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Resumo 10 (Personalidade Jurídica do Estado)

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FACULDADE DE DIREITO DE SOROCABA – FADI 
Ciência Política e Teoria Geral do Estado – 2016 
Professor Jorge Marum
Resumo 10 – Personalidade jurídica do Estado
“À multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou melhor (para falar em termos mais reverentes), daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (Thomas Hobbes)
Introdução. Nos capítulos anteriores vimos que o Estado Moderno é composto por quatro elementos: povo, território, soberania e finalidade. No entanto, é importante observar que o Estado não é simplesmente a soma, mas sim a síntese desses quatro elementos. Nesse sentido, Jellinek assinala que os elementos do Estado “condicionam-se mutuamente, e por isso, somente é possível isolar um deles de modo hipotético, já que cada qual tem como suposto os demais”.�
Ente autônomo. Essa síntese forma um ente autônomo, com identidade e vontade próprias. O Estado, portanto, é a personificação da síntese entre seus elementos formadores. Ora, dizer que o Estado é um ente personificado significa dizer que ele é uma pessoa. Dessa forma, para podermos expressar um conceito preciso de Estado, ou seja, para sabermos o que de fato ele é, temos que o que significa ser uma pessoa e que tipo de pessoa é essa que não é um ser humano.
Pessoa. Em linguagem jurídica, “pessoa” não se confunde com ser humano. Como lembra Miguel Reale, a palavra pessoa vem do latim persona, nome da máscara utilizada pelos atores do teatro romano, a qual servia para caracterizar os personagens e, ao mesmo tempo, dar maior ressonância à voz (per sonare: “soar por, através de”). Na linguagem atual, pessoa é a dimensão social do ser humano, daí derivando a personalidade.� 
 
Personas
Personalidade jurídica. Para o Direito, pessoa é o sujeito ou titular de direitos e obrigações. A personalidade jurídica é a capacidade genérica (abstrata) de ser sujeito de direitos e obrigações. Por esse motivo é que o Código Civil diz que toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na ordem civil (art. 1º) e que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida (art. 2º). Já para haver a capacidade concreta para ser sujeito de determinados direitos e obrigações, a lei pode exigir certos requisitos, como, por exemplo, a idade mínima para votar. 
Quem pode ser considerado pessoa? Diante disso, pode-se questionar: todos os seres humanos são pessoas? E os fetos, também são pessoas? Coisas e animais são pessoas? Empresas são pessoas? E, finalmente, o Estado é uma pessoa? 
Seres Humanos. Atualmente, pelo menos em sistemas jurídicos minimamente civilizados, todo o ser humano é considerado pessoa perante o Direito, ou seja, capaz de direitos e obrigações. Nem sempre foi assim, tratando-se, nas palavras de Miguel Reale, de uma conquista da civilização. Nos impérios antigos, por exemplo, não havia o conceito de pessoa como sujeito de direitos perante o Estado, por isso a justiça era um favor dos imperadores. Já na antiguidade greco-romana, só os cidadãos eram pessoas, o que excluía mulheres, crianças, escravos e estrangeiros. Também onde há escravidão, os escravos não são considerados pessoas e sim coisas, daí lhes serem negados direitos básicos como a liberdade e até a vida. 
Sendo reconhecidos como pessoas, os seres humanos passam a ser titulares de direitos e obrigações, podendo exigir a proteção do Estado, não como um favor, mas sim como um direito. É esse o sentido da frase lapidar do Padre Vieira, no Sermão do Bom Sucesso:
“Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando, pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça.”
Quanto aos fetos, discute-se se são ou não pessoas. A Constituição brasileira protege a vida de uma forma genérica, sem especificar se essa vida é apenas aquela fora do útero materno (art. 5º, caput). Reforçando essa proteção, o Código Penal diz que o aborto é crime, salvo algumas exceções. Por outro lado, segundo o Código Civil (art. 2º), a personalidade civil começa com o nascimento, mas a lei protege os direitos do nascituro desde a concepção, ou seja, o feto tem direitos, embora não tenha personalidade civil. O tema, portanto, é polêmico.
 
Coisas e animais. Na Idade Média chegou-se a processar objetos e animais, como vassouras e gatos, como supostos cúmplices de bruxaria, o que, na linguagem atual, lhes conferia personalidade, pelo menos na forma passiva. Atualmente, discute-se se a proteção aos animais e às plantas decorre de direitos próprios destes (Herman Benjamin) ou de um imperativo ético (Miguel Reale). 
Sobral Pinto
O caso Harry Berger. O alemão Harry Berger era um agente do Comintern que veio ao Brasil para participar da tentativa de revolução comunista em 1935. Preso, estava sendo barbaramente torturado pela polícia de Getúlio Vargas quando o então jovem advogado Heráclito Sobral Pinto assumiu sua defesa. Como a ditadura getulista havia suspendido o habeas corpus, instrumento jurídico que serve para garantir a liberdade e a integridade física de pessoas presas, Sobral Pinto invocou em favor de Berger a lei de proteção aos animais, assinada pelo próprio Vargas e que proibia a crueldade contra animais. Ironicamente, o ditador, ao negar o estatuto de pessoa aos presos políticos, esquecera-se de que seres humanos também são animais... 
 
O caso do chimpanzé Jimmy. Mais recentemente, houve o caso do chimpanzé Jimmy, preso numa pequena jaula no zoológico de Niterói. Entidades ambientalistas impetraram habeas corpus em favor do animal, a fim de que fosse transferido para um santuário de primatas em Sorocaba. Sob o argumento de que o habeas corpus só pode ser utilizado para garantir direitos de pessoas, e que o chimpanzé, embora tenha 99,4% de genes idênticos aos humanos, não é pessoa, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou o benefício ao animal. 
 
O chimpanzé Jimmy
Pessoa Jurídica. Além das pessoas naturais, o Direito reconhece a personalidade jurídica de entidades formadas pela união de pessoas, dotadas de existência autônoma e de vontade próprias, que não se confundem com as de seus membros. São entidades como empresas, clubes, fundações, associações etc. Quando essas entidades tomam decisões ou fazem negócios, estão agindo por vontade própria, como um ente coletivo e personalizado. Elas são responsáveis por seus atos e têm direitos próprios. São chamadas de pessoas jurídicas, diferenciando-se dos seres humanos, que são pessoas naturais.
Na modernidade, o Estado também é reconhecido uma pessoa jurídica, portanto sujeito de direitos e obrigações. O seu reconhecimento como tal é de grande importância para a Política e para o Direito.
Histórico. Deve-se ao contratualismo a primeira concepção do Estado como um ente autônomo, com vontade própria, diferenciado de seus membros. No início, porém, essa concepção era puramente política, isto é, sem implicações jurídicas. O poder soberano do Estado era visto como algo acima da lei e o Estado não podia ser responsabilizado por seus atos. 
Teorias sobre a personalidade jurídica do Estado. As teorias para qualificar juridicamente o Estado surgem no século XIX, com publicistas alemães como Savigny, Gierke e Jellinek. Deve-se a eles a qualificação do Estado como pessoa jurídica, com importantes repercussões no Direito, especialmente no ramo do Direito Público, que trata das relações entre os indivíduos e o Estado. A partir do século XIX, surgiram várias teorias para explicar a personalidade jurídica do Estado: 
Ficcionismo: para essa teoria, pessoas, na realidade, são apenas os seres humanos. Segundo Savigny, a pessoa jurídica é uma ficção criada pelo Direito por motivos de ordem prática (fictio juris), a fim de possibilitar que certas entidades sejam sujeitos de direitos e obrigações legais. 
Realismo: para os realistas, o Estado tem existência real, alguns chegando ao exagero de afirmar que essa realidadeseria material (organicismo biológico). Já segundo os adeptos do organicismo ético, como Gierke, quando as pessoas se reúnem para realizar uma finalidade surge um novo ente real, com vida e vontade próprias, independente de seus membros, mas que não tem existência material, e sim moral (espiritual, ideal). 
Institucionalismo: segundo o autor francês Hauriou, a pessoa jurídica, ou instituição, é uma unidade de fim. Hauriou utiliza-se da filosofia tomista, segundo a qual existem unidades físicas (ex.: um bloco de metal) e unidades de fim (partes que se unem para um objetivo comum, como um relógio). Unidades de fim podem ser formadas tanto por objetos materiais como em torno de ideais, pois as emoções e as idéias também têm existência real. A instituição ou pessoa jurídica é uma união de pessoas em torno de uma idéia e, assim, tem existência real.�
Teoria de Jellinek. Jellinek simplifica a questão, afirmando que sujeito, em sentido jurídico, não é algo material, palpável, mas simplesmente uma capacidade criada pela ordem jurídica. Capacidade é a qualidade de quem é capaz. Assim, a ordem jurídica pode simplesmente atribuir essa capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações a seres humanos e a instituições. Sob esse ângulo, a personalidade jurídica do Estado é algo real, e não fictício, simplesmente porque o Direito assim o determina.� 
Negação. Em oposição à idéia de Estado como pessoa jurídica, o autor alemão Max Von Seydel, por exemplo, afirma que o Estado é apenas terra e gente dominadas por uma vontade superior. Para o anarquista de cátedra francês Léon Duguit, o Estado é apenas uma relação de fato e, portanto, não poderia se transformar em pessoa. Essas teorias são minoritárias na doutrina, prevalecendo a idéia de que o Estado é uma pessoa jurídica, cuja capacidade decorre do Direito. 
Importância. Segundo Dallari, o reconhecimento da personalidade jurídica do Estado foi uma conquista importantíssima do Direito Público.� Dela resulta, em primeiro lugar, a capacidade do Estado para ser sujeito de direitos e obrigações, tanto internamente como na ordem internacional. Isso representa uma limitação jurídica ao poder do Estado, que somente pode agir conforme a Constituição e as leis que o organizam, podendo ser responsabilizado por seus atos ilegais ou abusivos. 
Além disso, sendo o Estado um ente personificado, sua vontade não se confunde com as dos seus dirigentes, cujos atos lhe são imputados. Assim, não importa quem praticou o ato, mas sim que isso foi feito em nome do Estado. É evidente que, num Estado Democrático de Direito, os que agem em nome do Estado também respondem por eventuais abusos, porém essa responsabilidade é independente da responsabilidade do Estado. 
Por fim, ainda segundo Dallari, o reconhecimento da personalidade jurídica do Estado representa a conciliação do jurídico com o político, pois a vontade e o arbítrio que caracterizam a atividade política são regulados e limitados juridicamente. 
Pessoas jurídicas de direito público. Segundo a divisão clássica, as pessoas jurídicas podem ser de direito público e de direito privado, conforme a sua natureza e as funções que desempenham. Lembrando que o Direito Público é o ramo que trata das relações jurídicas que envolvem o Estado, é evidente que este é uma pessoa jurídica de direito público. 
As pessoas jurídicas de direito público, por sua vez, subdividem-se em pessoas jurídicas de direito público externo ou internacional e pessoas jurídicas de direito público interno. O Estado, como ente soberano, é pessoa jurídica de direito público internacional, e assim relaciona-se com outros Estados ou com outras pessoas jurídicas da mesma natureza (ONU, OEA, Mercosul etc.).
Sob o ponto de vista externo, portanto, o Estado é uma unidade, ou seja, uma única pessoa jurídica. Mas sob o ponto de vista interno, ele pode estar subdividido em unidades menores, que também constituem pessoas jurídicas. Assim, quando se fala no Estado de forma genérica, pode-se estar falando tanto do Estado como um todo como de suas subdivisões, que são os estados federados, os municípios etc.
A subdivisão do Estado em pessoas jurídicas de direito público interno depende da organização que lhe é dada por sua Constituição. A isso se chama forma de Estado, matéria que será vista em capítulo próprio. O Brasil, que já foi um Estado de tipo unitário durante o Império, transformou-se numa Federação com a Constituição Republicana de 1891. Com isso, o Estado brasileiro foi subdividido em estados federados com autonomia e personalidade jurídica própria. Por isso é que o Código Civil relaciona como pessoas jurídicas de direito público interno a União Federal e os estados federados (art. 41). 
Além disso, dadas as peculiaridades da nossa federação, também os municípios, os territórios e o Distrito Federal são entes com personalidade jurídica de direito público interno.� Por fim, no Brasil as pessoas jurídicas de direito público interno podem instituir pessoas jurídicas da mesma natureza, sob a sua dependência ou direção, para fins de descentralização administrativa, como são as autarquias (ex.: INSS, SAAE) e as fundações públicas. 
 
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O caso do moleiro de Berlim. Para ilustrar a importância da atribuição da personalidade jurídica ao Estado, é interessante lembrar essa história, que teria ocorrido em 1745, na Prússia, já então um Estado moderno e atualmente parte da Alemaha. Um humilde moleiro tinha o seu moinho próximo ao palácio do rei Frederico 2º, chamado “o grande”. Este, embora amigo de intelectuais e incentivador das artes, governava de forma autoritária e pretendia ser a própria personificação o Estado (“déspota esclarecido”). Incomodado com o moinho, que atrapalhava a paisagem do castelo, o rei emitiu uma ordem para que a construção fosse removida. O moleiro, porém, se negou obedecer. Frederico o chamou para tirar satisfações e exigir a demolição. Foi então que o moleiro, consciente de que a lei protegia sua propriedade, teria dito a célebre frase: “Ainda há juízes em Berlim”. Ou seja, o Estado, embora representado pelo rei, tem limites estabelecidos na lei, e mesmo um humilde cidadão pode invocar a proteção de seus direitos contra atos arbitrários do governante perante outro órgão do Estado, que é o Poder Judiciário. 
Bibliografia
Leitura essencial: 
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo III, itens 60 a 63.
Leituras complementares: 
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, L II, Cap. 6.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, Cap. XVIII.
� Elementos de Teoría General del Estado, p. 533.
� Lições preliminares de Direito, p. 231.
� Cf. Miguel Reale, Lições preliminares de Direito, p. 235. 
� Teoría General del Estado, p. 
� Ob. cit., p. 
� Territórios são parcelas do território brasileiro, abrangendo ou não municípios, mas que não são abrangidas pelo território de nenhum Estado, sendo administradas pela União. Atualmente, não existem territórios, mas sua existência é prevista na Constituição (art. 18, § 2º) e, até alguns anos atrás, Acre, Rondônia, Roraima, Amapá e Fernando de Noronha eram territórios.

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