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Alfabetização e Letramento: aspectos conceituais/metodológicos, socioeconômicos, políticos e culturais (ASPC) Sumário UNIDADE I - A Importância da Alfabetização e Letramento ............. 4 UNIDADE II - L Alfabetização no Brasil: Um Pouco de História ........ 9 UNIDADE III - Métodos de Alfabetização ....................................... 26 UNIDADE IV - Desafios Contemporâneos da Alfabetização e Letramento e as novas Propostas Curriculares .............................. 31 BIBLIOGRAFIA UTILIZADA ........................................................... 38 Introdução Sejam bem-vindos (as) ao estudo do módulo Alfabetização e Letramento: aspectos conceituais/metodológicos, socioeconômicos, políticos e culturais (ASPC):. Este módulo está dividido em quatro unidades. Iniciamos com a importância da Alfabetização e Letramento no século XXI. Na Unidade II, trazemos um artigo das autoras Lorita Helena Campanholo Bordignon e Marilane Maria Wolff Paim sobre a história da alfabetização no Brasil e o conceito de alfabetização e letramento. Na Unidade III vamos discorrer sobre os métodos de alfabetização e sua importância na aprendizagem da decodificação da língua escrita; e por último os desafios contemporâneos da Alfabetização e do Letramento, bem como as propostas de políticas educacionais no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Ao final de cada capítulo você deverá aprofundar seu aprendizado, com dicas do professor com novas informações ou curiosidade relacionadas ao tema em estudo. Para aproveitamos melhor a carga horária deste módulo, utilizaremos como material complementar o uso de artigos científicos. Na medida em que avançarmos no módulo, os textos aumentarão, gradativamente, sua profundidade e complexidade. Serão também utilizadas para enriquecer sua aprendizagem as mídias digitais como sugestão de recursos audiovisuais para consolidar os conhecimentos adquiridos neste módulo. Então, mãos à obra e bons estudos do Módulo! Professora Mestre Magali Soares da Silva UNIDADE I - A Importância da Alfabetização e Letramento O mundo nos é apresentado por meio da palavra. Escutar as palavras é dar sentido ao mundo que nos cerca. A palavra dá significado e na sua essência ela contém sentido e expressão. Sem significado a palavra é um som vazio, não faz parte da fala humana. E é por isso, que Oliveira apud Vygotsky (1992, p.34) afirma que: O significado é ao mesmo tempo um ato de pensamento e parte inalienável da palavra, pertencendo tanto ao domínio da fala quanto do pensamento. O pensamento não é expresso em palavras, mas através delas que passa a existir. A relação entre pensamento e linguagem é um processo, um movimento contínuo de vai e vem do pensamento para a palavra e vice- versa. O pensamento passa por muitas transformações até transformar-se em fala. Não é só expressão que encontra na fala: encontra sua realidade e sua forma. Vygotsky considera a linguagem um dos instrumentos básicos inventados pelo homem, que tem duas funções fundamentais: a de intercâmbio social – é para se comunicar que o homem cria e utiliza sistemas de linguagem – e de pensamento generalizante - é pela possibilidade da linguagem ordenar o real, agrupando uma mesma classe de objetos, eventos, situações, sob uma mesma categoria, que se constroem os conceitos e significados das palavras. A linguagem então atua não só entre pessoas, mas também influindo diretamente na construção e alteração das funções mentais como imaginação, memória, planejamento de ações, capacidade de solucionar problemas, de fazer análises e síntese, entre outras. Desta forma, os sistemas de signos (escrita alfabética) produzidos culturalmente não só interferem na realidade, mas também na consciência do indivíduo sobre esta. Esta abordagem de Vygotsky talvez nos ajude a refletir sobre a hierarquização de conhecimentos que a escola supõe como necessária para que os alunos se alfabetizem e aprendam a língua escrita. A linguagem dos alunos que adentram os portões escolares é diferente da linguagem que a “Norma Culta” exige deles. Vinte e seis letras combinam-se formando todas as sílabas e palavras necessárias para se escrever algo. São muito Importantes sem dúvida. Porém, este conhecimento não é suficiente para que escrevam textos ou para atribuir sentido às diferentes funções sociais da escrita. As pesquisas e práticas pedagógicas de alfabetização que tiveram lugar nos últimos anos vêm evidenciando duas questões da maior importância para os educadores. Uma delas é que não basta ensinar aos alunos as características e funcionamento da escrita, pois esse tipo de conhecimento não os habilita para o uso da linguagem em diferentes situações comunicativas. E a outra é que não basta colocar os alunos na condição de protagonistas das mais variadas situações de uso da linguagem, pois o conhecimento sobre as características e o funcionamento da escrita não decorre naturalmente desse processo. Alfabetizar, em sentido estrito e de acordo com o dicionário Aurélio, significa: “Ensinar a ler e a escrever”, ou seja, reconhecer as letras do alfabeto e juntá-las. Porém, esse conceito vem sendo ampliado e, de acordo com Magda Soares, quem sabe ler e escrever é “[ ] aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária” (SOARES, 2003, p. 11) não mais a decodificação dos sinais gráficos. É o processo pelo qual se adquire o domínio do código e das habilidades de utilizá- lo para ler e escrever – domínio da tecnologia. Essa ampliação do conceito de alfabetização decorre do fato de que as sociedades do mundo atual estão cada vez mais centradas na escrita. Consequentemente, ser alfabetizado, saber ler e escrever tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas. É preciso ir além da simples aquisição do código escrito, é preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano, apropriar-se da função social dessas duas práticas é preciso alfabetizar letrando, que é o uso da técnica, é ensinar a tecnologia por meio das práticas sociais de leitura e escrita. De acordo com os estudos da psicogênese da escrita, introduzidos por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, o aprendizado do sistema de escrita não se reduz ao domínio de correspondências grafo-fonêmicas (decodificar e codificar), mas se caracteriza como um processo ativo por meio do qual a criança, desde seus primeiros contatos com a escrita, constrói e reconstrói hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita como um sistema de representação. Na psicogênese de Emília Ferreiro, o progresso é determinado pelas oportunidades que a criança tem de experimentar a escrita, e, coerente com a visão piagetiana, ela deixa implícito que a possibilidade de elaborar esquemas cada vez mais equilibrados para assimilar essas experiências depende essencialmente de um ritmo interior. (RIBEIRO, 1996, p.59). Considerando que a língua é um objeto histórico, construído, manejado e constantemente modificado pelos sujeitos que a utilizam em suas interações sociais para realizarem ações sobre o outro, isto é, para informar e se informar, convencer, pedir, fazer rir, emocionar, entre outras, ensinarem língua materna significa aos sujeitos utilizar a língua para que possam interagir adequadamente nas diferentes situações sociais de que tomam parte. Para. (TEBEROSKY, 1991, p. 18): “... a criança dispõe de um saber sobre a escrita ainda antes de entrar para a escola e de que este saber foi também construído através de sua participação em práticas sociais em que a escrita ganha sentido”. Por tudo isso, elaborar uma proposta de alfabetização para as crianças que ingressam na escola pública significa desconstruircertos mitos sobre a aprendizagem da escrita, ciclos, métodos e outros que possam aparecer e definir, objetivamente, o que deverá ser ensinado sobre a leitura e a escrita e de que forma organizar esse ensino em cada ano do ciclo de alfabetização. Essas mudanças só ocorrerão de fato se os professores alfabetizadores se conscientizarem de que as crianças das escolas públicas, em sua maior parte expostas a processos de exclusão social, são capazes de aprender e, não possuem deficiências cognitivas, linguísticas, culturais e comportamentais. Não são dislexas, hiperativas ou outros diagnósticos clínicos que os educadores costumam fazer dessas patologias. Devem ser direcionadas para o profissional da área. Portanto, é responsabilidade, dos educadores, assegurarem a estas crianças oportunidades de acesso e domínio da leitura e da escrita, para incluir e colocar na prática o que está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN/96, reafirmando a Constituição Federal em seu Art. 32, Inciso I: “O ensino fundamental terá por objetivo básico do cidadão mediante o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo, como meio básico o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo”. A consideração de que a língua escrita como objeto cultural vivo e necessariamente contextualizado torna evidente a necessidade de romper com as fronteiras entre a escola e o mundo. A escola é a instituição encarregada de ensinar as gerações futuras o uso da língua. Nas palavras de FERREIRO (2001, p. 26), “é preciso ser enfático: a escrita é importante na escola pelo fato de que é importante fora da escola, não o contrário”. Estas crianças que supostamente não conseguem ser alfabetizadas estão em todo canto ávidas por saber e entender, cheias de curiosidades. Desde muito cedo elas fazem perguntas com profundo sentido epistemológico: o que a escrita representa e como o representa? Reduzimos a aprendizagem em técnica e menosprezamos o intelecto do aluno, seu potencial, impedindo-o de entrar em contato com as várias formas de apropriar-se da língua escrita. A escola durante muito tempo, sendo para minorias, instituiu um ensino alheio às especificidades dos alunos oriundos das classes populares, sendo seu currículo essencialmente elitista Enquanto se sustentou a ideia de que a aprendizagem era para alguns e não para todos, a escola soube como fazer. Porém, desde que se estabeleceu a ideia de alfabetização para todos, a escola ficou sem respostas. A escola não sabe lidar com as diferenças, não sabe trabalhar a partir das diferenças assumidas como dado inevitável, e como castigo. (FERREIRO, 2001. p.34) Assim, podemos dizer que, em uma sociedade letrada, os eventos de letramento são múltiplos e o sujeito está imerso em diferentes situações de uso significativo da leitura e da escrita, sendo a escola uma das principais instituições na constituição dessa imersão. Como defende Ferreiro, é de fundamental importância que os objetos impressos sejam revestidos de significação por meio de situações em que a escrita corresponda de fato a formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. A língua deve entrar na escola da mesma forma que existe vida afora, ou seja, por meio de práticas sociais de leitura e escrita. A perspectiva é formar alunos que saibam produzir e interpretar textos de uso social – orais e escritos - e que tenham trânsito livre nas várias situações comunicativas que permitem plena participação no mundo letrado. Esse contexto escolar de letramento representa uma abertura de possibilidades, um exercício do direito de aprender na escola as práticas de leitura e escrita tal como acontecem na vida. E dessa forma podemos favorecer a plena participação dos alunos no mundo da cultura escrita. Mas nem sempre no Brasil a alfabetização foi um direito para todos. Na unidade II, vamos entender o percurso histórico do processo de alfabetização no Brasil, os diferentes contextos socioeconômicos, culturais e políticos que tem permeado o processo de escolarização. SAIBA MAIS! ALMEIDA, Vanessa Fulaneti de; FARAGO, Alessandra Corrêa. A importância do letramento nas séries iniciais (The importance of literacy initial series). Disponível em: http://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/cadernodeeducacao/sumario/31/04 042014074426.pdf http://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/cadernodeeducacao/sumario/31/04 UNIDADE II - Alfabetização no Brasil: Um Pouco de História Lorita Helena Campanholo Bordignon* Marilane Maria Wolff Paim** Iniciando a revisão de literatura acerca das concepções históricas da educação, percebe-se que a temática alfabetização e letramento tem sido foco de muitas discussões, particularmente no contexto atual. Assim, ao introduzir o estudo da história da alfabetização no Brasil, a partir de diálogo com vários autores, Boto (2011) destaca que a preocupação em estudar a alfabetização advém do fato de esta ser um dos objetos mais significativos no campo da educação, alertando para a impossibilidade de pensar o conceito de escola sem considerar a relevância simbólica e pedagógica da leitura e da escrita. Mais do que isso, observa o seguinte: “Como compreender a educação moderna sem conceber a habilidade da leitura como requisito de um repertório intrínseco à própria constituição da modernidade? Aliás, em um país como o Brasil, estudar a alfabetização é um dever” (BOTO, 2011, p. 1). Neste sentido, ao retomar a análise sobre parte da história da educação no Brasil, percebe-se que o acesso à educação até o final do século XIX era restrito a poucos indivíduos, sendo privilégio de alguns. A leitura e a escrita quase não faziam parte dos contextos culturais da época. Com a universalização da escola, o acesso foi ampliado. O ler e o escrever passaram a ser organizados, estruturados, sistematizados e ensinados por professores nas respectivas instituições (MORTATTI, 2011). 1 Artigo oriundo da Dissertação de Mestrado intitulada Alfabetização e letramento: concepções presentes no ensino da linguagem escrita. Publicado na Revista Educação em Debate. Ano 39, nº 74 – jul/dez 2017. Disponível em: http://www.periodicosfaced.ufc.br/index.php/educacaoemdebate/article/view/372. Acesso em 12/12/2019. * Mestra em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Professora efetiva na Secretaria Municipal de Educação do município de Santiago do Sul (SC). Endereço para correspondência: Linha Molossi, s/n, interior, CEP 89.854-000, Santiago do Sul (SC). Correio eletrônico: loritabordignon@hotmail.com ** Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora titular da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Atua no Programa de Mestrado em Educação e no Curso de Pedagogia da UFFS. Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Formação Docente e Processos Educativos. É bolsista CAPES do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), coordenando o subprojeto PIBID Pedagogia. Endereço para correspondência: Rua Hernann Spernau, n.º 60, apto. 3081, Água Verde, CEP 89.037-506, Blumenau (SC). Correio eletrônico: marilanewp@gmail.com http://www.periodicosfaced.ufc.br/index.php/educacaoemdebate/article/view/372.%20Acesso%20em%2012/12/2019 http://www.periodicosfaced.ufc.br/index.php/educacaoemdebate/article/view/372.%20Acesso%20em%2012/12/2019 http://www.periodicosfaced.ufc.br/index.php/educacaoemdebate/article/view/372.%20Acesso%20em%2012/12/2019 mailto:loritabordignon@hotmail.com mailto:loritabordignon@hotmail.com mailto:marilanewp@gmail.com Conforme observa Saviani (2010), foram muitas as dificuldades para implantar um sistema educacional no Brasil no século XIX, tanto no que se refere às questões pedagógicas quanto pelos investimentos financeiros necessários para o desenvolvimento da educação. Por 49 anos, durante oSegundo Império (1840- 1888), a média anual de recursos investidos em educação foi de 1,8% do orçamento do governo imperial. Deste índice, apenas 0,47% foi destinado para o ensino primário e secundário, sendo que, em 1844, “a instrução primária” recebeu somente 0,11% do referido orçamento. Neste contexto, o sistema de ensino no Brasil “[...] não se implantou e o país foi acumulando um grande déficit histórico em matéria de educação” (SAVIANI, 2010, p. 166-167). Além das limitações materiais, cumpre considerar, também, o problema relativo à mentalidade pedagógica. Entendida como a unidade entre a forma e o conteúdo das ideias educacionais, a mentalidade pedagógica articula a concepção geral de homem, do mundo, da vida e da sociedade com a questão educacional. Assim, numa sociedade determinada, dependendo das posições ocupadas pelas diferentes forças sociais, estruturam- -se diferentes concepções filosófico-educativas às quais correspondem específicas mentalidades pedagógicas. (SAVIANI, 2010, p. 167-168). Principalmente, a partir do final do século XIX, a educação e, por conseguinte, a alfabetização sofreu mudanças significativas, sobretudo no que se refere à concepção pedagógica que fundamenta as práticas docentes, o que implicou métodos desenvolvidos no processo de ensinar a ler e escrever. Nesse mesmo período, com o surgimento da psicologia, começou-se a discutir o caráter psicológico da criança no processo de alfabetização. “Empreendida por educadores, essa discussão prioriza as questões didáticas, ou seja, o como ensinar, com base na definição das habilidades visuais, auditivas e motoras do aprendiz” (MORTATTI, 2011, p. 44). No campo das concepções pedagógicas, iniciou-se “[...] uma acirrada disputa entre partidários do então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura e os que continuavam a defender e utilizar os tradicionais métodos sintéticos, especialmente o da silabação” (MORTATTI, 2006, p. 8), com algumas divergências no sentido de tentar-se enquadrar a alfabetização a partir de alguns métodos – sintéticos (das partes para o todo), analíticos (do todo para as partes), mistos, entre outros – imbricados nos contextos atuais relacionados à alfabetização. Deflagrou-se, então, o desafio de construir modelos, métodos e concepções que dessem conta de ensinar o processo da leitura e da escrita às crianças que ingressavam nas escolas. Dessa forma, estende-se tal compreensão até os dias atuais (FRAGO, 1993). Nesse contexto, ao abordar as concepções acerca da alfabetização, Mortatti (2006) divide-as em quatro fases cruciais, que se estendem de 1876 até a atualidade. A primeira fase deste período foi denominada pela autora como a metodização do ensino da leitura, perdurando de 1876 a 1890. Conforme a autora, [...] para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha sintética (da “parte” para o “todo”): da soletração (alfabético), partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras. (MORTATTI, 2006, p. 5). A segunda fase, iniciada com a organização republicana, foi alvo de grandes disputas entre os métodos de leitura e de escrita. Nela vigorou a utilização de cartilhas. Neste momento, a universalização do acesso à escola surgiu como proposta de modernização e progresso do novo Estado-Nação, da nova ordem econômico-social instaurada. Conforme Franco e Raizer (2012), esse período foi denominado como A institucionalização do método analítico. Mortatti (2006, p. 8) chama atenção para o fato de que “[...] ao longo desse momento, já no final da década de 1910, o termo „alfabetização‟ começa a ser utilizado para se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita”. Embora “[...] as primeiras cartilhas [datem] do século XIX, mais precisamente no ano de 1834”, sua utilização foi muito forte durante o século XX, sendo considerada “[...] como uma primeira experiência na área da alfabetização, o que permitiu que a sociedade atual experimentasse novos métodos” nesse sentido (FARIAS, 2008, p. 3.829). Logo, a cartilha passou a ser utilizada por muitos professores como suporte para o planejamento das aulas de alfabetização. No Brasil, um grupo de professores normalistas formados pela Escola Normal de São Paulo aos poucos foi assumindo cargos de funções diretivas na “instrução pública”, considerando a cartilha como algo moderno que vinha para concretizar o método sintético. Nesta perspectiva, por volta de 1890, a Cartilha da Infância “[...] foi adotada pelo governo paulista e depois por todo Brasil” (SANTOS, 2007, p. 340). Esse instrumento teve sucessivas edições com publicações se estendendo pelo menos até meados da década de 1990, perfazendo, portanto, aproximadamente, um século em vigor. Os contextos sociais, culturais, econômicos e políticos, porém, foram mudando no decorrer do tempo, e outras concepções foram sendo criadas, recriadas, inventadas e reinventadas sempre com o objetivo de atender à necessidade de ensinar as crianças a ler e a escrever, o que trouxe mudanças significativas a esse processo. Seguindo, portanto, o estudo sobre a história da educação brasileira, Mortatti (2006) nomina a terceira fase de Alfabetização sob medida, delimitada entre 1920 e 1970. Neste período, os métodos de alfabetização utilizados foram mistos e ecléticos, passando a ser relativizados e secundarizados. Nesta época, propagaram-se os estudos do importante educador brasileiro do século XX, Lourenço Filho, acerca de conhecimentos da “[...] ciência psicológica aplicada à educação” (SGANDERLA; CARVALHO, 2010, p. 2). Atuando em vários campos da área educacional, Lourenço Filho utilizou-se de várias e importantes publicações de livros, entre eles, “[...] o ideário renovador no Brasil de forma sistemática, foi a Introdução ao estudo da Escola Nova” (SAVIANI, 2010, p. 200), cuja primeira edição, datada do ano de 1930, continha relatos de como se desenvolvera a Escola Nova na Europa. O livro baseava-se num tripé científico, assentando seus estudos em três áreas: biologia, psicologia e sociologia. Tão grande foi o sucesso desta obra, que foi reeditada por diversas vezes. Monarcha (2001, p. 31) escreve que Lourenço Filho, a partir de seus estudos nas áreas da educação escolar e da psicologia, também criou, entre seus trabalhos, “os testes ABC”, os quais [...] podem ser analisados como instrumentos de uma nova psicometria articulada ao tratamento estatístico, que visa identificar, lógica e objetivamente, a variedade mental e se fundamenta no conceito de maturação; contém oito provas destinadas a medir os atributos particulares do escolar, para a organização eficiente das classes escolares. [Constituindo-se num] Método prático e econômico e de aplicação em grande escala, essas provas psicológicas medem: a coordenação viso- motora, memória imediata, memória motora, memória auditiva, memória lógica, prolação, coordenação motora; e mínimo de atenção e fatigabilidade. Os testes ABC foram utilizados, principalmente, para “[...] medir a maturidade da criança para a alfabetização”, visando “[...] diminuir os altos índices de repetência das crianças nos primeirosanos de escolarização”, assim serviram para organizar as classes a partir de critérios (SGANDERLA; CARVALHO, 2010, p. 2). Diante disso, no período de 1920 a 1970, a alfabetização no Brasil “[...] era entendida como o aprendizado da leitura e escrita, sendo o método de ensino subordinado ao nível de maturidade alcançada pelas crianças. A medida do seu nível de maturidade levava à classificação das crianças e agrupamento em classes homogêneas para a alfabetização” (SGANDERLA; CARVALHO, 2010, p. 8). Ou seja, os alunos eram agrupados de maneira variada, de acordo com suas aptidões. “Classe forte para os inteligentes, classes fracas para os que [tivessem] mais dificuldade [...]” em seguir o desenvolvimento da turma (SGANDERLA; CARVALHO, 2010, p. 11). Soares (2012, p. 13) observa que, à época, de cada mil crianças que ingressavam na 1.ª série, “[...] apenas 449 chegavam à 2.ª série, em 1964; em 1974 – portanto, dez anos depois – de cada mil crianças que ingressavam na 1.ª série, apenas 438 chegavam à 2.ª série”. Desse modo, chegou-se aos anos 1980 com dados semelhantes, ou seja, com pouco ou nenhum progresso nesses dados. Foi quando se iniciou no Brasil a organização por ciclos, segundo os quais “[...] a 1.ª série correspondia à série de alfabetização – só o aluno considerado „alfabetizado‟ era promovido à 2.ª série” (SOARES, 2012, p. 14). Perfazendo uma análise sobre os caminhos da alfabetização no Brasil, Franco e Raizer (2012, p. 785) destacam que, em virtude de urgências políticas e sociais que acabaram por influenciar o campo da educação, especialmente no início da década de 1980, o fracasso da escola no processo de alfabetização de seus educandos passou a ser questionado, situação que deu origem ao quarto momento da alfabetização, denominado de Desmetodização do ensino. Conforme a análise de Mortatti (2006, p. 10), foi nesse período que [...] introduziu-se no Brasil o pensamento construtivista sobre alfabetização, resultante das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro e colaboradores. Deslocando o eixo das discussões dos métodos de ensino para o processo de aprendizagem da criança (sujeito cognoscente), o construtivismo se apresenta não como um método novo, mas como uma “revolução conceitual”, demandando, dentre outros aspectos, abandonarem-se as teorias e práticas tradicionais, desmetodizar-se o processo de alfabetização e se questionar a necessidade das cartilhas. Assim, a partir de 1980 inicia-se o quarto momento, caracterizado como “alfabetização: construtivismo e desmetodização”. Assim, conforme Franco e Raizer (2012), incorporou-se o construtivismo a práticas pedagógicas de todo o Brasil, fato este que pode ser percebido, também, nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Foi nessa fase que ganhou espaço a discussão de um novo conceito no campo da educação: o letramento. Embora a alfabetização e o letramento sejam conceitos distintos no processo de ensino e aprendizagem, ambos estão intimamente ligados, de modo que não seria mais possível pensar esses processos separados na ação de ensinar e aprender (FRANCO, 2012; SOARES, 2004). Enquanto a alfabetização é o processo de aquisição do sistema de escrita alfabético, ou seja, da aprendizagem da leitura e da escrita, de forma mais específica, o letramento refere-se às capacidades e às habilidades do sujeito em utilizar essas aprendizagens nos diferentes contextos sociais das práticas de leitura e escrita (SOARES, 2001). A reflexão acerca do conceito de letramento emergiu da perspectiva de que não basta estar alfabetizado, saber ler e escrever para inserir-se em um mundo letrado. Faz-se necessário que os sujeitos adquiram habilidades, competências e conhecimentos suficientes, a fim de que possam fazer uso desses conhecimentos da leitura e da escrita em suas práticas cotidianas no exercício da cidadania (MORTATTI, 2011; SOARES, 2004). Logo, passa-se a refletir se as concepções e métodos utilizados atendem a estas expectativas. Sabe-se que incansáveis são as buscas por parte de muitos educadores e pesquisadores por compreender como se desenvolvem os processos de aquisição da alfabetização e do letramento, processos esses distintos, mas interligados (SOARES, 2001), e que ocorrem através de experiências diferenciadas nos diversos momentos da história. No entanto, para gerar melhores propostas de ensino e de aprendizagem no âmbito da alfabetização e do letramento, requer-se compreender como estes dois conceitos têm sido compreendidos e teorizados por autores, dentre eles, alguns dos principais estudiosos nessa área. Por volta de 1980, a partir dos estudos da psicologia e da linguística, passou a ser questionada a maneira como a alfabetização estava sendo desenvolvida, momento em que chegaram ao Brasil as discussões sobre letramento, bem como a necessidade de alfabetizar e letrar os sujeitos inseridos em contextos cada vez mais letrados. Por esse motivo, para o presente ensaio, visando ao estudo dos referidos conceitos, foi estabelecido o recorte temporal nessa década. O termo letramento é considerado bastante atual no campo da educação brasileira. Para Soares (2009), aparentemente, o termo foi utilizado pela primeira vez no Brasil, em 1986, pela pesquisadora Mary Kato no livro de sua autoria intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. Como parte de título de livro, o termo apareceu em 1995 nos livros Os significados do letramento, organizado por Angela Kleiman, e Alfabetização e letramento, de Leda V. Tfouni. Conforme escreve Soares (2012, p. 16-17), o surgimento do termo literacy, que, segundo a autora, significa “alfabetismo”, representou, naquela época, “[...] certamente, uma mudança histórica nas práticas sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-las” (SOARES, 2011, p. 29, grifo da autora). Neste sentido, busca-se, a partir do próximo tópico, tecer diálogos acerca dos conceitos de alfabetização e letramento. 2.1 DIALOGANDO COM OS CONCEITOS DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO A alfabetização, enquanto etapa da escolaridade em que os sujeitos se apropriam, mais especificamente, da aprendizagem da leitura e da escrita imersos em uma sociedade letrada, passa a ser foco de preocupação, não somente de educadores, mas de outros setores da sociedade. Afinal, tendo em vista as necessidades sociais, não basta ao sujeito saber ler e escrever, ele precisa fazer uso das práticas de leitura e escrita nos mais diversos contextos em que se insere. Assim, a partir das inquietações acerca das carências da alfabetização frente às diferentes demandas da sociedade do século XX e XXI, chega ao Brasil, na década de 1980, o conceito de letramento. A alfabetização e o letramento são conceitos compreendidos de maneiras distintas na literatura de alguns estudiosos da temática. Também se acredita que, na efetividade do trabalho pedagógico, há muitas dúvidas acerca da possibilidade de desenvolver propostas pedagógicas na perspectiva de alfabetizar e letrar. Nessa direção, buscar-se-á tecer alguns diálogos a partir de escritos de Soares (2001; 2003; 2004; 2010; 2011 e 2012), Mortatti (2004), Tfouni (2010), Smolka (1988; 1991), Silva (2007), Kleiman (1995; 2008), Mary Kato (2009), Brian Street (2014) e Frago (1993) sobre a conceituação dos termos alfabetização e letramento e o entendimento vigente, no decorrer do tempo, na educação brasileira, com relação a esses temas. Ao iniciar este diálogo, inclusive, surgem inquietações no sentido de que tais conceitos constituam apropriações resultantes das formações obtidas, inicial e continuada, e, por esse motivo, ao aprofundarem-se algumas questões teóricas sobre eles, torna-se possível reafirmá-los, ressignificá-los, bem como apropriar- se de outros conceitospertinentes à discussão proposta. Considera-se, portanto, imprescindível a compreensão conceitual e teórica da designação de alfabetização e letramento para a construção e o desenvolvimento de propostas metodológicas de ensino que possibilitem efetivar ações pedagógicas na perspectiva de atender ao que se propõe atualmente para a educação, principalmente nos anos iniciais de escolaridade. O desconhecimento ou o pouco conhecimento teórico que envolve os conceitos de alfabetização e de letramento interferem diretamente no fazer do professor. Corroborando tal assertiva, Koerner (2010), ao apresentar resultado de pesquisa realizada com professores sobre alfabetização em 1996, observou que a definição que dispunham quanto a ela, bem como a forma como a compreendiam, estava “[...] fortemente relacionada ao caráter escrito” (KOERNER, 2010, p. 22). Com relação ao letramento, nenhuma noção foi observada. [...] o que indica que a difusão de novas concepções leva um significativo tempo até chegar ao espaço de sala de aula. Enquanto isso, predominam aquelas concepções nas quais os professores se sentem seguros e, no caso da alfabetização, a ênfase recai no código escrito e no reconhecimento dos sinais gráficos, as letras. (KOERNER, 2010, p. 22). Neste sentido, retomam-se brevemente algumas considerações das autoras que fundamentam a tessitura do diálogo acerca da alfabetização e do letramento, na perspectiva de subsidiar a apropriação conceitual destes termos tão fortemente discutidos, principalmente no contexto educacional. Soares (2004, p. 47) acredita que o letramento é o “[...] estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita”. O letramento, portanto, seria um conjunto de situações práticas sociais em que a leitura e a escrita se fazem presentes nos mais diversos espaços da vida cotidiana dos sujeitos, não havendo exclusivamente um “tipo” de letramento; pelo contrário, diferentes seriam os níveis de complexidade que ele apresenta. Soares (2004, p. 106) corrobora esse entendimento quando defende que [...] eventos e práticas de letramento surgem em circunstâncias da vida social ou profissional, respondem a necessidades ou interesses pessoais ou grupais, são vividos e interpretados de forma natural, até mesmo espontânea; na escola, eventos e práticas de letramento são planejados e instituídos, selecionados por critérios pedagógicos, com objetivos predeterminados, visando à aprendizagem e quase sempre conduzindo a atividades de avaliação. Soares acrescenta que nem sempre o sujeito alfabetizado é letrado, tendo em vista que “[...] alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever”, e letrado é o sujeito “[...] que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 2001, p. 39). Porém, é importante compreender as especificidades, as proximidades e os entrelaçamentos dos processos de alfabetização e de letramento. Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos e sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera- se e reconfigura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. (SOARES, 2003, p. 90). Nessa ótica, passa-se a compreender que a alfabetização e o letramento são processos distintos, porém interligados. Então, pergunta-se: como e quando se sabe que o sujeito é alfabetizado ou letrado, ou ainda alfabetizado e letrado? Soares (2010, p. 66) afirma que, diante da sutileza e complexidade que envolvem o conceito de letramento, torna-se difícil contemplá-lo “[...] em uma única definição”. Soares (2010) aponta duas principais dimensões do letramento: a individual e a social. Na dimensão individual, “[...] o letramento é visto como atributo pessoal, considerando o processo de como cada um se apropria da habilidade do ler e do escrever”. No entanto, quando o foco está na “[...] dimensão social, o letramento é visto como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita, e [...] exigências sociais da língua escrita” (SOARES, 2010, p. 66-67). Assim, mesmo considerando as duas dimensões de letramento apontadas por Soares (2010), não seria possível definir precisamente o conceito do termo, dadas as suas muitas interpretações a partir de diferentes perspectivas e contextos. No letramento social, o sujeito vivencia práticas de letramento em situações cotidianas; já no escolar, requer-se planejamento pedagógico, intencionalidade no sentido de possibilitar que os sujeitos adquiram conhecimentos, habilidades e competências de leitura e de escrita para além da sala de aula, atendendo às necessidades desses indivíduos frente a uma sociedade cada vez mais letrada (SOARES, 2004). Sendo assim, o sujeito pode estar letrado para determinados contextos e iletrado para outros, pois “[...] à medida que as condições sociais e econômicas mudam aqueles classificados como alfabetizados ou letrados em determinado momento podem não ser em outro” (SOARES, 2010, p. 90). Fica evidente, então, que o conceito de letramento é variável, pois “[...] as atividades sociais que envolvem a língua escrita dependem da natureza e estrutura da sociedade e dependem do projeto que cada grupo político pretende implementar, elas variam no tempo e no espaço” (SOARES, 2010, p. 78). Salienta-se, dessa forma, a relevância em compreender alfabetização e letramento nas práticas escolares como processos distintos, mas que podem desenvolver- -se paralelamente. Neste sentido, há que se superar algumas crenças, segundo as quais, para ser letrado, é preciso que a criança domine a técnica da escrita. Também há que se observar que pouco adianta colocar a criança em contato com textos, com práticas de letramento, sem desenvolver práticas pedagógicas que deem conta da apropriação de habilidades de leitura e de escrita por parte dela, tendo em vista que, como observado na obra Educação em Debate, Fortaleza, ano 39, nº 74 - jul./dez. 2017 61 Lorita Helena Campanholo Bordignon, Marilane Maria Wolff Paim “[...] a alfabetização é algo que deveria ser ensinado de forma sistemática, ela não deve ser diluída no processo de letramento” (SOARES 2003, p. 16). Além disso, o letramento é o processo de “[...] apropriação da cultura escrita fazendo um uso real da leitura e da escrita como práticas sociais” (SOARES, 2004, p. 24). Assim, na perspectiva de Soares (2004, p. 435), Se alfabetizar significa orientar a própria criança para o domínio da tecnologia da escrita, letrar significa levá-la ao exercício das práticas sociais de leitura e escrita. Uma criança alfabetizada é uma criança que sabe ler e escrever, uma criança letrada [...] é uma criança que tem o hábito, as habilidades e até mesmo o prazer da leitura e da escrita de diferentes gêneros de textos, em diferentes suportes ou portadores, em diferentes contextos e circunstâncias [...] Alfabetizar letrando significa orientar a criança para que aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de escrita. Tfouni (1988, p. 16) corrobora esse pensamento quando escreve que, “[...] Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. A autora ressalta que existemduas formas de entender a “[...] alfabetização: ou como um processo de aquisição individual de habilidades requeridas para a leitura e escrita, ou como um processo de representação de objetos diversos, de naturezas diferentes”. É válido lembrar que os pré-requisitos, por assim dizer, acerca do conceito sobre o que seja estar alfabetizado, pouco alfabetizado ou não alfabetizado mudaram no decorrer do tempo. Neste sentido, Silva (2007) considera alfabetizada “[...] a pessoa que aprendeu a operar com o sistema da escrita”, enunciando sequências escritas, “[...] mesmo que pequenas frases ou listas isoladas de palavras”, além de escrever palavras, frases e fazer cálculos, ainda que estas ações desrespeitem o “padrão ortográfico” (SILVA, 2007, p. 25). O autor acrescenta que A pessoa alfabetizada é capaz de reconhecer a relação entre símbolo escrito e as formas faladas; a acepção atual de alfabetismo, ser alfabetizado é, portanto, mais que simplesmente ser capaz de ler e escrever o próprio nome e de reconhecer símbolos isolados como se fossem desenhos. (SILVA, 2007, p. 25). Observa-se, nesse caso, que o conceito de alfabetização, ou seja, de estar alfabetizado, tem-se ampliado tendo em vista que, no início do século XIX, era considerada alfabetizada a pessoa que sabia apenas escrever seu nome. Em meados de 1940, era considerado alfabetizado quem conseguisse ler e escrever, por exemplo, um simples bilhete. Silva (2007, p. 20), citando pesquisa realizada pela UNESCO, escreve que, por volta de 1958, “[...] alfabetizada seria a pessoa capaz de ler e escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana”. Assim, evidencia-se que a alfabetização desenvolve-se nas sociedades modernas de maneira lenta e desigual, o que se acredita não ser diferente no Brasil, tendo em vista que o formato a que a expansão da escolaridade serve, na maioria das vezes, “[...] resulta das necessidades do próprio modelo de sociedade” (SILVA, 2007, p. 23). Esse mesmo autor observa também que, Do ponto de vista do sistema, a escolarização é necessária para que o indivíduo seja mais produtivo, para que saiba seguir instruções e movimentar-se no espaço urbano-industrial, para que possa consumir produtos e respeitar ou assumir os valores hegemônicos. Por outro lado, do ponto de vista do trabalhador, enquanto indivíduo, a escolarização se impõe como condição de participação no mercado de trabalho. Se a escolarização não garante o emprego de ninguém, nenhuma ou pouca escolarização é um fator de impedimento ao trabalho. (SILVA, 2007, p. 23). Parafraseando Silva (2007, p. 23), entende-se que, enquanto a alfabetização refere-se às práticas de aprendizagens da leitura e da escrita pelo sujeito, no aspecto mais individualizado, de caráter pedagógico escolarizado, o letramento, para além de focalizar os aspectos “[...] sócio históricos da aquisição da escrita, também estuda e descreve o contexto social e as demandas de que tipo de letramento emerge das práticas sociais”. Smolka (1988, p. 50) registra que A leitura e a escrita produzidas pela/na escola pouco tem a ver com as experiências de vida e de linguagem das crianças. Nesse sentido, é estéril e estática, porque baseada na repetição, na reprodução, na manutenção do status quo. Funciona como um empecilho, um bloqueio à transformação e à elaboração do conhecimento crítico. A alfabetização, na escola, reduz-se a um processo, individualista e solitário, que configura um determinado tipo de sujeito e produz a “ilusão da autonomia” (“autônomo” é aquele que “entende o que a professora diz; aquele que realiza, sozinho, as tarefas; é aquele que “não precisa perguntar”; é aquele que “não precisa dos outros”). Revela-se o mito da autossuficiência que, além de camuflar a cooperação, aponta e culpa os “fracos e incompetentes”. Essa autora contribui com as discussões afirmando que o ensino da escrita, quando ensinada e apresentada aos sujeitos como uma simples técnica, “[...] serve e funciona num sistema de reprodução cultural e produção em massa”. Por consequência, os efeitos disso “[...] são tragicamente evidentes” tanto para os índices de evasão quanto para os índices de repetência, na medida em que resultantes de “[...] uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e alienação” (SMOLKA, 1988, p. 38). A autora ainda salienta que não basta apenas ensinar a técnica de aquisição da leitura e da escrita, faz-se necessária a superação das práticas pedagógicas do ensinar por ensinar, ler por ler, escrever por escrever, com atividades de repetição e, basicamente, transmissão, ou seja, é preciso [...] usar, fazer funcionar a escrita como interação e interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas várias possibilidades. No movimento das interações sociais e nos momentos das interlocuções, a linguagem se cria, se transforma, se constrói, como conhecimento humano. (SMOLKA, 1988, p. 45). A partir do diálogo proposto entre as autoras supracitadas, pode-se aferir que a alfabetização e o letramento são processos que superam a aquisição de habilidades de leitura e de escrita, bem como seu uso nas práticas sociais. No entanto, são processos que carecem de ser compreendidos, analisados e trabalhados, não meramente numa perspectiva individual do conhecimento, mas sim considerando o “[...] processo de internalização dos papéis, e funções sociais apontados por Vygotsky”. Isso requer levar em conta todo um processo intersubjetivo, no qual a criança elabora processos mentais acerca dos conhecimentos necessários para apropriar-se da leitura e da escrita, “[...] que inicialmente passa pela linguagem falada”. Assim, podem ocorrer dificuldades quando “[...] a escrita apresentada na escola é completamente distanciada da fala das crianças, e, na maioria das vezes, é o que não se pensa, o que não se fala” que se pretende ensinar (SMOLKA, 1988, p. 58). Acredita-se, portanto, que, muito embora se busque desenvolver a alfabetização e o letramento nas escolas, ainda há um distanciamento entre o discurso e a prática. “É preciso, na prática, conhecer e conceber formas de alfabetização condizentes com o momento histórico em que vivemos para operar transformações” (SMOLKA, 1988, p. 113). Concordando com esse ponto, Street (1984, p. 1) observa que “[...] as práticas particulares e as concepções de leitura e escrita são para uma dada sociedade dependendo do contexto; elas estão embutidas em uma ideologia e dela não podem ser desvinculadas ou tratadas como neutras ou meramente técnicas”. Desse modo, torna-se possível compreender que para o conceito de letramento muito mais que a dimensão individual está a social. Acredita-se que essa dimensão tem se tornado mais evidente em razão das necessidades de utilização da leitura e da escrita pelos sujeitos em seus cotidianos, nos diferentes contextos sociais, uma vez que esses indivíduos precisam, no exercício da cidadania, interagir em contextos cada vez mais letrados. Nesta perspectiva, embora seja um processo desenvolvido de maneira mais específica na escola e por ela, ele “[...] extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita” (KLEIMAN, 2008, p. 20). As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática, de fato, dominante que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (KLEIMAN, 2008, p. 19).Kleiman (1995) também ressalta a amplitude do conceito de letramento enquanto práticas que se efetivam para além da sala de aula. A autora compreende o letramento como “[...] um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995, p. 19). Assim, com base nas autoras citadas, torna-se possível compreender a amplitude dos conceitos de alfabetização e letramento, tendo em vista a relevância que, cada vez mais, a leitura e a escrita possuem numa sociedade em constante desenvolvimento científico e tecnológico, tal como a utilização destas habilidades no exercício da cidadania nas sociedades letradas. Mortatti (2004, p. 98) concorda com esse entendimento quando afirma que Letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedades letradas, ou, mais especificamente, grafocêntricas, isto é, sociedades organizadas em torno de um sistema de escrita e em que esta, sobretudo por meio do texto escrito e impresso, assume importância central na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem. Para corroborar o diálogo, Freire (1987, p. 7) aponta para o conceito de alfabetização numa perspectiva de letramento quando afirma que “[...] aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade”. Sendo assim, faz-se necessário compreender a alfabetização com suas especificidades enquanto processo de aquisição do sistema de escrita alfabética; porém, torna- se imprescindível que ela seja planejada e desenvolvida a partir de práticas de letramento. Ou seja, o ensino e a aprendizagem realizados em contextos escolares nos anos iniciais de escolaridade, no ensino da escrita e da leitura, devem estar relacionados com as experiências cotidianas dos sujeitos inseridos em contextos letrados. Para tanto, consideram-se relevantes e necessários os estudos e pesquisas que provoquem reflexões, indagações, inquietações acerca dos processos de aquisição da escrita. Ainda mais importante, entretanto, é conhecer que concepções sustentam – na condição de “pano de fundo” – o ensino e a aprendizagem da linguagem escrita já no 1.º ano do ciclo de alfabetização, tendo em vista a importância dessa aquisição. De fato, segundo o exposto, acredita-se que a alfabetização vai muito além de um domínio das habilidades de leitura e de escrita; ao contrário, é algo que não se esgota no processo de aquisição dessas aprendizagens, mas que se estende por toda a vida do sujeito enquanto práticas de letramentos (SOARES, 2012). SAIBA MAIS! MELO, Eliane Pimentel Camillo Barra Nova de; MARQUES Silvio César Moral. História Da Alfabetização No Brasil: Novos Termos E Velhas Práticas. P O I É S I S – Revista Do Programa De Pós-Graduação Em Educação – Mestrado – Universidade Do Sul De Santa Catarina Unisul, Tubarão, v.11, n. 20, p. 324-343, Jun/Dez 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v11e202017324-343 MORTATTI, Maria do Rosário (org.). Alfabetização no Brasil : uma história de sua história. São Paulo : Cultura Acadêmica ; Marília :Oficina Universitária, 2011. Disponível em: http://forumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/alfabetizacao_umahistoria_desuahistoria.p df. Acesso em 12/12/2019. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v11e202017324-343 http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v11e202017324-343 http://forumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/alfabetizacao_umahistoria_desuahistoria.p http://forumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/alfabetizacao_umahistoria_desuahistoria.p UNIDADE III - Métodos de Alfabetização As metodologias de alfabetização foram se modificando no decorrer do tempo, afinal, as práticas pedagógicas são culturais e evoluem em função de circunstâncias políticas, sociais e econômicas. De acordo com as necessidades sociais que em determinados momentos históricos exigem um novo tipo de pessoa letrada e, ao mesmo tempo, em função do avanço do conhecimento acumulado na área de leitura, produção de escrita e seus processos de aquisição. Algumas pesquisas históricas permitem supor que os primeiros métodos utilizados no ensino da escrita foram os sintéticos. Até hoje existem vários métodos sintéticos, que se baseiam num mesmo pressuposto: o de que a compreensão do sistema de escrita se faz sintetizando, juntando unidades menores, que são analisadas para estabelecer relação entre a fala e sua representação escrita. Dentre os métodos sintéticos, o mais antigo, que foi utilizado em massa, até o inicio do século XX, é o método alfabético. Este método consiste em apresentar parte mínima da escrita, cuja unidade são as letras do alfabeto, que, ao se juntarem umas às outras, formam as sílabas ou partes que irão dar origem às palavras. No entanto, os aprendizes devem decorar o alfabeto, letra por letra, para achar as partes que formam as sílabas ou outro segmento da palavra, para somente depois entender que isso poderia se transformar numa palavra. Criou- se o procedimento de soletração, que gerou exaustivos exercícios de cantorias com os nomes das letras e suas combinações e também o treinamento com possíveis combinações de letras em silabários, “be-a-ba, be-e-be etc” e soletrando para tentar decifrar a palavra bola: “be-o-bo, ele-a-la: bola”. Este método, segundo alguns autores, possuía uma vantagem: no próprio nome de cada letra do alfabeto, com raras exceções, está contido o seu som. Entretanto no momento da leitura das palavras, na junção das partes feita mediante a pronúncia do nome da letra, ocorria um percurso tortuoso. Era preciso pronunciar primeiro o nome da letra, mas também tentar abstrair os outros sons em seu nome. Isto era necessário porque, ao se pronunciar o nome da letra, entravam sons que não pertenciam à sílaba ou à palavra. A soletração se dava com excesso de sons: “bê a/ba, ene a/na, ene a/na: banana”. Com o tempo foram surgindo outras formas de silabar, que ajudaram a eliminar algumas sobras de sons, na hora da junção de letras. Assim, se poderia soletrar, com menos sacrifício: “bê-a-ba, nê-a-na, nê-a-na: banana”. Outro método sintético é o fonético ou fônico, cujo princípio é o da necessidade de ensinar uma relação direta entre fonema e grafema, para que se relacione a palavra falada com a escrita. A unidade mínima é o som. Cada letra (grafema) é aprendida como um fonema (som) que, junto a outro fonema, pode formar sílabas e palavras. O método silábico também de marcha sintético, parte das sílabas para formar palavras. Baseia-se nas apresentações das mais simples para as mais complexas. Apresentam-se palavras-chaves apenas para apresentar as sílabas que são destacadas e estudadas sistematicamente em famílias. O método permite que se criem novas palavras apenas com as sílabas já apresentadas e, gradativamente, forma-se pequenas frases e textos, também forjados para apresentar somente as combinações entre sílabas já estudadas. O método silábico possui uma vantagem: ao se trabalhar com a unidade sílaba, atende-se a um princípio importante e facilitador da aprendizagem: quando falamos, pronunciamos sílabas e não letras ou sons separados. Assim, suprime-se os sons em sílabas, como nos métodos de soletração ou fônicos. (FERREIRO, 2005, p.92) Uma das críticas que se faz do método silábico é a de que os textos são fabricados para o treino das sílabas sem articulação com o uso social e descaracterizada do contexto do aluno. Um dos exemplos muito utilizados foi a Cartilha “Caminho suave”. Já o método Paulo Freire, apesar de partir da palavra geradora, e ser baseado no método silábico, prioriza o sentido e a compreensão crítica domundo e isso aparece na escolha das palavras a serem trabalhadas, não havendo controle artificial do vocabulário. Ao invés de “Vovô viu a uva”, para aprender a sílaba “VA”, a palavra geradora do Método Paulo Freire pode ser “Vasilha”, palavra de uso cotidiano nas famílias carentes, que às vezes nem possuem dinheiro para comprar “uvas”. Desta forma, uma pedagogia de alfabetização baseada nas ideias de Paulo Freire, apesar de usar o método silábico, rompe com o princípio de mera decodificação porque, em sua base teórica, via a discussão política das necessidades e projetos de transformação da sociedade, pelos analfabetos oprimidos. Os métodos analíticos partem da síntese para a análise. Este método de influência europeia e americana foi utilizado no final do século XIX no Brasil, em oposição ao método sintético. Os processos de ordem analítica concebem a leitura como um ato global e ideovisual, partem das unidades maiores para os menores, pela análise e decomposição. Leitura e escrita são trabalhadas segundo a ordem de decomposição progressiva do material, a partir, portanto, de todos gráficos, isto é, sentenças ou palavras. Os passos do processo devem ser percorridos em sentido contrário aos métodos sintéticos. Dentre os métodos analíticos, o mais usado no Brasil, foi o global de contos. Neste método, a unidade tomada como ponto de partida é o texto. Na produção dos chamados pré-livros, ou os livros que precediam o de língua portuguesa, para as séries inicias, o texto é memorizado e “lido” durante certo período, para o reconhecimento de sentenças, seguido do reconhecimento de expressões, de palavras e, finalmente das sílabas. O livro “As mais belas histórias” de Lúcia Casassanta, e o “Livro de Lili” de Anita Fonseca, são exemplares desta forma de organização. Em 1920, ocorre no Brasil uma verdadeira batalha entre os métodos. Desta discussão resultou o estabelecimento da liberdade de cátedra nas escolas quanto à escolha do método de ensino da leitura e da escrita a ser adotado. Neste período, o método analítico se junta ao sintético, unindo orientações que utilizam análise e síntese, ao contrário dos outros que ora eram analíticos, ora sintéticos. O método é considerado global, porque parte de um todo, mas segue os passos do método sintético: som, sílabas, palavras e frases. A partir dos anos 80, passa-se a questionar a necessidade dos métodos e da cartilha de alfabetização, em decorrência da intensa divulgação dos pensamentos construtivistas e interacionistas sobre a alfabetização. Até hoje, muitos professores permanecem com métodos sintéticos ou aderem a métodos mistos. O perfil do aluno nas ultimas décadas mudou. Temos hoje crianças e adolescentes oriundos, em grande parte, de famílias cujos pais não frequentaram a escola e por isso não sabem enfatizar a importância da educação; crianças que são vitimas da violência, que se deixam seduzir pelo tráfico de drogas que lhes acena com dinheiro fácil; crianças e adolescentes cujos valores estão muito distanciados dos valores que a escola, supostamente, deveria trabalhar; crianças e adolescentes precocemente despertados para o sexo, bebidas e outras drogas; crianças e adolescentes violentados pela violência, mas fazendo uso dela. Com estas crianças, resta- nos o espaço da sala de aula e as perguntas óbvias: o que se pode fazer por esta clientela? Em que momento a escola perdeu o controle da aprendizagem de seus alunos, tornando-se incapaz de desenvolver-lhes competências mínimas, fundamentais, indispensáveis ao pleno exercício da cidadania numa sociedade letrada? Segundo Amaral apud Casassanta (2003, p. 11), “as crianças aprendem a ler com qualquer método, mas, naturalmente, não há métodos melhores e piores”. Cabe ao professor alfabetizador decidir por aquele que melhor atende à especificidade dos alunos. UNIDADE IV - Desafios Contemporâneos da Alfabetização e Letramento e as novas Propostas Curriculares Mas, como aprender a conviver nesta aldeia global, se somos incapazes de viver em paz nas comunidades naturais a que pertencemos: nação, região, cidade, aldeia, vizinhança? A questão central da democracia é saber se desejamos e somos capazes de participar da vida em comunidade; convém não esquecer que esse desejo depende do sentido da responsabilidade de cada um. Ora, apesar de ter conquistado novos espaços, dominados anteriormente pelo totalitarismo e pela arbitrariedade, a democracia tem tendência a debilitar se com o decorrer dos anos; como se tudo tivesse, incessantemente, de recomeçar, renovar se e ser reinventado. Como é que as políticas na área da educação poderiam ignorar esses três grandes desafios? Como é que a Comissão poderia deixar de sublinhar os aspectos em que essas políticas podem contribuir para um mundo melhor, para um desenvolvimento humano sustentável, para a compreensão mútua entre os povos e para a renovação de uma vivência concreta da democracia? (DELORS, Jacques, Educação um tesouro a descobrir – Relatório UNESCO, 2010). Iniciamos esta unidade com os desafios colocados na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, em março de 1990, com uma agenda da educação nos países em desenvolvimento, para que buscassem a universalização à educação básica e a garantia de acesso, permanência e gratuidade. Desta Conferência internacional, foi realizado um relatório da UNESCO, cujo organizador foi Jacques Delors, instituindo para o século XXI, quatro pilares para a educação: Aprender a aprender; Aprender a ser; Aprender a conhecer e aprender a fazer. Para cumprir as metas estabelecidas nesta agenda, o Brasil iniciou com o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), Planos Nacionais de Educação (2001-2010/ 2014-2024). Em todos os planos a universalização do acesso à educação básica é o objetivo central. Depois de 29 anos, em que o Brasil assinou os tratados que deveriam ser realizados no país para melhoria da educação, muito se avançou, mas ainda temos grandes desafios a enfrentar. A universalização do acesso à educação básica se concretizou. Houve uma expansão na oferta de vagas e a obrigatoriedade garantida na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9.394 de 4 a 17 anos. Mas garantir a universalidade de acesso não basta. É necessário alcançar a qualidade da educação com a permanência dos alunos, sua conclusão da educação básica e a qualidade do ensino. De acordo com dados publicados pelo INEP em 2017, o Brasil tinha cerca de 1,5 milhão de crianças e jovens entre 4 e 17 anos fora da escola, representando 3% do total nessa faixa etária que não havia concluído a educação básica. Desse total, 57% se concentravam no grupo de 15 a 17 anos de idade, somando cerca de 850 mil de jovens. O 1,5 milhão de crianças e jovens fora da escola não se distribuem igualmente entre os estratos de renda. Há uma forte concentração de excluídos da escola nos dois primeiros quintis de renda domiciliar per capita (os 40% mais pobres), que concentram 73% dos excluídos do grupo de 4 a 5 anos, 80% dos excluídos de 6 a 14 anos e 73% dos excluídos de 15 a 17 anos. Ao todo, para os 20% mais pobres, a taxa de exclusão na faixa de 4 a 17 anos é de 4%, enquanto, para os 20% mais ricos, era, em 2017, 0,7%. Portanto, ainda que se restrinja o conceito de acesso à frequência escolar em idade obrigatória, é possível dizer que não há permanência, quando um segmento não desprezível de crianças e jovens estão excluídos dessa frequência, em particular aqueles pertencentes aos 40% mais pobres da população. Na área da alfabetização e letramento, como decorrência das evidências do fracasso escolar em alfabetizar, a partir da década de 1980 o aumento das pesquisas neste campo aumentou, buscando-se entender o fracasso escolar da escola brasileira em alfabetizar. MORTATTIet.all (2014) afirma que [...] o fracasso da escola brasileira em alfabetizar, embora seja um fenômeno reconhecido e denunciado já há várias décadas, só nos últimos vinte anos transformou-se em preocupação prioritária na área educacional do país. É que esse reiterado fracasso em alfabetização, significativamente contemporâneo do processo de conquista, pelas camadas populares, do direito à escolarização, vem se evidenciando de maneira imperativa nas últimas décadas, justamente porque nelas é que se tem acelerado a democratização do acesso à escola. Ora, essa acelerada democratização do acesso à escola não se tem feito acompanhar da necessária transformação que a torne competente para servir àqueles que vêm conquistando seu direito a ela; por isso, o fracasso escolar, particularmente na alfabetização (é na primeira série, cujo objetivo principal é a aquisição da leitura e da escrita, que são, como se sabe, mais altas as taxas de repetência e evasão), tornou-se tão evidente e ameaçador para as legítimas aspirações de uma democratização do saber e da cultura, que acompanhe a democratização do acesso à escola, que não há como não reconhecer, hoje, na alfabetização, o problema básico do sistema educacional brasileiro. (MORTATTI et all, 2014, p12 apud SOARES; MACIEL, 2000, p. 7) O direito à alfabetização e à escrita de linguagem pode ser compreendido como instrumento de constituição da consciência do sujeito e como instrumento de sua ação nas esferas da vida, criadas nas relações humanas, nas relações organizadas por intensas e profundas manifestações em um mundo encharcado de cultura escrita. A falta de acesso diminui a participação do indivíduo na sociedade. Porém, o direito à cidadania está ligado ao fortalecimento da dimensão política da educação não como um apêndice, mas como condição de exercício da democracia, de produção de sensibilidades políticas, de uma cultura que se apoie no sujeito que se constrói coletivamente e que, desse modo, se educa ressignificando as tramas institucionais das políticas públicas. Este é o grande desafio da alfabetização no Brasil. Alfabetizar letrando, para que todos os cidadãos possam fazer uso da cidadania e do processo de mudanças necessárias a um novo cenário mundial. 4.1 Propostas curriculares oficiais de alfabetização e suas inserções no cotidiano escolar – os materiais didáticos, o professor alfabetizador, o aluno. O processo de alfabetização é um tema de grande relevância no cenário educacional e nesse sentido, as políticas públicas no processo que envolvem aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita de crianças, a alfabetização ganha destaque como um dos fatores prioritários na definição de compromissos e metas globais, estabelecidos por organismos multilaterais. (MORTATTI, 2013). Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil vem fazendo esforços para que a alfabetização aconteça de forma totalitária nos país, buscando o exercício da cidadania, conforme explicitada nas legislações vigentes. Porém, a política educacional é um recorte das políticas públicas, considerando o Estado, como provedor, interventor e regulador. É através deste papel regulador, que as ações de política educacional transformam-se em atos, que possam atingir a toda a população em relação à alfabetização. Conforme Azevedo (2003, p. 38), a política educacional é identificada como “[...] tudo o que um governo faz e deixa de fazer, com todos os impactos de suas ações e de suas omissões”. Assim, todas as ações voltadas para a educação, estão diretamente imbricadas nas políticas públicas e são de responsabilidade do Estado, materializando os direitos garantidos nas leis vigentes. Como emblemáticos desse movimento, destacam-se os compromissos e metas referentes à alfabetização, resultantes das seguintes iniciativas globais, implementadas a partir da década de 1990: • Declaração do “Ano Internacional da Alfabetização” (1990); • Declaração de Jomtien (1990); • Declaração de Dakar - Educação Para Todos (2000); • Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) (2000); • Alfabetização para o Empoderamento (LIFE) (2005); • Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-2012). • Plano Decenal de para Todos (1993-2003), Planos Nacionais de Educação (2001-2010/ 2014-2024). • PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012), compromisso firmada entre União, estados e municípios brasileiros, para atingir o objetivo de alfabetizar todas as crianças até os oito anos de idade. Em correspondência direta com essas iniciativas, tem-se a implementação de testes padronizados de avaliação de estudantes em larga escala, de abrangência internacional, como o PISA, Prova Brasil, SAEB e Provinha Brasil. Todas estas iniciativas têm como objetivo a melhoria da alfabetização e letramento no Brasil, possibilitando a inserção de todos os indivíduos na participação social, utilização das tecnologias e garantia de uma melhoria da qualidade de vida coletivamente. Para melhor entendermos as ações voltadas para a melhoria da qualidade na alfabetização brasileira e os programas governamentais, vamos relacioná-los abaixo de acordo com os anos: Quadro 1 - Programas de Governo voltados à alfabetização no Brasil Ordem Lançamento Programa Esfera 1 1999 PCN em Ação – Alfabetização Governo Federal 2 2000 GESTAR - Programa Aprendizagem Escolar Gestão da Governo Federal 3 2001 PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores Governo Federal 4 2003 PRALER – Programa Leitura e a Escrita de Apoio a Governo Federal 6 2005 PRÓ-LETRAMENTO - Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental – Alfabetização e Linguagem Governo Federal 6 2007 Programa Além das Palavras Governo do Estado do Ceará 7 2007 PIP – Programa de Intervenção Pedagógica Governo do Estado de Minas Gerais 8 2008 Programa Além das Palavras Governo do Estado de Mato Grosso do Sul 9 2012 PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa Governo Federal 10 2018 BNCC – Base Nacional Comum Curricular Governo Federal Organização: (VIÉDES, 2014, p.151). Além destes programas acima apontados, damos destaque à Rede Nacional de Formação Continuada de Profissionais da Educação Básica, criada pelo governo federal em 2003, sob responsabilidade das secretarias de Educação Básica e de Educação a Distância do MEC, em parceria com IESs e com adesão de estados e municípios: [...] visando a institucionalizar o atendimento da demanda de formação continuada, dirigida exclusivamente à educação infantil e ao ensino fundamental. Nas universidades que se integraram à rede, foram instituídos Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação com uma equipe que coordena a elaboração de programas voltados para a formação continuada de professores (GATTI, 2011, p. 55- 56). A rede nacional consiste, portanto, em um conjunto de ações estratégicas de formação continuada, articuladas entre si com o objetivo de contribuir para a melhoria da formação de professores e alunos da educação básica que, além de fortalecer os programas estratégicos da área, promove maior articulação entre as demandas de estados e municípios e os cursos oferecidos pelas instituições parceiras, valendo-se do maior refinamento das demandas das secretarias de Educação produzido pelo PAR1, o que permite melhor organização do seu atendimento pelas IESs. Outros programas que já existiam antes de 1999, mas que foram reformulados e expandidos foram o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático e o da Merenda Escolar. O PNLD era um programa que atendia somente os anos iniciais de escolarização. Com a promulgação da LDBEN 9.396/96, o programa ampliou a distribuição para os anos finais, ensino médio, Educação de Jovens e Adultos – EJA e também criou o programa PNBE – ProgramaNacional de Biblioteca Escolar, para que os acervos das escolas da rede pública pudessem contar com mais quantidades de livros de leitura tanto para os alunos, quanto para os professores. A merenda escolar também ganhou reformulações. O PDDE – Programa Dinheiro Direto na Escola, para que os gestores possam comprar em seus 1 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), apresentado pelo Ministério da Educação em abril de 2007, colocou à disposição dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, instrumentos eficazes de avaliação e implementação de políticas de melhoria da qualidade da educação, sobretudo da educação básica pública. O Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, um programa estratégico do PDE, instituído pelo Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007, inaugurou um novo regime de colaboração, conciliando a atuação dos entes federados sem lhes ferir a autonomia, envolvendo primordialmente a decisão política, a ação técnica e atendimento da demanda educacional, visando à melhoria dos indicadores educacionais. Sendo um compromisso fundado em 28 diretrizes e consubstanciado em um plano de metas concretas e efetivas, compartilha competências políticas, técnicas e financeiras para a execução de programas de manutenção e desenvolvimento da educação básica. A partir da adesão ao Plano de Metas, os estados, os municípios e o Distrito Federal passaram à elaboração de seus respectivos Planos de Ações Articuladas (PAR). A partir de 2011, os entes federados poderão fazer um novo diagnóstico da situação educacional local e elaborar o planejamento para uma nova etapa, com base no Ideb dos últimos anos.. Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=159&Itemid=38. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=159&Itemid=38 municípios, fortalecendo o comércio local; a contratação de nutricionista para o cardápio e a agricultura familiar com alimentos regionais. O Transporte escolar foi um programa novo, possibilitando que todos os alunos possam ir e vir para as escolas, diminuindo a distância de suas residências de zonas rurais para o acesso à educação. Todos estes programas e muitos outros que talvez não enfatizamos tem somente um objetivo: garantir uma educação com acesso para todos os brasileiros com idade de 4 a 17 anos e também àqueles que não tiveram acesso a escolaridade no tempo certo. SAIBA MAIS! DAVID, Célia Maria [et al] Org. Desafios contemporâneos da educação [recurso eletrônico. 1. ed. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Recurso Digital Formato: ePDF. Eixo 2 – Políticas educacionais Política educacional brasileira e sua dimensão social; verso e reverso. p.109. BIBLIOGRAFIA UTILIZADA AMARAL, Ana Lúcia. Relatório de pesquisa sobre a implementação do projeto “Escolas Dinâmicas” em escolas públicas da rede estadual de Minas Gerais. Caderno do Professor. Secretaria de Estado de Educação/ Subsecretaria de Desenvolvimento da Educação/ Centro de Referência do Professor. Número 11, dezembro de 2003. AZEVEDO, Sérgio de. Políticas públicas: discutindo modelos e alguns problemas de implementação. In: Santos Júnior,OrlandoA.Dos(Et.al) Políticas públicas e gestão local:programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro:Fase, 2003. BORDIGNON, Lorita Helena Cmpanholo; PAIM, Marilane Maria Wolff. Alfabetização no Brasil: Um Pouco de História. Revista Educação em Debate Fortaleza, ano 39, nº 74, jul./dez. p. 51-67. 2017. Delors, Jacques. Educação Um Tesouro A Descobrir. 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