereceriam discussão: em primeiro lugar, o pressuposto de que resultados de pesquisa, sobretudo com alto grau de controle de variáveis, podem ser generalizados para toda e qualquer escola e sala de aula, para todo e qualquer professor, todo e qualquer grupo de alunos; em segundo lugar, o privilégio concedido à pesquisa quantitativa e experimental, em detrimento da pesquisa qualitativa e das abordagens etnográficas; em terceiro lugar, a exclusividade atribuída às evidências "científicas" como fundamento para o ensino, ignorando-se a contribuição das evidências decorrentes de práticas bem-sucedidas. Para a reflexão sobre essas questões, sugere-se a leitura de Cunningham (2001) e da "declaração de princípios" (position statement) da International Reading Association, What is evidence-based reading instruction? (IRA, 2002). 13 Não há substantivo em português correspondente ao substantivo phonics da língua inglesa; isso tem levado à equivocada interpretação, no Brasil, de que phonics, na literatura de língua inglesa, traduz-se por método fônico de alfabetização. 27 14 Alguns exemplos do antagonismo entre phonics e whole language são: a coletânea de textos organizada por Kenneth Goodman (1998); a veemente crítica de Elaine Garan (2002) ao National Reading Panel; em posição oposta, a veemente crítica da whole language e defesa do National Reading Panel por Louisa Moats (2000). 15 Ano XVIII, nº 162, p. 30, maio 2003. 16 A busca de conciliação entre letramento - whole language- e alfabetização - phonics - já vem sendo tentada nos Estados Unidos, com a sugestão de superação dos antagonismos pela opção por uma balanced instruction, que admite a compatibilidade entre as duas propostas e reconhece a possibilidade de sua coexistência (cf. Cowen, 2003; Blair-Larsen & Williams, 1999; Freppon & Dahl, 1998; Johnson, 1999). 17 A respeito da necessária multiplicidade de métodos para o ensino inicial da leitura e da escrita, é elucidativa a "declaração de princípios" (position statement) da International Reading Association, Using multiple methods of beginning reading instruction(IRA, 1999). 18 O que aqui se diz sobre a aprendizagem inicial da língua escrita por crianças em processo de escolarização também se aplica a adultos; a diferença está, fundamentalmente, na natureza das experiências e práticas de leitura e escrita proporcionadas a estes, e na necessária adequação do material escrito envolvido nessas experiências e práticas. Convém, assim, destacar a necessidade de uma formação para o responsável pela aprendizagem inicial da escrita por adultos tão específica e complexa quanto é a formação para o responsável pela aprendizagem inicial da escrita por crianças. 28 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: conceitos e relações Carmi Ferraz Santos Márcia Mendonça Apresentação Conceituando alfabetização e letramento Eliana Borges Correia de Albuquerque Alfabetização e escolarização: a instituição do letramento escolar Carmi Ferraz Santos Gêneros: por onde anda o letramento? Márcia Mendonça Progressão escolar e gêneros textuais Márcia Mendonça, Telma Ferraz Leal Organização do trabalho escolar e letramento Telma Ferraz Leal Alfabetizar letrando Carmi Ferraz Santos, Eliana Borges Correia de Albuquerque Alfabetização e letramento nos livros didáticos Carmi Ferraz Santos, Eliana Borges Correia de Albuquerque, Márcia Mendonça Letramento digital e ensino Antonio Carlos dos Santos Xavier Os autores APRESENTAÇÃO Preocupado com a consolidação de uma escola que cumpra efetivamente seu papel de ensino, o Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco (CEEL - UFPE) tem estabelecido, como um dos seus desafios, oportunizar a criação de práticas pedagógicas eficientes e inovadoras, mediante um processo de formação que contribua para a reflexão e a atuação docente. Entre as ações propostas pelo CEEL para o alcance desse objetivo, estão: a) a consolidação e ampliação de uma rede de formação de professores; b) a produção de materiais didáticos para a formação docente e c) o desenvolvimento de cursos de formação de educadores-tutores. Para cada uma dessas ações, foram escolhidos eixos temáticos que norteassem todo o processo de formação promovido pelo 29 CEEL, sendo um deles a problemática da relação entre alfabetização e letramento, importante para os docentes das classes de alfabetização e do 1o e 2o ciclos do ensino fundamental. A construção deste livro resulta, portanto, do esforço de produção de um material pedagógico para formação de professores na área de língua portuguesa que contribuísse para articular e sistematizar a discussão acerca dos conceitos de alfabetização e letramento, buscando estabelecer sua relação com o processo de escolarização. Organizado em oito capítulos que se complementam, a seqüência proposta neste livro tem o objetivo de apresentar gradualmente, e sob vários pontos de vista, as reflexões a respeito do tema – alfabetização e letramento –, de modo que o professor se sinta contemplado nas suas dúvidas e necessidades, apropriando-se, a cada momento, dos saberes relativos ao eixo temático focalizado. No primeiro capítulo, Eliana Albuquerque procura definir e diferenciar tais conceitos de alfabetização e letramento, mostrando que, apesar de tratarem de aspectos diferentes do processo de apropriação da escrita, esses estão intimamente relacionados. Para realizar essa discussão, a autora se apóia em depoimentos de professoras sobre suas memórias de alfabetização. No capítulo seguinte, Carmi Ferraz Santos discute questões relativas a relação que se tem estabelecido entre a alfabetização e o processo de escolarização, analisando de que forma o caráter assumido pela escolarização interferiu na construção de determinado conceito de alfabetização na sociedade ocidental. Analisa, ainda, a influência dessa relação na criação e na expansão dos métodos de alfabetização. As relações entre gêneros textuais, letramento e ensino é o tema central do terceiro capítulo, de Márcia Mendonça. A autora discorre sobre como os gêneros se inserem nas teorias sociointeracionista e socioconstrutivista, além de questionar aspectos do trabalho com os gêneros na sala de aula. Para isso, apresenta definições e quadros explicativos sobre gêneros, além de exemplificar com depoimentos e trechos de aulas. 30 O quarto capítulo, de autoria de Márcia Mendonça e Telma Ferraz Leal, aborda os gêneros na progressão escolar, ou seja, o modo como se pode selecionar e ordenar os gêneros para o trabalho pedagógico. Priorizando a clareza dos objetivos pedagógicos, as autoras apresentam critérios de exploração e retomada dos gêneros ao longo dos anos, em uma perspectiva de letramento. O capítulo posterior, de Telma Ferraz Leal, trata da organização do trabalho escolar, o que implica a necessidade de se (re)planejar o cotidiano na escola, para melhor aproveitamento do tempo pedagógico. Nesse processo, a autora analisa a pertinência de atividades permanentes, projetos didáticos, atividades seqüenciais, atividades esporádicas e jogos como alternativas para viabilizar tal organização. A proposta de alfabetizar letrando é o tema do capítulo seis, escrito por Carmi Santos e Eliana Albuquerque. No texto, as autoras discutem como, para dar conta do desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita, é preciso, simultaneamente, apropriar-se de conhecimentos do sistema alfabético e das convenções da norma culta. Duas situações didáticas são analisadas, de modo a esclarecer ao professor as possibilidades dessa proposta. No sétimo capítulo, Carmi Ferraz Santos, Eliana Albuquerque e Márcia Mendonça analisam, com exemplos, o tratamento dado por livros didáticos (LDs) de língua portuguesa às atividades de leitura, escrita e apropriação do sistema alfabético. Apontam que, mesmo os LDs apresentando avanços ou lacunas, o professor é sempre o autor das aulas, cabendo-lhe o papel de fazer o melhor uso do material disponibilizado para seu trabalho. O letramento digital é o foco do capítulo oito, escrito por Antônio Carlos Xavier. Nesse texto, o autor discute como, a partir do surgimento de novas tecnologias, configuram-se novos eventos de letramento e novos gêneros (e-mails, webblogs, chats, e-foruns, etc.), com conseqüências diretas para a formação dos cidadãos, daí a necessidade de se letrar digitalmente. Esperamos que, ao lerem os capítulos deste livro, os professores, participando de um processo de formação continuada, reflitam sobre suas práticas e pensem com os autores – e não necessariamente como os autores –, resultando em aprimoramento profissional e, desejamos, melhor qualidade de ensino nas escolas. 31 Definir o termo “alfabetização” parece ser algo desnecessário, visto que se trata de um conceito conhecido e familiar. Qualquer pessoa responderia que alfabetizar corresponde à ação de ensinar a ler e a escrever. No entanto, o que significa ler e escrever? Ao longo da nossa história, essas ações foram tornando-se mais complexas, e suas definições se ampliaram, passando a envolver, a partir da década de 1990 principalmente, um novo termo: o letramento. Buscaremos discutir neste artigo como esses dois termos – alfabetização e letramento – se relacionam; para isso, haveremos de nos apoiar em depoimentos de professoras1 sobre sua memória de alfabetização. A alfabetização considerada como o ensino das habilidades de “codificação” e “decodificação” foi transposta para a sala de aula, no final do século XIX, mediante a criação de diferentes métodos de alfabetização – métodossintéticos (silábicos ou fônicos) x métodos analíticos (global) –, que padronizaram a aprendizagem da leitura e da Conceituando alfabetização e letramento escrita. As cartilhas relacionadas a esses métodos passaram a ser amplamente utilizadas como livro didático para o ensino nessa área. No contexto brasileiro, a mesma sucessão de oposições pode ser constatada (MORTATTI, 2000). O escritor Graciliano Ramos, em seu livro autobiográfico Infância, lembra que se alfabetizou – ainda no final do século XIX, início do século XX – através da carta do ABC em que primeiro aprendeu todas as letras para, só no final da carta, ter contato com os primeiros textos – alguns provérbios que, embora soubesse decodificá-los, desconhecia seus significados: Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: “A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. – Mocinha, quem é Terteão? Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse homem. Talvez fosse. Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. 1 Eliana Borges Correia de Albuquerque Os depoimentos aqui utilizados foram produzidos por professoras do ensino fundamental da rede pública do Recife, participantes do primeiro curso de extensão promovido pelo CEEL, no segundo semestre de 2004 32 E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções. Assim, o referido escritor chegou no final da Carta do ABC sabendo “decodificar” bem as palavras, mas não conseguia entender o que estava lendo. E, para surpresa dele, nem a sua professora compreendia o que lia. A maioria de nós, que passamos pela alfabetização até as décadas finais do século passado, também teve uma experiência escolar com ênfase na “codificação” e “decodificação”. Para muitos, essa experiência foi traumatizante, como relataram algumas professoras: O que eu não esqueci até hoje, que para mim foi traumatizante, foi minha experiência na alfabetização, o meu aprender a ler e escrever, porque foi assim: a gente usava uma cartilha onde a gente tinha que decorar mesmo aquelas sílabas e todos os padrões silábicos. E para mim foi traumatizante porque em casa minha mãe todo dia tomava a lição e para mim aquilo era uma chatice. E chegava na escola a professora cobrava individualmente e quando a gente errava era aquela tortura. Ela não admitia de forma alguma que a gente errasse. (DANIELLE FÉLIX2) A experiência “traumatizante” de alfabetização na escola devia-se não só aos castigos aos quais muitos de nós fomos submetidos, mas às próprias atividades desenvolvidas, com ênfase na repetição e na memorização de letras, sílabas e palavras sem significados. Mas essa experiência escolar muitas vezes era amenizada pelas práticas de leitura vivenciadas no ambiente familiar, mesmo quando os instrumentos utilizados eram os mesmos – as cartilhas –, como bem nos relatou a professora Maria de Fátima Ribeiro Soares3: Na minha casa o processo foi muito feito na brincadeira, no jogo e muito recheado de fantasia. Então, eu me lembro que a primeira letra que eu aprendi foi o F do meu nome, que minha mãe dizia que era meu: “é sua letra”. Eu lembro quanto tempo eu acreditei que o F era meu, eu era a dona. Então se eu passasse no ônibus e visse o F que era meu, perguntava porque estava ali. Depois eu comecei a lembrar disso e o B era da minha mãe, o A era da minha irmã, o P era do meu pai e aos poucos eu sabia o alfabeto todo, quer dizer era a letra das pessoas com quem eu era próxima. 2 Danielle Felix Trindade da Silva é professora da Escola Municipal Jaboatão dos Guararapes, no município de Jaboatão dos Guararapes. ³A professora Maria de Fátima Ribeiro Soares ensinava, em 2004, na 1ª série da Escola Pontezinha, pertencente à Secretaria da Educação de Jaboat 33 E aí, lá em casa você brincava com isso, brincar de escola era uma coisa assim todo dia [...] Na escola o que é que se fazia? Muito trabalho de cópia e memorização, a carta de ABC. A mesma carta de ABC da minha casa era diferente na escola, porque na escola você pegava todos os alfabetos para decorar ordenado, não é? Aí a professora fazia um negócio assim: ela pegava um pedacinho de papel cortava um furinho no meio e ia colocando para você dizer as letras salteadas, mostrar que você aprendeu o alfabeto. Por exemplo: aparecia o P, aí você demonstrava que não decorou só a seqüência, você decorou a letra. [...] Em casa, as lições não eram seguidas, porque minha mãe trabalhava a letra do nome de cada um. Então eu poderia escrever só F durante muito tempo, que era o que eu gostava. Era a mesma carta do ABC, que minha mãe usava de outro jeito. Por exemplo, as lições do fim, que na escola você só tinha acesso àqueles textos depois que decorava as letras e padrões, minha mãe pegava a Carta e lia os textos, aquelas frases: “Deus ajuda quem cedo madruga”, “Paulina mastigou pimenta”, etc. A gente achava ótimo porque era cantando. E assim, ela não seguia a seqüência da escola; mas ela nunca disse que a professora estava errada, porque ela achava que, do jeito que ela estava ensinando, a gente não aprenderia todas as letras. Então o processo se complementava. A professora Tânea Valéria Coelho4 também lembrou que as letras ensinadas na escola, por sua mãe-professora, a partir de uma ordem preestabelecida presente na cartilha, em casa ganhavam significados através da brincadeira de escola e da leitura dos contos clássicos: Quem me ensinou foi a minha mãe. Então, eu criança queria ser professora. Aí minha mãe se preocupava em ensinar e usava a cartilha que tinha uma boneca e um boneco na frente. 4 A professora Tânea Valéria Coelho trabalhava, em 2004, na Educação Infantil da Escola José Clarindo Gomes, pertencente à Rede Municipal de Ensino da cidade do Cabo de Santo Agostinho – PE 34 Então, mainha fazia assim: mostrava as vogais maiúsculas e minúsculas da forma tradicional e eu não achava isso ruim. E em casa minha mãe fazia: escrevia o nome das minhas bonecas que eram alunas, nunca foram filhas. Minha mãe escrevia o nome das minhas bonecas, dos meus primos num papel velho e quando eu queria escrever alguma palavra, ela dizia: é igual o nome de tal boneca, igual o nome de tal primo. E ler, para mim, era maravilhoso. Tinha os livros de capa dura e atrás tinha outros contos que não eram ilustrados. Com 5 anos já tava na alfabetização. Entrei logo na alfabetização numa escola pública e minha mãe tinha duas filhas bem mais velhas, uma de 18 e a outra de 11, então a vida era cuidar de mim. Mas teve a parte tradicional na escola que eu não achava ruim e em casa era só a leitura dos contos mesmo. A cartilha eu já sabia, queria ler o difícil: palavras com: PRA, TRA, tipo Branca de Neve, eu queria ler o BRAN. Outras professoras lembraram, também, de outras práticas de leitura no ambiente familiar, como a de escutar os adultos lerem ou contarem histórias/contos infantis, como relatou a professora Danielle Félix, que, conforme depoimento apresentado anteriormente, teve uma experiência traumatizante de alfabetização na escola, mas não em casa, como pode ser observado na continuidade de seu relato: E eu gostava muito quando chegava em casa e minha mãe tinha aquela coleção “Os Clássicos”,por exemplo: o lobo mau. E eu adorava aquilo. Ela lia pra mim, assim, todo dia. Pra mim aquilo era fabuloso: ficar todo dia escutando ela ler aquelas histórias. Eu amava tanto que até hoje eu me lembro bem que quando eu aprendi a ler, a primeira leitura que eu fiz foi daqueles contos, né? Eu adorava, amava. Em casa eu passava a tarde lendo aquilo. A partir da década de 1980, o ensino da leitura e da escrita centrado no desenvolvimento das referidas habilidades, desenvolvido com o apoio de material pedagógico que priorizava a memorização de sílabas e/ou palavras e/ou frases soltas, passou a ser amplamente criticado. Nesse período, pesquisadores de diferentes campos – Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia, etc. – tomaram como temática e objeto de estudo a leitura e seu ensino, buscando redefini-los. 35 No campo da Psicologia, foram muito importantes as contribuições dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita, desenvolvidos por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1984). Rompendo com a concepção de língua escrita como código, o qual se aprenderia considerando atividades de memorização, as autoras defenderam uma concepção de língua escrita como um sistema de notação que, no nosso caso, é alfabético. E, na aprendizagem desse sistema, elas constataram que as crianças ou os adultos analfabetos passavam por diferentes fases que vão da escrita pré-silábica, em que o aprendiz não compreende ainda que a escrita representa os segmentos sonoros da palavra, até as etapas silábica e a alfabética. No processo de apropriação do sistema de escrita alfabética, os alunos precisariam compreender como esse sistema funciona e isso pressupõe que descubram que o que a escrita alfabética nota no papel são os sons das partes orais das palavras e que o faz considerando segmentos sonoros menores que a sílaba. É interagindo com a língua escrita através de seus usos e funções que essa aprendizagem ocorreria, e não a partir da leitura de textos “forjados” como os presentes nas “cartilhas tradicionais”. O discurso da importância de se considerar os usos e funções da língua escrita com base no desenvolvimento de atividades significativas de leitura e escrita na escola foi bastante difundido a partir da década de oitenta. No que diz respeito à alfabetização especificamente, surge o conceito de “analfabetismo funcional” para caracterizar aquelas pessoas que, tendo se apropriado das habilidades de “codificação” e “decodificação”, não conseguiam fazer uso da escrita em diferentes contextos sociais. Assim, o fenômeno do analfabetismo passou a envolver não só aqueles que não dominavam o sistema de escrita alfabética, mas também as pessoas com pouca escolarização. Nos últimos vinte anos, principalmente a partir da década de 1990, o conceito de alfabetização passou a ser vinculado a outro fenômeno: o letramento. Segundo Soares (1998), o termo letramento é a versão para o Português da palavra de língua inglesa literacy, que significa o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e a escrever. Esse mesmo termo é definido no Dicionário Houaiss (2001) “como um conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito”. 36 No Brasil, o termo letramento não substituiu a palavra alfabetização, mas aparece associada a ela. Podemos falar, ainda nos dias de hoje, de um alto índice de analfabetos, mas não de “iletrados”, pois, sabemos que um sujeito que não domina a escrita alfabética, seja criança, seja adulto, envolve-se em práticas de leitura e escrita através da mediação de uma pessoa alfabetizada, e nessas práticas desenvolve uma série de conhecimentos sobre os gêneros que circulam na sociedade. Assim, por exemplo, crianças pequenas que escutam freqüentemente histórias lidas por adultos, são capazes de pegar um livrinho e fingir que lêem a história, usando, para isso, a linguagem característica desse gênero. Nos depoimentos das professoras acima citados, observamos como elas vivenciavam a leitura de histórias e contos pela mediação de pessoas da família que liam para elas. E, nessas experiências, elas desenvolviam uma série de conhecimentos sobre a língua e os textos lidos. O depoimento de D. Maria José, aluna de um projeto de alfabetização de jovens e adultos desenvolvido em Recife, no período de 2003/2004, no âmbito do Programa Brasil Alfabetizado, é representativo dessa questão: Meu marido recebeu uma carta e eu, brincando, comecei a dizer o que tinha na carta. E muitas coisas eu acertei. Aí minha filha disse: mainha, a senhora já sabe ler! Que bom! Por outro lado, o domínio do sistema alfabético de escrita não garante que sejamos capazes de ler e produzir todos os gêneros de texto. Esse fenômeno foi evidenciado, pela primeira vez, na primeira metade do século 20, durante a 1ª Guerra Mundial. Percebeu-se, naquele momento, que soldados americanos que possuíam elevado grau de escolarização apresentavam dificuldades em ler e compreender textos instrucionais da guerra. Assim, mesmo em países desenvolvidos onde o índice de analfabetismo é praticamente inexistente, o fenômeno do letramento passou a ser amplamente discutido. Embora a escola, nas sociedades contemporâneas, represente a instituição responsável por promover oficialmente o letramento, pesquisas têm apontado para o fato de as práticas de letramento na escola serem bem diferenciadas daquelas que 37 ocorrem em contextos exteriores a ela. Nessa perspectiva, os alunos saem da escola com o domínio das habilidades inadequadamente denominadas de “codificação” e “decodificação”, mas são incapazes de ler e escrever funcionalmente textos variados em diferentes situações. Como apontado por Soares(1998), muitos adultos de países desenvolvidos, tendo alcançado um letramento escolar, são capazes de comportamentos escolares de letramento (ler e produzir textos escolares), mas são incapazes de lidar com os usos cotidianos da leitura e da escrita em contextos não-escolares. As práticas de leitura e produção de textos desenvolvidas na escola, relacionadas a um “letramento escolar”, não se adequaria, conforme certas expectativas, ao desenvolvimento socioeconômico-cultural de nossa sociedade, em que os indivíduos convivem em contextos em que a escrita se faz presente de forma mais complexa. O ensino tradicional de alfabetização em que primeiro se aprende a “decifrar um código”5 a partir de uma seqüência de passos/etapas, para só depois se ler efetivamente, não garante a formação de leitores/escritores. Por outro lado, é importante destacar que apenas o convívio intenso com textos que circulam na sociedade não garante que os alunos se apropriem da escrita alfabética, uma vez que essa aprendizagem não é espontânea e requer que o aluno reflita sobre as características do nosso sistema de escrita. Nessa perspectiva, concordamos com a distinção que Soares (1998a) faz entre alfabetização e letramento. Para essa autora: alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado (p. 47). Sabemos que, para a formação de leitores e escritores competentes, é importante a interação com diferentes gêneros textuais, com base em contextos diversificados de comunicação. Cabe à escola oportunizar essa interação, criando atividades em que 5 Dispomos hoje de evidências para julgar errado, conceber ou denominar a escrita alfabética como “código”. Cremosque o fato de muitos lingüistas e estudiosos da linguagem continuarem assim designando o sistema de escrita (ou notação) alfabética talvez reflita ainda um descuido em avaliar a complexidade da alfabetização inicial, no que concerne ao aprendizado da escrita alfabética em si como objeto de conhecimento. 38 os alunos sejam solicitados a ler e produzir diferentes textos. Por outro lado, é imprescindível que os alunos desenvolvam autonomia para ler e escrever seus próprios textos. Assim, a escola deve garantir, desde cedo, que as crianças se apropriem do sistema de escrita alfabético, e essa apropriação não se dá, pelo menos para a maioria das pessoas, espontaneamente, valendo-se do contato com textos diversos. É preciso o desenvolvimento de um trabalho sistemático de reflexão sobre as características do nosso sistema de escrita alfabético. A professora Ana Luzia da Silva Pedrosa6, que leciona há mais de 15 anos na rede pública de ensino, parece ter se apropriado bem do discurso da importância de se trabalhar a leitura e a produção de diferentes gêneros na sala de alfabetização e buscava desenvolver uma prática com base na perspectiva do letramento. Assim, diariamente ela realizava com seus alunos uma seqüência de atividades que envolvia as seguintes etapas: leitura de um texto feita oralmente por ela, já que seus alunos não sabiam ainda ler; atividade de interpretação oral do texto; atividade de produção de texto coletivo tomando-se por base o texto lido; cópia do texto produzido no quadro e, por último, realização de desenhos relacionados ao texto. Nos nossos encontros de formação, ela, no entanto, sempre falava da angústia que sentia porque seus alunos, mesmo no final do ano, não estavam alfabetizados e tinham muitas dificuldades para ler e escrever sozinhos. Durante o curso, a professora percebeu que faltava, na sua prática, o desenvolvimento de atividades que levassem os alunos a refletir sobre o sistema alfabético de escrita. Em um dos encontros ela desabafou: Agora eu sei por que meus alunos não se alfabetizam! Eu não faço atividades no nível da palavra, atividades de análise fonológica, Fico só fazendo leitura e produção de texto coletivo, e pedindo para eles copiarem e desenharem. Assim, eles não podem se alfabetizar. Agora vou fazer diferente! A leitura e a produção de diferentes textos são tarefas imprescindíveis para a formação de pessoas letradas. No entanto, é importante que, na escola, os contextos de leitura e produção levem em consideração os usos e funções do 6 A professora Ana Luzia da Silva Pedrosa ensinava, em 2004, em uma turma de 2a série na escola Professor Fontainha de Abreu, pertencente à Rede Estadual de Ensino de Pernambuco, e na Escola Municipal Engenho do Meio, da Secretaria de Educação da cidade do Recife, no 1o ano do 1o ciclo. 39 gênero em questão. É preciso ler e produzir textos diferentes para atender a finalidades diferenciadas, a fim de que superemos o ler e a escrever para apenas aprender a ler e a escrever. Por outro lado, um trabalho sistemático de reflexão sobre o sistema de escrita alfabético não pode ser feito apenas através da leitura e da produção de textos, como pensava a professora Luzia. É preciso o desenvolvimento de um ensino no nível da palavra, que leve o aluno a perceber que o que a escrita representa (nota no papel) é sua pauta sonora, e não o seu significado, e que o faz através da relação fonema/grafema. Assim, é imprescindível que, diariamente, em turmas de alfabetização em que os alunos estão se apropriando do sistema de escrita, a professora realize atividades com palavras que envolvam, entre outras coisas: uma reflexão sobre suas propriedades: quantidade de letras e sílabas, ordem e posição das letras, etc. a comparação entre palavras quanto à quantidade de letras e sílabas e à presença de letras e sílabas iguais; a exploração de rimas e aliteração (palavras que possuem o mesmo som em distintas posições (inicial e final, por exemplo) Essas atividades de reflexão sobre as palavras podem estar inseridas na leitura e na produção de textos, uma vez que são muitos os gêneros que favorecem esse trabalho, como os poemas, as parlendas, as cantigas, etc. Por outro lado, o trabalho com palavras estáveis, como os nomes dos alunos, é fundamental, principalmente no início da alfabetização. No capítulo 6 deste livro, discutiremos algumas práticas de professores que buscaram articular o trabalho de apropriação do sistema de escrita alfabético com a leitura e a produção de textos, ou seja, que tentaram desenvolver uma prática de “alfabetizar letrando”. Enfim, considerando o que foi discutido até agora, sabemos que ser alfabetizado, hoje, é mais do que “decodificar” e “codificar” os textos. É poder estar inserido em práticas diferenciadas de leitura e escrita e poder vivenciá-las de forma autônoma, sem precisar da mediação de outras pessoas que sabem ler e escrever. Como cabe à escola garantir a formação de cidadãos letrados, resta-nos construir estratégias de ensino que permitam alcançar aquela meta: alfabetizar letrando. 40 REFERÊNCIAS CHARTIER, Anne-Marie; HEBRARD, Jean. Discours sur la lecture (1880-2000). Paris: BPI-Centre Pompidou/Librairie Arthème Fayard, 2000. FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001. MORAIS, Artur; ALBUQUERQUE, Eliana. Alfabetização e letramento: o que são? Como se relacionam? Como “alfabetizar letrando”? In: ALBUQUERQUE, Eliana; LEAL, Telma. Alfabetização de jovens e adultos em uma perspectiva de letramento. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo: 1876-1994). São Paulo: Ed. UNESP; CONPED, 2000. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 41 ALFABETIZAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO: a instituição do letramento escolar Carmi Ferraz Santos Alguns estudiosos da história da leitura atribuem essa presença cada vez maior de leitores comuns sendo representados nas artes plásticas ao aumento do número de leitores que se inicia no século XV com a invenção da imprensa e que se expande ainda mais com o processo de alfabetização efetivado através de uma escolarização de massa ocorrido a partir do século XVIII como uma exigência da sociedade em pleno processo de industrialização. Entretanto, pesquisadores voltados para discussões sobre o letramento têm questionado essa visão da alfabetização popular como meramente um produto desse processo de escolarização de massa impulsionado pela industrializacão.1 Nossa proposta neste capítulo é discutir algumas questões relativas à ligação que se tem estabelecido entre a alfabetização e o processo de escolarização, analisando de que forma o caráter assumido pela escolarização interferiu na construção de determinado conceito de alfabetização na sociedade ocidental. Alfabetização sem escolas Embora a idéia de uma escola para todos subsidiada pelo Estado remonte à Platão na Grécia Antiga, é apenas no século XVIII que se vai instaurar, na sociedade ocidental, um processo de escolarização em massa mediante uma educação pública. Assiste-se nesse período ao desenvolvimento de uma sociedade industrial e urbana que vai aos poucos substituindo o antigo regime baseado numa economia rural e agrária. Com o estabelecimento de uma nova ordem econômico-social, a exigência de uma instrução universal torna-sepremente. Segundo Manacorda (1989), fábrica e escolas nascem juntas, uma vez que este duplo processo, de morte da antiga produção artesanal e do renascimento da nova produção da fábrica, gera o espaço para o surgimento da moderna instituição escolar pública (p. 249)! Entretanto, apesar de se poder estabelecer relação linear e causal entre a industrialização e a constituição de uma escola universal, não se pode afirmar que, a 42 partir do século XVIII, passou-se do total analfabetismo para a alfabetização graças apenas à escolarização. Pelo contrário, estudos têm mostrado quanto autônoma tem sido a história da alfabetização em relação à história da escola. Ou seja, não foi preciso que primeiro fosse implantada uma escolarização em massa para que as pessoas comuns fossem alfabetizadas. Cook-Gumperz (1991), discutindo essa relação entre alfabetização e escolarização, afirma que a alfabetização de uma parcela considerável da população da Europa precedeu o desenvolvimento industrial. Antes do desenvolvimento de um sistema burocrático de ensino, o processo de alfabetização ocorria de modo informal, a aprendizagem da leitura e da escrita se dava nos grupos aos quais as pessoas faziam parte e nos mais variados ambientes, como a própria casa ou local de trabalho: A maioria das crianças aprendia a ler e, talvez, a escrever com seus pais ou vizinhos, sem licença e sem treinamento, em ambientes que hoje e até mesmo no século dezenove os observadores teriam hesitado em chamar de escolas (LAQUEUR, 1976 apud COOK-GUMPERZ, 1991, p. 37) Embora considerada elementar, essa alfabetização, argumenta Cook-Gumperz, foi capaz de permitir o crescimento de uma cultura popular letrada, que passou a fazer parte da vida diária das pessoas comuns. A princípio, as práticas de leitura, primeiramente, e a escrita mais tarde, possuíam valor nas áreas recreativas e sociais, assumindo apenas posteriormente um papel na vida econômica dessas pessoas. Investigando a cultura popular na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e na Europa, diferentes pesquisadores revelaram a presença de cartas pessoais, diários, notas, registros, livros, folhetos e almanaques como parte essencial da vida cotidiana das populações já no século XVIII, tanto na cidade quanto no campo. Entre esses pesquisadores, citamos Laqueur, que nos lança as seguintes questões: como e porque essa cultura letrada veio a existir? Por que razões homens e mulheres foram impelidos a aprender a ler e a escrever? Questões que ele próprio se propõe a responder: Nenhum fator isolado, considerado em si mesmo, pode explicar isso [...] As pessoas não se alfabetizavam por esta ou aquela razão em particular, mas porque se sentiam mais e mais tocadas em todas as áreas de suas vidas pelo poder da comunicação 43 que apenas a palavra escrita torna possível. Havia, portanto, uma motivação para aprender a ler e a escrever; estas habilidades permitiam que homens e mulheres funcionassem mais efetivamente em uma variedade de contextos sociais. Isto explica por que, na ausência de escolas externamente patrocinadas, ambientes apoiados internamente eram responsáveis pela criação e transmissão da alfabetização. Embora não possamos, como diz Laquer, deter-nos em um único elemento como fator motivador dessa expansão da alfabetização, não podemos desconsiderar a influência dos conflitos religiosos ocorridos a partir do século XVI, na Europa. Conforme destaca Manacorda (1989), os movimentos populares ligados à Reforma Protestante promoveram a difusão da instrução como meio de garantir a leitura e a interpretação da Bíblia por cada fiel. A mediação do clero entre Deus e os fiéis passa a ser questionada, e a leitura das sagradas escrituras torna-se o modo pelo qual cada indivíduo teria acesso ao caminho da salvação. A partir desse posicionamento, as igrejas protestantes passaram a preocupar-se em ensinar a ler aos seus seguidores e estimularam a prática da leitura familiar diária pelo chefe da família. Nesse contexto, o material para a aprendizagem se constituía das sagradas escrituras, dos livros de oração e de catecismo. Entretanto, não apenas a Reforma, mas também o movimento de Contra-Reforma, buscou a instrução de seus fiéis como forma de introduzi-los na verdade da fé católica: Nos territórios católicos, as ordens religiosas missionárias encarregavam-se da pregação da doutrina cristã. [...] As crianças deveriam ir à escola para aprender a ler as orações que constituíam o ritual da missa e aprender o catecismo até a primeira comunhão (CHARTIER, 2002). Assim sendo, parece que a primeira alfabetização em massa levada a cabo na Europa Ocidental esteve ligada muito mais à catequese cristã que ao processo de industrialização. E as práticas de alfabetização que então eram efetivadas estavam intimamente ligadas aos usos e material escrito que faziam parte das práticas cotidianas. Ou seja, não havia separação entre o processo de alfabetização e as práticas de letramento presentes na comunidade. A alfabetização anterior à instituição da escolarização em massa estava marcada por “uma idéia pluralista acerca da alfabetização como um conjunto de diferentes habilidades relacionadas com a leitura e escrita para muitas e diferentes finalidades” (COOK-GUMPERZ, 44 1991, p. 34). Como podemos perceber, não foi a escolarização que promoveu a alfabetização. Pelo contrário, a escolarização foi uma conseqüência do desenvolvimento de uma alfabetização popular que promoveu uma cultura popular letrada que se constituiu como parte de um movimento em favor de mudanças sociais, entre elas o acesso à escola. Alfabetização na escola Se não foi a alfabetização, qual a motivação para a implantação de uma instrução pública? Segundo Cook-Gumperz (op. cit), a demanda por uma escola formal partiu de pelo menos duas forças: 1) da pressão das pessoas comuns que defendiam a alfabetização e a conquista da escolarização como parte de seu desenvolvimento pessoal e social; 2) da crescente necessidade de uma força de trabalho com um senso de disciplina e de competências escolares. Uma visão otimista e a favor da instrução pública não foi a princípio um consenso. Durante o final do século XVIII e início do XIX, alguns políticos e alguns líderes religiosos acreditavam que permitir a escolarização para toda a população levaria à perda de controle sobre ela. Entretanto, para outros o valor da instrução institucionalizada estava em possibilitar a retirada da alfabetização das mãos de grupos populares, promovendo, assim, um ensino sob controle do sistema público, como destaca Graff (1984) [...] de forma crescente, eles (políticos e religiosos) vieram a concluir que a alfabetização, se fornecida em instituições formais, cuidadosamente controladas, criadas para o propósito da educação e estreitamente supervisionadas, poderia ser uma força poderosa e útil na obtenção de uma variedade de importantes fins. (p. 48) Assim sendo, a implantação de um sistema público de instrução nos séculos XVIII e XIX parece não ter ocorrido como estímulo à alfabetização da população, mas, pelo contrário, buscou subjugá-la, controlando “tanto as formas de expressão quanto de pensamento” (COOK-GUMPERZ, op cit. , p. 40). Um dos objetivos desse controle vinha, sem dúvida, da necessidade de uma mão de obra capaz de adequar-se à disciplina do trabalho fabril: Mas o que a alfabetização difundida faz a um país em desenvolvimento? No mínimo ela constitui um treinamento em ser treinado. O homem que na infância se submeteu 45 a alguns processos de disciplina e aprendizagem consciente tem maiorpossibilidade de responder a um treinamento adicional, seja em um exército de recrutas, em uma fábrica... (R. P. DORE, 1967, apud GRAFF, 1984, p. 231). Essa alfabetização levada a efeito por meio da escolarização teve por base um processo de ensino no qual a capacidade de ler e escrever foi sendo associada a características morais e sociais. Isso levou a uma nova divisão da sociedade entre os educados (escolarizados) e os não-educados (não-escolarizados). Dessa forma, os detentores do saber escolar passaram a ser considerados sujeitos letrados, enquanto aqueles deixados à margem da escola eram vistos como sujeitos iletrados, já que não dominavam o saber da leitura e da escrita requerido pela escola, antes detinham um saber de “segunda” categoria. A aprendizagem da língua escrita assume, a partir da escolarização formal, um caráter de alfabetização escolar, passando a considerar como verdadeiramente alfabetizado apenas o sujeito que passasse pela escola. Embora a noção de uma escolarização pública tenha sido construída com base nessas duas forças contraditórias apresentadas acima, à medida que o processo de escolarização estava sendo implantado, as práticas populares passaram a ser controladas, modificadas ou substituídas. Essa relação de domínio da escolarização sobre a alfabetização popular trouxe profundas conseqüências para a aprendizagem da escrita e da leitura. Uma das primeiras conseqüências dessa relação que passa a se estabelecer entre a alfabetização e a escolarização foi a instituição de um processo de alfabetização distanciado dos usos e do material de leitura e de escrita presentes no cotidiano das pessoas. O que passa a ser ensinado mediante a alfabetização escolarizada não faz parte de uma cultura letrada local, uma vez que um ensino que se quer universal necessita de um saber padronizado e sistematizado. Cook-Gumperz (1991), citando Good e Watt (1968), afirma que o movimento em prol da igualdade através da escolarização e do acesso ao conhecimento escrito estava, com efeito, cancelando alguns benefícios de um conhecimento anteriormente menos sistematizado que existia numa tradição oral e letrada pluralista (p. 43). Os sistemas burocráticos de ensino, embora permitissem o acesso de muitos à alfabetização, ao redefinirem a alfabetização valendo-se de um sistema de 46 conhecimentos descontextualizados, serviu para separar o povo de sua base cultural local. A partir de então, o processo de ensino da leitura e da escrita deixa de ser realizado baseando-se em textos utilizados no cotidiano e passa a utilizar material escrito elaborado especificamente para uso escolar. Ou seja, o letramento como prática social de leitura e escrita do cotidiano passa a ser substituído por um letramento eminentemente escolar. Este último, marcado por uma interlocução artificial, separa o processo de aprendizagem da língua escrita das reais situações de interlocução. A alfabetização efetivada na escola deixa de trabalhar as habilidades discursivas e trata a linguagem meramente como fenômeno lingüístico abstrato. Segundo Soares (1998), essa relação estreita entre escolarização e letramento controla muito mais do que expande as práticas de letramento, já que desconsidera as práticas de leitura e escrita vividas fora do espaço escolar. Isso acaba por levar, na verdade, à desaprendizagem da escrita, visto que o que passou a ocorrer na escola foi a aprendizagem pelo aluno de uma escrita na qual a produção de texto é ou uma situação de demonstração de suas habilidades de grafar as palavras que lhe foram ensinadas ou, em etapas mais avançadas do processo de alfabetização, de demonstração da capacidade de usar a escrita com aquelas funções consagradas pela escola, uma escrita que devolva a essa escola o discurso que ela impõe. (SOARES, 2004, p. 81). Outra consequência da escolarização do processo de alfabetização resulta do próprio caráter teleológico que a escola tem assumido desde suas origens. Objetivando garantir o acesso a um saber padronizado, a escola se estruturou de forma orgânica e sistematizada. O conhecimento foi, então, dividido e distribuído em programas escolares que determinavam o que deveria ser conhecido, em que tempo, de que modo e como deveria ser avaliado. Um exemplo clássico dessa sistematização proposta para a alfabetização pode ser encontrado na “Conduite des écoles chrétiennes”, redigido por Jean Baptiste de La Salle e impresso em 1720: Haverá nove espécies de lições nas escolas cristãs: 1ª) a tábua (mural) do alfabeto; 2ª) a tábua das sílabas; 3ª) o silabário; 4ª) o segundo livro, para aprender a soletrar e a silabar; 5ª) ainda no segundo livro, em que aqueles que sabem silabar perfeitamente começarão a ler; 6ª) o terceiro livro, que serve para aprender a ler com pausas; 7ª) o Saltério; 8ª) a Civilização Cristã; 9ª) as letras escritas à mão (LA 47 SALLE, p. 16 apud MANACORDA, 1989). Essas lições, por sua vez, eram divididas de modo a atender aos alunos, que eram classificados, de acordo com o seu rendimento, em principiantes, médios e avançados. Havia também orientações que determinavam como deveria ser apresentada a seqüência mostrada no trecho transcrito acima. É no contexto da sistematização proposto por La Salle e também por outros que se iniciam os debates acerca do melhor método para melhor ensinar a um maior número de alunos. Conforme Chartier (2000), o século XIX constituiu-se como o século dos manuais de leitura, quando se instalou a disputa entre os partidários de diferentes métodos: métodos de leitura com soletração ou sem ela, depois métodos simultâneos de leitura e escrita, que não utilizavam mais soletração. Havia ainda os abecedários compostos de uma variedade de listas: de sílabas sem significado, de palavras classificadas pelo tamanho (uma, duas, três sílabas), etc. E o sucesso, durante o século dezenove, dos novos manuais de leitura [...] no alto da página, uma vinheta com uma legenda (ilha, usina), enquadrada pela letra I ou letra U, em suas diferentes formas de escrever (maiúscula e minúscula de imprensa, à esquerda; maiúscula e minúscula cursiva à direita), uma linha de sílabas e depois, palavras ilustrando o som trabalhado, e enfim, uma pequena frase nas duas formas de escrever. À medida que se avança, os sons aprendidos são combinados aos novos (CHARTIER, 2000). Embora estejamos falando do processo de escolarização da alfabetização iniciado entre os séculos XVIII e XIX, essa forma de se estruturar o processo de aquisição da língua escrita parece ainda ser algo bem presente e nos lembra as cartilhas utilizadas ainda hoje. Vejamos um trecho do relato de uma professora sobre seu processo de alfabetização7: Eu me lembro que eu me alfabetizei num processo muito longo, talvez assim dos dois anos de idade aos doze e talvez, assim, o maior diferencial nesse processo, que eu vejo as pessoas da minha geração dizer, é que havia um processo na minha família e um processo na escola e os dois eu entendo que se complementavam [...] na minha casa o processo muito feito na brincadeira, no jogo e muito recheado de fantasia. Então, eu lembro que a primeira letra que eu aprendi foi o F do meu nome [...] Isso 48 era em casa, agora na escola. O que se fazia na escola? Muito trabalho de cópia e memorização. A carta de ABC, a mesma carta de ABC da minha casa era diferente na escola, porque na escola você pegava todo o alfabeto para decorar ordenado, não é?[...] Era a mesma carta do ABC que minha mãe usava de outro jeito. Por exemplo, as lições do fim que na escola você só tinha acesso àqueles textos depois quedecorava as letras padrões, minha mãe pegava a carta e lia os textos. Podemos observar pelo relato da professora o quanto o processo de alfabetização vivenciado por ela nos remete ao mesmo modelo vivido pelas crianças dos séculos XVIII e XIX. No processo vivido por ela na escola, a seqüência das lições apresentada na carta de ABC deveria ser rigidamente seguida e só no final era permitida a leitura de textos. Assim como proposto na “Conduite” de La Salle e nos manuais de leitura do século XIX, o ensino deveria ser iniciado pelas unidades menores (letras, sílabas) e levar à sua memorização; passar, então, para às palavras e, só depois introduzir os textos. Assim como os mestres dos séculos XVIII e XIX, muitos professores ainda hoje concebem o ato de ler e escrever como algo neutro e universal e acreditam que o problema fundamental da alfabetização é uma questão de escolha do método a ser utilizado. Entretanto, a professora também nos fala de uma prática de alfabetização que acontecia em casa, com as pessoas da família, que não parece, a princípio, preocupada em seguir determinado método. Fala-nos da preocupação dos pais em ensinar a escrita antes que se chegasse à escola, pois “tinha de desarnar antes de ir para a escola porque se não, não aprende”. Parece, então, que a prática de uma alfabetização (ou pelo menos sua iniciação) realizada em casa é uma prática que, apesar da instituição da escola, ainda perdura entre determinadas parcelas da população. Diferentes estudos sobre histórias de vida de professores observaram esse investimento dos familiares numa aprendizagem da escrita antes da entrada das crianças na escola em famílias cujos pais apresentam baixo grau de escolaridade. 7 Professora Maria de Fátima Ribeiro Soares participou da 1ª turma do Módulo de Alfabetização e Letramento do curso de formação do CEEL-UFPE. 49 Embora no relato da professora Fátima a experiência de alfabetização vivenciada em casa pareça diferenciar-se, em alguns aspectos, do que acontecia na escola, os estudos mencionados acima mostram que o investimento em uma alfabetização anterior à escola se traduz, muitas vezes, na reprodução em casa de tarefas escolares. Isso reflete o peso da alfabetização escolarizada pela qual passaram gerações e gerações, formadas e influenciadas pela visão de leitura e de escrita na qual a escola tem fundamentado seu ensino. Essa visão acaba por levar, muitas vezes, a se considerar apenas como verdadeiros exemplos de material escrito aqueles prestigiados pela escola, desconsiderando assim as práticas de leitura e escrita efetivamente utilizadas pelas pessoas no cotidiano. É o que demonstra Santos (2004), estudando as representações de escrita de professoras das séries iniciais. A autora observa essa marca do letramento escolar nos relatos das professoras quando elas trataram das práticas de escrita atuais ou as vivenciadas em suas famílias quando crianças. Nesse momento, as professoras desconsideravam os gêneros de caráter mais doméstico8 e se concentravam nos gêneros valorizados pela escola e, por isso, não se consideravam leitoras ou produtoras de textos. Batista (1998) argumenta que os professores também não se consideram “verdadeiros” leitores em razão de, apesar de terem acesso a material escrito valorizado pela escola, não conseguem fazer uso das “competências e esquemas de percepção e apreciação transmitidos pela escola” (p. 31). As análises dos estudos mencionados nos levam a perceber o quanto a noção ampliada de alfabetização do século XVIII, que considerava as práticas de letramento efetivamente produzidas no cotidiano das pessoas comuns, foi abandonada, em favor de práticas de letramento eminentemente escolar. Entretanto, não se pode negar o papel que a escola exerce hoje em nossa sociedade e que, para muitos indivíduos, ela seja, talvez, o único meio de acesso à aprendizagem sistemática da escrita. É preciso considerar também que a escola apresenta suas especificidades e, por isso, discutir as práticas de alfabetização realizadas dentro de seus muros não se trata apenas de substituir as formas de 50 trabalho escolar. Portanto, a questão central parece ser como conciliar as especificidades da escola que tem uma forma de conduzir suas atividades e gêneros textuais próprios com o trabalho com os gêneros que circulam na sociedade, sem que esses percam suas peculiaridades? Como possibilitar a construção do sistema alfabético de escrita pelos alunos, possibilitando-lhes o uso dos gêneros textuais que circulam na sociedade e, não apenas na escola? Talvez a resposta esteja em começar a fazer uma reflexão acerca dos objetivos e valores que têm sustentado as práticas de ensino da língua escrita na escola. Discutindo a noção de método que tem sido entendido como sinônimo de manual, de regras a ser seguidas, e começar a considerá-lo como soma de ações baseadas em conjunto de princípios que responde a objetivos determinados (SOARES, 2004), considerando que a alfabetização e a letramento, embora fenômenos diferenciados, são interdependentes e intercomplementares. Dessa forma, será possível recuperar a noção ampliada de alfabetização que estabelece os usos e as práticas efetivas de leitura e escrita vividas na sociedade e que foi, aos poucos, sendo substituída por uma visão meramente escolar do processo de aprendizagem da língua escrita. REFERÊNCIAS BARRÉ-DE-MINIAC, Christine. Apprentissage et usages de l’ecriture: représentation d’enfantes et des parents d’élèves. Repères. n. 15, 1997. BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Os professores são “não-leitores”? In: MARINHO, Marildes; SILVA, Ceres Salete Ribas. Leituras do professor. Campinas: Mercado das Letras, 1998. CHARTIER, Anne Marie. A escola obrigatória e o ofício de ensinar. Palestra proferida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. 2002. 8 A autora se refere aos gêneros mais utilizados no cotidiano, tais como: anotação em agenda, lista de compras, bilhetes, preenchimento de cheques, etc. 51 CHARTIER, Anne Marie. Réussite et ambivalence de I’innovation pédagogique: le cas de l’enseignement de la lecture. Recherche et Formation pour professions de l’ éducation. Innovation et réseaux sociaux, INRP, n. 34, p. 41-56, 2000. COOK-GUMPERZ, Jenny. A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Rememorando trajetórias de professoras- alfabetizadoras: a leitura como prática constitutiva de sua identidade e formação profissionais. Campinas: Mercado de Letras: Faep/UNICAMP, 2002. GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. MANACORDA, Mario Alighiero. Historia da educação – da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. SANTOS, Carmi Ferraz. O professor e a escrita: entre práticas e representações. Campinas: UNICAMP, 2004. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. ________. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2004. GÊNEROS: por onde anda o letramento?9 Márcia Mendonça Neste capítulo, discutiremos questões relativas aos gêneros textuais e seu tratamento na alfabetização e no ensino de língua materna. Para isso, situaremos o aumento do interesse por essa temática, relacionaremos o conceito de gênero ao de letramento e a outros conceitos pertinentes ao ensino de língua e questionaremos aspectos da didatização dos gêneros na sala de aula. A “moda” dos gêneros: inserção no sociointeracionismo e no socioconstrutivismoOs estudos sobre gêneros estão em voga, mas não são um modismo. Sejam eles denominados “gêneros textuais”, “gêneros de texto”, “gêneros discursivos”, sejam “gêneros do discurso”, o grande interesse pelo tema no Brasil, nos últimos 5 anos especialmente, fez proliferar inúmeros trabalhos acadêmicos a respeito, com boa diversidade de abordagem (SANTOS, 2002). 52 Para entender por que esse interesse crescente pelos gêneros é uma opção respaldada e consistente, e não mero modismo, é necessário remeter aos paradigmas do socioconstrutivismo e do sociointeracionismo, que vêm se firmando como referência nas pesquisas teórica e aplicada da Lingüística e da Educação. Apesar de tais denominações não abrigarem, em cada uma, posições homogêneas, podemos dizer que se assemelham em certos pontos. Por exemplo, para o socioconstrutivismo, um princípio básico é a compreensão da aprendizagem não como uma transferência de saberes, neutra e linear, mas como processo dinâmico de (re)construção e (re)acomodação de conceitos, mediado pelos interlocutores (professor, pais e colegas, por exemplo) e também pela linguagem (VYGOTSKY, 1989a). 9 Mantivemos, neste artigo, o termo letramento no singular, embora já se discuta que, na verdade, são vários letramentos, dependendo das práticas de leitura e escrita. Por exemplo, já se fala em letramento digital (ver cap. 8 deste livro). 53 De modo similar, para o sociointeracionismo, o ensino de língua não pode restringir- se à análise de formas lingüísticas em si, como portadoras de significados invariáveis e pré-definidos. De fato, a língua não existe em estado de dicionário, com sentidos sempre determinados e estáveis, mas tem complexo funcionamento, influenciado por fatores sociocognitivos (representações, expectativas, papel social dos interlocutores, conflito/convergência de identidades, etc.). Por essa razão, na escola, as análises morfológica e sintática, realizadas sem qualquer referência aos usos da linguagem – identifique e classifique os substantivos; classifique as frases em interrogativa, exclamativa; diga se o período é composto por subordinação ou coordenação -, não se justificariam. Também o estudo de vocabulário feito com palavras soltas, desvinculadas de seu contexto de uso, teria sua validade questionada. É um pressuposto essencial do sociointeracionismo o fato de que os sentidos não existem por si sós; na verdade, os sentidos constroem-se na interação verbal e são, portanto, resultado das condições de produção dos discursos: quem diz o que, para quem, em que situação, através de que gênero textual, com que propósito comunicativo e com que escolhas lingüísticas e extralingüísticas. Os gêneros se definem justamente por serem a intersecção dessas condições de produção, ou seja, são respostas às necessidades humanas de comunicação, são fenômenos ou entidades sociocomunicativas, conforme detalharemos no tópico a seguir. Gêneros: afinal de que estamos falando?10 As ações de linguagem se concretizam discursivamente dentro de um gênero de discurso como um processo de decisão. Nas mesmas condições contextuais, para um mesmo referente, os discursos produzidos podem apresentar características diferentes. Por exemplo: no quadro de uma mesma ação (convencer o aluno a ler um determinado livro) o professor pode escolher entre redigir um texto teórico, contar a história de seu próprio percurso de 10 Privilegiaremos os comentários sobre os gêneros escritos, embora reconheçamos o importante papel dos gêneros orais no letramento, conforme aponta ROJO (2001). 5 6 54 leitor ou persuadi-lo em uma conversa livre etc. Essa decisão vai depender do gênero discursivo em uso no grupo social e de um cálculo de sua pertinência e de sua eficácia em relação ao objetivo da ação. (BRANDÃO, 2000, p. 26) Da leitura da epígrafe acima, infere-se que os gêneros são como são porque devem funcionar para propósitos diversos, assumindo configurações diferentes. Portanto, podemos dizer que os gêneros são formas culturais e cognitivas de ação social, estabilizadas ao longo da história, corporificadas de modo particular na linguagem, caracterizadas pela função sociocomunicativa que preenchem (BAKHTIN, 2000; MARCUSCHI, 2000, 2002). Uma receita, tal como a conhecemos hoje, tem a função de registrar, por escrito, a forma como se prepara certo prato, o que possibilita que outras pessoas, em tempos e lugares diferentes, repitam esse preparo. Por essa razão, é imprescindível listar os ingredientes e suas quantidades, a forma de misturá-los e, e alguns casos, o modo de servir. Quanto à estabilização dos gêneros ao longo do tempo, podemos citar o caso do que hoje se conhece como artigo científico (o gênero primordial das revistas científicas), que nem sempre teve a configuração atual. Na verdade, para comunicar suas reflexões e experimentos, os cientistas utilizavam anotações e cartas pessoais, estas últimas enviadas a amigos e colegas de ofício. Com o desenvolvimento da ciência e o estabelecimento das universidades, foi preciso registrar mais sistematicamente as descobertas e os avanços, além de socializá-los. Começava a surgir um propósito comunicativo bem específico, em dada situação de interação: surgia, por isso, um novo gênero, o artigo científico. Este seguiria se modificando ao longo da história, até chegar a sua forma atual que também continuará a mudar nas próximas décadas, porque, decerto, haverá alterações nas funções sociocomunicativas, nas formas de utilizar e de fazer circular o artigo científico. A propósito, o gênero que você está lendo agora é um artigo de divulgação científica, semelhante ao artigo científico, mas que difere: a) quanto ao público leitor, neste caso, o professor, e não apenas os cientistas e acadêmicos; b) quanto ao propósito comunicativo, o de servir como material para formação de professores, e não o de apenas socializar reflexões acadêmicas. Por isso, é comum, nos artigos de divulgação científica, incluir 5 55 7 56 mais exemplos (o que estamos fazendo neste parágrafo), parafrasear, tudo isso para tornar o texto mais didático. Continuando o que foi exposto acima, pode-se dizer que os gêneros se definem, em primeiro lugar, por seu propósito comunicativo, e não por sua forma lingüística. Como apresentam um caráter de relativa estabilidade, conforme postula Bakhtin (2000), os gêneros apresentam plasticidade, ou seja, são maleáveis, mudam de forma para se adaptar às necessidades humanas, aos diversos eventos de letramento que vivenciamos a cada dia. A forma dos gêneros é, portanto, resultado das suas condições de produção: quem diz o que, para quem, em que situação, através de que gênero textual, com que propósito comunicativo. Assim, na escola, seria um equívoco trabalhar com os gêneros como se fossem “moldes” prontos, que o aluno só teria de “preencher”, sem levar em conta a situação de interação. Mesmo havendo características comuns a vários exemplares do gênero, ocorrem variações. Por exemplo, no gênero carta pessoal, a saudação poderá ser bem variada, dependendo dos interlocutores e do grau de intimidade - Querido papai; Amiga, Fofinho, Prezada Tia Maria, Meu amor, Gabriela, Mainha, entre outros – ou até poderá nem existir. Os modelos fixos, portanto, podem ser uma “armadilha”, pois desconsideram que os gêneros são intrinsecamente ligados à situação de interação social e cultural específica, logo, são maleáveis até certo ponto. Os textos, qualquer que seja o gênero, apresentam seqüências textuais típicas, normalmente divididas emcinco categorias: narrativa, descritiva, expositiva, argumentativa e injuntiva. As seqüências textuais são o modo de organização lingüístico-discursiva dos textos. Por exemplo, as seqüências narrativas são caracterizadas pelo uso de verbos no passado, indicando o decorrer do tempo, além de marcadores de espaço (naquela cidade, no Brasil, na Assembléia Legislativa, num reino distante, etc.) e tempo (então, logo depois, passadas duas horas, etc.). No conto abaixo, produzido por uma aluna da Rede Municipal do Recife, predominam as seqüências narrativas: Salientamos que é possível categorizar as seqüências textuais de modo diferente, de acordo com a linha de investigação adotada. Por exemplo, os pesquisa dores Dolz, Pasquier e Schneuwly, integrantes do chamado grupo de Genebra, 57 categorizam as seqüências textuais nas seguintes ordens discursivas: narrar (ficção), relatar (não-ficção), expor, argumentar e descrever ações (instruções e prescrições). Apesar das pequenas divergências, há sempre mais semelhanças, o que aponta para um núcleo comum, de consenso, conforme se pode constatar pela comparação entre as classificações. A seqüência expositiva, por sua vez, caracteriza-se por preferir os verbos no presente, além de predicados com declarações sobre fenômenos ou entidades. Como em outros gêneros de caráter didático, neste artigo de divulgação científica que você está lendo agora, há varias seqüências expositivas, como esta: “A forma dos gêneros é, portanto, resultado das suas condições de produção”. Cada texto, via de regra, apresenta seqüências textuais variadas. Gêneros como fábula, conto, crônica e notícia, por exemplo, abrigam trechos tanto narrativos quanto descritivos. Assim, o termo “narrativo” não se refere a um gênero em especial, mas a uma seqüência que pode estar presente em vários gêneros diferentes. Por exemplo, diz- se que um gênero é narrativo se predominam seqüências narrativas, como no caso da notícia, da biografia e da lenda. Reforçando o que já dissemos, esses mesmos gêneros, no entanto, podem apresentar outras seqüências, não-predominantes: a notícia pode trazer também trechos descritivos das pessoas e do local em que o fato ocorreu, além dos trechos narrativos sobre o fato em si; a biografia pode trazer trechos expositivos sobre a situação do país do biografado em dada época; a lenda pode trazer trechos argumentativos, com um personagem tentando convencer outro. Ensinar a narrar, a descrever, a argumentar, apenas de modo geral, sem considerar o modo como se narra, se descreve ou se argumenta nos vários gêneros, pode ser insuficiente para que o aluno domine a constituição de cada um deles. Vistos os conceitos de gênero e tipo, trataremos das relações entre gêneros e letramento. Gêneros e letramento: entrecruzando caminhos Em sociedade, são múltiplos e diversificados os usos da leitura. Lê-se para conhecer. Lê-se para ficar informado. Lê-se para aprimorar a sensibilidade estética. Lê-se para fantasiar e imaginar. Lê-se para resolver problemas. E lê-se também para criticar e, dessa forma, desenvolver 58 posicionamento diante dos fatos e das idéias que circulam através dos textos (SILVA, 1998, p. 27). A citação de Silva poderia ser parafraseada, acrescentando-se, a cada propósito comunicativo citado, alguns gêneros, para exemplificar as variadas práticas de letramento por que passamos, dentro e fora da escola. Em sociedade, são múltiplos e diversificados os gêneros que lemos, escrevemos, falamos/dizemos e ouvimos. Na enumeração acima, apresentam-se práticas de letramento variadas, que atendem a objetivos distintos, contemplados nos processos de letramento, escolares e não-escolares. Para entendermos melhor a relação entre o conceito de letramento e os gêneros, é necessário retomar alguns pontos. “Letramento” é um termo relativamente recente, visto que surgiu há cerca de 30 anos, e nomeia o conjunto de práticas sociais de uso da escrita em diversos contextos socioculturais. Tais práticas de letramento sempre existiram nas sociedades letradas, ou seja, nas sociedades que fazem uso da escrita. É preciso, portanto, atentar para o fato de que o conceito de letramento, como prática social de uso da escrita, não é algo criado pelos meios científicos sem relação com o mundo que nos rodeia. Menos ainda se trata de um método de alfabetização, como equivocadamente alguns professores passaram a compreendê-lo. As práticas de letramento são um fenômeno existente na realidade, que passou a ser estudado, tendo sido nomeado e definido. O conceito de letramento (e, por extensão, de sujeito letrado) surgiu para dar conta da complexidade de eventos que lidam com a escrita. Mais amplo que o conceito restrito de alfabetização, a noção de letramento inclui não só o domínio das convenções da escrita, mas também o impacto social que dele advém. Cada vez mais, o conceito de letramento é considerado central para a compreensão dos processos de ensino-aprendizagem e para a intervenção dos professores em sala de aula. Um dos princípios que norteiam a perspectiva do letramento é que a aquisição da escrita não se dá desvinculada das práticas sociais em que se inscreve: ninguém lê ou escreve no vazio, sem propósitos comunicativos, sem interlocutores, descolado de uma situação de interação; as pessoas escrevem, lêem e/ou interagem por meio da escrita, guiadas por propósitos interacionais, desejando 59 alcançar algum objetivo, inseridas em situações de comunicação. Cabe lembrar ainda que esse processo é atravessado por valores e crenças dos mais diversos tipos. Para alcançar esses objetivos, as pessoas fazem uso dos gêneros, artefatos a respeito dos quais todos nós temos um impressionante conhecimento intuitivo. Tanto isso se confirma que é possível identificarmos certos gêneros apenas por sua abertura e seu fechamento. Tal identificação só é possível em razão da relativa estabilidade dos gêneros, ao fato de que, em dado gênero, há recorrência de formas, conteúdos e estratégias. Vejamos: Pode haver algumas variações, mas boa parte dos exemplares de cada gênero do QUADRO 2 (verbete, notícia, receita, ata, aula e conto de fadas) começam ou iniciam de forma similiar: o verbete traz informações relativas a origem, classe gramatical do termo, entre outras; a notícia inicia com o fato narrado; a receita começa pelos ingredientes; a ata tem o final marcado explicitamente; a aula pode finalizar com uma “ponte” para a próxima aula; o conto tem o final feliz clássico. Bronckart (1999, p. 103) aponta: “A apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”. A escola deve, portanto, proporcionar aos alunos o contato com uma grande diversidade de gêneros orais e escritos, abrangendo várias esferas de circulação: a familiar ou pessoal – cartas pessoais, bilhetes, diários, e-mails pessoais, listas de compras, etc. –; a literária – fábulas, contos, lendas da tradição oral, peças teatrais, poemas, romances, crônicas, contos de fadas, poemas de cordel, etc. –; a midiática – notícias, reportagens, anúncios publicitários, charges, cartas do leitor, artigos de opinião, etc., veiculados por distintos meios (rádio, TV, jornal, revista, internet, etc.) –; a do entretenimento – piadas, histórias em quadrinhos, trava-línguas –; a jurídica ou de regulação da convivência – estatutos, leis, regimentos, normas, etc. É importante lembrar que o acesso aos usos sociais da escrita e da leitura, que se concretizam nos diversos gêneros textuais, ocorre mesmo com indivíduos analfabetos. Vejamos oque diz Soares a respeito: [...] um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser um analfabeto, mas ser, de certa forma, letrado (atribuindo a esse adjetivo sentido vinculado a letramento). 60 Assim, um adulto pode ser analfabeto porque marginalizado social e economicamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva (e é significativo que, em geral, dita usando vocabulário e estrutura próprios da língua escrita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixados em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e escrita. Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e percebe seu uso e função, essa criança ainda é “analfabeta” porque ainda não aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no mundo do letramento, já é, de certa forma, letrada. (SOARES, 2001, p. 24) Por isso, não é preciso esperar que a criança esteja alfabetizada para deixá-la entrar em contato com textos dos mais diversos gêneros. Este é, a propósito, o princípio básico da proposta de alfabetizar letrando: a apropriação do sistema de escrita e a inserção nas práticas de leitura e escrita se dariam de forma simultânea e complementar . Em vista dessas considerações a respeito da noção de gênero e de sua relação com o conceito de letramento, podemos passar às questões mais específicas do trabalho em sala de aula, no tópico a seguir. Desafios da didatização no trabalho com os gêneros na escola A escola, entendida, no nosso contexto sociocultural, como a principal agência do letramento, tem por objetivo maior ampliar as experiências de letramento dos alunos, isto é, promover eventos de letramento relevantes para a formação de sujeitos amplamente letrados. Espera-se que os alunos, ao final da escolarização, tenham condições de se inserir com autonomia e segurança nas diversas práticas de letramento, inclusive e principalmente aquelas mais valorizadas por uma sociedade, compreendendo (criticamente) e produzindo os gêneros relativos a tais práticas. A esse respeito, dizem os PCN do Ensino Fundamental II (p. 49): A escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno 61 desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do texto (lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s) e seu lugar social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros adequados para a produção de texto e a leitura, operando sobre as dimensões pragmática, semântica e gramatical. Entretanto, é preciso realizar um processo de didatização para atingir os objetivos pedagógicos na abordagem dos gêneros. Esse processo de didatização é desencadeado pela necessidade de ensinar, que exige a modificação do conhecimento, convertendo-o em objeto de ensino: é preciso selecionar, adaptar e organizar conteúdos, além de elaborar estratégias e material didático pertinentes aos objetivos pedagógicos. Assim, o trabalho com gêneros na escola não deve ser a mera transmissão de conhecimentos construídos na área da lingüística sobre os gêneros. Por exemplo, o essencial, na escola, não é classificar, definir, conceituar os gêneros, embora isso possa até fazer parte de alguma situação de ensino- aprendizagem. O fundamental é que, com base em uma situação-problema, se selecionem os gênero(s) que pode(m) atender às necessidades de leitura e/ou escrita, para o desenvolvimento das competências lingüísticas, textuais e discursivas, como veremos no tópico a seguir. A situação como ponto de partida Criar situações-problema (ou aproveitá-las) é uma alternativa adequada para a exploração dos gêneros na escola, uma vez que a situação mobiliza uma série de referenciais para a leitura/produção: interlocutores, esfera de produção/circulação, suporte, etc., tudo isso influenciando na configuração do gênero. Por exemplo, se o tema da reciclagem do lixo está sendo trabalhado, pode-se discutir com os alunos o que eles querem fazer a respeito do problema de acúmulo de lixo nas cercanias da escola. Assim, pode-se decidir que é preciso: a) enviar um abaixo-assinado ou uma carta de reclamação às autoridades competentes e/ou b) realizar uma palestra educativa para os moradores (que necessitará da produção de convites ou cartazes para pais e alunos) e/ou c) produzir e distribuir uma cartilha educativa para os moradores, entre outras possibilidades. Começa, então, o trabalho de produção de gêneros orais e escritos, que pode inserir atividades de leitura, escrita, comparação, reflexão sobre 62 adequação de registro (do mais formal ao menos formal), sobre as características lingüísticas e discursivas de cada gênero, entre outras. O depoimento de Andréa Souza, professora do 3º ano do 1º ciclo, da Escola Municipal Severina Lira, em Recife-PE, demonstra que mesmo uma situação corriqueira de sala de aula – a necessidade de organização do tempo pedagógico para as atividades - pode permitir um trabalho significativo com gêneros: Bom, isso começou porque eu observei que as crianças [...] queriam saber o que nós iríamos fazer no dia. Então era a aquela coisa: “O que é que vai ter hoje? O que é que a gente vai fazer hoje? Hoje vai ser o quê? Hoje vai ser Matemática? Hoje vai ser Português?”.... [...] E aí foi que surgiu a idéia de registrar isso no quadro, de realmente estar colocando a agenda....Então, a gente conversou sobre isso, né?.... Sobre o que era uma agenda, pra que que ela servia...E aí, eu comecei a realmente a fazer uso disso no dia-a-dia. [...] Bom, a finalidade dessa agenda é realmente deles se organizarem. E também pra mim é importante por causa do tempo. [...] E, com a agenda, é como se eles realmente se organizassem e se preparassem pra fazer as atividades que vão precisar ser feitas. A professora ressaltou objetivos claros para o uso da agenda, com o auxílio das crianças as finalidades. Como os fatores sociais são constitutivos da linguagem e do próprio conhecimento de maneira geral, o tratamento didático deve, portanto, considerar as condições de produção dos discursos – quem diz o que, para quem, em que circunstâncias, com que propósitos comunicativos, em que gênero, etc. – como centrais na produção de sentido. É nessa acepção que o trabalho com a análise lingüística – e não apenas o ensino de gramática normativa – ganha relevância: promover a reflexão sobre as possibilidades lingüísticas e discursivas à disposição dos falantes, que as escolhem em função dos usos, da situação, dos gêneros. Por exemplo, mais do que saber conceituar ambigüidade e identificá-la numa frase solta, é importante ajudar os alunos a perceber que esse recurso cria efeitos de sentido bastante interessantes, por exemplo, em poemas, publicidades e mesmo na conversação cotidiana. Esses 63 efeitos variarão, dependendo, como já dissemos, dos interlocutores, de seu papel social, do propósito do gênero, etc. Leitura: estratégias diferentes para gêneros diferentes No trabalho com leitura, a diversidade de gêneros já é uma realidade na maioria das salas de aula. Um levantamento feito em uma turma de formação de professoras-alfabetizadorasrevelou uma listagem variada de gêneros explorados em sala de aula: agenda, adivinhações, calendário, conto*, conto de fadas, histórias em quadrinhos*, lendas, músicas*, parlendas*, poemas*, trava-línguas*. Entretanto, a variedade de material de leitura é apenas um dos aspectos a que o professor deve atentar. Outro fator que deve ser levado em conta é que há uma dinâmica de interrelações entre o funcionamento social dos gêneros e as estratégias lingüísticas e discursivas que permitem esse funcionamento. Em outras palavras, como já apontamos, os gêneros se constituem para preencher certas funções sociais, para atender a certos propósitos comunicativos. Assim, se as características lingüísticas e discursivas dos gêneros são diretamente relacionadas ao seu funcionamento social, as estratégias de leitura usadas e as atividades de compreensão de texto variarão, dependendo do gênero. Por exemplo, não se lê um poema do mesmo modo que se lê uma piada ou uma notícia. Se a notícia tem por objetivo informar, são as informações dadas e o modo como foram apresentadas que devem ser enfocados preferencialmente. Já no caso do poema, a leitura de prazer, a leitura-deleite, a leitura de fruição, deve sempre vir em primeiro lugar ou, muitas vezes, apenas esse tipo de leitura deve ser objeto de trabalho. Junto às atividades de compreensão textual, a análise lingüística ajuda a promover a reflexão sobre as características dos gêneros. No caso do gênero classificados, é comum o uso das abreviaturas, para reduzir o 64 custo de quem anuncia. Por isso, a compreensão das abreviaturas é fundamental para a leitura desse gênero, aspecto explorado pela Profa. Andréa: P- [...] Vocês também devem procurar as palavras abreviadas...O que são palavras abreviadas? A - A primeira letra e um pontinho. P: Pode ser....mas às vezes são algumas letras.... [...] (momentos depois) P - Vamos ver aqui (a professora pegou o anúncio deles)...O que é isso? (apontou para a palavra experiência que no anúncio estava abreviada: exp.) A: Não sei! P: Isso significa: experiência....Por exemplo:....Se tem um emprego que está oferecendo um trabalho de cozinheiro e pedem pessoas que tenham experiência. ...Se eu for nesse emprego...eles vão me contratar? A: Não! P: Por quê? A: Porque a senhora é professora. P: Isso...porque eu tenho experiência como professora e não como cozinheira, certo? Já no caso da notícia impressa, outros aspectos podem ser enfocados no trabalho com leitura, conjugado com análise lingüística: identificar as informações básicas sobre os fatos (o que, quem, quando, onde, como e por quê); discutir sobre o modo como foram apresentadas; analisar a estruturação dos títulos e manchetes (frases curtas, resumindo o fato central, omissão de artigos, omissão de certos adjetivos qualificativos para efeito de objetividade, etc.); refletir sobre a contribuição do não- verbal e do extralingüístico para a produção de sentido (fotos, negritos, tamanho das letras, diagramação, etc.); estabelecer relação entre as temáticas das notícias e os cadernos do jornal em que são publicadas; debater sobre o viés ideológico da notícia e sua relação com o veículo – jornal ou revista – e sua linha político-ideológica (reflexão possível apenas em séries mais avançadas); comparar o mesmo fato tratado em jornais ou revistas diferentes para discutir sobre a (suposta) neutralidade da notícia (fato X versão do fato). Pode-se dizer que não há nada mais “insosso” do que atividades de compreensão de texto padronizadas, que se pretende aplicar a qualquer gênero e independem dos objetivos pedagógicos. É preciso, portanto, ensinar a usar estratégias de leitura 65 distintas e a enfocar aspectos distintos para análise lingüística, de acordo com o gênero e sua função social. Considerações finais A resposta à questão posta no título – Gêneros: por onde anda o letramento? – pode ocorrer em duas vertentes. A primeira delas é a que entende a pergunta como uma provocação: “O letramento passará mesmo pela questão dos gêneros?” A resposta seria um “claro que sim”, justificado pelo fato de que os gêneros nos são inescapáveis: sempre que falamos e escrevemos, fazemos isso por meio de gêneros; e sempre que ouvimos ou lemos, ouvimos gêneros orais (conversas, palestras, entrevistas, anúncios radiofônicos, novelas de tevê, discussões, etc.), e lemos gêneros escritos (bulas, receitas, poemas, notícias, avisos, entrevistas, etc.). A segunda vertente é a que entende a pergunta como “por onde está o letramento quando se trabalha com gêneros na escola?” A resposta seria “em todas as práticas de leitura e de escrita”, além das práticas orais que envolvem a escrita, de alguma maneira, como no caso das apresentações orais que tiveram a escrita como base ou da contação de histórias que já foram registradas na tradição escrita. Em outras palavras, não se pode falar em gêneros sem considerar os processos de letramento; não se pode falar em letramento sem considerar os gêneros. Por isso, se a inserção no mundo da escrita passa pelo domínio das formas de interação, mediadas pelos gêneros, o trabalho com gêneros na escola pode ser um dos eixos do ensino voltado à formação para a cidadania, inclusiva e crítica por definição. É preciso ainda não esquecer que, se trabalhar com os gêneros é transbordar as fronteiras do lingüístico, a abordagem interdisciplinar será ainda mais necessária na sala de aula, e a aula de português deverá ser cada vez mais centrada em práticas de letramento, em que a língua(gem) desempenha papel central, por meio dos gêneros. O sabor do trabalho com os gêneros está justamente nas suas particularidades, no seu papel nas práticas de letramento relevantes para as diversas comunidades, na sua variedade, que, em suma, reflete a própria multiplicidade da experiência humana. Esses aspectos devem ser (re)conhecidos, explorados e valorizados, seja nas atividades de leitura, seja nas de produção textual, seja nas de análise lingüística. 66 REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1953] 2000. BRANDÃO, Helena Nagamine. Texto, gêneros do discurso e ensino. In: Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica. Coord. Helena Nagamine Brandão. São Paulo: Cortez, 2000, p. 17-45. Brasil. Sef/Mec. Parâmetros curriculares nacionais; língua portuguesa - 5a. a 8a. série. Brasília: Sef/Mec, 1998. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Pour un enseignement de l’oral. Initiation aux genres formels à l’école. Paris: ESF éditeur, 1998. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: o que são e como se constituem. UFPE, Recife (mimeografado) 2000. _______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Angela; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36. MILLER, C. R.. “Genre as Social Action”. In: FREEDMAN, A.; MEDWAY, P. (Eds.). Genre and the New Rhetoric. London: Taylor & Francis, 1994, p. 23-42. PASQUIER, A.; DOLZ, J. Un decálogo para enseñar a escribir. Cultura y Educación, Madrid: Infancia y Aprendizage, 1996, (2), p. 31-41. Tradução brasileira de Roxane Rojo: Um decálogo para ensinar a escrever. São Paulo: PUC-SP, [s/d.] (mimeo). ROJO, Roxane. Concepções não-valorizadas de escrita: a escrita como um outro modo de falar. In: KLEIMAN, Angela. (org.) Os significados do letramento:uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. 2ª reimpressão. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p. 65-89. SANTOS, Sandoval. Algumas tendências dos estudos sobre gênero discursivo na pesquisa acadêmica brasileira. Leitura: Teoria e Prática, ano 20, n. 38, mar. 2002 – Campinas: ALB; Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002. SILVA, Ezequiel T. da. Leitura crítica e suas fronteiras. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da . Criticidade e leitura: ensaios. Campinas: Mercado de Letras, 1998. p. 21-30. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 9-10. VYGOTSKY. Lev Semnovich. A formação social da mente. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989a. 67 PROGRESSÃO ESCOLAR E GÊNEROS TEXTUAIS Márcia Mendonça Telma Ferraz Leal Algumas perguntas são freqüentemente elaboradas por professoras e professores preocupados com a organização e os objetivos do ensino. Entre essas perguntas, temos nos deparado com algumas que são particularmente relevantes para nossas discussões nesta obra: “Que textos (ou gêneros textuais) devemos levar para os alunos que estão em diferentes graus de ensino (séries, ciclos, blocos)?”, “Como distribuí-los ao longo de cada ano letivo?”, “O que pode vir antes e o que pode vir depois?”. A seleção do material textual é, no nosso ponto de vista, uma das tarefas mais importantes do professor ou professora. Saber que textos são interessantes para ser trabalhados com os alunos e saber explorar esses textos são habilidades que exigem consciência acerca dos objetivos do ensino em cada grau escolar e domínio de um repertório variado de textos que permita escolher material adequado aos propósitos didáticos. Dessa forma, precisamos, para decidir acerca dos melhores textos, refletir sobre as metas a ser atingidas. Definindo as metas, definindo os gêneros Defendemos, que, tanto na educação infantil quanto na educação básica, objetivamos ampliar as capacidades de produção e compreensão de textos dos alunos, ajudando-os a melhor interagir através da oralidade e da escrita, adotando variados gêneros textuais e atendendo a diversos tipos de finalidade social a que tais gêneros textuais estão vinculados. Através da intervenção didática, queremos que os alunos desenvolvam diferentes estratégias discursivas para produzir textos, sejam orais, sejam escritos, e diferentes estratégias para compreender textos, seja mediante escuta, leitura. Assim, nossa meta principal é ampliar as práticas de letramento dos alunos, de modo que eles desenvolvam a capacidade de usar textos diversos, de modo crítico. 68 Se tivermos a concepção de que o objetivo central na educação infantil, no ensino fundamental e ensino médio é formar alunos leitores e produtores de variadas espécies de textos, como dissemos acima, podemos ter como ponto de partida a concepção de que: Os objetivos e propósitos das atividades de leitura e escrita são estabelecidos a partir do reconhecimento do caráter sócio-interativo da linguagem, da consciência de que as várias configurações textuais são determinadas pelo conjunto de convenções estabelecidas socialmente. Assim, as atividades de leitura e produção devem ser realizadas de forma que o aluno possa refletir sobre o texto, considerando: autor, destinatário, situação de produção, situação de recepção, projeções das dificuldades do leitor ou escritor, intenções e fatores motivadores do texto, enfim, suas condições de produção (LEAL, 1999, p. 37-38). Nessa perspectiva, tendo os objetivos gerais anteriormente referidos, consideramos fundamental que nós, professoras e professores, tenhamos clareza de que cada gênero textual tem especificidades e que, entre os gêneros textuais, existem semelhanças que podem ser usadas como critérios para que nós os agrupemos. Tais critérios envolvem objetivos específicos de ensino. Se pensarmos em gêneros textuais, como, por exemplo, carta de reclamação e artigo de opinião, podemos decidir que levar os alunos a identificar pontos de vista dos autores e saber localizar ou inferir seus principais argumentos na defesa desse ponto de vista pode ser um objetivo didático fundamental para saber lidar com outros textos parecidos com esses. Saber produzir um texto para defender seus próprios pontos de vista, justificá-los e antecipar objeções de outros interlocutores acerca do que se está defendendo pode ser outro objetivo relacionado aos gêneros usados nesse exemplo. Estamos, assim, apontando que muitos objetivos específicos podem permear nossos planejamentos didáticos, e precisamos refletir sobre eles e delimitá-los. Nossas metas e objetivos, portanto, são múltiplos, mas o cerne de nosso trabalho pedagógico é o de que os alunos precisam aprender a refletir sobre as situações de interação em que os textos circulam e sobre os diferentes gêneros textuais, a fim de poder transferir o que aprendem na sala de aula para os contextos diversos em que convivem fora da escola. 69 Defendemos, portanto, a idéia de que cabe ao professor promover situações de reflexão sobre os textos, considerando as características particulares dos gêneros textuais (sociointerativas e estruturais) e as peculiaridades dos textos em foco. Para que essa escolha seja consciente, é preciso saber que não há consenso a respeito desse tema. Ou seja, nem todos os autores acham que devemos levar os alunos a atividades de reflexão sobre os textos. Vinson e Privat (1994, citados por DOLZ e SCHNEUWLY, 1996), ao refletirem sobre o ensino da leitura e produção dos diferentes gêneros textuais, defendem que a aprendizagem sobre os textos dá-se naturalmente através da interação entre o aluno e as propriedades culturais do gênero, ou seja, bastaria propiciar situações de leitura e produção de textos para que os alunos aprendessem sobre a linguagem. Não haveria necessidade de sistematizar situações de reflexão sobre os textos utilizados, nem sobre os gêneros textuais. Em contraposição a essa perspectiva, Dolz (1994) defende que a intervenção sistemática do professor, levando o aluno a refletir sobre as características dos textos e seus contextos de uso, é indispensável a uma boa apropriação da capacidade de produzir diferentes gêneros textuais. Dolz e Schneuwly (1996) denominam o primeiro modelo de “interacionismo intersubjetivo” e o segundo de “interacionismo instrumental”. Além dessas duas abordagens, podemos destacar também aquelas mais tradicionais, segundo as quais, bastaria ensinar as regras de gramática para que os alunos se tornassem leitores e produtores de textos. Essas observações nos levam a concluir que as diferentes concepções sobre o ensino da língua levam, na escola, a diferentes formas de tratamento dos gêneros textuais e, portanto, diferentes maneiras de acesso a eles pelos alunos. O lugar dos gêneros na escola Em um estudo posterior, Schneuwly e Dolz (1999) tentaram descrever os tipos de intervenção didática presentes hoje, na escola, a respeito da leitura e da escrita. Eles apontaram três maneiras mais freqüentes de abordar os gêneros textuais na escola, as quais aparecem, geralmente, em forma mista: desaparecimento da comunicação; escola como lugar de comunicação; negação da escola como lugar específico de comunicação. a) Desaparecimento da comunicação. 70 Nas abordagens mais tradicionais de ensino, não há preocupação em inserir no contexto escolar os textos que circulam na sociedade. A preocupação central é com o domínio das normas gramaticais, com base no pressuposto de que, sabendo escrever corretamente, o indivíduo poderá se comunicarde forma eficaz. Quando os diversos gêneros textuais são utilizados, eles são desprovidos de qualquer relação com uma situação de comunicação autêntica, ou seja, os alunos lêem e escrevem sem finalidade, apenas para ser avaliados pelos professores. O plano de trabalho (planejamento) é pensado fundando-se na reflexão sobre os tipos textuais (descrição, narração, dissertação), e não, sobre os gêneros textuais. São freqüentes, também, os gêneros eminentemente escolares, tais como os textos cartilhados e as “redações” de 20 linhas. Os alunos, em geral, sabem que estão escrevendo para o professor, que irá avaliar se dominam a ortografia e a norma culta da língua. b) A escola como lugar de comunicação Nessa perspectiva, a escola é tomada como lugar de comunicação, e o professor tem por função favorecer situações escolares de produção e recepção de textos. Assim, a escola torna-se um espaço de interação por meio de textos que assumem algumas características tipicamente escolares (jornal escolar, correio escolar, romance coletivo...). No entanto, os gêneros não são descritos, nem prescritos, nem tematizados e são naturalmente utilizados como instrumentos de comunicação, e não como objetos de reflexão. Não há, nessa abordagem, ênfase em levar os alunos a ler e a escrever textos para interagir com interlocutores externos ao contexto escolar ou mesmo a discutir sobre textos inseridos em outros suportes textuais que circulam fora da escola (jornais, revistas, livros diversos, etc.). c) Negação da escola como lugar específico de comunicação Nessa perspectiva, os gêneros escolares que funcionam nas práticas de linguagem são trazidos para a escola sem que se constituam como objeto de reflexão. A preocupação central é com as exigências de diversificação de textos e de uso de material autêntico (textos retirados de diversos suportes textuais, e não textos criados para a escola). Busca-se levar o aluno ao domínio do gênero exatamente como esse funciona nas práticas de linguagem de referência. Aqui, perde-se de vista o papel da escola como instituição de ensino, ou seja, não se considera que o professor possa sistematizar situações para levar os alunos a pensar sobre os textos e sobre as estratégias usadas por autores em diferentes situações de interação. Partindo dessas reflexões conduzidas por Dolz e Scheneuwly (1999), defendemos 71 que é necessário sistematizar o ensino da leitura e a produção de textos, reafirmando a necessidade de diversificação dos gêneros textuais e de promoção de situações em que os alunos leiam e escrevam para atender a finalidades diversas e a destinatários variados. Assim, concebemos que é preciso considerar, em primeiro lugar, que o acesso a um variado leque de gêneros textuais permite ao produtor construir esquemas sobre o que fazem as pessoas quando precisam interagir através de gêneros. Não adianta, no nosso ponto de vista, apenas suprir os alunos com uma grande quantidade de espécies textuais, é preciso mais que isso; é preciso criar situações sistematizadas de reflexão sobre os aspectos sociodiscursivos e estruturais desses gêneros textuais. Parece-nos fundamental reconhecer, então, que são os gêneros textuais que articulam as práticas sociais aos objetos escolares, já que é através dos gêneros que os aprendizes reconhecem o funcionamento social da língua, inclusive as funções dos vários gêneros, delimitadas no exterior da escola. No entanto, conforme afirmam Schneuwly e Dolz (1999), “a aprendizagem que conduz à interiorização das significações de uma prática social implica levar em conta as características desta prática e as aptidões e capacidades iniciais do aprendiz” (p. 5). Há, então, que se reconhecer os conhecimento prévio dos alunos e a capacidade que eles já desenvolveram, para promover situações de ensino adequadas ao grupo-classe. Dessa forma, Schneuwly e Dolz (1999, p. 10) defendem que: Toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagem que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo, melhor produzi-lo na escola e fora dela, e, em segundo lugar, para desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros. Esse princípio acima exposto ajuda-nos a pensar sobre a progressão escolar no que se refere às escolhas dos textos a ser usados. Já discutimos anteriormente (Cf. cap. 3, “Gêneros: por onde anda o letramento?”) que existe uma multiplicidade de gêneros textuais em cada sociedade e que, historicamente, eles são mutáveis. Discutimos, também, que novos gêneros textuais emergem e outros desaparecem. Desse modo, não temos como, na escola, ensinar todos os gêneros textuais. Por outro lado, como Schneuwly e Dolz defendem, não seria necessário tal ensino, visto que aprendizagens relativas a um gênero são transferíveis para outros gêneros. 72 Além dos fatores já citados, não devemos deixar de considerar que cada situação de interação tem especificidades que impõem uma construção singular do texto que a mediará. Schneuwly (1994) aponta que, no processo de construção de um texto, o agente da escrita realiza um cálculo acerca da adequação de um dado gênero à situação específica de interação e, ao mesmo tempo, adapta o novo texto às características do gênero, modificando-o quando necessário. Bronckart (1999) conclui, então, que: Esse processo de adoção-adaptação gera novos exemplares de gêneros, mais ou menos diferentes dos exemplares préexistentes, e que, conseqüentemente, é pelo acúmulo desses processos individuais que os gêneros se modificam permanentemente e tomam um estatuto fundamentalmente dinâmico ou histórico (p. 103). Esse movimento contínuo dos gêneros (que se modificam, desaparecem, reaparecem, emergem, segundo a dinâmica da vida social) dificulta as classificações. A falta de fronteiras claras entre muitos gêneros, provocada pelos processos de adoção-adaptação também é um elemento que impede uma formalização mais rígida. No entanto, podemos reconhecer que existem semelhanças entre alguns gêneros textuais que podem servir de referência para adotarmos um plano de trabalho em que diferentes capacidades textuais e diferentes conhecimentos sobre a língua possam ser inseridos em cada grau de ensino. Agrupamentos de gêneros: uma proposta de trabalho Dolz e Schneuwly (1996) defendem que diversos gêneros textuais podem ser agrupados em função de algumas características estruturais e sociocomunicativas: Segundo esses autores, essa forma de agrupamento pode ser o ponto de partida para pensarmos na organização curricular. A proposta consiste em estabelecer, em cada ano escolar, gêneros de cada um dos agrupamentos, de modo que os alunos possam, ao longo da escolaridade, deparar-se com gêneros que tenham semelhanças entre si e com gêneros diferentes que proporcionem possibilidade de reflexão sobre diversas dimensões da nossa linguagem. É a proposta da aprendizagem em espiral, segundo a qual um mesmo gênero poderia ser revisitado em diferentes momentos da escolarização – na mesma série (ou ciclo) ou em séries diferentes (ou ciclos) – de modo que, a cada momento, uma outra abordagem fosse feita, cada vez mais complexa ao longo dos anos. Essa proposta nada tem a ver 73 com a tradição de se trabalhar primeiro a narração, depois a descrição e, por último, a dissertação (ou os textos expositivo-argumentativos). Na verdade, em todos os anos, trabalhar-se-ia com gêneros de todos os agrupamentos (relatar, narrar, descrever ações, expor e argumentar), mudando-se apenaso enfoque: o aspecto enfatizado, a habilidade explorada, a competência desenvolvida. Dolz e Scheneuwly (1996) concebem que, dessa forma, os alunos poderão transferir para outras situações aprendizagens construídas com base na reflexão sobre gêneros textuais que tenham sido foco de reflexão no contexto escolar. Os autores chegam a sugerir uma possibilidade – bastante provisória, conforme fazem questão de ressaltar – de organização da progressão escolar quanto ao tratamento dos gêneros da ordem do argumentar, ao longo de nove ciclos, como mostra o Quadro 2, uma adaptação da tabela que eles apresentam: Ver o link do artigo. Analisando o quadro 2, percebemos que diversos gêneros são recorrentes em vários ciclos, como é o caso do debate. Entretanto, a cada ciclo, tanto as competências e habilidades quanto as unidades lingüísticas que serão objeto do trabalho sistemático em sala de aula diferem. Por exemplo, percebe-se uma progressão quanto à complexidade do tratamento da elaboração de argumentos: inicia-se pela exposição de pelo menos um argumento (ciclos 1-2), passa-se a solicitar a hierarquização de uma seqüência de argumentos em função da situação (ciclos 3-4), depois a sustentação por meio de exemplos (ciclos 5-6), até a exploração dos argumentos de cada uma das teses possíveis sobre o tema em debate (ciclos 8-9). A mesma progressão quanto aos recursos e estratégias lingüísticas pode ser percebida no quadro 1, desde a simples utilização de organizadores de causa nos ciclos 1- 2 (porque, por isso, etc.) até o uso de verbos declarativos neutros (dizer, falar), apreciativos (assegurar), depreciativos (titubear). Tal proposta de progressão, no entanto, não pode ser encarada como uma grade fechada, em que os alunos não possam utilizar os recursos colocados como foco de reflexão em dada série nos ciclos anteriores. Ou seja, para produzir um texto da ordem do argumentar, as crianças, desde muito cedo, usam exemplos e hierarquizam argumentos. Estudos como o de Leal (2004) mostram que, já aos 8 anos de idade, as crianças podem ser capazes de usar articuladores de vários tipos 74 e podem construir textos escritos com marcação de diferentes pontos de vista acerca de um tema. Estamos, assim, propondo que uma progressão desse tipo seja uma forma de orientar o trabalho docente quanto aos focos principais de reflexão sistemática, e não como um conjunto de “habilidades” que só poderiam começar a emergir a partir do trabalho em sala de aula. As crianças e os adultos, quando envolvidos em atividades de leitura e produção de textos, estão sempre se deparando com os recursos lingüísticos comuns aos gêneros que estão usando. A sistematização planejada das situações didáticas é que pode ser realizada valendo- se de previsões como as exemplificadas acima. Para melhor explicitar nossa proposta (construída com base nos pressupostos defendidos pelos autores citados até este momento), exemplificaremos com um projeto de abordagem de gêneros textuais em uma turma de 7ª série, ao longo de quatro semanas. O projeto temático, intitulado “Violência na mídia: assunto de menor?” teve como um dos objetivos a sensibilização dos alunos para o tratamento que a mídia (rádio, televisão, jornal e revista) dá à violência praticada por menores, o que ajuda a construir determinada imagem desses menores. O produto final do projeto consistia em uma campanha de conscientização sobre a questão em pauta, através da produção dos seguintes gêneros: manifesto, panfleto, cartazes, faixas, propaganda de rádio e de televisão. Além disso, seria produzido, ao longo de todo o projeto, um jornal temático para circulação no espaço da escola, em que estariam publicados os seguintes gêneros: artigo de opinião, carta do leitor, pesquisa de opinião pública, entrevista e charge. Na primeira semana, para apresentação do tema e sensibilização dos alunos, trabalhou-se com letras de música e paródias sobre o tema. Os alunos foram levados à leitura crítica das letras de música e, posteriormente, à produção de paródias, para que expusessem sua opinião de modo lúdico, inicialmente. Nessa primeira abordagem, os alunos foram conduzidos a perceber que mesmo gêneros do universo do entretenimento, como a música, podem ter caráter argumentativo. Na segunda semana, em atividades de escuta, os alunos assistiram a uma palestra de especialista e a noticiários televisivos, além de terem escutado noticiários radiofônicos, todos sobre o tema central do projeto. Nessas atividades, o foco constituiu a observação da escolha vocabular feita pelos autores dos textos, ao se referirem ao menor infrator. Essa observação serviu para que os alunos refletissem 75 sobre como a imagem dos menores – positiva ou negativa - pode ser construída com as escolhas lingüísticas feitas nos gêneros da mídia. Após esse trabalho de leitura crítica, os alunos deveriam escrever, ao final da semana, uma notícia, buscando reproduzir o tratamento dado à temática violência praticada por menores, encontrado nos diversos gêneros jornalísticos lidos (e/ou ouvidos): tratamento neutro, desfavorável, sensacionalista, etc. Nessa atividade de produção, os alunos seriam desafiados a tomar posições a respeito do tema e a marcá-las lingüisticamente nos textos, por meio de recursos e estratégias específicas. Isso pode contribuir para que ao aluno perceba, com maior clareza, o quanto os textos revelam das posições dos seus autores e o quanto devemos atentar para isso. A terceira semana se dedicou à preparação mais intensa da culminância do projeto. Dividindo-se o trabalho em equipes, a produção dos gêneros componentes da campanha publicitária – faixa, cartaz, panfleto, manifesto e propaganda de rádio e televisão – e do jornal - artigo de opinião, carta do leitor, pesquisa de opinião pública, entrevista e charge – foi orientada pelos professores. Vale salientar que houve momentos anteriores à produção em que se refletiu sobre as especificidades desses gêneros, para possibilitar que os alunos estivessem mais instrumentalizados para escrever sobre eles. Na última semana, os alunos se envolveram na divulgação e circulação tanto da campanha publicitária quanto do jornal temático. Nesse momento, houve a avaliação sobre a contribuição do projeto tanto para a formação do leitor crítico, quanto para o desenvolvimento de competências, principalmente a argumentativa, foco do projeto. Percebe-se, pela análise do trabalho realizado, que a leitura crítica e o desenvolvimento da competência argumentativa foram os dois eixos estruturadores. Para isso, a seleção de gêneros explorados pautou-se pela aproximação gradual do tema, partindo dos de caráter lúdico (letras de música e paródias), passando pelos noticiosos (notícias e reportagens) até chegar aos persuasivos e argumentativos propriamente (panfletos, cartazes, propagandas de rádio e televisão, artigo de opinião). Em todos os momentos, entretanto, o caráter argumentativo dos diversos gêneros foi evidenciado, observado, refletido, contraposto. Nesse sentido é que as semelhanças entre os gêneros foram tratadas – no caso, a argumentatividade e a temática abordada - de modo que os alunos pudessem perceber e se apropriar, a 76 cada momento, das estratégias argumentativas usadas nos diversos gêneros. Nesse exemplo, quisemos mostrar que, em um mesmo momento, podemos trabalhar com diferentes gêneros textuais, salientando para os alunos as semelhanças entre alguns deles e o quanto se prestam a uma mesma finalidade. Gêneros da ordem do relatar, como as notícias, e da ordem do argumentar, como as cartas de leitores e os artigos de opinião, entreoutros, foram lidos e produzidos pelos alunos. Esses mesmos alunos, na perspectiva adotada, poderiam, em outros momentos, ler e produzir gêneros da ordem do narrar, como contos ou crônicas; do descrever ações, como os regulamentos; e do expor, como as notas de enciclopédias. Nesse mesmo ano, eles seriam desafiados a ler, a escrever e a refletir sobre textos dos cinco agrupamentos citados. Seguindo a proposta de progressão apresentada anteriormente, teríamos que garantir que esses mesmos alunos se deparassem com outras situações, nas séries seguintes (8a série e Ensino Médio), em que gêneros textuais dos cinco agrupamentos fossem foco de leitura, produção de textos e reflexão em sala de aula. Assim, eles iriam rever conceitos focalizados na 7a série, pensar sobre novos conceitos e desenvolver nova capacidade textual. Para finalizar O projeto descrito acima exemplifica, em parte, a proposta de Dolz e Schneuwly (1996), de que trabalhar com competências – no caso, a argumentativa – implica a escolha de gêneros em função dos objetivos pedagógicos e, não apenas, em função de suas características internas. No projeto, privilegiou-se o trabalho com gêneros dos agrupamentos do relatar e do argumentar, já que se procurava desenvolver a leitura crítica de textos midiáticos e a competência argumentativa dos alunos. Não se trata, portanto, de haver gêneros mais fáceis e mais difíceis, independentemente da situação escolar em que serão explorados. Trata-se, antes, de realizar uma exploração dos gêneros mais aprofundada ou mais superficial, mais ampla ou mais restrita, mais focalizada ou mais geral, o que depende, fundamentalmente, dos objetivos do trabalho. Em princípio, salvo algumas exceções, qualquer gênero pode ser trabalhado em mais de uma série ou ciclo, depende apenas de como se dá o encaminhamento pedagógico. A espiral do ensino se concretizaria nesse “revisitar” constante de gêneros ao longo do processo de escolarização com um novo olhar a cada um desses momentos, nos quais se pode 77 descobrir sempre outra faceta, outra peculiaridade do gênero, antes não explorada. Assim, organizar a progressão do trabalho com gêneros na escola implica decidir sobre as competências e habilidades que se deseja explorar. Por essa razão, clareza sobre os objetivos pedagógicos é o requisito de base, com base no qual todo o planejamento pedagógico deve ser construído. REFERÊNCIAS BRONCKART, Jean-Paul s(1999). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: EDUC. DOLZ, Joaquim. Produire des textes pour mieux comprendre: L’enseignement du discours argumentatif. In: Reuter (Ed.). Les interactions lecture - écritu-re, Berne: Peter Lang, p. 219-242. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Genres et progression en expression ordre et écrite - Eléments de réflexions à propos d’une experiénce romande. LEAL, Telma Ferraz. Produção de textos na escola: a argumentação em textos escritos por crianças. Tese de Doutorado. Recife: Pós-Graduação em Psicologia, 2004. SCHNEUWLY, Bernard (1994). Genres et types de discours. Considérations psychologiques et ontogénetiques. In: Y. Reuter (ed.) Les interactions lecture - écriture. Berne, Peter Lang. 155 - 173. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim (1999). Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação – ANPED, n. 11, 5-16. 78 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCOLAR E LETRAMENTO Telma Ferraz Leal Nos capítulos anteriores, vimos discutindo sobre o princípio fundamental que rege hoje as propostas de ensino da língua portuguesa numa perspectiva sócio-histórica: “Ensinamos língua para que o aluno aprenda a problematizar o cotidiano através da linguagem, para que possa interagir de forma intensa e consciente nas diferentes esferas de participação social”. É nessa perspectiva que trataremos sobre a organização da prática pedagógica e sobre os fenômenos interdisciplinares com os quais obrigatoriamente lidamos quando encaramos o ensino da língua numa abordagem sociointeracionista. As propostas curriculares que vêm sendo construídas a partir da década de 80 do século passado têm alguns aspectos em comum, oriundos das tentativas de aproximação desse princípio básico que acima explicitamos: (1) tomam como núcleo central do ensino da língua portuguesa o desenvolvimento das capacidades de compreensão e de produção de textos; (2) afirmam a necessidade de utilização de textos autênticos e pertencentes a diversos tipos e gêneros textuais; (3) propõem práticas de ensino que aproximem as atividades escolares dos usos e funções da linguagem nos ambientes extra-escolares, entre outros. Para atender a esses postulados, essas propostas têm, na maior parte das vezes, delimitado os objetivos didáticos em quatro eixos básicos: prática de leitura; produção de textos escritos; análise lingüística e língua oral. O fundamental, nesse contexto, é entendermos que esses eixos não são independentes, e que diferentes dimensões da língua se entrecruzam nas práticas de produção e compreensão de textos orais e escritos, exigindo de nós, agentes nesses processos interlocutivos, diferentes habilidades, conhecimentos e atitudes ante os eventos de interação mediados pela língua. É papel da escola ajudar os alunos a desenvolver tais habilidades, conhecimentos e atitudes. Na verdade, todos esses eixos, quando tratados na perspectiva que estamos defendendo, visam à ampliação do grau de letramento dos alunos. Quando tratamos do ensino da língua portuguesa nas séries iniciais, essa proposta parece, às vezes, 79 incompatível com as possibilidades reais dos alunos nesses graus de escolaridade. A pergunta geralmente feita é: como ler e produzir textos sem saber ler nem escrever? Percebendo a complexidade dessa questão, muitas vezes negligenciada por autores que tratam da alfabetização, propomos que tenhamos que, como primeira tarefa, delimitar os objetivos principais do ensino da língua portuguesa, de modo a não termos a impressão de que precisaremos “dar conta de tudo” nos anos iniciais de escolarização. Nossa proposta é que centremos nossa atenção na apropriação do sistema alfabético e na capacidade de produção e de compreensão de diversos gêneros orais e escritos, levando os alunos a atentar para as diferentes finalidades que orientam nossas atividades de leitura, escuta, fala e escrita. Alertamos, portanto, que não nos detenhamos em conteúdos ligados à definição, classificação, identificação de classes gramaticais, nem em conhecimentos relativos à análise sintática ou à memorização de partículas formadoras de palavras (prefixos e sufixos, por exemplo) em turmas que não tenham de fato desenvolvido a capacidade básica de leitura e de produção de textos. Assim, estamos defendendo que, no eixo da análise lingüística, priorizemos aspectos/objetivos que auxiliem os alunos a produzir/compreender textos, tais como: sistema alfabético, ortografia, pontuação, paragrafação, concordância, coesão, estruturação dos períodos, sempre numa perspectiva de criar condições para que os alunos produzam e compreendam textos. Os objetivos ligados à reflexão sobre os gêneros textuais, que também vêm permeando as salas de aula, podem, nesse bojo, também ser considerados nessa mesma concepção. Ou seja, a reflexão sobre os gêneros deve servir muito mais para que os alunos pensem sobre aspectos sociodiscursivos dos textos do que para aprender a definir, a classificar, a identificartextos. Nosso esforço em delimitar tais objetivos, como foi dito acima, advém da clareza que temos de que a aprendizagem do sistema alfabético é muito complexa e que aliar isso ao ensino da leitura e produção de textos, também dotado de alto grau de complexidade, é tarefa que exige planejamento, atenção, apropriação de saberes pelos professores, que não podem se sentir solitários diante de tais demandas. 80 Por isso, neste capítulo, tentaremos compartilhar alternativas didáticas discutidas e vivenciadas por professores que encontraram, coletivamente, muitas respostas ao como conciliar o ensino da escrita alfabética ao ensino da produção e compreensão de textos orais e escritos. Sabemos que muito temos ainda para aprender, mas vamos compartilhar o que já construímos até agora. Por que planejar o cotidiano da sala de aula? Na introdução deste capítulo, falamos da necessidade de delimitar os objetivos principais do ensino nas séries iniciais para que não nos dispersemos, uma vez que, centrando atenção no que é essencial, temos mais chances de conseguir atingir as nossas metas. Essa delimitação leva-nos a perceber que o que queremos, como objetivos principais, é levar os alunos a produzir e a compreender textos e que, para isso, eles precisam apropriar-se do sistema alfabético e de normas ortográficas básicas; desenvolver capacidades de localizar informações em textos; elaborar inferências; estabelecer relações intertextuais; estabelecer relações sintático- semânticas entre partes do texto; organizar seqüencialmente informações em um texto, atendendo à finalidade proposta e adequando o texto aos seus destinatários; revisar textos quanto ao conteúdo, quanto à clareza, quanto à coesão textual (uso de articuladores textuais, pontuação, paragrafação) e quanto ao atendimento a normas cultas básicas (estruturação de períodos, concordância); conhecer diferentes gêneros textuais, lendo e produzindo exemplares desses gêneros; entre outras ações lingüísticas. E tudo isso precisa ser abordado ao mesmo tempo, desde a educação infantil. Dessa forma, estamos querendo evidenciar a necessidade de organizarmos o tempo pedagógico, de modo a garantirmos que essas habilidades, conhecimentos, atitudes possam ser de fato inseridos no ensino da língua. Assim, acreditamos que, através da atividade de planejar, podemos refletir sobre nossas decisões, considerando as habilidades e os conhecimentos prévios dos alunos, e podemos conduzir melhor a aula, prevendo dificuldades dos alunos, organizando o tempo de forma mais sistemática e avaliando os resultados obtidos. 81 Para realizarmos planejamento no sentido acima exposto, precisamos desenvolver atitudes de registro e armazenamento de material, possibilitando-nos reaproveitar idéias e repensar o que já foi feito. Magalhães e Yazbek (1999, p. 37), a esse respeito, afirmam que: são as observações, os registros de situações e as reflexões sobre essas observações que lhe possibilitam (o professor) distanciar-se de seu fazer e compreendê-lo de forma mais ampla, não mais como simples agir, mas como uma ação didática possível de ser generalizada e transferida para novas situações. Sem uma ação reflexiva, suas experiências, por melhores que sejam, mantém-se no âmbito da vivência, circunscritas àquele grupo e momentos únicos em que foram concebidas. Assim, o planejamento assume um papel também de autoformação profissional, na medida em que permite que retomemos o que fizemos e pensemos sobre o que faremos em outras situações, possibilitando-nos replanejamentos contínuos e sistemáticos. Em suma, o que queremos é salientar o quão importante é essa etapa do ensino e o quanto temos a ganhar quando desenvolvemos boas estratégias de planejamento e registro do nosso dia-a-dia. A seguir, haveremos de nos deter em reflexões relativas às diferentes maneiras de organizar as atividades de sala de aula quando fazemos nossos planejamentos. As múltiplas formas de organização das atividades didáticas Para pensarmos sobre a organização das atividades didáticas, fizemos uma classificação dos tipos de situação de sala de aula que temos encontrado em nossas observações. As modalidades de organização que serão expostas com base nos exemplos dos professores e das professoras que pensaram conosco este capítulo são principalmente de cinco tipos: (1) atividades permanentes; (2) projetos didáticos; (3) atividades seqüenciais; (4) atividades esporádicas, e (5) jogos. ATIVIDADES PERMANENTES A leitura faz parte da rotina de sala de aula da turma de Infantil VI (alfabetização) que ensino. Todos os dias, após a colocação da data no quadro, realizamos leituras de textos diversos (poemas, contos, parlendas, história em quadrinhos, entre outros). Os alunos ficam muito ansiosos por esse momento. A princípio era eu que 82 levava o material que ia ser lido para a sala (do acervo da escola ou do meu acervo pessoal). Levava dois ou três para eles escolherem qual gostariam de ler naquele dia, mas sempre dizia que quem tivesse em casa podia trazer para a gente ler. Depois de um tempo, os alunos foram se empolgando cada vez mais e faziam questão de participar, trazendo materiais que tinham em casa, como livrinhos de conto de fadas, gibis e histórias bíblicas. Notei que com esses momentos meus alunos despertaram mais para a leitura. Já conseguem perceber, entre outras coisas, se o texto lido se trata, por exemplo, de um conto, de uma poesia ou de uma história em quadrinhos. Várias vezes os vi ensaiando leituras de livrinhos e mesmo que ainda não tenham muito domínio não ficam desestimulados. Isso tornou bem mais fácil o trabalho com a leitura na sala de aula. (Leila Nascimento da Silva, turma: Infantil VI (alfabetização), Escola Municipal Santa Catherine Labouré, em Jaboatão dos Guararapes). Leila deu um exemplo de uma atividade permanente que realizava: leitura diária. Os jovens alunos da professora mostraram interesse pelos textos que ela levava para a sala de aula. Interessante observar, no relato da docente, que, aos poucos, os próprios alunos começaram a levar textos para a sala. Esse relato leva-nos a perceber que muitas vezes nós subestimamos nossos alunos, quando dizemos que não podemos fazer tal solicitação em escolas públicas porque os alunos não dispõem de livros de literatura. Na verdade, em grande parte dos lares isso se confirma, mas, na medida em que um ou outro aluno traz esses livros, podemos verificar que existe a possibilidade, que não pode ser desperdiçada, de conhecermos melhor o que nossos alunos dispõem em casa ou em outros ambientes nos quais eles circulam, e que nós não sabemos. A leitura diária na escola já vem sendo apontada como uma das estratégias mais eficazes para inserir os alunos no mundo da literatura, da mídia, do humor. Participando dessas situações, os alunos se familiarizam com variados gêneros textuais e ampliam seus repertórios de textos, o que pode levá-los a querer ter acesso a outros textos do mesmo gênero, ou do mesmo autor, ou do mesmo tema. 83 Entre outros “ganhos”, podemos citar a ampliação do vocabulário, que, sem dúvida, gera mais compreensão em textos de diferentes gêneros. Purcell-Gates (2004, p. 33) salienta a esse respeito que: foi demonstrado que a prática de leitura influi no aumento de vocabulário. A leitura de contos provoca a aprendizagem de palavras novas, introduzindo palavras de baixa freqüência no repertório léxico do menino ou da menina. Por exemplo, Crain-Thoreson e Dale (1999), em um estudo sobre a leitura de contos, concluíram que a freqüência de leitura decontos aos 2 anos de idade era um dos melhores indicadores do domínio posterior da linguagem, medido em conhecimento de sintaxe e vocabulário aos 12 anos. Além da ampliação do vocabulário e do aumento do grau de letramento, como maior familiarização com os diferentes gêneros textuais, os alunos aprendem sobre as características da linguagem escrita. O melhor argumento, no entanto, para realizarmos atividades permanentes de leitura de textos é a construção de uma identidade leitora, em que diferentes finalidades de leitura constituam práticas permanentes desses alunos, incluindo-se, aí, as práticas de leitura para fruição, para deleite. O fundamental é que os alunos gostem/queiram ler cada vez mais. Lembramo-nos, ao falar sobre tal tema, da crônica “Concertos de leitura”, de Rubem Alves (1996), quando ele se refere a sua professora de infância: Foi Dona Iva – não sei se ela ainda vive – quem me ensinou que ler pode ser delicioso como voar ou como patinar. Ela lia para nós. Não era para aprender nada. Não havia provas sobre os livros lidos. Ela lia para que tivéssemos o prazer nos livros. Era pura alegria. Poliana, Heidi, Viagem ao céu, O saci. Ninguém faltava, ninguém piscava. A voz de dona Iva nos introduziu num mundo encantado. O tempo passava rápido demais. Era com tristeza que víamos a professora fechar o livro. Apesar de ser uma das mais citadas e mais importantes, a leitura diária não é a única atividade permanente que encontramos nas escolas. Hora da conversa, chamada, hora da música, hora da arte são outros tipos de atividade permanentes 84 que também são ótimas para desenvolver capacidade de compreensão e produção de textos dos alunos. Mas, o que são atividades permanentes realmente? Entendemos que as atividades permanentes são intervenções pedagógicas realizadas com alta freqüência, através de certa repetição de procedimentos, num intervalo de tempo, orientados por objetivos atitudinais (relativos ao desenvolvimento de atitudes e valores) e/ou procedimentais (relativos ao desenvolvimento de estratégias de ação, ao “como fazer”). Na hora da leitura, por exemplo, busca-se construir uma identidade leitora, aumentando o repertório de textos a que os alunos têm acesso, ajudando-os a desenvolver o gosto pela literatura, pela música ou pela leitura de jornal, entre outras, dependendo do material escolhido para ser lido. Na hora do desenho, podemos ter como objetivo procedimental fazer com que os alunos desenvolvam estratégias de representar de diferentes modos a realidade, diversificando as técnicas de desenho ou pintura. PROJETOS DIDÁTICOS A professora Zidinete combinou com as demais professoras da escola que iriam realizar um projeto sobre o índio para apresentação no Dia do Índio. Zidinete decidiu propor aos alunos que eles abordassem o tema “O que mudou na vida dos índios nos últimos 500 anos?” Assim, o problema a ser investigado era a vida dos índios no período em que os portugueses chegaram ao Brasil e no período atual (2002), procurando identificar o que mudou e o que permaneceu apesar do tempo. O produto final foi um livro a ser doado à Biblioteca no dia da comemoração do Dia do Índio. Juntamente com os alunos, definiu que as etapas do projeto seriam: levantamento bibliográfico sobre o tema, leitura dos materiais conseguidos (dois textos por aula, fazendo sempre esquemas dos textos em cartazes), discussões sobre o tema a partir das informações colhidas nos materiais, produção de texto individual (que seria a apresentação do livro - cada aluno teria a sua cópia do livro com a sua apresentação), produção coletiva do relato histórico a partir dos esquemas produzidos. A professora comentou como fez levantamento bibliográfico: “Eu pedi pra que eles pegassem os livros e procurassem ver quais livros estavam falando sobre o Índio. Aí foram. Depois que eles pegaram os livros, aí eu selecionei 85 seis livros e aí foram lidos de dois em dois. Segunda, quarta e sexta é aula de Português, aí eu pegava, lia os livros e fazia um esquema. Foram três esquemas que eu fiz com a leitura de dois livros”. O apoio da figura, segundo a professora, era importante porque muitos ainda não sabiam ler. Esses alunos escolhiam os livros que tinham figuras de índios. Os esquemas eram feitos coletivamente, após a leitura dos textos. A professora lia o texto e perguntava quais informações eram importantes para o que eles estavam pesquisando. Os alunos destacavam as informações mais importantes dos textos do dia e ela ia escrevendo em uma cartolina em forma de esquema, que deixou expostos na sala. Ela falou de sua função enquanto mediadora do processo de produção de textos: “Eu estava observando [...] Vendo quem estava fazendo... Por que não estavam... Todos fizeram, entendeu? [...] Foram 32 alunos que conseguiram fazer”. (Zidinete Maria Alves Caribé, 1ª série, Escola Municipal Marcelo José do Amaral, Camaragibe - PE). Zidinete forneceu um ótimo exemplo de projeto didático. Durante um mês, os alunos trabalharam junto à professora para elaborar o livro sobre os índios, que foi combinado por eles desde o início do processo. De fato, os projetos didáticos são excelentes modos de levar os alunos a planejar e a executar um plano de ação para chegar a um produto estabelecido no grupo. Os PDs, tal como propõe Leite (1998), implicam intencionalidade; busca de respostas autênticas e originais para o problema levantado pelo grupo; seleção de conteúdos em função da necessidade de resolução do problema e da execução do produto final (conhecimento em uso) e a co-participação de todos os envolvidos nas diversas fases do trabalho (planejamento, execução, avaliação). Essa forma de trabalho favorece, de maneira dinâmica, a construção do pensamento científico e de atitudes de pesquisa. Assim, vários objetivos procedimentais são visados nos projetos didáticos. Muitos desses procedimentos que são desenvolvidos na execução de um projeto didático são os que pesquisadores utilizam na construção do conhecimento científico. García-Milà (2004, p. 133) assinala que a construção do conhecimento científico envolve processos estratégicos de dois tipos: básicos e integrados. Segundo a autora: os processos estratégicos básicos são observar, classificar, comunicar, tomar medidas, fazer estimativas e predizer. Os processos estratégicos integrados requerem uma combinação dos anteriores e representam os processos de investigação científica: identificar, controlar e operacionalizar variáveis, formular 86 hipóteses, projetar experimentos, compilar, representar e interpretar dados, projetar modelos, fazer inferências, argumentar conclusões, e, finalmente, elaborar informes científicos. Essa mesma autora defende que: Ao aprender ciências, desenvolvem-se formas para compreender o mundo; para isso, os meninos e as meninas têm de construir conceitos que os ajudem a conectar experiências. São também desenvolvidas estratégias para adquirir e organizar informação e aplicar e comprovar idéias, ao mesmo tempo em que se adquirem atitudes científicas. Tudo isso contribui para dar sentido ao mundo e também os prepara para tomar decisões e solucionar problemas na vida. Tudo isso que foi dito pela autora pode ser realizado via execução de projetos didáticos que levem os alunos a elaborar um problema, decidir como vão solucionar tal problema e que tenham uma meta a ser atingida. O ensino de língua é bastante incorporado na execução de projetos didáticos, desde que as diferentes estratégias de coleta e organização de informações, registro de resultados e de divulgação dessesresultados são realizados, via de regra, através de textos orais e escritos de diferentes gêneros. De modo geral, os alunos precisam ler textos científicos, com informações sobre o tema pesquisado, textos instrucionais, com orientações sobre como fazer experiências, textos jornalísticos, quando o tema assim o exige. Esses diversos textos precisam ser estudados, e as informações relevantes precisam ser anotadas ou mesmo organizadas em esquemas, resumos, tabelas, gráficos, que são gêneros textuais de importância crucial no processo de escolarização. Além desses, são, ainda, produzidos outros textos para divulgar os resultados do trabalho ou mesmo para intervir na sociedade, em projetos que envolvem intervenção na comunidade. No caso do projeto desenvolvido por Zidinete, as informações foram inicialmente organizadas em esquemas, e, posteriormente, foi produzido o relato histórico de forma coletiva. Na atividade de produção coletiva, os alunos têm muito a aprender. Teberosky e Ribera (2004), por exemplo, salientam que, através da mediação da professora, a escrita lhes facilita novas formas de analisar a linguagem que utilizam, os conteúdos que comunicam, seus pensamentos e, nesse caso, sentimentos. A escrita lhes ajuda a analisar seus sentimentos e os dos demais, a compartilhá-los e a buscar 87 soluções.(p. 64) Não devemos, também, esquecer que, na produção de textos escritos coletivos, os alunos utilizam seus conhecimentos oriundos das práticas orais de uso da língua. Conforme salientam Val e Barros (2003, p. 136), o domínio da modalidade oral da língua, que significa a capacidade de interpretar e produzir adequadamente textos falados, no ambiente social cotidiano, é a base sobre a qual se assenta o processo de construção e desenvolvimento dos conhecimentos necessários à interação verbal mediada pela escrita. Assim, vemos, nos projetos didáticos, espaço para produção e compreensão de textos exemplares de diferentes gêneros textuais, o que contribui enormemente para a ampliação do grau de letramento dos alunos. ATIVIDADES SEQÜENCIAIS Obtive a informação sobre a exposição “História em Quadrões”, de Maurício de Sousa, e fui ao Departamento de Atividades Culturais e Desportuais - DACD/SE - da Prefeitura do Recife para agendar uma visita com os meus alunos à referida exposição. Recebi a orientação para procurar o Departamento do 1º e 2º ciclos. Neste departamento, fui informada que existiam critérios a serem considerados na escolha das escolas que iriam prestigiar o evento. No dia seguinte, retornei ao Departamento e descobri que o nome da “minha” escola não fazia parte da lista. Na escola, conversei com os alunos e expliquei a situação. Sugeri que eles escrevessem um bilhete para a diretora do Departamento do 1º e 2º ciclos, solicitando a nossa ida a Brennand (local onde estava ocorrendo o evento). Entreguei os mesmos à secretária e retornei posteriormente para saber a resposta. Como a mesma foi positiva, pedi aos alunos que escrevessem outro bilhete, de agradecimento. No período que antecedeu a visita, realizamos as seguintes atividades: assistimos o vídeo “cinegibi”, com a turma da Mônica; os alunos leram e folhearam gibis da turma da Mônica; listamos os personagens da turma da Mônica; os alunos produziram histórias em quadrinhos (desenho e texto); os alunos produziram histórias a partir de tiras das histórias em quadrinhos, da turma da Mônica, (atividade com os gibis); os alunos produziram uma história a partir de tiras das histórias em quadrinhos, da turma da Mônica (atividade xerocada); os alunos leram uma história em quadrinhos que foi afixada no quadro e concluíram a mesma 88 (o diálogo do último quadrinho); fizeram leitura do exemplar diarinho (sobre a exposição); fizeram votação para a escolha do nome da biblioteca (Maurício de Sousa era um dos candidatos). Após a visita, os alunos fizeram uma releitura de um quadro de Van Gogh e Maurício de Sousa e atividades com o objetivo de apropriação do sistema alfabético. As situações didáticas foram positivas, a princípio porque fizemos uso da escrita e leitura dentro de uma situação real (os bilhetes); realizamos ainda diversas leituras de imagens (vídeos, gibis, quadros de Maurício de Sousa e Van Gogh) e trabalhamos em sala com diversos gêneros de texto (jornal, bilhetes, história em quadrinhos, cédulas de votação). (Maria Solange Barros, 1ª ciclo do 1ª ano, Escola Municipal Cidadão Herbert de Souza, em Recife-PE). As atividades seqüenciais são formas que tradicionalmente os professores e as professoras têm adotado para articular diferentes partes de uma aula ou de aulas seguidas. O princípio fundamental é fazer com que não haja rupturas bruscas entre uma atividade e outra. Diferentes formas de conduzir atividades seqüenciais podem ser adotadas. Um tema geral, um conteúdo de ensino, um tema de um texto lido ou um gênero textual pode ser o elo de articulação entre atividades didáticas. No exemplo da professora Solange Barros, houve uma organização das atividades, tomando-se como elo de articulação um gênero textual – história em quadrinhos – e personagens criados por Maurício de Souza Turma da Mônica. Cada atividade sugerida guardava, em algum grau, relação com essas personagens. Conhecer as histórias em quadrinhos de Maurício de Souza e seus personagens era fundamental para entender a exposição que iriam visitar. Atividades interessantes foram realizadas. O uso da escrita para conseguir ter acesso à exposição, através da escrita do bilhete, foi importante, já que os alunos produziram um texto com uma finalidade real. A proposta de outro bilhete, com uma finalidade diferente (agradecer o apoio dado para o grupo), foi também fundamental para inserir diferentes práticas de uso da língua. As atividades seguintes, que envolveram leitura e escrita de textos de dois gêneros (histórias em quadrinhos e tiras), favoreceram o conhecimento dos alunos sobre os gêneros trabalhados e sobre um autor específico – Maurício de Souza. A ampliação do repertório de textos dos alunos foi, assim, garantida através de diferentes situações didáticas articuladas. A leitura do texto em que a exposição que iriam assistir foi apresentada (diarinho) também contribuiu para introduzir a leitura 89 com outra finalidade presente em nossa sociedade: saber informações sobre eventos culturais e criar expectativas sobre tais eventos, ativando conhecimentos prévios sobre o que será visto. Após a visita, a discussão sobre os quadros favoreceu uma retomada sobre o tema da exposição e possibilitou que novos questionamentos fossem feitos. Assim, a professora fez uma seqüência de atividades articuladas, utilizando diferentes estratégias didáticas para chegar a objetivos previamente pensados. Outro exemplo de atividade seqüencial foi realizado pela professora Ana Luzia da Silva Pedrosa, da 2a série da Escola Estadual Professor Fontainha de Abreu, em Recife – PE: A aula teve início com a história “O aniversário do Saci”, em um álbum seriado. Depois da leitura feita pela professora, foi retomada a conversa sobre o que é folclore, e as crianças construíram uma definição coletiva sobre o tema. Depois dessa conversa, as crianças ouviram novamente a história lida pela professora. Feita a leitura, foi iniciada uma conversa sobre o texto e foram realizadas as seguintes atividades: lista de convidados do Saci (os personagens da lenda); construção coletiva do convite da festa; produção da lista de comidas e bebidas típicas e, para finalizar, reconto livre da história ouvida. As atividades continuaram por toda a semana, tratando de uma lendapor dia. Como podemos ver na descrição feita por Ana Luzia, as atividades realizadas em cada dia tinham como eixo de articulação os textos lidos. Dessa forma, havia uma seqüência em cada dia, articulada pelo texto, e, durante toda a semana, as seqüências se articulavam pelo tema “lendas”. O trabalho por meio de tema gerador é também uma organização através de atividades seqüenciais. Nessa forma de organização, os alunos respiram determinado tema durante um intervalo de tempo, havendo, geralmente, uma situação de culminância, em que os trabalhos dos alunos realizados durante aquele período são expostos para um público convidado. Há uma adoção desse tema por professores de diferentes áreas de conhecimento, de modo a favorecer ao aluno diferentes momentos para agregar conhecimentos relativos ao assunto. As atividades seqüenciais são boas por conduzirem os alunos a compreender determinado conceito, ou regra, ou mesmo a desenvolver procedimentos, em diversas situações, apreendendo diferentes facetas desse saber em construção. A esse respeito, Sadovsky (1994, p. 7) diz-nos que: não é admissível que as crianças 90 adquiram de uma vez e para sempre todos os significados de um conceito, mas sim que o façam através da resolução de diferentes tipos de problemas. Estamos pensando, portanto, num processo de sucessivas aproximações, organizações e reorganizações. ATIVIDADES ESPORÁDICAS A professora, após recordar histórias do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” que já haviam sido trabalhadas com os alunos, propôs a seguinte atividade: P: Vamos fazer uma lista com os nomes dos personagens (a professora colou uma cartolina no quadro, com o título “lista dos personagens do sítio do pica-pau amarelo”). Qual é o primeiro personagem?”. A: Emília. A professora chamou três alunos para escrever o nome Emília no quadro. Ela comparava suas escritas e discutia questões de apropriação do sistema alfabético pertinentes à palavra. Quando descobriam como era a escrita correta, colocavam a palavra na cartolina. O mesmo procedimento acontecia com todas as palavras da lista. Os alunos, após debate sobre como escrever as palavras, copiavam no caderno a palavra correta que a professora colocava na cartolina. P: Qual é o segundo personagem que a gente vai escrever? A: Pedrinho. A professora chamou mais três alunos para escrever “Pedrinho”... Escreveram Tia Anastácia, Saci, Rabicó, Cuca... No Final da atividade, propôs: P: Vamos ler o que a gente já fez? (A professora apontou para as palavras e leu com os alunos cada nome da lista)”. (Relatório de aula elaborado por Kaasy Mary, após observação de uma aula de Danielle Felix da Silva, 1ª série, Escola Municipal Jaboatão dos Guararapes, Jaboatão dos Guararapes-PE). As atividades esporádicas são aquelas que realizamos de modo descontínuo, sem haver articulação com outras atividades de sala de aula. Aparecem, geralmente, para estabelecermos objetivos que não estão sendo considerados em outras formas de trabalho que estamos realizando naquele momento específico. Um exemplo claro de atividade esporádica foi observado por Kasy Mary, na aula de 91 Danielle. Nesse caso, ela queria realizar a atividade de reflexão sobre a escrita das palavras. Escrever listas para refletir com os alunos acerca dos princípios do sistema é uma atividade comum. A docente escolheu um tema para seleção das palavras que, provavelmente, provocou interesse das crianças: personagens do Sítio do Pica- Pau Amarelo. Os alunos já tinham conhecido esses personagens em outras situações – assistindo à televisão e escutando as histórias lidas pela professora em sala de aula – e estavam, naquela aula, aprendendo a escrever essas palavras que tinham um conteúdo significativo para elas. A apropriação do sistema alfabético era a preocupação da docente nessa aula. Assim, verificamos que, embora a atividade não tivesse articulação com nenhuma outra do dia, não era uma proposta estranha às crianças. Tentar trabalhar com tarefas que provoquem interesse dos alunos é, portanto, um desafio que precisamos enfrentar. Outras atividades que criamos para refletir sobre a escrita alfabética, sobre pontuação, concordância, ou mesmo atividades de produção de textos para atender a alguma demanda isolada (bilhete para os pais, carta para uma colega ausente, convite para uma festa da escola) podem ser pensadas, sem que necessariamente tenhamos uma seqüência para executar. É importante frisar que, quando a atividade é clara e a condução é apropriada, não há estranhamento por parte dos alunos. Eles, na verdade, sabem que há uma articulação daquela atividade com outras realizadas durante o ano letivo, em função dos objetivos de ensino da professora. No capítulo 5 desta obra, as autoras discutiram sobre essa dimensão escolar das relações que se travam no interior da sala de aula. JOGOS Tenho na sala 3 caixas com rótulos separados em grupos temáticos: alimentos, higiene e remédios. Esses rótulos são sempre lidos e trabalhados em sala. Nesse dia, confeccionei cartelas com 12 lacunas para colar o rótulo. Mandei que cada aluno escolhesse os 12 rótulos para colar em sua cartela. Depois que fizemos todas as cartelas, fomos jogar o bingo. 92 Cada rótulo chamado era escrito e lido junto com os alunos e quem tinha o rótulo em sua cartela marcava com um X. A atividade foi muito proveitosa, pois primeiro os próprios alunos escolheram seus rótulos, lendo o que queriam ou levantando a hipótese sobre o que escolhiam. E depois a própria leitura e escrita com toda a sala e leitura individual na hora de marcar o rótulo (Rosenaide Moreira dos Santos, 2ª ano do 1ª ciclo, Escola Municipal Monte Castelo, em Olinda-PE). Os jogos são atividades que existem na nossa sociedade e que, portanto, fazem parte da vida dos alunos. Na escola, eles adquirem uma dimensão diferente, dado que existem objetivos didáticos associados às finalidades dos jogadores. A professora Rosenaide, ao trazer para a sala de aula jogos de alfabetização, tinha como propósito fazer com que os alunos compreendessem diferentes princípios do nosso sistema. Por serem atividades lúdicas, temos, em geral, boa aceitação dos alunos: tanto as crianças quanto os jovens e adultos envolvem-se em jogos na sala de aula. O bingo proposto levava os alunos a tentar ler os rótulos que já tinham tido acesso em outros momentos na sala de aula, a pensar sobre a escrita desses rótulos, através da intervenção da professora, e a construir um repertório de palavras estáveis que podem servir como referência para a escrita de outras palavras. Assim, os alunos participaram de uma atividade em que leram textos que circulam na nossa sociedade e tiveram a oportunidade de mobilizar e socializar conhecimentos sobre nosso sistema de escrita. No exemplo que usamos, utilizamos um jogo de regras. No entanto, diferentes tipos de jogo são encontrados no dia-a-dia, tal como os jogos de enredo. Nesse tipo de brincadeira, as crianças exercitam papéis do mundo adulto e inserem-se, nesse mundo imaginário, em diferentes esferas de interação, produzindo diversos gêneros textuais adequados às situações vividas (bilhetes, listas, convites...). Consideramos, portanto, que, através de diferentes tipos de jogo, os alunos podem participar de eventos de letramento, com acesso a variados gêneros textuais, e podem centrar-se em especificidades do sistema alfabético de escrita, que é uma das prioridades nesse grau de escolaridade. Planos de ação: a questão da rotina periódica Todas as formas de organização do trabalho de sala de aula acima discutidas93 favorecem múltiplas aprendizagens. No entanto, é importante perceber que existem algumas estratégias mais apropriadas que outras para determinados objetivos. Por exemplo, para apropriação do sistema alfabético, nem sempre conseguimos trabalhar com projetos didáticos. Ou melhor, embora esse eixo possa estar sendo inserido em vários projetos didáticos, essa aprendizagem requer uma constância e uma sistematização que exige que planejemos situações freqüentes e que disponibilizemos material para fazer com que os alunos se apropriem de diferentes princípios do sistema. Dessa forma, fica difícil abrirmos mão de reservarmos um tempo diariamente (ou quase diariamente) para dar conta desse propósito. Os jogos de alfabetização e as atividades seqüenciais ou mesmo as atividades esporádicas podem ser mais facilmente pensadas com essa freqüência do que os projetos didáticos. Por outro lado, para levar os alunos a ler e a produzir textos, atendendo a diferentes finalidades, o projeto didático é especialmente rico. Nesses casos, é possível planejarmos, com os alunos, produtos que exigirão atitudes de pesquisa, elaboração e revisão textual, numa dimensão sociodiscursiva clara. À primeira vista, poderia parecer que estamos dissociando a aprendizagem da base alfabética da aprendizagem acerca dos usos da escrita. No entanto, não é essa a nossa intenção. Na verdade, concordamos com Soares (2004, p. 15) quando ela defende que é necessário reconhecer as especificidades de um e outro tipo de aprendizagem: A conveniência, porém, de conservar os dois termos (alfabetização e letramento) parece-me estar em que, embora designem processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e competências específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas e, conseqüentemente, procedimentos diferenciados de ensino. Assim, reafirmamos que diferentes procedimentos didáticos são imprescindíveis para atendermos à multiplicidade de objetivos que temos em vista no ensino da língua portuguesa. Por exemplo, o ensino de conteúdos que exigem trabalho de reflexão consciente acerca de conceitos, regras e princípios gerativos (como 94 ortografia, pontuação, concordância) é muito bem conduzido no formato de seqüências didáticas, tal como exemplificamos acima. Por outro lado, objetivos atitudinais e procedimentais que perpassam todas as habilidades acima descritas, que se circunscrevem num espiral em que se torna necessário permanente contato do aprendiz com o objeto de aprendizagem, são eficazmente tratados sob a forma de atividades permanentes. Para ampliar o repertório dos alunos de gêneros textuais, de conhecimentos sobre determinado tema, de suportes textuais, essas atividades são de relevância inquestionável. As atividades de leitura diária pelo professor podem propiciar, acima de tudo, ampliação do grau de letramento dos alunos, desenvolvimento do gosto literário e curiosidade para os diferentes suportes textuais, e também fornecer modelos de leitores, conforme já dissemos. Além de considerarmos os objetivos didáticos ao decidirmos sobre que tipos de organização do trabalho adotaremos, precisamos, também, estar alertas às características do grupo e às formas de interação que já se desenvolveram entre os alunos. A esse respeito, Jacobson (2004, p. 95) atenta que: cada menina ou cada menino pode provir de uma comunidade com modelos diferentes de comunicação; portanto não há maneiras fixas, únicas, de proporcionar o que necessitam. Os professores e as professoras e as escolas precisam educar-se a si mesmos em relação a seus estudantes para criar estruturas de gestão da aula culturalmente sensíveis. Perante essa constatação, assumimos que é possível e necessário variar, ao longo do ano letivo, as modalidades de tratamento dos conteúdos em língua portuguesa. Diferentes modalidades podem conviver num mesmo período de tempo, favorecendo a adoção de diferentes objetivos de naturezas diversas, de forma paralela. Para ajudar os alunos a prever o que será feito em cada dia e para que possamos planejar nosso dia-a-dia a fundamentados num quadro de expectativa geral, sugerimos a adoção de quadros de rotinas, uma vez que os alunos, através do acesso a esses textos, podem participar do planejamento da aula, assumindo, com a professora, a responsabilidade sobre a utilização do tempo. 95 Para concluir nossa conversa, reafirmamos o princípio geral de que, variando as formas de gestão da sala de aula, com base nos objetivos didáticos e necessidades dos nossos alunos, estaremos inserindo-os em situação com diferentes demandas de engajamento no mundo da linguagem. Em todos os exemplos usados, buscamos salientar que precisamos conciliar a aprendizagem do sistema alfabético de escrita e o desenvolvimento de estratégias de compreensão e produção de textos orais e escritos, sem negligenciarmos nenhuma dessas duas dimensões da escolarização inicial. Realizando uma ação planejada, temos mais condições de dar conta dessa complexa tarefa que é alfabetizar letrando. Vimos refletindo ao longo deste livro sobre o ensino da língua escrita com base na perspectiva do letramento. No 1o capítulo, Eliana Albuquerque trata dos conceitos de alfabetização e letramento, e de que modo esses conceitos, embora se refiram a aspectos diferentes do aprendizado da língua escrita, são complementares e indissociáveis. No capítulo 2, Carmi Santos analisa como a instituição da escolarização obrigatória levou à construção de determinado conceito de alfabetização. No terceiro capítulo, Márcia Mendonça discute questões relativas aos gêneros textuais e seu tratamento na alfabetização e no ensino de língua materna. Já o artigo de Telma Leal discute diferentes formas de organização da prática pedagógica em função do ensino da escrita. Na verdade, embora tratando de aspectos diferentes com respeito à relação entre alfabetização e letramento, todos os autores chamam a atenção para a importância de se alfabetizar letrando. Ou seja, levar os alunos a apropriarem-se do sistema alfabético ao mesmo tempo em que desenvolvem a capacidade de fazer uso da leitura e Alfabetizar letrando da escrita de forma competente e autônoma, tendo como referência práticas autênticas de uso dos diversos tipos de material escrito presentes na sociedade. Mas, afinal, em que consiste realmente um processo de alfabetização na perspectiva do letramento? Como conciliar o trabalho com o ensino do sistema alfabético de escrita com as situações de leitura e produção de textos? Como possibilitar situações de leitura e produção de textos a sujeitos que ainda não sabem ler e 96 escrever de forma autônoma? Na tentativa de responder a essas questões, discutiremos inicialmente alguns equívocos cometidos ao falar-se do que vem a ser alfabetizar letrando. Discutiremos, posteriormente, o que, para nós, deve ser entendido como um processo de alfabetização pautado na perspectiva do letramento. E, por fim, objetivando esclarecer melhor em que consiste o alfabetizar letrando, analisaremos duas situações didáticas em que professoras das séries iniciais objetivaram proporcionar a seus alunos a aprendizagem da escrita, inserindo-os em situações de leitura e produção textual. Alguns equívocos na compreensão do que vem a ser alfabetizar letrando Preocupados com a crítica de que os textos utilizados na escola eram artificiais e não representavam as práticas reais de leitura e de escrita presentes na sociedade, muitos professores começarama introduzir em suas aulas diferentes gêneros textuais. Entretanto, ao fazerem isso, acreditavam que os textos que funcionam na realidade extra-escolar pudessem entrar na escola da mesma forma como funcionam fora dela. Dessa maneira, nega-se a escola como um lugar específico de ensino-aprendizagem, o que, pelas suas peculiaridades, acaba por transformar as práticas de referência nas quais os textos vão ser utilizados e produzidos. Sendo a escola lugar específico de ensino-aprendizagem, não é possível reproduzir dentro dela as práticas de linguagem de referência tais quais aparecem na sociedade. Ao entrar no processo de ensino, as situações de produção textual, embora remetendo às situações nas quais tais textos são utilizados nas práticas de linguagem na sociedade, apresentam características peculiares à situação de ensino em que estão inseridas. Como destacou Marinho (1998, p. 77), A necessidade de que a criança faça uso da língua escrita interagindo com uma multiplicidade de textos é, de fato, importante, mas seria importante, também, uma explicitação das condições de “transferência” de alguns textos para o cotidiano da sala de aula, já que o texto, por si só, não garante o seu funcionamento ou as suas possibilidades de significação. 97 Outro equívoco no entendimento do que seja alfabetizar letrando, é utilizar a leitura de diferentes textos apenas como pretexto para o trabalho com palavras que, após escolhidas do texto lido, são divididas em sílabas para depois ser trabalhadas valendo-se do estudo das famílias (ou padrões) silábicas. Ou ainda, cair-se em outro extremo. Acreditar que, apenas com a oportunização da leitura e produção coletiva de textos, os alunos que ainda não dominam o sistema de escrita podem vir a, sozinhos, apropriar-se desse conhecimento. Sendo assim, não oportunizam atividades de reflexão sobre a palavra nem sistematizam o ensino do sistema de escrita alfabético. Afinal, em que consiste alfabetizar letrando? Propiciar aos aprendizes a vivência de práticas reais de leitura e produção de textos não é meramente trazer para a sala de aula exemplares de textos que circulam na sociedade. Ao se ler ou escrever um texto, tem-se a intenção de atender a determinada finalidade. É isso que faz com que a situação de leitura e escrita seja real e significativa. Portanto, ao se ler ou escrever um texto em sala de aula, deve-se objetivar uma finalidade clara e explícita para os envolvidos na situação de leitura ou produção. Discutindo a natureza do ato da leitura, Foucambert (1994) nos faz a seguinte afirmação: Para aprender a ler, enfim, é preciso estar envolvido pelos escritos os mais variados, encontrá-los, ser testemunha de e associar-se à utilização que os outros fazem deles...Ou seja, é impossível tornar-se leitor sem essa contínua interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas – mas é possível ser alfabetizado sem isso.... (p. 31) Que finalidades ou razões poderiam ser essas? A leitura para conseguir alguma informação, para estudo de determinado tema ou, simplesmente, por prazer. Com relação à produção escrita, poder-se-ia escrever para sistematizar e/ou guardar uma informação, para se comunicar com alguém, para relatar um fato, etc. 98 Entretanto, a garantia do acesso à leitura e à produção de diferentes gêneros textuais por si só não assegura a construção de sujeitos leitores e escritores autônomos. Se Foucambert destaca que se pode até ser alfabetizado, mas não ser leitor, Albuquerque, no 1o capítulo deste livro, chama-nos a atenção para o fato de que se pode ser letrado sem ser alfabetizado. Em ambos os casos, não há a construção de sujeitos leitores e escritores autônomos. É preciso, portanto, que, nesses momentos de leitura e escrita, seja oportunizado aos alunos compreender a linguagem que se usa ao escrever os diferentes textos, ou seja, compreender as características textuais de cada gênero em razão das funções que cumpre na sociedade. Mas é preciso também que eles se apropriem da escrita que usamos ao escrever textos, que, no nosso caso, é a escrita alfabética. Não adianta muito o indivíduo saber identificar a que gênero o texto se refere e para que ele serve, se ele não é capaz de recuperar sozinho as marcas registradas no papel. Alfabetizar letrando é, portanto, oportunizar situações de aprendizagem da língua escrita nas quais o aprendiz tenha acesso aos textos e a situações sociais de uso deles, mas que seja levado a construir a compreensão acerca do funcionamento do sistema de escrita alfabético. Em uma situação de aprendizagem na qual os alunos ainda não dominam o sistema de escrita alfabético, faz-se necessário que o professor atue como mediador, seja lendo, seja registrando por escrito os textos produzidos oralmente pelos alunos. No entanto, não se pode deixar para que o aluno produza escritos ou leia apenas quando já dominar o nosso sistema de escrita. É importante que eles possam, desde o início do processo de alfabetização, testar suas hipóteses a respeito da escrita. Se o conhecimento que esses têm da escrita ainda não é suficiente para que leiam ou produzam textos extensos, pode-se levá-los a ler textos memorizados, tais como cantigas, quadrinhas, assim como tentar escrevê-los na íntegra ou parte deles. Analisaremos a seguir como duas professoras organizaram situações de aprendizagem da escrita nas quais os princípios acima colocados foram abordados. Chapeuzinho amarelo: ler e brincar com as palavras A professora Rosivânia Barbosa de Aguiar Carneiro1, juntamente com outras professoras que participaram do curso de extensão “Alfabetização e letramento: leitura e produção de textos”, promovido 99 pelo CEEL, planejaram uma seqüência de atividades que envolvia a leitura do livro de literatura infantil “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque com ilustração de Ziraldo. A seguir, apresentaremos como as atividades foram desenvolvidas na turma da referida professora, cuja aula foi observada pela bolsista Irlânia do Nascimento Silva. Destacaremos, do relato de observação da aula, como a professora Rosivânia conseguiu desenvolver uma atividade de leitura deleite, ao mesmo tempo em que envolveu os alunos em um trabalho de brincar com as palavras, seguindo a proposta do autor do livro. As atividades desenvolvidas foram as seguintes: Antes de ler o livro, a professora conversou com os alunos sobre a temática da história que seria lida, que falava do ”medo”. P.: “Vejam só trouxe uma surpresa pra vocês. Quem gosta de surpresa?” A.: “ Eu”( responderam todas os alunos) 1 A professora Rosivânia Barbosa de Aguiar Carneiro lecionava, em 2004, em uma turma do 1º ano do 1º ciclo, na Escola Municipal Zumbi dos Palmares, pertencente à Secretaria de Educação da cidade do Recife. P.: “ Mas antes de mostrar a surpresa nós vamos conversar”... “ Ou todo mundo é corajoso?” A.: “ Eu” ( alguns alunos afirmaram que tinham medo) A.: “ Eu não”(um aluno negou ter algum medo) A.: “ Não tem medo de nada, é Lúcio?” (a professora perguntou ao aluno que havia negado ter medo de alguma coisa) P.: “ Pois eu tenho medo e vocês já sabem do quê” A.: “De gato” (responderam alguns alunos) P.: “É, vocês já sabem que eu não posso ver um gato que eu tenho pavor”... “Glebison, Douglas e vocês têm medo de quê?” A.: “De jibóia” (Glebison responde para a professora) P.: “Só de jibóia, Glebison?” A.: “ Tubarão” (Glebison acrescentou a resposta anterior) A.: “Mas tubarão não faz medo não” (outro aluno afirmou para a professora e para os seus colegas) (E a conversaprosseguiu com cada aluno falando sobre seus medos). Em seguida, antes de apresentar o livro que seria lido – Chapeuzinho Amarelo - ela 100 quis avaliar o conhecimento dos alunos sobre a história de Chapeuzinho Vermelho: P.: “Olha, tem uma história que todo mundo conhece. É uma história de uma menina que usa um chapeuzinho vermelho”. A.: “Chapeuzinho Vermelho” (um aluno afirmou ser esse o nome da história a qual a professora estava se referindo) P.: “ Eita, eu ia dar mais pistas” ( a professora fez um comentário para a turma) P.: “Olha, o que tinha nesta história?” A.: “ Lobo” ( respondeu um aluno) P.: “Quem tem medo do lobo?” A.: “Chapeuzinho Vermelho e todo mundo” (um outro aluno respondeu para a professora) P.: “ Quem mais tinha na história?” Os alunos falaram dos personagens: Chapeuzinho Vermelho, a vovó, e a professora lembrou do caçador. A professora mostra o livro que iria ser lido e explora o autor e o ilustrador, fazendo questões sobre eles: P. “Mas, olhem. A surpresa que eu trouxe é uma história que eu acho que ninguém conhece. Eu vou só mostrar a capa pra vocês verem” (a professora afirmou isso para os alunos enquanto mostrava a capa do livro de Chapeuzinho Amarelo para toda a turma) ... P. “Olha, Chico Buarque é o autor. Ele fez o que mesmo?” (perguntou a turma) A.: “Escreveu a história” ( responderam alguns alunos) P.: “ E a ilustração fala de quê?” A.: “Quem desenhou a história”( afirmou um aluna) P.: “Isto sim. Olha, Chico Buarque escreveu a história e deu para Ziraldo desenhar” P.: “Alguém já ouviu falar de Chico Buarque e Ziraldo? A.: “ Chico” ( afirmou um aluno) P.: “ É mesmo? O que ele faz?” ( a professora perguntou a este aluno) A.: “ Escritor”( respondeu o aluno) P.: “Sim, mas o que ele é mais? Alguém sabe?” Como os alunos não se pronunciaram, então a professora revelou-lhes os outros talentos de Chico Buarque: 101 P.: “Ele é autor. Escreve letras de músicas e dá pra os outros cantarem”.... “E Ziraldo. Olhem ele também inventou uma história de outro menino... É um menino que tinha um panela na cabeça” A.: “Ah! Eu conheço. É o menino maluquinho” ( afirmou um aluno) P.: “Mas, olha. Quer dizer que Chico Buarque escreveu a história e quem desenhou?” A.: “Ziraldo”( respondeu um aluno) Logo depois de obter essa resposta do aluno, a professora informou à classe que iria começar a leitura do livro “Chapeuzinho Amarelo”. Enquanto ia lendo a história, ela apresentava as ilustrações. Os alunos se mostraram interessados durante a leitura. Em alguns momentos, a professora solicitava que eles completassem a frase, fazendo antecipações, como no trecho apresentado a seguir: P.: “E de todos os medos que tinha o medo mais medonho era o medo do tal do?”(a professora interrompeu a leitura e fez uma pergunta a respeito desse trecho da história) A.: “Lobo” ( responderam alguns alunos) A professora continuou com a leitura: P.: “Um lobo que nunca se via, que morava lá pra longe, do outro lado da montanha, num buraco da Alemanha, cheio de teia de...?” (mais uma vez a professora interrompe a leitura deste parágrafo e faz uma pergunta aos alunos) A.: “Aranha” (responderam alguns alunos) A professora continua a leitura: P.: “ [...] numa terra tão estranha, que vai ver que o tal do lobo nem existia” Depois de terminar de ler o livro, a professora conversou com os alunos sobre a história, retomando os medos que a personagem Chapeuzinho Amarelo tinha e perguntando como ela conseguiu vencer esses medos, principalmente o medo do lobo. Em seguida, a professora iniciou uma seqüência de atividades relacionadas à apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, que envolvia um trabalho de reflexão no nível da palavra e de escrita de palavras e frases. As atividades foram as seguintes: 102 1. Comparação de palavras: P.: “Olhe, como é que se escreve a palavra lobo?” À medida que os alunos iam dizendo as letras, a professora ia registrando na lousa. Depois voltou a perguntar: P. E bolo? Os alunos falaram as letras. P.: “ Tem alguma coisa de parecido?” A.: “ Lobo escreve com “lo” e bolo com “bo”. A.: “ Tão ao contrário tia” 2. Leitura das palavras presentes na história e que estavam com as sílabas invertidas: P.: “ Vamos ver se a gente descobre isso aqui” A professora escreveu uma lista de palavras no quadro e solicitou que os alunos tentassem ler, dizendo que as palavras correspondiam aos medos que Chapeuzinho Amarelo tinha. A lista de palavras foi a seguinte; Orrái Tabará Xabru Bodiá Gãodra Jacoru Barão-Tu Pão Bichôpa Trosmons P.: “ E aí, quem consegue dizer o que é?” A.: “ Trocando as palavras” ( sugeriu um aluno) A.: “ Orrái” ( um aluno lê em voz alta a primeira palavra da lista) P.: “ Quem inventou essa brincadeira aqui? Fui eu?” A.: “ Foi Chapeuzinho Amarelo” (respondeu em aluno) P.: “ Olha, como vocês viram, a Chapeuzinho Amarelo fez uma brincadeira pra perder esses medos que ela tinha. Então, vejam, Chapeuzinho tinha medo de raio e transformou o raio em orráio não foi? Vejam aqui” ( a professora deu essa informação aos alunos enquanto indicando a palavra da lista) 103 P.: “ Agora vamos tentar descobrir esse aqui?” (diz para os alunos indicando a palavra bodiá) A.: “ Bodiá” ( lêem alguns alunos) P.: “ Quem era o bodiá?” A.: “ Diabo” ( respondem alguns alunos) P.: “ Para não ter medo do diabo ela botou o nome de bodiá” (Comentou com a turma)...”Quem é o Gãodra?” A.: “ Dragão pra não ter mais medo dele” E os alunos junto com a professora foram lendo e descobrindo as palavras. 3. Escrita dos medos que a personagem Chapeuzinho Amarelo tinha. A professora dividiu a turma em dois grupos – um de meninos e um de meninas – e solicitou que eles escrevessem os medos que a personagem tinha. Depois, cada grupo leu os medos que tinham escrito, e cabia ao outro grupo confirmar se eles estavam presentes no livro. 4. Escrita de palavras correspondentes aos medos de cada aluno. A professora solicitou que cada aluno escrevesse em um papel o nome de um dos medos que possuíam. Ela lembrou que eles tinham que escrever a palavra corretamente e se dispôs a ajudá-los. Depois ela informou que eles deveriam registrar o nome de seus medos de forma invertida, como na história de Chapeuzinho Amarelo: P.: “Agora sabe o que vai acontecer? Eu ajudei algumas pessoas porque tem que escrever a palavra correta. Mas olha, eu vou dar um tempo... Olha só. É pra mudar a sílaba, o pedacinho da palavra. Não as letras. Não muda o lugar das letras ... Agora, é pra escrever como tá aí no caderno de vocês? A.: “Não”( responderam alguns alunos) P.: “Cada um escreve seu nome igual como se fala, mas com pedacinhos trocados como a Chapeuzinho fazia” 5. Leitura das palavras escritas de forma invertida pelos alunos. A professora chamava dois alunos para o quadro e solicitava que cada um lesse a palavra que o outro havia escrito e adivinhasse o medo correspondente: P.: “Ele botou como? Diz aí como foi?” (a professora pergunta ao aluno que palavra estava escrita no papelzinho do outro aluno) A.: “ Boiaji”( o aluno leu) 104 P.: “Então, qual é o medo dele?” A.: “É jibóia”( respondeu o aluno) P.: “Mas ele acertou? É jibóia não é?” (a professora pergunta ao outro aluno) A.: “ É” (o aluno confirmou à professora) Considerando a temática deste artigo, o “alfabetizar letrando”, gostaríamos de destacar alguns pontos da seqüência desenvolvida pelaprofessora Rosivânia que se relaciona com essa prática. Ela leu uma história atrativa para os alunos e, no momento da leitura, preocupou-se em mantê-los estimulados e interessados. Explorou algumas estratégias de leitura, como o conhecimento prévio dos alunos sobre o autor e o ilustrador, assim como sobre a temática da história. Após a leitura, ela retomou o texto oralmente com as crianças, para ver se elas o tinham compreendido. E, considerando o jogo de palavras que o autor do texto usou ao produzi-lo, ela desenvolveu uma série de atividades envolvendo a leitura e a escrita de palavras, no contexto em que essas foram produzidas na história. Assim, ela não precisou extrair do texto uma palavra-chave para, a partir dela, trabalhar as sílabas e os padrões silábicos. Ao contrário, ela explorou algumas palavras-chaves do texto, como as palavras LOBO e BOLO, refletindo sobre suas semelhanças e diferenças, e outras palavras presentes no texto. E, por fim, solicitou que todos os alunos escrevessem palavras correspondentes aos medos que tinham, invertendo as sílabas, o que possibilitou que os alunos refletissem sobre a composição das palavras, a presença de sílabas e letras nelas, a relação entre a pauta sonora e a escrita das sílabas, etc. Enfim, os livros de literatura estão cada vez mais presentes na escola e podem ser lidos em uma atividade de leitura deleite, na qual se pode explorar não só a temática do livro, mas o jogo de linguagem presente neles, levando o aluno a tentar lê-los sozinho, identificando as palavras que já conseguem ler e refletindo sobre algumas delas. Trabalhando o jornal na sala de aula: ler e produzir textos, refletindo sobre algumas palavras Objetivando trabalhar diferentes gêneros textuais com seus alunos, a professora Abda Alves2, que lecionava em uma turma do 2º ano do 1º Ciclo na Rede 105 Municipal de Ensino do Recife, organizou o seu planejamento de modo a trabalhar a cada semana um gênero específico. Como algumas alunas costumavam trazer para ela o caderno do jornal intitulado “Revista da TV” desejando saber o que iria acontecer na novela, a professora escolheu iniciar o trabalho tomando por base os gêneros presentes no jornal. Em primeiro lugar, a professora procurou saber de seus alunos se aquele caderno trazido pelas alunas era o único existente no jornal. Os alunos responderam que não e relataram o que eles conheciam da estrutura do jornal. A partir daí, a professora sugeriu que juntos eles lessem um jornal. Foram então escolhidos, em primeiro lugar, que cadernos iriam ler e durante uma semana foi lido, no começo de cada aula, uma reportagem de um caderno. Ao fazer a leitura, a professora destacava que tipo de informação aquele caderno trazia, chamava a atenção para a estrutura da notícia, mas de modo informal, sem a preocupação de sistematizar essas informações ou propor outra atividade além da leitura do jornal e discussão da notícia lida. 2 Esse relato foi vivenciado numa turma do segundo ano do 1º ciclo (1ª série) descrito pela professora Abda Alves, participante do Curso “Desafios da Alfabetização” promovido pela Prefeitura do Recife. Na semana seguinte, a professora organizou seu planejamento de modo a trabalhar de forma mais sistemática alguns gêneros presentes no jornal. O primeiro gênero escolhido foi o anúncio, já que os alunos demonstraram interesse pela variedade de coisas que se anuncia na parte de Classificados. Foi trabalhado, então, um anúncio de carro. O anúncio foi lido pela professora e, após a leitura, ela apresentou o mesmo anúncio escrito num cartaz e destacou com os alunos quais as informações contidas nele e como esse se estruturava. A professora chamou a atenção para a necessidade de se colocar o essencial em relação à descrição do produto e a estratégia de abreviar as palavras, objetivando tornar o texto mais barato. A professora também questionou com os alunos se o anúncio no jornal era a única forma de se oferecer um produto para vender, ao que 106 os alunos disseram que não e citaram o hábito de colocar placas na frente das casas quando se tinha algo para vender. Depois a professora entregou para os alunos, reunidos em duplas, o texto do anúncio recortado em partes e pediu que eles montassem o anúncio e o colassem em seus cadernos. Terminada a tarefa, a professora solicitou que as duplas trocassem as atividades e comparassem com o texto escrito no cartaz. Foi solicitado, então, aos alunos que destacassem do anúncio lido algumas informações contidas nele, tais como, modelo, ano, cor, acessórios, etc. À medida que os alunos destacavam as informações, a professora as escrevia no quadro, perguntando-lhes como se escrevia a palavra, quantas sílabas tinha, etc. Depois de colocadas todas as informações, a professora destacou o nome do carro PARATI e pediu que os alunos verificassem se era possível encontrar nele outras palavras. As crianças foram capazes de perceber a palavra PARA, mas o TI não conseguiram perceber. A professora então explicou que o TI era um pronome e assim como nós falamos “para mim” ao se referir à própria pessoa, ao falarmos com outra, podemos utilizar o “para ti” no lugar do “para tu”, como normalmente dizemos. Após a explicação, ela pediu que os alunos citassem palavras que começassem como a palavra PARATI e ia registrando no quadro essas palavras e refletindo com eles o número de sílabas que a palavra tinha, qual a primeira sílaba, qual a última, qual o número de letras, se havia mais letras ou mais sílabas, etc. Depois foi pedido que cada aluno em seu caderno desenhasse e escrevesse o nome de objetos que começavam como PARATI. Depois de realizada a tarefa, a professora pediu que alguns alunos lessem uma das palavras que escreveram e que a colocassem no quadro. Nesse momento, ela realiza a análise dessas palavras com os outros alunos, para que eles verificassem se estava correta, se faltava alguma letra, se alguma foi trocada e coisas desse tipo. No final das atividades desse dia, a professora solicitou que os alunos trouxessem 107 de casa um objeto para que, no dia seguinte, eles pudessem elaborar um anúncio de venda para o objeto trazido de casa. Percebemos nesse relato o quanto é possível organizar o processo de ensino- aprendizagem da escrita tendo como princípios orientadores tanto a reflexão acerca dos usos sociais da leitura e da escrita, refletindo sobre as especifidades dos gêneros, quanto a reflexão da linguagem escrita, ou seja, do sistema de escrita alfabético. Observamos como essa professora, embora em uma turma em que as crianças ainda não dominavam o sistema de escrita alfabético, oportunizou situações de leitura e de reflexão sobre textos que circulam na sociedade. A princípio, pareceria que o trabalho com jornal seria algo difícil de ser realizado com crianças pequenas e ainda não alfabetizadas. Mas o próprio fato de algumas trazerem partes de um jornal para ser lido pela professora mostra a familiaridade que essas têm, se não com o jornal como um todo, pelo menos com partes dele. A professora, então, utiliza-se desse fato para ampliar o conhecimento de seus alunos acerca desse veículo de comunicação tão comum em nossa sociedade e dos gêneros textuais nele presentes. Como eles ainda não liam, a professora fez o papel de leitora. E, a partir dessas leituras, ela sistematizou reflexões acerca da função social do texto lido, destacou e analisou a estrutura textual própria do gênero lido, questionou se aquele era o único gênero que podia ser utilizado com a função de anunciar um produto.Em tais questionamentos, a professora não tinha apenas a intenção de dar informações aos alunos do gênero lido, mas de fazê-los participar de uma situação real de leitura de um gênero (anúncio) e de um suporte (jornal) que circulam na sociedade. Pois, como destaca Ferreiro (1987), [...] é através de uma participação ampla e firme nesse tipo de situações sociais que a criança chega a entender alguns dos usos sociais da escrita. (p. 99) E, se nossos alunos vêm de um meio social onde essas situações de interação com o material escrito são escassas, é papel da escola oportunizar o contato com esse 108 tipo de material. Entretanto, sem esquecer de garantir aos alunos atividades de reflexão sobre a palavra, de modo a permitir a construção de conhecimentos acerca do sistema alfabético de escrita. E é isso que a professora Abda faz com muita propriedade. Em diferentes momentos da aula, os alunos foram desafiados a pensar sobre a escrita das palavras. Não houve a preocupação em trabalhar determinado padrão silábico para, fundando-se nele, escrever outras palavras. A professora levou-os a pensar sobre as partes constituintes das palavras escritas, tanto no que diz respeito às sílabas quanto às letras, fazendo a relação entre as marcas no papel e a pauta sonora que essas representavam. Ao reconstruírem o texto do anúncio, os alunos oram levados a pensar não apenas na estrutura textual do gênero, mas, sobretudo, na própria lógica do sistema de escrita, na medida em que puderam perceber como as palavras se organizavam nas frases, onde começavam e terminavam as palavras, como se dava a disposição delas no texto. Embora, em muitos momentos, a professora tenha desempenhado o papel de leitora e escriba da turma, na medida em que foram estimulados a escrever outras palavras a partir do nome do carro, foi oportunizado também aos alunos o espaço para que lessem e escrevessem seguindo suas hipóteses. As palavras escritas pelos alunos, por sua vez, tornaram-se elas próprias elementos de reflexão coletiva sobre o sistema de escrita. No entanto, é importante que se coloque que não é a atividade em si que conduz ao conhecimento. Leal (2004), discutindo a aprendizagem dos princípios do sistema alfabético, chama-nos a atenção para a importância da ação do aprendiz mediada pelas informações e intervenções do professor e associada às situações de interação com os colegas de classe. Enfim... As professoras, cujos relatos de atividades foram aqui descritos, parecem compreender que não basta apenas trazer textos para ser lidos na sala de aula ou fazer atividades de escrita de palavras com seus alunos. É preciso que as atividades 109 que contemplem os usos sociais da leitura e da escrita e aquelas que se relacionam à apropriação do sistema de escrita caminhem juntas. Ou seja, é preciso alfabetizar letrando. Esse tem sido o desafio colocado para todos os que hoje são responsáveis pela alfabetização de milhões de crianças deste país. Proporcionar a essas crianças o efetivo domínio tanto da linguagem escrita quanto da escrita da linguagem. Só assim poderemos formar sujeitos que leiam e escrevam com autonomia e competência. Os relatos das atividades vivenciadas pelas professoras Rosivânia e Abda nos mostram que é possível vencer o desafio de alfabetizar letrando. REFERÊNCIAS FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a alfabetização. São Paulo: Cortez, 1987. FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. LEAL, Telma Ferraz. A aprendizagem dos princípios básicos do sistema de escrita: por que é importante sistematizar o ensino? In: ALBUQUERQUE, Eliana. A alfabetização de jovens e adultos em uma perspectiva do letramento. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MARINHO, Marildes. A língua portuguesa nos currículos de final do século. In: BARRETO, Elba Sá. Os currículos do ensino fundamental para as escolas brasileiras. São Paulo: Autores Associados, 1998. REFERÊNCIAS ALVES, R. Entre a ciência e a sapiência – O dilema da Educação. São Paulo: Ed. Loyola, 1996. CRAIN-THORESON, C.; DALE, P.S. Enhancing linguistic performance: parents and teachers as book reading partners for children with language delays. Topics in Early Childhood Special Education: Special Issue, 62, 1999, p. 28-39. GARCÍA-MILÀ, M. Alfabetização “em” e “através das” ciências. In: TEBEROSKY, A.; GALLART, M. S. (Org.) Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. JACOBSON, E. Práticas de linguagem oral e alfabetização inicial. In: TEBEROSKY, A.; GALLART, M.S. (Org.) Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. LEITE, L. H. A. Pedagogia dos projetos. Revista Presença Pedagógica, n. 8, 110 1998, p. 24-33. MAGALHÃES, L.; YAZBEK, A. P. Parceria planejada entre o orientador e o professor. Seminário Intinerante. Recife: Centro de Estudos Escola da Vila, 1999. PURCELL-GATES, V. A alfabetização familiar: coordenação entre as aprendizagens da escola e as e casa. In: TEBEROSKY, A.; GALLART, M.S. (Org.) Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. SADOVSKY, P. Diferentes dimensões da análise didática. In: PARRA-SADOVSKY- SAIZ. Enseñanza de la matemática – Documento curricular P.T.F.D. Buenos Aires: Editora, 1994. SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, 25, 2004. p. 5-17. TEBEROSKY, A.; RIBERA, N. Contexto de alfabetização na aula. In: TEBEROSKY, A.; GALLART, M. S. (Org.) Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004. VAL, M. G. C.; BARROS, L.F.P. Receitas e regras de jogo: a construção de textos injuntivos por crianças em fase de alfabetização. In: ROCHA, G.; VAL, M. G. C. Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto: o sujeito-autor. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 111 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: repensando o ensino da língua escrita Silvia M. Gasparian Colello Se, no início da década de 80, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração de hipóteses sobre a representação lingüística; os anos que se seguiram, com a emergência dos estudos sobre o letramento [i] , foram igualmente férteis na compreensão da dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seu aprendizado. Em estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo que delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem. Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que, não só fornece informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude” ao aprendido, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e o saberes próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida). O objetivo do presente artigo é apresentar o impacto dos estudos sobre o letramento para as práticas alfabetizadoras.Capitaneada pelas publicações de Angela Kleiman, (95) Magda Soares (95, 98) e Tfouni (95), a concepção de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão que hoje temos sobre: a) as dimensões do aprender a ler e a escrever; b) o desafio de ensinar a ler e a escrever; c) o significado do aprender a ler e a escrever, c) o quadro da sociedade leitora no Brasil d) os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever, e e) as próprias perspectivas das pesquisas sobre letramento. 112 As dimensões do aprender a ler e a escrever Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B + A = BA”, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/interpretar palavras (ou frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto. Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as pessoas que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo “letramento” surgiu [ii] , ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por alfabetização (Soares, 2003). Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos de uma cultura grafocêntrica. Assim, Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade (Tfouni, 1995, p. 20). Com a mesma preocupação em diferenciar as práticas escolares de ensino da língua escrita e a dimensão social das várias manifestações escritas em cada comunidade, Kleiman, apoiada nos estudos de Scribner e Cole, define o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia 113 alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (1995, p. 19) Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, Soares valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental do puro domínio do sistema de escrita: Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se Letramento que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos (In Ribeiro, 2003, p. 91). Ao permitir que o sujeito interprete, divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, documente, informe, oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória, o efetivo uso da escrita garante-lhe uma condição diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas domina o código (Soares, 1998). Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural. Em função disso, Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (...dos professores), tanto na pré-escola quanto no ensino médio, seja a utilização da escrita verdadeira [iii] nas diversas atividades pedagógicas, isto é, a utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do processo de alfabetização escolar é o texto: trecho falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva. (Leite, p. 25) 114 O desafio de ensinar a ler e a escrever Partindo da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, convenções e normas de funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso efetivo nas mais diversas situações e para diferentes fins, somos levados a admitir o paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura suficientemente fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição de inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente aberto que permite dizer tudo, isto é, um sistema permanentemente disponível ao poder humano de criação (Geraldi, 93). Como conciliar essas duas vertentes da língua em um único sistema de ensino? Na análise dessa questão, dois embates merecem destaque: o conceitual e o ideológico. 1) O embate conceitual Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento (processos paralelos [iv] , simultâneos ou não [v] , mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de aprendizagem (incluindo a compreensão do sistema e sua possibilidade de uso). Em uma concepção progressista de “alfabetização” (nascida em oposição às práticas tradicionais, a partir dos estudos psicogenéticos dos anos 80), o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma redundância em função de como o ensino da língua escrita já é concebido. Questionada formalmente sobre a “novidade conceitual” da palavra “letramento”, Emilia Ferreiro explicita assim a sua rejeição ao uso do termo: Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica. (2003, p. 30) 115 Note-se, contudo, que a oposição da referida autora circunscreve-se estritamente ao perigo da dissociação entre o aprender a escrever e o usar a escrita (“retrocesso” porque representa a volta da tradicional compreensão instrumental da escrita). Como árdua defensora de práticas pedagógicas contextualizadas e signifcativas para o sujeito, otrabalho de Emília Ferreiro, tal como o dos estudiosos do letramento, apela para o resgate das efetivas práticas sociais de língua escrita o que faz da oposição entre eles um mero embate conceitual. Tomando os dois extremos como ênfases nefastas à aprendizagem da língua escrita (priorizando a aprendizagem do sistema ou privilegiando apenas as práticas sociais de aproximação do aluno com os textos), Soares defende a complementaridade e o equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da distinção terminológica: Porque alfabetização e letramento são conceitos freqüentemente confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura- se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. (2003, p. 90) Assim como a autora, é preciso reconhecer o mérito teórico e conceitual de ambos os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro transformadas em modismos banais e mal assimilados), a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escria: o alfabetizar letrando. 2) O embate ideológico Mais severo do que o embate conceitual, a oposição entre os dois modelos descritos por Street (1984) [vi] representa um posicionamento radicalmente diferente, tanto no que diz respeito às concepções implícita ou explicitamente assumidas quanto no que tange à pratica pedagógica por elas sustentadas. 116 O “Modelo Autônomo”, predominante em nossa sociedade, parte do princípio de que, independentemente do contexto de produção, a língua tem uma autonomia (resultado de uma lógica intrínseca) que só pode ser apreendida por um processo único, normalmente associado ao sucesso e desenvolvimento próprios de grupos “mais civilizados”. Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legitimo se atrelada ao padrão elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento lingüístico, a escola tradicional sempre pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimentos: aprender a falar a língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca) fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo viés lingüístico e autoritária pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar. Em oposição, o “Modelo Ideológico” admite a pluralidade das práticas letradas, valorizando o seu significado cultural e contexto de produção. Rompendo definitivamente com a divisão entre o “momento de aprender” e o “momento de fazer uso da aprendizagem”, os estudos lingüísticos propõem a articulação dinâmica e reversível [vii] entre “descobrir a escrita” (conhecimento de suas funções e formas de manifestação), “aprender a escrita” (compreensão das regras e modos de funcionamento) e “usar a escrita” (cultivo de suas práticas a partir de um referencial culturalmente significativo para o sujeito). O esquema abaixo pretende ilustrar a integração das várias dimensões do aprender a ler e escrever no processo de alfabetizar letrando: 117 O significado do aprender a ler e a escrever Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o investimento na formação humana. Nas palavras de Emilia Ferreiro, A escrita é importante na escola, porque é importante fora dela e não o contrário. (2001) Retomando a tese defendida por Paulo Freire, os estudos sobre o letramento reconfiguraram a conotação política de uma conquista – a alfabetização - que não necessariamente se coloca a serviço da libertação humana. Muito pelo contrário, a história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo agravado pelo quadro nacional de baixo letramento. O quadro da sociedade leitora no Brasil Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, 118 redimensionaram as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil. Ao lado do índice nacional de 16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de indivíduos que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, localizar ou relacionar suas informações. Dados do Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa em Educação (INEP) indicam que os índices alcançados pela maioria dos alunos de 4ª série do Ensino Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” e “muito crítico”. Isso quer dizer que mesmo para as crianças que têm acesso à escola e que nela permanecem por mais de 3 anos, não há garantia de acesso autônomo às praticas sociais de leitura e escrita (Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Que escola é essa que não ensina a escrever? Independentemente do vínculo escolar, essa mesma tendência parece confirmar-se pelo “Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional” (INAF), uma pesquisa realizada por amostragem representativa da população brasileira de jovens e adultos (de 15 a 64 anos de idade) [viii] : entre os 2000 entrevistados, 1475 eram analfabetos ou tinham pouca autonomia para ler ou escrever, e apenas 525 puderam ser considerados efetivos usuários da língua escrita. Indiscutivelmente, uma triste realidade! Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever Por que será que tantas crianças e jovens deixam de aprender a ler e a escrever? Por que é tão difícil integrar-se de modo competente nas práticas sociais de leitura e escrita? Se descartássemos as explicações mais simplistas (verdadeiros mitos da educação) que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados “problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas meramente 119 instrucionais em intervenções educativas; talvez fosse possível compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de analfabetismo no Brasil. Nesse sentido, os estudos sobre o letramento se prestam à fundamentação de pelo menos três hipóteses não excludentes para explicaro fracasso no ensino da língua escrita. Na mesma linha de argumentação dos educadores que evidenciaram os efeitos do “currículo oculto” nos resultados escolares de diferentes segmentos sociais, é preciso considerar, como ponto de partida, que as práticas letradas de diferentes comunidades (e portanto, as experiências de diferentes alunos) são muitas vezes distantes do enfoque que a escola costuma dar à escrita (o letramento tipicamente escolar). Lidar com essa diferença (as formas diversas de conceber e valorar a escrita, os diferentes usos, as várias linguagens, os possíveis posicionamentos do interlocutor, os graus diferenciados de familiaridade temática, as alternativas de instrumentos, portadores de textos e de práticas de produção e interpretação...) significa muitas vezes percorrer uma longa trajetória, cuja duração não está prevista nos padrões inflexíveis da programação curricular. Em segundo lugar, é preciso considerar a reação do aprendiz em face da proposta pedagógica, muitas vezes autoritária, artificial e pouco significativa. Na dificuldade de lidar com a lógica do “aprenda primeiro para depois ver para que serve”, muitos alunos parecem pouco convencidos a mobilizar os seus esforços cognitivos em benefício do aprender a ler e a escrever (Carraher, Carraher e Schileimann, 1989; Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Essa típica postura de resistência ao artificialismo pedagógico em um contexto de falta de sintonia entre alunos e professores parece evidente na reivindicação da personagem Mafalda: Com ironia e bom humor, o exemplo acima explica o caso bastante freqüente de 120 jovens inteligentes que aprenderam a lidar com tantas situações complexas da vida (aquisição da linguagem, transações de dinheiro, jogos de computador, atividades profissionais, regras e práticas esportivas entre outras), mas que não conseguem disponibilizar esse reconhecido potencial para superar a condição de analfabetismo e baixo letramento. Por último, ao considerar os princípios do alfabetizar letrando (ou do Modelo Ideológico de letramento), devemos admitir que o processo de aquisição da língua escrita está fortemente vinculado a uma nova condição cognitiva e cultural. Paradoxalmente, a assimilação desse status (justamente aquilo que os educadores esperam de seus alunos como evidência de “desenvolvimento” ou de emancipação do sujeito) pode se configurar, na perspectiva do aprendiz, como motivos de resistência ao aprendizado: a negação de um mundo que não é o seu; o temor de perder suas raízes (sua história e referencial); o medo de abalar a primazia até então concedida à oralidade (sua mais típica forma de expressão), o receio de trair seus pares com o ingresso no mundo letrado e a insegurança na conquista da nova identidade (como “aluno bem-sucedido” ou como “sujeito alfabetizado” em uma cultura grafocêntrica altamente competitiva). ... a aprendizagem da língua escrita envolve um processo de aculturação – através, e na direção das práticas discursivas de grupos letrados - , não sendo, portanto, apenas um processo marcado pelo conflito, como todo processo de aprendizagem, mas também um processo de perda e de luta social. (...) (...) há uma dimensão de poder envolvida no processo de aculturação efetivado na escola: aprender – ou não – a ler e escrever não equivale a aprender uma técnica ou um conjunto de conhecimentos. O que está envolvido para o aluno adulto é a aceitação ou o desafio e a rejeição dos pressupostos, concepções e práticas de um grupo dominante – a saber, as práticas de letramento desses grupos entre as quais se incluem a leitura e a produção de textos em diversas instituições, bem como as formas legitimadas de se falar desses textos -, e o conseqüente abandono (e rejeição) das práticas culturais primárias de seu grupo subalterno que, até esse momento, eram as que lhe permitiam compreender o mundo. (Kleiman, 2001, p. 271) 121 Como exemplo de um mecanismo de resistência ao mundo letrado construído por práticas pedagógicas (ainda que involuntariamnete ideologizantes) no cotidiano da sala de aula, Kleiman (2001) expõe o caso de um grupo de jovens que se rebelaram ante a proposta da professora de examinar bulas de remédio. Como recurso didático até bem intencionado, o objetivo da tarefa era o de aproximar os alunos da escrita, favorecendo a compreensão de seus usos, nesse caso, chamando a sua atenção para os perigos da auto-medicação e para a importância de se informar antes de tomar uma medicação (posologia, reações adversas, efeitos colaterais, etc). Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um médico e da compra de remédios. Na prática, a desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização - o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógica e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social. Perspectivas das pesquisas sobre letramento Embora o termo “letramento” remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento (ou prática profissional) motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir a referência no plural “letramentos”. Mesmo correndo o risco de inadequação terminológica, ganhamos a possibilidade de repensar o trânsito do homem na diversidade dos “mundos letrados”, cada um deles marcado pela especificidade de um universo. Desta forma, é possível confrontar diferentes realidades, como por exemplo o “letramento social” com o 122 “letramento escolar”; analisar particularidades culturais, como por exemplo o “letramento das comunidades operárias da periferia de São Paulo”, ou ainda compreender as exigências de aprendizagem em uma área específica, como é o caso do “letramento científico”, “letramento musical” o “letramento da informática ou dos internautas”. Em cada um desses universos, é possível delinear práticas (comportamentos exercidos por um grupo de sujeitos e concepções assumidas que dão sentido a essas manifestações) e eventos (situações compartilhadas de usos da escrita) como focos interdependentes de uma mesma realidade (Soares, 2003). A aproximação com as especificidades permite não só identificar a realidade de um grupo ou campo em particular (suas necessidades, características, dificuldades, modos de valoração da escrita), como também ajustar medidas de intervenção pedagógica, avaliando suas conseqüências. No caso de programas de alfabetização, a relevância de tais pesquisas é assim defendida por Kleiman: Se por meio das grandes pesquisas quantitativas, podemos conhecer onde e quando intervir em nível global, os estudos acadêmicos qualitativos, geralmente de tipo etnográfico, permitem conhecer as perspectivas específicas dos usuários e os contextos de uso e apropriação da escrita, permitindo, portanto, avaliar o impacto das intervenções e até, de forma semelhante à das macro análises,procurar tendências gerais capazes de subsidiar as políticas de implementação de programas. (2001, p. 269) Sem a pretensão de esgotar o tema, a breve análise do impacto e contribuição dos estudos sobre letramento aqui desenvolvida aponta para a necessidade de aproximar, no campo da educação, teoria e prática. Na sutura entre concepções, implicações pedagógicas, reconfiguração de metas e quadros de referência, hipóteses explicativas e perspectivas de investigação, talvez possamos encontrar subsídios e alternativas para a transformação da sociedade leitora no Brasil, uma realidade politicamente inaceitável e, pedagogicamente, aquém de nossos ideais. 123 NOTAS [i] “Literacy” do inglês, traduzido por “letramento” no Brasil e por “literacia” em Portugal é uma terminologia não dicionarizada que, nos meios acadêmicos, vem sendo utilizada com diferentes sentidos. [ii] No Brasil, o termo “letramento” foi usado pela 1a vez por Mary Kato, em 1986, na obra “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística” (São Paulo, Ática). Dois anos depois, passa a representar um referencial no discurso da educação, ao ser definido por Tfouni em “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso” (São Paulo, Pontes) e retomado em publicações posteriores. [iii] O autor utiliza a expressão “escrita verdadeira” em oposição à “escrita escolar”, um modelo muitas vezes artificial, cujo reducionismo não faz justiça à multidimensionalidade da língua viva. [iv] Como evidência desse paralelismo, é possível, por exemplo, termos casos de pessoas letradas e não alfabetizadas (indivíduos que, mesmo incapazes de ler e escrever, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem gêneros ou reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade) ou de pessoas alfabetizadas e pouco letradas (aqueles que, mesmo dominando o sistema da escrita, pouco vislumbram suas possibilidades de uso). [v] Em uma sociedade como a nossa, o mais comum é que a alfabetização seja desencadeada por práticas de letramento, tais como ouvir histórias, observar cartazes, conviver com práticas de troca de correspondência, etc. No entanto, é possível que indivíduos com baixo nível de letramento (não raro membros de comunidades analfabetas ou provenientes de meios com reduzidas práticas de leitura e escrita) só tenham a oportunidade de vivenciar tais eventos na ocasião de ingresso na escola, com o início do processo formal de alfabetização. [vi] Para um estudo mais aprofundado dos modelos “Autônomo” e “Ideológico” descritos por Street, remetemos o leitor à leitura de Kleiman, 1985. [vii] Dinâmica porque pressupõe o movimento intenso de um pólo ao outro; reversível porque a experiência em qualquer um dos pólos remete ao amadurecimento nos demais. 124 [viii] Para mais dados sobre a pesquisa do INAF (objetivos, população envolvida, critérios de análise e resultados obtidos), remetemos o leitor à leitura de Ribeiro (2003). REFERÊNCIAS CARRAHER, T., CARRAHER, D. & SCHLIEMANN, A. Na vida dez, na escola zero. São Paulo, Cortez, 1989. COLELLO, S. M. G. “A pedagogia da exclusão no ensino da língua escrita” In VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá, 2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com). COLELLO, S. M. G. & SILVA, N. “Letramento: do processo de exclusão social aos vícios da prática pedagógica” In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, pp. 21 – 34 (ww.hottopos.com). FEEREIRO, E. Cultura escrita e educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 2001. __________ “Alfabetização e cultura escrita”, Entrevista concedida à Denise Pellegrini In Nova Escola – A revista do Professor. São Paulo, Abril, maio/2003, pp. 27 – 30. GERALDI, W. Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1993. ___________ Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, Mercado das Letras/ABL,1996. IBGE, Censo Demográfico, Mapa do analfabetismo no Brasil, Brasília, MEC/INEP, 2003. KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, Mercado das Letras, 1995. ___________ “Programa de educação de jovens e adultos” In Educação e Pesquisa – Revista da Faculdade de Educação da USP. São Paulo, v. 27, n.2, p.267 – 281. LEITE, S. A. S. (org.) Alfabetização e letramento – contribuições para as práticas pedagógicas. Campinas, Komedi/Arte Escrita, 2001. RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998. ____________ “Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas”, Revista Brasileira de Educação, n. 0, 1995, pp. 5 – 16. STREET, B. V. Literacy in theory and Practice. Cambridge, University Press, 1984. 125 TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. São Paulo, Cortez,1995. Educação & Sociedade Print version ISSN 0101-7330 Educ. Soc. vol.23 no.81 Campinas Dec. 2002 doi: 10.1590/S0101-73302002008100008 126 NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA: letramento na cibercultura Magda Soares* RESUMO: No contexto de uma diferenciação entre a cultura do papel e a cultura da tela, ou cibercultura, o artigo busca uma melhor compreensão do conceito de letramento, confrontando tecnologias tipográficas e tecnologias digitais de leitura e de escrita, a partir de diferenças relativas ao espaço da escrita e aos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita; argumenta que cada uma dessas tecnologias tem determinados efeitos sociais, cognitivos e discursivos, resultando em modalidades diferentes de letramento, o que sugere que a palavra seja pluralizada: há letramentos, não letramento. Palavras-chave: Letramento. Cultura do papel. Cibercultura. Práticas de leitura. Práticas de escrita. Em um movimento de certa forma contrário ao mais freqüente, que é o de ampliar a compreensão do presente interrogando o passado que o gerou, tenta-se, neste texto, essa mesma compreensão do presente interrogando o futuro que nele está sendo gerado. Em outras palavras: o que aqui se pretende é perseguir uma mais ampla compreensão de letramento, buscando um novo sentido que essa palavra e fenômeno, recém-introduzidos no contexto de uma cultura do papel, e nela ainda não plenamente compreendidos, já vêm adquirindo, como conseqüência do surgimento, ao lado da cultura do papel, de uma cibercultura.1 Conceitos de letramento O plural, nesse subtítulo – conceitos –, explica-se pela imprecisão que, na literatura educacional brasileira, ainda marca a definição de letramento, imprecisão compreensível se se considera que o termo foi recentemente introduzido nas áreas das letras e da educação.2 Entretanto, não há, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno. Há autores que consideram que letramento são as práticas de leitura e escrita: segundo Kleiman (1995, p. 19): "Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos". Em texto 127 posterior, a autora declara entender letramento "como as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita" (idem, 1998, p. 181). Nessa concepção, letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que essas práticas são postas em ação, bem como as conseqüências delas sobre a sociedade. Já Tfouni(1988, p. 16), em obra que foi uma das primeiras a não só utilizar, mas também a definir o termo letramento, conceitua-o em confronto com alfabetização, conceito que reafirma em obra posterior: "Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade" (idem, 1995, p. 20). A autora reafirma essa diferença entre alfabetização e letramento insistindo no caráter individual daquela e social deste: A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso é levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada; procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas "letradas" em sociedades ágrafas. (Idem, 1988, p. 9, e 1995, p. 9-10). Assim, para Tfouni, letramento são as conseqüências sociais e históricas da introdução da escrita em uma sociedade, "as mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada" (1995, p. 20). Conclui-se que Tfouni toma, para conceituar letramento, o impacto social da escrita, que, para Kleiman, é apenas um dos componentes desse fenômeno; Kleiman acrescenta a esse outros componentes: também as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem compõem o conceito de letramento. Em ambas as autoras, porém, o núcleo do conceito de letramento são as práticas sociais de leitura e de escrita, para além da aquisição do sistema de escrita, ou seja, para além da alfabetização. 128 Embora mantendo esse foco nas práticas sociais de leitura e de escrita, este texto fundamenta-se numa concepção de letramento como sendo não as próprias práticas de leitura e escrita, e/ou os eventos relacionados com o uso e função dessas práticas, ou ainda o impacto ou as conseqüências da escrita sobre a sociedade, mas, para além de tudo isso, o estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação – os eventos de letramento, tal como definidos por Heath (1982, p. 93): "A literacy event is any occasion in which a piece of writing is integral to the nature of participant's interactions and their interpretive processes." (Um evento de letramento é qualquer situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação.) Ou seja: coerentemente com o conceito apresentado em Soares (1998b), letramento é, na argumentação desenvolvida neste texto, o estado ou condição de indivíduos ou de grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e de escrita, participam competentemente de eventos de letramento. O que esta concepção acrescenta às anteriormente citadas é o pressuposto de que indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, têm as habilidades e atitudes necessárias para uma participação ativa e competente em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita têm uma função essencial, mantêm com os outros e com o mundo que os cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhes conferem um determinado e diferenciado estado ou condição de inserção em uma sociedade letrada.3 129 Letramento é, nesta concepção, o contrário de analfabetismo (razão pela qual a palavra alfabetismo tem sido freqüentemente usada em lugar de letramento, e seria mesmo mais vernácula que esta última). Se analfabetismo é, como habitualmente definido nos dicionários, o estado de analfabeto (cf. Michaelis, Moderno dicionário da língua portuguesa), o estado ou condição de analfabeto (cf. Novo Aurélio Século XXI e Dicionário HouaiSS da língua portuguesa), o contrário de analfabetismo – alfabetismo ou letramento – é o estado ou condição de quem não é analfabeto. Aliás, na própria formação da palavra letramento está presente a idéia de estado: a palavra traz o sufixo -mento, que forma substantivos de verbos, acrescentando a estes o sentido de "estado resultante de uma ação", como ocorre, por exemplo, em acolhimento, ferimento, sofrimento, rompimento, lançamento; assim, de um verbo letrar (ainda não dicionarizado, mas necessário para designar a ação educativa de desenvolver o uso de práticas sociais de leitura e de escrita, para além do apenas ensinar a ler e a escrever, do alfabetizar), forma-se a palavra letramento: estado resultante da ação de letrar. No quadro desse conceito de letramento, o momento atual oferece uma oportunidade extremamente favorável para refiná-lo e torná-lo mais claro e preciso. É que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a Internet. É, assim, um momento privilegiado para, na ocasião mesma em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão instituindo: um momento privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de escrita digitais, o letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição diferente daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirográficas e tipográficas,4 o letramento na cultura do papel. Uma compreensão mais clara deste último pode advir de seu confronto e contraste com o primeiro, replicando, em sentido inverso, Ong (1986), quando busca compreender o letramento pela via de seu confronto e contraste com a cultura oral. 130 Da oralidade à escrita Ong (1986) enfatiza a dificuldade que temos, as mentes letradas, de entender a oralidade primária,5 porque a tecnologia da escrita está tão profundamente internalizada em nós que nos tornamos incapazes de separá-la de nós mesmos, e assim não conseguimos perceber sua presença e influência – não temos consciência da natureza do fenômeno do letramento, temos dificuldade de captar as características do estado ou condição de ser "letrado", porque vivemos imersos nele. Para vencer essa dificuldade, Ong procura compreender o letramento na cultura do papel pela identificação das diferenças entre sociedades ágrafas e sociedades letradas, confrontando o mundo da oralidade primária com o mundo letrado. Também os estudos sobre poemas épicos orais, feitos por Milman Parry e Albert Lord, tomando como objeto de análise Homero e os poetas épicos da antiga Iugoslávia, relatados em Lord (1960), e ainda os estudos de Havelock (1963, 1982, 1986) sobre a introdução da escrita na Grécia antiga, evidenciam, sempre tendo como termo de referência o texto escrito, as características dos textos orais, memorizados e recitados, características determinadas por sua forma de recepção, por seu gênero, por sua função (preservação da memória), por seus destinatários. Por outro lado, Goody (1977, 1987) analisa, fundamentando-se em pesquisas históricas e antropológicas, as diferenças de "mentalidade" entre povos de culturaságrafas e povos de culturas letradas. Esses autores evidenciam como a introdução e prática da escrita trouxeram significativas mudanças na recepção do texto, nos gêneros e funções do texto, nos processos cognitivos e discursivos, enfim, no estado ou condição dos destinatários dos textos. Para Ong, Parry, Lord, Havelock e Goody, o confronto e contraposição entre culturas letradas e culturas de oralidade primária permitiram uma compreensão mais ampla não só destas, mas também daquelas; da mesma forma, podemos buscar uma compreensão mais ampla da natureza do letramento na cultura do papel pela análise do processo em andamento, na cibercultura, de desenvolvimento de novas práticas digitais de leitura e de escrita, em confronto e contraposição com as já tradicionais práticas sociais quirográficas e tipográficas de leitura e de escrita. Ou seja: recuperar o significado de um letramento já ocorrido e já internalizado, flagrando um novo letramento que está ocorrendo e apenas começa a ser internalizado. 131 Tecnologias de escrita e letramento Considerando que letramento designa o estado ou condição em que vivem e interagem indivíduos ou grupos sociais letrados, pode-se supor que as tecnologias de escrita, instrumentos das práticas sociais de leitura e de escrita, desempenham um papel de organização e reorganização desse estado ou condição. Lévy (1993) inclui as tecnologias de escrita entre as tecnologias intelectuais, responsáveis por gerar estilos de pensamento diferentes (observe-se o subtítulo de seu livro As tecnologias da inteligência: "o futuro do pensamento na era da informática"); esse autor insiste, porém, que as tecnologias intelectuais não determinam, mas condicionam processos cognitivos e discursivos. Esse condicionamento tem sido estudado, ora defendido ora contestado, por muitos, em relação aos efeitos sobre culturas orais ou sobre indivíduos não-letrados, da introdução e prática da tecnologia de escrita quirográfica e tipográfica (basta citar aqui a admirável revisão e argumentação em torno desse tema feita por Olson, 1994). O mesmo começa a ocorrer em relação aos efeitos da introdução e prática da tecnologia de escrita digital sobre culturas de letramento tipográfico; entre os autores que vêm desenvolvendo essa reflexão, destacam-se Lévy (1993, 1999) e Chartier (1994, 1998, 2001). Neste texto, não se pretende discutir propriamente esses efeitos, mas identificar as principais diferenças entre as tecnologias tipográficas e as tecnologias digitais de leitura e escrita, para delas tentar inferir as mudanças que provavelmente estão ocorrendo, ou virão a ocorrer, na natureza do letramento – do estado ou condição de "letrado", e assim compreender melhor o próprio conceito de letramento. Tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita As diferenças entre tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita serão consideradas, neste texto, restringindo-se a análise ao uso de ambas essas tecnologias para a escrita de textos informativos ou literários; não se incluirá na análise o uso delas para a interação a distância. Assim, discute-se aqui, para confrontá-lo com o texto no papel, o texto na tela – o hipertexto; embora se reconheça que a análise da interação on-line (os chats, o e-mail, as listas de discussão, os fóruns, entre outros) seria elucidativa para melhor compreensão do 132 conceito de letramento, confrontando-se essas modalidades de interação entre as pessoas com as modalidades de interação face-a-face ou por meio da escrita no papel, renuncia-se a incluí-la neste texto, porque esse uso da tecnologia digital suscita questões específicas de natureza diversa, sobretudo lingüística, cuja discussão ultrapassaria os limites e objetivos deste artigo.6 Para a análise das tecnologias tipográficas e digitais de leitura e escrita de textos e hipertextos, são aqui considerados os dois elementos mais relevantes de diferenciação entre elas: o espaço de escrita e os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita. Os espaços de escrita Espaço de escrita, na definição de Bolter (1991), é "o campo físico e visual definido por uma determinada tecnologia de escrita". Todas as formas de escrita são espaciais, todas exigem um "lugar" em que a escrita se inscreva/escreva, mas a cada tecnologia corresponde um espaço de escrita diferente. Nos primórdios da história da escrita, o espaço de escrita foi a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira ou a superfície polida de uma pedra; mais tarde, foi a superfície interna contínua de um rolo de papiro ou de pergaminho, que o escriba dividia em colunas; finalmente, com a descoberta do códice, foi, e é, a superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro, de pergaminho, finalmente a superfície branca da página de papel. Atualmente, com a escrita digital, surge este novo espaço de escrita: a tela do computador. Há estreita relação entre o espaço físico e visual da escrita e as práticas de escrita e de leitura. O espaço da escrita relaciona-se até mesmo com o sistema de escrita: a escrita em argila úmida, que recebia bem a marca da extremidade em cunha do cálamo, levou ao sistema cuneiforme de escrita; a pedra como superfície a ser escavada serviu bem, num primeiro momento, aos hieróglifos dos egípcios, mas, quando estes passaram a usar o papiro, sua escrita, condicionada por esse novo espaço, foi-se tornando progressivamente mais cursiva e perdendo as tradicionais e estilizadas imagens hieroglíficas, exigidas pela superfície da pedra. O espaço de escrita relaciona-se também com os gêneros e usos de escrita, condicionando as práticas de leitura e de escrita: na argila e na pedra não era possível escrever longos textos, narrativas; não podendo ser facilmente transportada, a pedra só permitia a 133 escrita pública em monumentos; a página, propiciando o códice, tornou possível a escrita de variados gêneros, de longos textos. O espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto. A extensa e contínua superfície do espaço de escrita no rolo de papiro ou pergaminho impunha uma escrita e uma leitura sem retornos ou retomadas. Já o texto nas páginas do códice tem limites claramente definidos, tanto a escrita quanto a leitura podem ser controladas por autor e leitor, permitindo releituras, retomadas, avanços, fácil localização de trechos ou partes; além disso, o códice torna evidente, materializando-a, a delimitação do texto, seu começo, sua progressão, seu fim, e cria a possibilidade de protocolos de leitura como a divisão do texto em partes, em capítulos, a apresentação de índice, sumário. No computador, o espaço de escrita é a tela, ou a "janela"; ao contrário do que ocorre quando o espaço da escrita são as páginas do códice, quem escreve ou quem lê a escrita eletrônica tem acesso, em cada momento, apenas ao que é exposto no espaço da tela: o que está escrito antes ou depois fica oculto (embora haja a possibilidade de ver mais de uma tela ao mesmo tempo, exibindo uma janela ao lado de outra, mas sempre em número limitado). O que é mais importante, porém, é que a escrita na tela possibilita a criação de um texto fundamentalmente diferente do texto no papel7 – o chamado hipertexto que é, segundo Lévy (1999, p. 56), "um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor". O texto no papel é escrito e é lido linearmente, seqüencialmente – da esquerda para a direita, de cima para baixo, uma página após a outra; o texto na tela – o hipertexto– é escrito e é lido de forma multilinear, multi-seqüencial, acionando-se links ou nós que vão trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades, sem que haja uma ordem predefinida. A dimensão do texto no papel é materialmente definida: identifica-se claramente seu começo e seu fim, as páginas são numeradas, o que lhes atribui uma determinada posição numa ordem consecutiva – a página é uma unidade estrutural; o hipertexto, ao contrário, tem a dimensão que o leitor lhe der: seu começo é ali onde o leitor escolhe, com um clique, a primeira tela, termina quando o leitor fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se por satisfeito ou considerar-se suficientemente informado 134 – enquanto a página é uma unidade estrutural, a tela é uma unidade temporal. Lévy (1993, p. 40-41), em tópico que denomina significativamente e, esperemos, também exageradamente de Réquiem para uma página, compara a leitura do texto na página com a leitura do hipertexto: Quando um leitor se desloca na rede de microtextos e imagens de uma enciclopédia, deve traçar fisicamente seu caminho nela, manipulando volumes, virando páginas, percorrendo com seus olhos as colunas tendo em mente a ordem alfabética. [...] O hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e desdobra à vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola outra vez de outra forma. Não é apenas uma rede de microtextos, mas sim um grande metatexto de geometria variável, com gavetas, com dobras. Um parágrafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, três capítulos sob uma palavra ou parágrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras destes capítulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso. [...] Ao ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento e desdobramento de um texto caleidoscópico. Em síntese, a tela, como novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento. Embora os estudos e pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na escrita e na leitura de hipertextos sejam ainda poucos (ver, por exemplo, além das já citadas obras de Lévy, também Rouet, Levonen, Dillon e Spiro, 1996), a hipótese é de que essas mudanças tenham conseqüências sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, assim, configurando um letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. Para alguns autores, os processos cognitivos inerentes a esse letramento digital reaproximam o ser humano de seus esquemas mentais; Ramal (2002, p. 84) afirma: 135 Estamos chegando à forma de leitura e de escrita mais próxima do nosso próprio esquema mental: assim como pensamos em hipertexto, sem limites para a imaginação a cada novo sentido dado a uma palavra, também navegamos nas múltiplas vias que o novo texto nos abre, não mais em páginas, mas em dimensões superpostas que se interpenetram e que podemos compor e recompor a cada leitura. Também Bolter (1991, p. 21-22) afirma que a escrita no papel, com sua exigência de uma organização hierárquica e disciplinada das idéias, contraria o fluxo natural do pensamento, que se dá por associações, em rede – segundo esse autor, é o hipertexto que veio legitimar o registro desse pensamento por associações, em rede, tornando-o possível ao escritor e ao leitor. Já Lévy (1999, p. 157) afirma que a cibercultura traz uma mutação da relação com o saber. Para este autor, "o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas", como a memória, que "se encontra tão objetivada em dispositivos automáticos, tão separada do corpo dos indivíduos ou dos hábitos coletivos que nos perguntamos se a própria noção de memória ainda é pertinente" (Lévy, 1993, p. 118); como a imaginação, que se enriquece com as simulações; como a percepção, que se amplifica com os sensores digitais, as realidades virtuais. Chartier (1994, p. 100-101) considera o texto na tela uma revolução do espaço da escrita que altera fundamentalmente a relação do leitor com o texto, as maneiras de ler, os processos cognitivos: Se abrem possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a sua condição: ela substitui a materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar específico; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto impresso ela opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens nem limites. Essas mutações comandam, inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas intelectuais. 136 Pode-se concluir que a tela como espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela. É deste novo letramento que nos fala Bolter, um entusiasta das novas tecnologias, em seu já clássico livro (1991): The printed book [...] seems destined to move to the margin of our literate culture. […] the idea and the ideal of the book will change: print will no longer define the organization and presentation of knowledge, as it has for the past five centuries. This shift from print to the computer does not mean the end of literacy. What will be lost is not literacy itself, but the literacy of print, for electronic technology offers us a new kind of book and new ways to write and read. The shift to the computer will make writing more flexible, but it will also threaten the definitions of good writing and careful reading that have been fostered by the technique of printing. […] The computer is restructuring our current economy of writing. It is changing the cultural status of writing as well as the method of producing books. It is changing the relationship of the author to the text and of both author and text to the reader. (p. 2-3)8 Os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita Antes da invenção da imprensa, a produção e reprodução manuscritas dos textos condicionavam sua difusão, seu uso e, conseqüentemente, as práticas de escrita e de leitura: por um lado, os livros manuscritos da Idade Média eram objetos de luxo, a que poucos tinham acesso – Umberto Eco representa bem a relação do homem medieval com os livros manuscritos, em O nome da rosa; por outro lado, os copistas freqüentemente alteravam o texto, ou por erro ou por intervenção consciente, de modo que cópias do mesmo texto raramente eram idênticas; além disso, ao possuidor ou ao leitor do manuscrito era garantida a possibilidade de intervir no texto, acrescentando títulos, notas, observações pessoais, porque espaços em branco eram deixados para essa finalidade. 137 Embora a invenção da imprensa, epara isso alertou Chartier (1998, p. 7-9), não tenha representado uma transformação tão radical como se costuma supor – "um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós- Gutemberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais, as do códex", a verdadeira "revolução" tendo sido, na verdade, a descoberta deste, o códex – a "revolução" de Gutemberg alterou profundamente as formas de produção, de reprodução e de difusão da escrita, e, conseqüentemente, modificou significativamente as práticas sociais e individuais de leitura e de escrita – modificou o letramento, isto é, o estado ou condição de quem participa de eventos em que tem papel fundamental a escrita. A tecnologia da impressão enformou a escrita, muito mais do que o tinham feito o rolo e o códice, em algo estável, monumental e controlado: estável, porque o texto se torna então reproduzível em cópias sempre idênticas; monumental porque o texto impresso, muito mais que o manuscrito, sobrevive e persiste como um monumento a seu autor e a seu tempo; controlado porque numerosas instâncias intervêm em sua produção e a regulam. Em primeiro lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que instauram a propriedade sobre a obra, propriedade que se expressa concretamente no surgimento da figura do autor, em geral difuso e não identificado anteriormente, nos livros manuscritos, e instituem, conseqüentemente, os direitos autorais, a criminalização da cópia e do plágio. Em segundo lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que criam muitas e várias instâncias de controle do texto – de sua escrita e de sua leitura: o texto é produto não só do autor, mas também do editor, do diagramador, do programador visual, do ilustrador, de todos aqueles que intervêm na produção, reprodução e difusão de textos impressos em diferentes portadores (jornais, revistas, livros...). Altera-se, assim, fundamentalmente, o estado ou condição dos que escrevem e dos que lêem – o letramento na cultura do texto impresso diferencia-se substancialmente do letramento na cultura do texto manuscrito. Atualmente, a cultura do texto eletrônico traz uma nova mudança no conceito de letramento. Em certos aspectos essenciais, esta nova cultura do texto eletrônico traz 138 de volta características da cultura do texto manuscrito: como o texto manuscrito, e ao contrário do texto impresso, também o texto eletrônico não é estável, não é monumental e é pouco controlado. Não é estável porque, tal como os copistas e os leitores freqüentemente interferiam no texto, também os leitores de hipertextos podem interferir neles, acrescentar, alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; não é monumental porque, como conseqüência de sua não-estabilidade, o texto eletrônico é fugaz, impermanente e mutável; é pouco controlado porque é grande a liberdade de produção de textos na tela e é quase totalmente ausente o controle da qualidade e conveniência do que é produzido e difundido. Enquanto no texto impresso é grande a distância entre autor e leitor – segunto Bolter (1991, p. 3), o autor do texto impresso é a monumental figure (uma figura monumental) e o leitor é apenas a visitor in the author's cathedral (um visitante na catedral do autor) – no texto eletrônico, a distância entre autor e leitor se reduz, porque o leitor se torna, ele também, autor, tendo liberdade para construir, ativa e independentemente, a estrutura e o sentido do texto. Na verdade, o hipertexto é construído pelo leitor no ato mesmo da leitura: optando entre várias alternativas propostas, é ele quem define o texto, sua estrutura e seu sentido. Enquanto no texto impresso, cuja linearidade, por si só, já impõe uma estrutura e uma seqüência, o autor procura controlar o leitor, lançando mão de protocolos de leitura que definam os limites da interpretação e impeçam a superinterpretação, como propõe Umberto Eco (1995, 2001), no texto eletrônico, ao contrário, o autor será tanto mais competente quanto mais alternativas de estruturação e seqüenciação do texto possibilite, quanto mais opções de interpretação ofereça ao leitor. Na verdade, o hipertexto não tem propriamente um autor; em primeiro lugar, porque a intertextualidade, presente, no texto impresso, quase exclusivamente por alusão, no hipertexto se materializa, na medida em que este se constrói pela articulação de textos diversos, de diferentes autorias – no hipertexto, não há uma autoria, mas uma multi-autoria. Assim, o texto eletrônico exige uma reconceituação radical de autoria, de propriedade sobre a obra, de direitos autorais (questões polêmicas que vêm sendo amplamente discutidas, mas ainda não resolvidas), o que tem, sem dúvida, efeitos nas práticas de leitura e de escrita. Por outro lado, na cultura da tela, altera-se radicalmente o controle da publicação: 139 enquanto, na cultura impressa, editores, conselhos editoriais decidem o que vai ser impresso, determinam os critérios de qualidade, portanto, instituem autorias e definem o que é oferecido a leitores, o computador possibilita a publicação e distribuição na tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade: qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser; por exemplo, um artigo científico pode ser posto na rede sem o controle dos conselhos editoriais, dos referees, e ficar disponível para qualquer um ler e decidir individualmente sobre sua qualidade ou não. Pode-se concluir que não é só este novo espaço de escrita que é a tela que gera um novo letramento, para isso também contribuem os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita e da leitura. Segundo Eco (1996), os eventos de letramento que ocorrem com a intermediação da Internet exigem novas práticas e novas habilidades de leitura e de escrita: "We need a new form of critical competence, an as yet unknown art of selection and decimation of information, in short, a new wisdow" (Precisamos de uma nova forma de competência crítica, uma ainda desconhecida arte de seleção e eliminação de informação, em síntese, uma nova sabedoria). Letramentos, o plural Recorde-se o título do primeiro tópico deste texto, Conceitos de letramento: o plural foi posto na palavra conceitos, não na palavra letramento, e o objetivo, naquele momento, foi discutir diferentes perspectivas na caracterização do fenômeno, ali considerado como fenômeno singular, referindo-se, implicitamente, a práticas de leitura e de escrita na cultura do papel. A reflexão que a seguir se fez sobre a escrita na cultura da tela – na cibercultura, o confronto entre tecnologias tipográficas e digitais de escrita e seus diferenciados efeitos sobre o estado ou condição de quem as utiliza, sugere que se pluralize a palavra letramento e se reconheça que diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e, portanto, do fenômeno que ela designa já vem sendo reconhecida internacionalmente,9 para designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual, auditiva, 140 espacial. Dados os limites e objetivos deste texto, esses muitos letramentos não são aqui discutidos; propõe-se o uso do plural letramentos para enfatizar a idéia de que diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de leiturae de escrita: diferentes espaços de escrita e diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam em diferentes letramentos. Voltando ao primeiro parágrafo deste texto, o que aqui se pretendeu foi perseguir uma mais ampla compreensão de letramento, buscando, para além do sentido com que essa palavra e fenômeno vêm sendo usados, limitadamente com referência apenas a práticas de leitura e de escrita no contexto de uma cultura do papel, um novo sentido, conseqüência do surgimento, ao lado da cultura do papel, de uma cibercultura. A conclusão é que letramento é fenômeno plural, historicamente e contemporaneamente: diferentes letramentos ao longo do tempo, diferentes letramentos no nosso tempo. Notas 1. Segundo Lévy (1999, p. 17), cibercultura designa "o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço". Segundo o mesmo autor, ciberespaço é "o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores". 2. Na verdade, a dificuldade de formular um conceito preciso de letramento parece ser inerente ao próprio fenômeno; a esse propósito, ver Soares (1998a). 3. Obviamente, está subjacente a esse conceito de letramento o pressuposto de que a aprendizagem e o exercício de práticas de leitura e escrita têm efeitos sociais, cognitivos, discursivos sobre indivíduos e grupos, o que, reconhece-se, é uma questão polêmica, não discutida neste texto, por ultrapassar seus limites e objetivos. Apenas convém lembrar que a principal objeção a esse pressuposto se fundamenta na tese de que é a escolarização, e não a aquisição da escrita e de suas práticas sociais, que tem efeitos cognitivos, sociais, discursivos sobre indivíduos e grupos 141 sociais (cf. Scribner & Cole, 1981); essa objeção, porém, não invalida o pressuposto: se a escolarização tem efeitos sociais, cognitivos, discursivos sobre os indivíduos e grupos sociais, conseqüentemente as práticas de leitura e escrita também têm, ou mesmo sobretudo têm, já que o componente mais forte da escolarização são, sem dúvida, as práticas de leitura e de escrita. 4. O adjetivo tipográfico, neste texto, usado para qualificar leitura, escrita ou letramento, não se refere apenas, restritamente, a textos impressos com tipos, mas a textos impressos de modo geral, seja qual for o processo de composição – não só tipográfico, mas também por fotocomposição, por editoração eletrônica etc. Atualmente, é com esse sentido amplo que esse adjetivo tem sido usado. 5. Para Ong (1982, p. 6), oralidade primária é "the orality of cultures untouched by literacy"; para Lévy (1993, p. 77): "A oralidade primária remete ao papel da palavra antes que uma sociedade tenha adotado a escrita, a oralidade secundária está relacionada a um estatuto da palavra que é complementar ao da escrita, tal como o conhecemos hoje. Na oralidade primária, a palavra tem como função básica a gestão da memória social, e não apenas a livre expressão das pessoas ou a comunicação prática cotidiana. Hoje em dia, a palavra viva, as palavras que 'se perdem no vento', destaca-se sobre o fundo de um imenso corpus de textos: 'os escritos que permanecem'. O mundo da oralidade primária, por outro lado, situa-se antes de qualquer distinção escrito/falado." 6. Vários autores têm discutido as características e implicações da interação on-line; já em 1985, Meyrowitz propõe uma análise sociológica da questão: MEYROWITZ, J. No sense of place: the impact of electronic media on social behavior. Oxford: Oxford University PreSS , 1985; coletânea organizada por David Porter, apresenta textos sobre comunidades virtuais: PORTER, D. (Ed.). Internet culture. New York and London: Routledge, 1996; Patrick Rebollar apresenta e analisa uma nova convivência intelectual mundializada, na área da literatura, trazendo de volta os "salões literários", como indica o título de seu livro: REBOLLAR, P. Les salons littéraires sont dans l'internet. Paris: PUF, 2002; duas obras recentes analisam a interação on-line sob a perspectiva da linguagem: CRYSTAL, D. Language and the Internet. Cambridge: Cambridge University Press , 2001; DEJOND, A. La cyberl@ngue française. Tournal, Belgique: La Renaissance du Livre, 2002. 142 7. É preciso lembrar, porém, autores que, já antes do texto na tela, lançaram mão, no texto no papel, de estratégias do hipertexto; pode-se citar, como exemplos: O jogo da amarelinha, de Cortázar, O jardim de veredas que se bifurcam, de Borges, Se numa noite de inverno um viajante, de Calvino. 8. "O livro impresso [...] parece estar destinado a afastar-se para a margem de nossa cultura letrada. [...] a idéia e o ideal do livro será alterado: o impresso não mais definirá a organização e a apresentação do conhecimento, como aconteceu nos últimos cinco séculos. Essa mudança da imprensa para o computador não significa o fim do letramento. O que será perdido não é propriamente o letramento, mas o letramento da imprensa, porque a tecnologia eletrônica oferece-nos um novo tipo de livro e novas maneiras de escrever e de ler. A mudança para o computador tornará a escrita mais flexível, mas também alterará as definições de escrita de boa qualidade e de leitura cuidadosa que foram geradas pela técnica da impressão. [...] O computador está reestruturando nossa atual economia de escrita. Está mudando o status cultural da escrita e também o método de produção de livros. Está mudando a relação do autor com o texto e de ambos, autor e texto, com o leitor". 9. Por exemplo, em língua inglesa, são numerosas obras recentes que trazem, em seu próprio título, a palavra no plural, como: GEE, J.P. Social linguistics and literacies. London: Taylor & Francis, 1996; BARTON, D.; HAMILTON, M. Local literacies. London: Routledge, 1998; LANKSHEAR, C. Changing literacies. Buckingham, Philadelphia: Open University PreSS , 1997; BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (EDS .) Situated literacies. London: Routledge, 2000; GREGORY, E.; WILLIANS, A. City literacies. London: Routledge, 2000; COPE, B.; KALANTZIS, M. (EDS .). Multiliteracies. London: Routledge, 2000. Entre nós, foi recentemente publicado livro que propõe o conceito de letramentos múltiplos: CAVALCANTE JR., F.S. Por uma escola do sujeito: o método (con)texto de letramentos múltiplos. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. REFERÊNCIAS BOLTER, J. D. Writing space: the computer, hypertext, and the history of writing. HILLSDALE, N. J.: L. Erlbaum, 1991. [ Links ] 143 CHARTIER, R. Do códex à tela: as trajetórias do escrito. In: CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, DF : UnB, 1994. p. 95-111. [ Links ] CHARTIER, R. Le livre en révolutions. Paris: Textuel, 1997. (Trad. português: A aventura do livro. São Paulo: UNESP, 1998). [ Links ] CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artmed, 2001. [ Links ] ECO, U. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995. [ Links ] ECO, U. From Internet to Gutemberg. 1996. Disponível em: <http://www.italianacademy.columbia.edu/internet.htm >. Acesso em 3 mar.2001. [ Links ] ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [ Links ] GOODY, J. The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University, 1977. [ Links ] GOODY, J. The interface between the written and the oral. Cambridge: Cambridge University, 1987. [ Links ] HAVELOCK, E.A. Preface to Plato. Cambridge, Mass : Belknap;Harvard University, 1963. (Trad. Português: Prefácio a Platão. Campinas: Papirus, 1996). [ Links ] HAVELOCK, E.A. The literate revolution in Greece and its cultural consequences. Princeton: Princeton University, 1982. (Trad. português: A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. São Paulo: UNESP: Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1996). [ Links ] HAVELOCK, E.A. The muse learns to write: reflections on orality and literacy from antiquity to the present. New Haven: Yale University, 1986. [ Links ] HEATH, S. Protean shapes in literacy events: ever-shifting oral and literate traditions. In: TANNEN, D. (Ed.). Spoken and written language: exploring orality and literacy. Norwood, N.J.: Ablex, 1982, p. 91-117. [ Links ] KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61. [ Links ] KLEIMAN, A. Ação e mudança na sala de aula: uma pesquisa sobre letramento e interação. In: ROJO, R. (Org.). Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 173-203. [ Links ] LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. [ Links ] LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. [ Links ] 144 LORD, A.B. The singer of tales. Cambridge, Mass .: Harvard University, 1960. [ Links ] OLSON, D.R. The world on paper: the conceptual and cognitive implications of writing and reading. Cambridge: Cambridge University, 1994. (Trad. português: O mundo no papel. São Paulo: Ática, 1997). [ Links ] ONG , W. J. Writing is a technology that restructures thought. In: BAUMANN, G. The written word: literacy in transition. Oxford: Clarendon, 1986, p. 23-50. [ Links ] ONG , W.J. Orality and literacy: the technologizing of the word. London: Methuen, 1982. (Trad. português: Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998). [ Links ] RAMAL, A.C. Educação na cibercultura: hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. Porto Alegre: ARTMED, 2002. [ Links ] ROUET, J.-F. et al. (EDS .). Hypertext and cognition. Mahwah, N. J.: L. Erlbaum, 1996. [ Links ] SCRIBNER, S.; COLE, M. The psychology of literacy. Cambridge, Mass .: Harvard University, 1981. [ Links ] SOARES, M. Letramento: como definir, como avaliar, como medir. In: SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998a, p. 61- 125. [ Links ] SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998b. [ Links ] TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988. [ Links ] TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995. [ Links ] 145 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Catarina Gonçalves Como fica o trabalho com linguagem diante desses dois processos? Pra pensar o ensino de língua portuguesa na atualidade... As questões sobre o ensino aprendizagem da língua portuguesa hoje, psarece ser um assunto bastante em evidência. Pesquisar, refletir e buscar entender o processo pelo qual se desenvolve a alfabetização vem sendo uma atividade constante entre pesquisadores, pedagogos, lingüistas, psicólogos e etc. Essas investigações vêm priorizando, sobre tudo, os progressos teóricos e metodológicos sofrido por esse fenômeno do saber ler e escrever. O conceito de alfabetização vem sendo questionado, analisado e, até mesmo, negado nos últimos tempos. Essas modificações ocorrem em função da necessidade que a sociedade impõe aos sujeitos sobre o domínio da leitura e da escrita, o que vem a questionar se um indivíduo é ou não é alfabetizado, ampliando esse adjetivo para a pessoa que é capaz de transgredir a capacidade de codificar e decodificar. Essas mudanças sociais trazem para o âmbito acadêmico alteração, ampliação, além de inclusão de significados em determinados conceitos. Discorrer sobre o processo de alfabetização escolar como um todo e analisar os conceitos da alfabetização, suas possibilidades e limites, numa perspectiva crítica, parece ser fundamental para a compreensão e adequação “do ensino de português” nas escolas. Atualmente várias defesas estão ocorrendo em torno do trabalho com linguagem. Dentre os paradigmas aceitos nesse em sala de aula, há aquele que enfatiza uma reflexão contínua do aluno sobre os materiais escritos. Dentro desta perspectiva, uma denominação que está sendo bastante usada, é a do Letramento. As discussões acerca do Letramento surgem no meio acadêmico brasileiro num 146 contexto de reflexões sobre a importância das habilidades necessárias para o uso competente da leitura e da escrita, habilidades estas que estariam para além do simplesmente saber ler e escrever. Essa proposta de mudança ocorre em virtude da contemporaneidade exigir novas competências dos cidadãos em relação aos usos da leitura e escrita. É fato que o índice de alfabetização aumentou bastante nos últimos anos, mas é fato também que, para a plena participação social do indivíduo, exige-se domínio da língua, pois é por meio dela que podemos expressar sentimentos, opiniões, idéias, experiências, etc. Através da língua, interagimos com a sociedade para compreendê-la, recriando- a, tornando-nos seres ativos, pois o ato de saber se expressar faz parte das competências socialmente exigidas para o exercício da cidadania, e assim como MARCUSCHI apud DIONÍZIO (2001, p. 26), acreditamos que a língua é a grande ferramenta diária da qual ninguém poderá abdicar durante toda a sua vida, venha ele a fazer seja lá o que for. Assim, o sujeito hoje precisa ser crítico e atuante, o que requer que ele tenha domínio da língua escrita, esta, sendo vista como algo além de um sistema de códigos, mas como um sistema que possibilite uma atuação dinâmica e capaz de ser transformadora da realidade. Nesse contexto a literatura atual vem trazendo novas discussões acerca da aquisição eficiente da leitura e da escrita. Hoje o domínio dessas duas habilidades é visto como um processo complexo que envolve tanto o domínio do sistema de escrita alfabética como o uso competente da língua escrita em práticas sociais diversificadas. Além da literatura, documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs 1997), também está contemplando a perspectiva do Letramento. Nos PCN 1997 (p.08) encontramos que para o trabalho com a linguagem, “cabe à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los. Isso inclui os textos das diferentes disciplinas, com os quais o aluno se defronta sistematicamente no cotidiano escolar e que, mesmo assim, não consegue manejar, pois não há um trabalho planejado com essa finalidade”. Assim, percebe-se que as recomendações para o trabalho com linguagem escrita em sala de aula, deve-se proporcionar situações de 147 aprendizagem e reflexão sobre a língua. Nessas atividades, devem ser trabalhados variados textos, dando a possibilidade do aluno compreender os diferentes usos, refletir sobre a variedade de recursos que a língua oferece para que se alcance diferentes finalidades comunicativas, além de possibilitarem aquisição do Sistema de Escrita Alfabética (SEA). DOMÍNIO DA LEITURA E DA ESCRITA: CAMINHOS DO PASSADO AO PRESENTE Durante muito tempo, no âmbito educacional, circulou a crença de que para ser alfabetizado, bastava aoindivíduo apropriar-se do sistema de escrita, conhecendo os grafemas e os seus respectivos fonemas. Os Censos realizados até os anos 40, tinham como critério a afirmação do indivíduo quanto ao fato de ser ou não alfabetizado, que era confirmada a partir da assinatura do próprio nome. Nas escolas o ensino de português era voltado para a aprendizagem dos códigos que possibilitavam a capacidade de ler, ou melhor, decodificar. A interação com textos em sala de aula era limitada, e os materiais escritos que circulavam no espaço escolar eram textos graduados, produzidos com um objetivo muito específico: Ensinar a ler e escrever. A partir dos anos 50 até o último Censo (2000) uma nova realidade começou a ser demandada. O critério para identificar indivíduos alfabetizados passou a ser ler e escrever um bilhete simples. A partir de então o cidadão deveria saber usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária, o que indica mudanças na expectativa social em termos da funcionalidade da leitura e escrita, não apenas para o indivíduo alfabetizado, mas para a sociedade como um todo. Nas escolas, não houve modificação na mesma época. Apenas em torno dos anos 80, influenciada pelas pesquisas construtivistas, sócio-construtivistas e psicolingüísticas. Nos últimos anos, novas pesquisas vem sendo realizadas 1, tomando como base os anos de escolaridades dos sujeitos, o que pressupõe que o domínio da escrita exige 148 habilidades para além do apenas ser capaz de ler e escrever bilhetes simples. O que requer portanto, que a escola prepare os indivíduos para a superação dessa capacidade. Dentro dessa nova perspectiva muitas discussões surgem para defender a aprendizagem da escrita alfabética associada à relação que os sujeitos têm com esse objeto de conhecimento. No Brasil há uma tendência a se valorizar a função social da língua, diferente da questão de aquisição do sistema. A esse processo chamamos de: LETRAMENTO. O vocábulo letramento passou a ser utilizado no Brasil, mais ou menos em meados dos anos 80, mas já está incluído em boa parte das discussões acerca das novas perspectivas de ensino do sistema alfabético. É uma tradução para o português da palavra inglesa literacy. Literacy quer dizer capacidade de ler e escrever. Nessa língua o termo é utilizado como sinônimo de alfabetização e habilidade de se inserir em práticas sociais de leitura e escrita. Nesse estudo o termo Letramento, não é utilizado como sinônimo de alfabetização. Em países desenvolvidos, onde o índice de analfabetismo é praticamente inexistente, é possível utilizar um único termo para a capacidade de ler e escrever e se inserir em práticas sociais de leitura e escrita. Contudo, No Brasil, onde o analfabetismo ainda atinge uma parcela significativa da população, a utilização de um único termo poderia se tornar ambígua, uma vez que “podemos falar em analfabeto que lê e escreve e pessoas alfabetizadas, que dominam o sistema de escrita alfabética, mas que são incapazes de produzir textos em situações específicas”. (MORAIS e ALBUQUERQUE, 2004:2) A partir dessa realidade brasileira, seria incoerente chamar de analfabeto, pessoas capazes de produzir e interagir com textos em situações específicas, o que leva a uma necessidade de utilização dos vocábulos Alfabetização para o domínio do sistema de escrita alfabética, e Letramento para o exercício de práticas de leitura e escrita. É importante ressaltar que não se pretende nesse estudo afirmar que 149 Letramento e Alfabetização são práticas distanciadas, mas que no Brasil, diferente dos países desenvolvidos, o vocábulo Letramento não substitui o termo Alfabetização, mas sim são termos complementares e que tem sentido da forma como a cultura letrada se realiza no Brasil. Essa discussão em torno da Alfabetização e do Letramento, tem suscitado uma série de polêmicas e equívocos. Pode-se dizer que a causa desses equívocos é uma incompreensão do que venha a ser, efetivamente, o Letramento, uma vez que “no Brasil os conceitos de Alfabetização e Letramento se mesclam, superpõem e freqüentemente se confundem”, o que leva a perda das especificidades de cada um dos dois processos. (Soares). MAS AFINAL, O QUE DISTINGUE LETRAMENTO DE ALFABETIZAÇÃO? Alguns teóricos não fazem distinção conceitual entre Alfabetização e Letramento, embora apontem para práticas de alfabetização inseridas em práticas sociais de leitura. Ferreiro afirma que: Há algum tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão Letramento. E o que aconteceu com a Alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê.(...) Letramento no lugar de Alfabetização tudo bem. A coexistência dos dois termos é que não funciona. (2003: 30) A referida autora, ao fazer essa afirmação, não pretende reduzir a Alfabetização, ao contrario. Ao negar a coexistência dos dois termos Ferreiro preocupa-se com o reducionismo que pode ser dado a alfabetização, uma vez que se não tem função social, reduzi-se a codificação e decodificação. Para Ferreiro “a escrita pode ser entendida em função de três variáveis: das formas, da denotação dessas formas e dos contextos em que são usadas” o que leva a perceber que, embora não utilize o vocábulo Letramento, compreende a processo da Alfabetização em práticas de Letramento. Dentre os teóricos que não citam a palavra Letramento, porém o defendem, mesmo que de forma implícita, em suas práticas de Alfabetização, citamos Freire, que em 150 seus estudos atribuía à Alfabetização a capacidade do indivíduo organizar criticamente o seu pensamento, desenvolver consciência critica, e introduzir-se num processo real de democratização da cultura e de libertação. (Freire, 1996). Outros teóricos preferem, no entanto, distinguir esses dois termos, apontando suas especificidades e limites. Como afirma Ribeiro (2004), o termo letramento, está bastante disseminado no ambiente acadêmico brasileiro e também entre os educadores; entretanto ainda é desconhecido pela maior parte da população. Sua aceitação e a delimitação de seu sentido ainda não são unânimes o que torna, nesse momento, fundamental ressaltar que é preciso além de valorizar o letramento como elemento fundamental nas práticas docentes, conceituar o que venha a ser essa prática neste estudo, pois como afirma André (2001: 58) termos como este, “que podem ser usados para propósitos tão variados, correm o risco de esvaziarem- se, banalizando a própria idéia”, pois algo que serve para tudo pode não servir para nada. Embora haja no âmbito acadêmico um esforço no sentido de não utilizar termos específicos para propósitos diversificados, é importante apontar as variadas concepções acerca do Letramento, por ser ainda um conceito em construção, existindo usos distintos, o que requer um levantamento e explicitação desse termo. Kleiman (1995) define Letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Para Soares (2003. a), Letramento é o estado ou condição em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive. No que se refere ao termo Alfabetização a autora afirma que é o ato de saber ler e escrever. Em outro estudo, (Soares 2004), complementa a conceituação de Letramento definindo-o como exercício efetivo e competente datecnologia da escrita. Na perspectiva de Tfouni (1995: 9), a “Alfabetização refere-se à aquisição da escrita, 151 já o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Britto (2004) chama a atenção para a necessidade de não apenas conceituar, mas também delimitar o conceito de Letramento, percebendo seus usos e suas especificidades: (...) diferentemente de alfabetização, cujo sentido mais freqüente está associado ao ensino-aprendizagem do sistema de escrita (que, no caso das línguas ocidentais, é alfabético), letramento remeteria para um movimento mais geral, que se relaciona com a percepção da ordem escrita, de seus usos e objetos, bem como de ações que uma pessoa ou um grupo de pessoas faz com base em conhecimentos e artefatos da cultura escrita. Sendo assim a noção de alfabetizado implica uma condição do tipo tudo ou nada, a de letramento (ou de alfabetismo2) sugere uma multiplicidade de níveis e graus, em função do quanto o indivíduo realiza com seus conhecimentos de escrita. (2004:53). O apontamento feito por Brito é também discutido por Tfouni, quando a autora afirma que Alfabetização e Letramento são processos interligados, porém separados enquanto abrangência e natureza. Além de diferenciar os dois fenômenos a autora chama a atenção para a importância dessa consciência pois: Desse modo estaremos evitando as classificações preconceituosas decorrentes da aplicação das categorias “letrado” e “iletrado”, bem como a confusão que usualmente se faz com essas categorias e respectivamente “alfabetizado” e “não- alfabetizado. Estaremos ainda separando o fenômeno do letramento do processo de escolarização, que comumente acompanha o processo de alfabetização” (Tfouni 1995:25) Soares ratifica o que é afirmado por Tfouni, afirmando que Letramento e Alfabetização são conceitos que, embora sejam indissociáveis, são distintos. Para Soares (2003. b), essa distinção e a clareza da especificidade de cada um desses conceitos é de suma importância, uma vez que afirma que no âmbito educacional 152 brasileiro vem ocorrendo uma falsa compreensão dos mesmos, acarretando altos índices de fracasso escolar na aquisição da leitura e escrita. Para Soares esse fato deve-se, sobretudo, a “desinvenção” da Alfabetização que vem acontecendo nas escolas, em função da “invenção” do Letramento. As escolas, com a chegada das discussões acerca do letramento, deixaram de trabalhar as questões relacionadas a Alfabetização, contemplando apenas trabalhos com gêneros textuais. Os professores começaram a conceber que os educandos se alfabetizariam apenas pelo contato com os textos que circulam na sociedade, sem que para isso fosse mais preciso trabalhar de forma sistemática o sistema de escrita alfabética. No meio dessa confusão, Soares afirma que esses dois processos, embora sejam indissociáveis, perderam suas especificidades, gerando então o fracasso na aprendizagem de ambos. É preciso clareza de que a aquisição e domínio da linguagem escrita ocorrem quando o sujeito domina as técnicas da escrita alfabética, ou seja, a alfabetização, e o uso social da mesma, o letramento. ENTÃO LETRAMENTO SERIA A MESMA COISA QUE ALFABETIZAÇÃO? Embora não haja um consenso entre os acadêmicos sobre a discussão em foco, além de não haver a utilização desses dois termos em países desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, nesse estudo consideramos ser de suma importância a distinção entre os dois termos, que embora sejam indissociáveis e interligados entre si, possuem suas especificidades, limites e possibilidades. E O LETRAMENTO E A ALFABETIZAÇÃO... COMO ESTÃO SENDO CONTEMPLADOS NAS SALAS DE AULA? Diante de tantas interrogações e variadas interpretações sobre esses dois conceitos, é necessário ser feita uma reflexão no âmbito educacional: que caminho deve ser trilhado no percurso da alfabetização? Como é possível que um tema tão discutido no cenário educacional ainda levante dúvidas entre educadores? Nos espaços escolares as práticas de aquisição da leitura e da escrita precisam se desenvolver através de duas vias: a técnica (que podemos chamá-la de alfabetização), e o uso social da língua (que nomeamos de Letramento). Porém, como afirma Galvão e Leal (2005: 14) “a escola tem desenvolvido práticas de 153 alfabetização que se estruturam com base em uma lógica linear e seqüencial, segundo a qual só se passa a aprender uma coisa ao se aprender outra. Primeiro se aprende a ler e escrever, depois é que se aprende seus usos por práticas sociais. Ou então, ao revés, as práticas alfabetizadoras mergulham direto nos usos, esquecendo-se de considerar as especificidades do processo de apropriação do SEA”. Modificar, de fato, as práticas pedagógicas em sala de aula vem sendo o grande desafio para a efetivação de uma alfabetização de qualidade. Enquanto na Literatura essa discussão vem se desenvolvendo bastante, em sala de aula os resultados encontrados ainda não são tão estimulantes. Em se tratando de concepções e práticas acerca da Alfabetização e do Letramento, as professoras participantes de um estudo sobre a temática3 demonstraram entender, em sua maioria, a Alfabetização apenas enquanto codificação e decodificação, trabalhando o aprendizado da língua materna de forma fragmentada e descontextualizada. Com relação ao Letramento é conceito não muito assimilado pelas mesmas, que demonstram insegurança sobre o que seja o mesmo. Nas salas de aula das referidas professoras o aprendizado da “técnica” ainda é descontextualizado das situações sociais em que as crianças utilizam a leitura e a escrita. Não queremos dizer com isso, que não se devam ser trabalhadas técnicas ou métodos4 de alfabetização, mas que, como afirma Soares, “não adianta aprender uma técnica e não saber usá-la”, o processo de aprender a ler e escrever só faz sentido se soubermos para que e porque ler e escrever. Esse novo caminho exige das escolas uma revisão das práticas pedagógicas para o ensino das séries iniciais, o que impõe desafios aos profissionais de educação que atuam nas escolas. Desse modo a prática pedagógica passa a ter bastante relevância nas atividades de alfabetização, no sentido de se buscar um equilíbrio entre o trabalho de aquisição do código, articulado ao domínio da leitura e escrita. É fundamental repensar, agora, o trabalho com linguagem em sala de aula, levando em conta as discussões e necessidades atuais. Esse caminho não é tão fácil, uma vez que muitos educadores não ouviram a terminologia Letramento em sua 154 formação inicial, ou apresentam uma interpretação equivocada do mesmo. Mas, embora compreendamos a dificuldade, acreditamos na possibilidade, pois “o saber dos professores não provém de uma fonte única, mas de várias fontes e de diferentes momentos da história de vida e da carreira profissional” o que possibilita a compreensão desse conceito. (Tardif, 2004:18) Valorizar o professor, sobretudo o alfabetizador, seus saberes e sua prática é buscar entender, não só a literatura, mas a dinâmica da sala de aula, uma vez que o conhecimento científico é ressignificado pelo professor no cotidiano escolar. Assim, à medida que o professor reconstrói seus saberes e sua prática, precisa pensar em metodologias de ensino que articulem a alfabetização e o letramento. O processo de aquisição do sistema de escrita alfabética precisa ocorrer inserido no trabalho com materiais escritos que circulam na sociedade, levando os alunos a compreenderem seu uso. Ou seja, é necessário alfabetizar emum contexto de letramento, é necessário ALFABETIZAR LETRANDO. Isto é, fazer com que a criança se aproprie do sistema alfabético e ortográfico da língua, garantindo-lhe plenas condições de usar a língua nas práticas sociais de leitura e escrita. Essa prática de alfabetização, inserida no contexto de letramento, significa ensinar os educandos a utilizarem a língua, escrita e falada, em diferentes contextos sociais. Dessa forma, as atividades pedagógicas devem ser centradas no desenvolvimento das capacidades fundamentais às práticas da linguagem oral e escrita. No contexto da sala de aula as crianças precisam ouvir e falar, ler e escrever os mais variados textos possíveis. A prática pedagógica organizada em torno do uso da língua e sua reflexão deve visar não só o processo de alfabetização em si mesmo, mas também a possibilidade de inserção e participação ativa dos alunos na cultura escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, na produção e compreensão de diferentes gêneros textuais. 1- SAEB e PISA. 2- Entende-se por alfabetismo o mesmo que Letramento. (grifo nosso) 3- (Gonçalves e Oliveira 2005) 4- No presente estudo adota-se a definição de método de Galvão e Leal 2005, no qual afirma que método é o caminho que conduz a um fim determinado. 155 REFERÊNCIAS ANDRÉ, Marli. (2001). “Pesquisa, formação e prática docente”. In:ANDRÈ Marli. O Papel da Pesquisa na Formação e na Prática dos Pesquisadores. 2ª Edição. Campinas, SP: Papirus Editora. Brasil, Mec. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa, 1997. BRITTO, Luís.P.L. (2004) “Sociedade de Cultura Escrita, Alfabetismo e Participação”. In: RIBEIRO, Vera. M. Letramento no Brasil, Reflexos a Partir do INAF 2001. 2ª Edição. São Paulo: Global. DIONÍZIO, Ângela P. O Livro Didático de Português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. FERREIRO, Emília. (2003). Alfabetização e Cultura Escrita. Nova Escola. São Paulo, Vol. 162, p. 27-30. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GALVÃO, Andréa. LEAL,Telma. Há lugar ainda para métodos de alfabetização? Conversa com professores (as). In: MORAIS, ALBUQUERQUE, LEAL (orgs). Alfabetização Apropriação do Sistema de Escrita Alfabética. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. GONÇALVES, Catarina. OLIVEIRA, Valéria. Letramento e Alfabetização: A relação dos professores com esses dois processos. IV Encontro de Pesquisa em Educação da Paraíba. Dezembro, 2005. KLEIMAN, Ângela. (1995) Modelos de Letramento e As Práticas de Alfabetização na Escola. In: Os Significados do Letramento: Uma Nova Perspectiva Sobre a Prática Social da Escrita, Campinas, SP: Mercado de Letras. MORAIS, Artur Gomes de. ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de.(2004) Alfabetização e Letramento: O que são? Como ser relacionam?como alfabetizar “letrando”? RIBEIRO, V. (2004) “Por Mais e Melhores Leitores: Uma Introdução”. In: RIBEIRO, Vera. M. Letramento no Brasil: Reflexões a Partir do INAF 2001. 2ª Edição. São Paulo: Global. RECIFE, Secretaria de Educação(2003). Tempos de aprendizagem, Identidade Cidadã e Organização da Educação Escolar em Ciclos. Editora Universitária. SOARES, Magda. (2003. a) Letramento: um tema em três gêneros. 2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica. SOARES, Magda. (2003.b) Letramento e Alfabetização: As Muitas Facetas. GT Alfabetização Leitura e Escrita, 26ª Reunião Anual da ANPED. Poços de Caldas. 156 SOARES, Magda. (2004) “Letramento e Escolarização”. In: RIBEIRO, Vera. M. Letramento no Brasil, Reflexos a Partir do INAF 2001. 2ª Edição. São Paulo: Global. TARDIF, Maurice. (2002) Saberes Docentes e Formação Profissional. 4ª Edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes TFOUNI, Leda.V. (1995) Letramento e Alfabetização. 6ª Edição. São Paulo: Cortez Publicado em 21/08/2006 11:34:00 Catarina Gonçalves - Pedagoga, especialista em Desenvolvimento da Aprendizagem, atua como Coordenadora Pedagogica de uma instituição particular, presta assessoria para escolas da cidade do Recife, e ensina Metodologia do Trabalho Científico na UVA- Universidade do vale do Acaraú. Psicologia: Reflexão e Crítica Print version ISSN 0102-7972 Psicol. Reflex. Crit. vol.15 no.1 Porto Alegre 2002 doi: 10.1590/S0102-79722002000100005 AMBIENTE FAMILIAR E OS PROBLEMAS DO COMPORTAMENTO APRESENTADOS POR CRIANÇAS COM BAIXO DESEMPENHO ESCOLAR Marlene de Cássia Trivellato Ferreira Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto Edna Maria Marturano 12 Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto Resumo Comportamentos externalizantes freqüentemente se desenvolvem em contextos de adversidade ambiental. O objetivo do estudo foi documentar essa associação em crianças com desempenho escolar pobre. Participaram meninos e meninas, com idade entre sete e 11 anos, referidos para atendimento por dificuldades escolares. De um universo de 141 crianças, formaram-se dois grupos com base na pontuação da Escala Comportamental Infantil: G1 (crianças sem problema de comportamento, n= 30) e G2 (crianças com problema de comportamento, n= 37). As mães foram entrevistadas, obtendo-se informações sobre recursos e adversidades do ambiente familiar. Os resultados indicaram que o ambiente familiar de G2 apresenta menos recursos e maior adversidade, incluindo problemas nas relações interpessoais, falhas parentais quanto a supervisão, monitoramento e suporte, indícios de menor 157 investimento dos pais no desenvolvimento da criança, práticas punitivas e modelos adultos agressivos. As dificuldades escolares aumentam a vulnerabilidade da criança para inadaptação psicossocial. Enfatiza-se a importância de incluir a família em intervenções preventivas voltadas para essa clientela. Palavras-chave: Ambiente familiar; comportamentos externalizantes; desempenho escolar; criança. Home Enviroment and Behavior Problems presented by School Underachieving Children Abstract Externalizing behaviors frequently develop in adverse environments. The aim of this study was to document this association in children presenting academic underachievement. Participants were both boys and girls, aged seven to 11 years, referred for psychological treatment by virtue of school underachievement. From a universe of 141 children, two groups were constituted on the basis of scores in the Child Behavior Scale: G1 (children without behavior problems, n= 30) and G2 (children with behavior problems, n= 37). Mothers were interviewed to obtain data about environment resources and adversities. Results indicated that children from G2 live at homes with fewer resources and more adversities, presentig problems in interpersonal relationships, poor parent supervision, monitoring and supporting, lower parent involvement with child development, punitive practices and aggressive adult models. The school difficulties raise the child's vulnerability to maladjustment. The inclusion of the family in preventive interventions directed to these children is emphazised. Keywords: Home environment; externalizing behaviors; school achievement; child. Comportamentos marcados por hiperatividade, impulsividade, oposição, agressão, desfio e manifestações anti-sociais são classificados como externalizantes, em oposição a padrões de comportamento internalizantes – disforia, retraimento, medo e ansiedade. Os problemas externalizantes tendem a ser mais estáveis que os internalizantes e têm curso e prognóstico menos favoráveis, particularmente os 158 componentes de agressividade, impulsividadee tendências anti-sociais , que representam as formas mais comuns e persistentes de desajustamento na meninice e são precursores de distúrbio de conduta na adolescência (Esser, Schmidt & Woerner, 1990;Fergusson, Lynskey & Horwood, 1996; Hinshaw, 1992; Institute of Medicine, 1994). Associados a ajustamento social pobre, têm conseqüências crônicas e graves não apenas para as crianças que os manifestam, mas também para os pais, irmãos, professores e a sociedade em geral. Essas crianças estão em risco de rejeição pelos companheiros, conflitos com a família e com os professores, fracasso escolar, dificuldades ocupacionais, além do risco mais sério para comportamentos socialmente desviantes (Olson, Bates, Sandy & Lanthier, 2000). Comportamentos externalizantes com componentes anti-sociais freqüentemente se desenvolvem em contextos de adversidade ambiental. Investigações para elucidar a origem e o curso de desenvolvimento dos problemas têm convergido para uma concepção multifatorial e transacional, em que as manifestações externalizantes refletem processos de trocas contínuas entre características da criança nas interações sociais e características dos cuidadores e seu contexto social/ecológico (Olson & cols., 2000). Nessas trocas, o ambiente familiar apresenta práticas de socialização violentas, exposição a modelos adultos agressivos, falta de afeto materno e conflitos entre os pais (Blanz, Schmidt, & Günther, 1991; Dodge, Pettit & Bates, 1994; Ramsey, Shinn, Walker & O'Neill, 1989; Shaw e Emery, 1988; Vuchinich, Bank & Patterson, 1992). Tais práticas, por sua vez, estão freqüentemente associadas a um contexto social adverso, marcado por dificuldade econômica e estressores psicossociais incidindo sobre a família (McLoyd, 1998). Variáveis familiares podem contribuir para a persistência dos problemas da fase pré- escolar à escolar (Denham & cols., 2000) e da meninice à adolescência (Fergusson & cols., 1996). Pesquisas recentes sugerem que, embora o envolvimento do adolescente em atividades anti-sociais seja influenciado significativamente por seus relacionamentos com companheiros anti-sociais, a cadeia de eventos que conduz muitos adolescentes para grupos anti-sociais começa no lar, durante a meninice; os elos nessa cadeia incluem práticas educativas coercitivas e punitivas, que contribuem para o desenvolvimento de agressão e fracasso escolar; estes, por sua vez, levam à seleção de companheiros anti-sociais (Collins, Maccoby, Steinberg, 159 Hetherington & Bornstein, 2000). Crianças com desempenho escolar pobre freqüentemente apresentam problemas de comportamento externalizantes (Graminha, 1992; Hinshaw, 1992; Santos, 1990). Nos primeiros anos da escola elementar, manifestações internalizantes também são comuns (Thompson, Lampron, Johnson & Eckstein, 1990), mas prevalecem sinais de hiperatividade e impulsividade (Hinshaw, 1992). Pesquisas têm demonstrado que os problemas externalizantes comumente antecedem as dificuldades escolares e podem ser exacerbados por estas (McGee, Willians, Share, Anderson & Silva, 1986; Parreira, 1995). Quando as dificuldades interpessoais já estão presentes nessa fase, é maior o risco de persistência dos problemas (Denham e cols., 2000). A associação entre dificuldade escolar e comportamento externalizante constitui um importante tema de pesquisa. Ambos os problemas representam questões centrais na meninice, interessando à psicologia do desenvolvimento, por interferirem no cumprimento de tarefas evolutivas proeminentes nessa fase, e ao campo da saúde mental, por terem alta prevalência e prognóstico pobre, no sentido de serem fatores de risco para inadaptação psicossocial na adolescência. No contexto brasileiro, o tema afeta, entre outros, os campos da atuação e da formação do psicólogo. Sabe- se que problemas externalizantes e dificuldades no aprendizado escolar são os principais motivos de procura de atendimento psicológico para crianças na rede pública de saúde e nas clínicas-escola de Psicologia (Barbosa & Silvares, 1994; Sales, 1989; Santos 1990). E quando se comparam crianças cujas famílias buscaram ou não ajuda psicológica para as dificuldades escolares, a incidência e a intensidade dos problemas de comportamento são maiores no grupo que buscou atendimento (Marturano, Linhares, Loureiro & Machado, 1997). Esses dados sugerem que a co-ocorrência de problemas de comportamento e baixo desempenho na escola pode ser um dos fatores responsáveis pela elevada demanda motivada por dificuldades escolares, encontrada em clínicas de psicologia e serviços de saúde mental. Considerando que comportamentos externalizantes com componentes anti-sociais, com prognóstico pobre, freqüentemente estão associados à adversidade ambiental, a investigação relatada neste artigo focaliza o problema em crianças referidas para atendimento psicológico em razão de dificuldades no aprendizado escolar, buscando caracterizar seu ambiente de desenvolvimento. O estudo foi conduzido no 160 pressuposto de que o conhecimento das condições ambientais associadas aos problemas de comportamento nessa população clínica pode contribuir para a definição de estratégias preventivas, assim como para a capacitação do psicólogo para o trabalho junto à clientela escolar dos serviços de saúde. Seu objetivo específico é investigar, em crianças com queixa de baixo desempenho escolar, a associação entre problemas de comportamento e características do ambiente familiar. Para alcançar o objetivo, emprega-se um delineamento de comparação entre grupos constituídos a partir da presença ou ausência dos indicadores comportamentais. Na seleção de variáveis ambientais, procurou-se incluir tanto aquelas adversas, que contribuem para os problemas quando presentes em alto grau, como aquelas positivas, cujo efeito é atenuador. Entre as circunstâncias adversas se encontram as práticas parentais punitivas e agressivas, bem como os conflitos familiares; entre os recursos positivos, o envolvimento e a supervisão dos pais (Ackerman, Kogos, Youngstom, Schoff & Izard, 1999; Gest, Neemann, Hubbard, Masten & Tellegen, 1993; Stormshak, Bierman, McMahon, Lengua & Conduct Problems Prevention Research Group, 2000). Embora acatando o ponto de vista de que o acúmulo de condições adversas seria mais importante que o tipo ou a natureza da adversidade presente (Sameroff, Sameroff, Baldwin & Baldwin, 1993), procurou-se manter a distinção entre três conjuntos de condições, postuladas como indícios de processos diferentes: as que incidem diretamente sobre a criança, podendo estabelecer mecanismos de vulnerabilidade pessoal (por ex. hospitalização); as que incidem sobre a família, afetando as práticas e o envolvimento parental (transições familiares; pobreza); e aquelas que sinalizam processos transacionais, com participação ativa da criança na origem dos acontecimentos, tais como conflitos entre a criança e os pais e incidentes disciplinares na escola (Ackerman e cols., 1999; Patterson, DeBaryshe e Ramsey, 1989; Rutter, 1987). 161 Método Participantes Os participantes foram selecionados de uma amostra de 141 crianças de ambos os sexos, atendidas consecutivamente em uma clínica de Psicologia vinculada a um hospital universitário no período de julho de 1996 a março de 1999. Todas haviam sido encaminhadas, através de referência do Sistema Único de Saúde, tendo por motivo de encaminhamento o rendimento escolar pobre. Segundo critérios expostos adiante, foram formados dois grupos a partir da amostra geral: Grupo 1(G1) - crianças sem problema de comportamento (n=30); Grupo 2 (G2)-crianças com problemade comportamento (n=37). A Tabela 1 apresenta uma caracterização dos grupos quanto a sexo, idade, escolaridade da criança, escolaridade dos pais e jornada de trabalho da mãe. 162 Os dados referentes à caracterização dos dois grupos foram submetidos a análise estatística, através do teste Qui-quadrado para a variável sexo e do teste t de Student para as demais variáveis, encontrando-se diferença significativa entre os grupos apenas na variável escolaridade do pai (t = 2,89; p < 0,01). Local A investigação foi conduzida em uma clínica-escola cuja proposta de atendimento à clientela com dificuldades escolares focaliza os recursos da criança e da família, no sentido de identificá-los e mobilizá-los para enfrentamento dos problemas em curso. Instrumentos, Variáveis e Medidas Para composição dos grupos foi utilizada a Escala Comportamental Infantil A2 de Rutter (ECI), versão para pais, publicada em 1967 e adaptada por Graminha (1994), que relata uma fidedignidade teste-reteste aceitável para 97% dos itens da escala. A variável problema de comportamento foi operacionalizada através da combinação de dois critérios, com base nos escores da ECI: 1) escore maior que 16, caracterizando necessidade de apoio profissional na visão dos pais (Graminha & Coelho, 1994); 2) indicação de problema de conduta, correspondente à média de sete itens: "Fica mau humorado e nervoso (isto é, fica irritado, grita e perde completamente o humor)"; "Ele costuma roubar ou então pegar coisas dos outros às escondidas"; "Briga freqüentemente ou é extremamente briguento com outras crianças"; "Não é uma criança muito querida pelas outras crianças"; "Muitas vezes fala mentira"; "Maltrata as outras crianças"; "Fala palavrões, nomes feios" (Goodman, 1997; McGee e cols., 1985). Os critérios combinados para inclusão nos grupos foram: Inclusão em G1: Crianças sem problemas de comportamento: escore total na ECI igual ou inferior a 16 e escore de problema de conduta situado no limite ou abaixo do percentil 25 da amostra total. Inclusão em G2: Crianças com problemas de comportamento: escore total na ECI superior a 16 e escore de problema de conduta situado no limite ou acima do percentil 75 da amostra total. Para a investigação de características do ambiente familiar foram empregados os 163 seguintes instrumentos, descritos em detalhe por Santos (1999): Entrevista para Esclarecimento da Queixa - (EEQ): Desenvolvida e empregada rotineiramente pela equipe de psicólogos da clínica onde se realizou a coleta de dados, cobre tópicos como o motivo da consulta, história escolar, desenvolvimento, relacionamentos familiares e sociais. É composta por um roteiro de questões abertas e um guia para classificação de recursos e adversidades, destinado à análise dos relatos das entrevistas. A pontuação atribuída a cada classe de situação corresponde ao número de diferentes situações identificadas naquela classe. Santos (1999) refere um índice de concordância bruta igual a 82% para a análise de entrevistas feitas por dois juizes independentes, e índice de estabilidade de 84% para duas aplicações consecutivas do roteiro, com intervalo de 20 dias. Escala de Eventos Adversos (EEA): É formada por 36 itens descritivos de eventos adversos que podem ter ocorrido nos últimos 12 meses ou anteriormente na vida da criança. Atribui-se um ponto para a ocorrência recente e um ponto para a ocorrência passada, de modo que o escore em cada item pode variar de zero a dois e o escore total, de zero a 72. Um estudo de fidedignidade através do procedimento teste- reteste com três mães forneceu índices de 100%, 97% e 94% de estabilidade entre aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF): É composto de 14 tópicos. O número e o formato dos itens que compõem cada tópico são variados. O escore em cada tópico é a soma dos pontos obtidos, dividido pelo número de itens que compõem aquele tópico. O escore total corresponde à soma dos escores obtidos nos 14 tópicos do RAF. Através de procedimento semelhante ao utilizado para a EEA, foram obtidos índices de 100%, 99% e 92% de estabilidade entre aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Tanto a EEA como o RAF foram desenvolvidos por Marturano (1999). As variáveis ambientais incluídas na análise foram derivadas dos três instrumentos acima descritos, compondo-se oito medidas de recursos, dez medidas de circunstâncias adversas e dois indicadores sócio-econômicos. Do RAF foram derivados dois conjuntos de medidas de recursos e um indicador sócio-econômico: 1) Supervisão dos pais (tópicos Atividades da criança quando não está na escola, 164 Arranjo espaço-temporal para a lição de casa, Supervisão para a escola, Atividades diárias com horário definido); 2) Envolvimento e suporte dos pais (tópicos Passeios, Oferta de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento, Atividades compartilhadas com os pais no lar, Pessoas a quem a criança recorre para pedir ajuda ou conselho); 3) Indicador sócio-econômico, baseado no tópico Comodidades, que relaciona 13 itens de conforto disponíveis na moradia, como aparelhos eletrodomésticos e eletroeletrônicos, computador e veículos, entre outros, e está baseado na escala proposta por Soares e Fernandes (1989). Da EEA foram derivados um indicador de instabilidade financeira, dois indicadores de adversidade relacionada ao funcionamento parental e um indicador de adversidade familiar não envolvendo diretamente o funcionamento parental (Gest e cols., 1993), além de três indicadores de adversidade incidindo diretamente sobre a criança. O indicador de instabilidade financeira foi obtido a partir da soma dos itens: "Momentos difíceis do ponto de vista financeiro", "Perda de emprego do pai ou da mãe", "Mãe passou a trabalhar fora". Os indicadores de adversidade parental incluíram: 1) Adversidade nas relações parentais (soma dos itens "Conflitos entre os pais", "Separação temporária dos pais", "Divórcio dos pais", "Abandono do lar pelo pai ou pela mãe", "Recasamento da mãe", "Litígio judicial entre os pais"); 2) Adversidade associada a condutas parentais (soma dos itens "Alcoolismo/drogadição parental", "Envolvimento parental com a polícia ou a justiça"). O indicador de outras adversidades familiares foi obtido pela soma dos itens "Doença grave do pai ou da mãe", "Morte do pai ou da mãe", "Nascimento de um irmão", "Doença grave/hospitalização de um irmão", "Morte de um avô ou avó", "Gravidez de irmã solteira", "Abandono do lar por um irmão". As medidas de adversidade incidindo diretamente sobre a criança foram: 1) Eventos adversos na vida pessoal (soma dos itens "Hospitalização ou enfermidade grave da criança", "Acidente com seqüela", "Morte de amigo"); 2) Eventos adversos na vida escolar (soma dos itens "Mudança de escola", "Repetência", "Mais de uma troca de professora no mesmo ano letivo"); 3) Problemas nas relações interpessoais (soma dos itens "O relacionamento com os companheiros piorou", "A criança sofreu agressão por parte da professora", "A criança foi suspensa da escola"). 165 A EEQ forneceu quatro indicadores de adversidade, correspondendo cada um à soma dos itens indicados entre parênteses: Condições adversas pessoais da mãe (sobrecarga de afazeres/tensões diárias, falha no suporte do cônjuge, interferência de familiares na criação dos filhos, autodepreciação, culpa); Práticas educativas inadequadas (ameaça, punição, superproteção, permissividade, restritividade,insegurança, discordância entre os pais); Problemas no relacionamento pais-criança (agressão física, agressão verbal, tratamento rude, conflitos, relacionamento distante, depreciação, indiferença/ rejeição); Adversidade extrafamiliar (vizinhança de risco, depreciação extrafamiliar, agressão extrafamiliar, abuso ou tentativa de abuso sexual). Procedimentos Na clínica-escola onde os dados foram colhidos, cada criança e sua mãe são entrevistadas separadamente durante a triagem clínica, realizada com a finalidade de verificar a queixa escolar e subsidiar o atendimento psicopedagógico caso haja indicação para o mesmo. Os instrumentos empregados neste estudo foram aplicados nessa oportunidade, junto às mães das 141 crianças. Os dados foram colhidos por três psicólogos da equipe do referido serviço, com formação em psicologia clínica e experiência profissional mínima de dez anos. Todos passaram por treinamento específico para aplicação dos instrumentos. Os resultados obtidos nos instrumentos de avaliação do ambiente familiar foram comparados através do teste t de Student. Para verificar diferenças em itens com formato de escala nominal, aplicou-se o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções. Foi considerado significativo todo resultado com probabilidade igual ou inferior a 0,05. Dada a assimetria por sexo entre os grupos, análises preliminares foram conduzidas para verificar diferenças que recomendariam incluir esta variável nas análises. Resultados A comparação entre sexos, através do teste t de Student, detectou diferença em apenas dois indicadores: Atividades diárias com horário definido, em que o grupo das meninas teve média mais alta (t= 2,10, p= 0,04), e Problemas nas relações interpessoais, em que a média do grupo masculino foi mais elevada (t= 2,85, p < 166 0,01). Considerando que são diferenças pontuais, as análises foram conduzidas sobre a amostra total. Os resultados da análise estatística dos dados fornecidos pelo Inventário de Recursos do Ambiente Familiar são apresentados na Tabela 2. Os grupos apresentaram diferenças significativas no escore total do RAF e no indicador sócio-econômico, assim como nos escores obtidos nos tópicos passeios, atividades compartilhadas pela criança e pelos pais no lar, pessoas a quem a criança recorre para pedir ajuda ou conselho, oferta de brinquedos e outros materiais promotores de desenvolvimento. Em todas essas medidas, as médias de G1 foram maiores que as de G2. O Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções apontou diferenças significativas em alguns dos itens que compõem cada tópico, indicando que mais crianças do grupo sem problema de comportamento brincam dentro de casa quando não estão na escola, têm horário para brincar e para fazer a lição de casa, recebem supervisão dos pais para o estudo das provas, fazem 167 viagens e passeios a shopping centers, lanchonetes e parques de diversão, brincam com os pais e contam casos para eles. Essas crianças, quando precisam de ajuda ou conselho, recorrem não somente à mãe, como as crianças de G2, mas também ao pai e a um irmão ou irmã. Ao longo do desenvolvimento, elas têm tido acesso a maior diversidade de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento. Com relação à Escala de Eventos Adversos, a Tabela 3 contém os resultados da análise estatística, onde se verifica que os grupos apresentaram diferença significativa no Escore total da EEA, assim como nos indicadores de Adversidade nas relações parentais, Eventos adversos na vida pessoal, Eventos adversos na vida escolar e Problemas nas relações interpessoais. Em todas as medidas, as médias de G2 foram maiores que as de G1. 168 Os itens da EEA com incidência significativamente maior em G2, segundo o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, foram: divórcio dos pais e pai ou mãe abandonou a família (Adversidade nas relações Parentais); hospitalização/enfermidade grave de um irmão/irmã da criança (Outras adversidades familiares); hospitalização ou enfermidade grave da criança (Eventos Adversos na Vida Pessoal); repetência (Eventos Adversos na Vida Escolar); piora no relacionamento com os colegas e suspensão (Problemas nas Relações Interpessoais). A análise dos dados fornecidos pela Entrevista de Esclarecimento da Queixa, submetida ao Guia de Classificação das Adversidades do Ambiente Familiar, indicou diferença significativa entre os grupos no número >de adversidades presentes no ambiente familiar: G2, grupo com problemas de comportamento, apresentou mais situações de adversidade em seu ambiente familiar que G1, grupo sem problema de comportamento. Esse resultado e os dados relativos a cada classe de adversidade ambiental são apresentados na Tabela 4. 169 Foi encontrada diferença significativa entre os dois grupos nos indicadores de práticas educativas inadequadas e problemas no relacionamento pais-criança, onde as médias de G2 foram maiores que as de G1. Aplicando-se o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, verificou-se em G2 maior incidência dos seguintes indicadores extraídos da EEQ: agressão física à criança; ameaça; relacionamento distante entre os pais e a criança; conflitos entre os pais e a criança. O item superproteção apareceu com maior incidência em G1. Discussão O presente trabalho teve como objetivo documentar, em crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem, associações entre problemas de comportamento e variáveis do ambiente familiar. A pesquisa se definiu através de duas características principais. Em primeiro lugar, não só foram incluídas circunstâncias adversas, como vem sendo enfatizado ao longo dos anos na investigação dos transtornos de comportamento em crianças, mas também foram considerados, seguindo uma tendência mais recente, recursos facilitadores do desenvolvimento psicossocial (Kliewer & Kung, 1998). Em segundo lugar, a par com a informação sobre o acúmulo de eventos adversos, apontado como um indicador sensível do impacto ambiental sobre o desenvolvimento, foram preservadas informações sobre condições ambientais que poderiam fornecer indícios de diferentes processos em curso. Embora o delineamento de comparação entre grupos só tenha permitido verificar relações de co-ocorrência, os resultados sugerem processos compatíveis com as diversas concepções de ação ambiental mencionadas na Introdução. Em relação aos efeitos cumulativos de variáveis ambientais sobre o desenvolvimento (Fergusson e cols., 1996; Sameroff e cols., 1993), foram encontrados indicadores consistentes de desvantagem no grupo com problemas de comportamento: os escores totais dos três instrumentos utilizados diferenciaram os grupos significativamente, sugerindo que o grupo com problemas de comportamento tem seu ambiente de desenvolvimento mais prejudicado, seja pelo menor acesso a recursos, seja pela presença de mais circunstâncias adversas. Os resultados relativos aos indicadores específicos mostram que essa desvantagem 170 estaria presente em diferentes setores da vida familiar. Incidindo diretamente sobre a criança, foi detectado um acúmulo de condições adversas, com probabilidade de estabelecer mecanismos de vulnerabilidade pessoal, como é o caso das hospitalizações recorrentes (Rutter, 1977). O número de hospitalizações ou doenças graves da criança e também dos irmãos, maior no grupo com problemas de comportamento,sugere que este evento seria conseqüência de condições de vida adversas incidindo sobre toda a prole. Essa interpretação é fortalecida pelos resultados relativos à vida familiar, pois o grupo com problemas apresenta maior índice de problemas nas relações parentais, com mais indicadores de instabilidade familiar, uma condição que vem sendo apontada como particularmente prejudicial ao desenvolvimento da criança (Ackerman e cols., 1999). Em contrapartida, o grupo de crianças sem problemas de comportamento parece favorecido por um ambiente mais apoiador e supridor, conforme foi detectado nos resultados relativos a recursos ambientais. Os recursos que diferenciam este grupo estão tipicamente presentes nas interações familiares envolvendo diretamente a criança, expressas nas oportunidades de convivência entre a criança e seus pais, no suporte para enfrentamento dos problemas cotidianos e no envolvimento dos pais em atividades facilitadoras do desenvolvimento. Na organização das rotinas domésticas as diferenças entre os grupos são menos pronunciadas, porém há sinais de que as necessidades da criança são levadas mais em conta no grupo sem problemas, onde há maior monitoração do uso do tempo livre e supervisão do estudo. Os resultados relativos a práticas educativas, indicando maior uso de ameaça no grupo com problemas e mais proteção no grupo sem problemas de comportamento, são sintomáticos de estilos parentais distintos. Nas famílias de crianças com problemas o que sobressai são as interações negativas, provavelmente associadas às manifestações externalizantes da criança, sinalizando um estilo parental reativo. Já os pais de crianças sem problemas de comportamento parecem ter uma abordagem proativa: eles organizam e planejam mais o cotidiano das crianças, estão mais disponíveis para ajuda e se ocupam mais com providências relativas ao estudo e ao lazer, parecendo mais preocupados com a segurança dos filhos. Esse perfil tem diversos ingredientes da chamada abordagem apoiadora nos cuidados parentais, cujos efeitos benéficos sobre o ajustamento da criança foram demonstrados 171 recentemente, tanto através de ação direta como de mecanismos protetores frente à adversidade familiar (Pettit, Bates & Dodge, 1997). Nos resultados há indícios indiretos de processos compatíveis com o modelo transacional e multifatorial, que postula o desenvolvimento como resultante das interações entre a criança e seus cuidadores, no contexto das condições ambientais que afetam o funcionamento da família (Olson & cols., 2000). Quanto ao contexto, os grupos diferem no indicador sócio-econômico, apontando menos recursos no grupo com problemas de comportamento. Esse resultado é corroborado pelos dados relativos à escolaridade do pai, embora não confirmado pelo indicador de instabilidade financeira nem pelas informações sobre jornada de trabalho da mãe. A desvantagem socioeconômica tem sido apontada como fator de risco ao desenvolvimento, associado a variáveis como vizinhança de risco, instabilidade familiar e depressão parental, estas últimas influenciando as práticas educativas (Ackerman e cols., 1999; Conger e cols., 1992; Institute of Medicine, 1994; McLoyd, 1998). Dodge e colaboradores (1994) verificaram que a relação entre o status sócio- econômico e os problemas de comportamento da criança é mediada por processos de socialização, em que estão presentes, entre outras variáveis, uma disciplina punitiva, >modelos adultos agressivos e estressores incidindo sobre a família, ingredientes encontrados com maior freqüência, na presente investigação, entre as crianças com problemas de comportamento. Os processos transacionais, presentes nas interações entre a criança e seus cuidadores, são evidenciados naqueles resultados que mostram diferenças entre os grupos em eventos e situações envolvendo a participação ativa da criança: relacionamento com os pais e problemas nas relações interpessoais. As crianças com problemas de comportamento sofrem mais agressão física por parte dos pais, seu relacionamento com os pais é descrito mais freqüentemente como distante ou envolvendo conflitos, e elas recebem mais suspensão na escola. As relações com os companheiros também estão prejudicadas. Os resultados encontrados têm implicações para o atendimento psicológico às crianças encaminhadas à rede de saúde e às clínicas-escola de psicologia por dificuldades de aprendizagem. A mais imediata é que, nessa população, há um 172 segmento em alto risco para distúrbio psicossocial na adolescência, por apresentar problemas externalizantes com componentes anti-sociais, em ambientes caracterizados por adversidade múltipla. Em uma perspectiva desenvolvimentista, a trajetória de desenvolvimento de muitos desses indivíduos já inclui, na meninice intermediária, mecanismos de vulnerabilidade envolvendo fracasso escolar, problemas nas relações interpessoais, falhas parentais na supervisão, no monitoramento e no suporte, investimento pobre dos pais no desenvolvimento da criança, práticas punitivas e modelos adultos agressivos. Em uma perspectiva ecológica, todos os contextos interpessoais significativos para seu desenvolvimento parecem afetados: o lar, a escola e o grupo de companheiros. Assim, o atendimento a essas crianças não pode ficar circunscrito às questões escolares. Conforme tem sido recomendado na literatura sobre prevenção em saúde mental (Conduct Problems Prevention Research Group, 2000), há necessidade de implementar modalidades de intervenção preventiva que incluam o sistema familiar e focalizem as tarefas de desenvolvimento e os mecanismos de proteção e vulnerabilidade da fase escolar, no contexto das condições de vida e desenvolvimento dessa população. (1999) refere um índice de concordância bruta igual a 82% para a análise de entrevistas feitas por dois juizes independentes, e índice de estabilidade de 84% para duas aplicações consecutivas do roteiro, com intervalo de 20 dias. Escala de Eventos Adversos (EEA): É formada por 36 itens descritivos de eventos adversos que podem ter ocorrido nos últimos 12 meses ou anteriormente na vida da criança. Atribui-se um ponto para a ocorrência recente e um ponto para a ocorrência passada, de modo que o escore em cada item pode variar de zero a dois e o escore total, de zero a 72. Um estudo de fidedignidade através do procedimento teste- reteste com três mães forneceu índices de 100%, 97% e 94% de estabilidade entre aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF): É composto de 14 tópicos. O número e o formato dos itens que compõem cada tópico são variados. O escore em cada tópico é a soma dos pontos obtidos, dividido pelo número de itens que compõem aquele tópico. O escore total corresponde à soma dos escores obtidos 173 nos 14 tópicos do RAF. Através de procedimento semelhante ao utilizado para a EEA, foram obtidos índices de 100%, 99% e 92% de estabilidade entre aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999). Tanto a EEA como o RAF foram desenvolvidos por Marturano (1999). As variáveis ambientais incluídas na análise foram derivadas dos três instrumentos acima descritos, compondo-se oito medidas de recursos, dez medidas de circunstâncias adversas e dois indicadores sócio-econômicos. Do RAF foram derivados dois conjuntos de medidas de recursos e um indicador sócio-econômico: 1) Supervisão dos pais (tópicos Atividades da criança quando não está na escola, Arranjo espaço-temporal para a lição de casa, Supervisão para a escola, Atividades diárias com horário definido); 2) Envolvimentoe suporte dos pais (tópicos Passeios, Oferta de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento, Atividades compartilhadas com os pais no lar, Pessoas a quem a criança recorre para pedir ajuda ou conselho); 3) Indicador sócio-econômico, baseado no tópico Comodidades, que relaciona 13 itens de conforto disponíveis na moradia, como aparelhos eletrodomésticos e eletroeletrônicos, computador e veículos, entre outros, e está baseado na escala proposta por Soares e Fernandes (1989). Da EEA foram derivados um indicador de instabilidade financeira, dois indicadores de adversidade relacionada ao funcionamento parental e um indicador de adversidade familiar não envolvendo diretamente o funcionamento parental (Gest e cols., 1993), além de três indicadores de adversidade incidindo diretamente sobre a criança. O indicador de instabilidade financeira foi obtido a partir da soma dos itens: "Momentos difíceis do ponto de vista financeiro", "Perda de emprego do pai ou da mãe", "Mãe passou a trabalhar fora". Os indicadores de adversidade parental incluíram: 1) Adversidade nas relações parentais (soma dos itens "Conflitos entre os pais", "Separação temporária dos pais", "Divórcio dos pais", "Abandono do lar pelo pai ou pela mãe", "Recasamento da mãe", "Litígio judicial entre os pais"); 2) Adversidade associada a condutas parentais (soma dos itens "Alcoolismo/drogadição parental", "Envolvimento parental com a polícia ou a justiça"). O indicador de outras adversidades familiares foi obtido pela soma dos itens "Doença grave do pai ou da mãe", "Morte do pai ou da mãe", "Nascimento de um irmão", "Doença grave/hospitalização de um irmão", "Morte de um avô ou avó", "Gravidez de irmã solteira", "Abandono do lar por um irmão". As medidas de 174 adversidade incidindo diretamente sobre a criança foram: 1) Eventos adversos na vida pessoal (soma dos itens "Hospitalização ou enfermidade grave da criança", "Acidente com seqüela", "Morte de amigo"); 2) Eventos adversos na vida escolar (soma dos itens "Mudança de escola", "Repetência", "Mais de uma troca de professora no mesmo ano letivo"); 3) Problemas nas relações interpessoais (soma dos itens "O relacionamento com os companheiros piorou", "A criança sofreu agressão por parte da professora", "A criança foi suspensa da escola"). A EEQ forneceu quatro indicadores de adversidade, correspondendo cada um à soma dos itens indicados entre parênteses: Condições adversas pessoais da mãe (sobrecarga de afazeres/tensões diárias, falha no suporte do cônjuge, interferência de familiares na criação dos filhos, autodepreciação, culpa); Práticas educativas inadequadas (ameaça, punição, superproteção, permissividade, restritividade, insegurança, discordância entre os pais); Problemas no relacionamento pais-criança (agressão física, agressão verbal, tratamento rude, conflitos, relacionamento distante, depreciação, indiferença/ rejeição); Adversidade extrafamiliar (vizinhança de risco, depreciação extrafamiliar, agressão extrafamiliar, abuso ou tentativa de abuso sexual) 175 Procedimentos Na clínica-escola onde os dados foram colhidos, cada criança e sua mãe são entrevistadas separadamente durante a triagem clínica, realizada com a finalidade de verificar a queixa escolar e subsidiar o atendimento psicopedagógico caso haja indicação para o mesmo. Os instrumentos empregados neste estudo foram aplicados nessa oportunidade, junto às mães das 141 crianças. Os dados foram colhidos por três psicólogos da equipe do referido serviço, com formação em psicologia clínica e experiência profissional mínima de dez anos. Todos passaram por treinamento específico para aplicação dos instrumentos. Os resultados obtidos nos instrumentos de avaliação do ambiente familiar foram comparados através do teste t de Student. Para verificar diferenças em itens com formato de escala nominal, aplicou-se o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções. Foi considerado significativo todo resultado com probabilidade igual ou inferior a 0,05. Dada a assimetria por sexo entre os grupos, análises preliminares foram conduzidas para verificar diferenças que recomendariam incluir esta variável nas análises. Resultados A comparação entre sexos, através do teste t de Student, detectou diferença em apenas dois indicadores: Atividades diárias com horário definido, em que o grupo das meninas teve média mais alta (t= 2,10, p= 0,04), e Problemas nas relações interpessoais, em que a média do grupo masculino foi mais elevada (t= 2,85, p < 0,01). Considerando que são diferenças pontuais, as análises foram conduzidas sobre a amostra total. 176 Os grupos apresentaram diferenças significativas no escore total do RAF e no indicador sócio-econômico, assim como nos escores obtidos nos tópicos passeios, atividades compartilhadas pela criança e pelos pais no lar, pessoas a quem a criança recorre para pedir ajuda ou conselho, oferta de brinquedos e outros materiais promotores de desenvolvimento. Em todas essas medidas, as médias de G1 foram maiores que as de G2. O Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções apontou diferenças significativas em alguns dos itens que compõem cada tópico, indicando que mais crianças do grupo sem problema de comportamento brincam dentro de casa quando não estão na escola, têm horário para brincar e para fazer a lição de casa, recebem supervisão dos pais para o estudo das provas, fazem viagens e passeios a shopping centers, lanchonetes e parques de diversão, brincam com os pais e contam casos para eles. Essas 177 crianças, quando precisam de ajuda ou conselho, recorrem não somente à mãe, como as crianças de G2, mas também ao pai e a um irmão ou irmã. Ao longo do desenvolvimento, elas têm tido acesso a maior diversidade de brinquedos e outros materiais promotores do desenvolvimento. Com relação à Escala de Eventos Adversos, a Tabela 3 contém os resultados da análise estatística, onde se verifica que os grupos apresentaram diferença significativa no Escore total da EEA, assim como nos indicadores de Adversidade nas relações parentais, Eventos adversos na vida pessoal, Eventos adversos na vida escolar e Problemas nas relações interpessoais. Em todas as medidas, as médias de G2 foram maiores que as de G1. Os itens da EEA com incidência significativamente maior em G2, segundo o Teste de Intervalo de Confiança para Diferenças entre Proporções, foram: divórcio dos pais e pai ou mãe abandonou a família (Adversidade nas relações Parentais); hospitalização/enfermidade grave de um irmão/irmã da criança (Outras adversidades familiares); hospitalização ou enfermidade grave da criança (Eventos Adversos na Vida Pessoal); repetência (Eventos Adversos na Vida Escolar); piora no relacionamento com os colegas e suspensão (Problemas nas Relações Interpessoais). 178 A análise dos dados fornecidos pela Entrevista de Esclarecimento da Queixa, submetida ao Guia de Classificação das Adversidades do Ambiente Familiar, indicou diferença significativa entre os grupos no número >de adversidades presentes no ambiente familiar: G2, grupo com problemas de comportamento, apresentou mais situações de adversidade em seu ambiente familiar que G1, grupo sem problema de comportamento. Esse resultado e os dados relativos a cada classe de adversidade ambiental são apresentados na Tabela 4.