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1 A Vagueza no Direito 1.1 Considerações iniciais Em qualquer sociedade de pessoas, as normas gerais, os padrões de conduta e os princípios formam o principal instrumento de controle social, transmitindo para a multidão de indivíduos que compõem esse grupo social regras de comportamento específicas para determinadas circunstâncias. Tais orientações normativas devem ser reconhecíveis e compreensíveis por todo o universo de pessoas que compõem essa coletividade, no entanto, esses padrões de comportamento transmitidos por mais que funcionem e sejam eficazes na maioria dos casos comuns poderão se mostrar imprecisos em algum caso específico, já que os padrões são pensados para a generalidade dos casos, podendo ocorrer situações singulares em que a interpretação dessas normas gerais ou dos padrões de conduta seja inconsistente, contestada ou mesmo colocada em dúvida. Dessa forma, muito se tem debatido atualmente sobre a atividade interpretativa em geral e mais precisamente sobre a interpretação jurídica, eis que a interpretação será o método de definição de uma norma geral aplicável a toda a sociedade, sendo certo que a proliferação de teorias e debates sobre o significado, conteúdo e extensão da interpretação jurídica tem sido extremamente relevante para a consolidação dos Estados democráticos na medida em que tais teorias sempre procuram explicar como órgãos e agentes públicos chegam as suas decisões, sobretudo nos casos singulares nos quais a aplicação da norma geral foi contestada. Assim, a preocupação dos teóricos não se limita a encontrar os fundamentos ou as conclusões que motivaram a decisão da autoridade estatal, mas em explicar como ocorre todo o procedimento lógico-dedutivo desenvolvido pelo DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 13 intérprete para atribuir um significado a um determinado texto normativo2 eis que esse é o fruto do Legislativo e, como tal, traduz-se na expressão maior da soberania popular. Nesse aspecto, a própria legitimidade dos atos estatais, administrativos ou judiciais, sempre decorre do devido zelo e da congruência entre a interpretação conferida ao texto pelo intérprete e o texto objeto de interpretação, isto porque desde que o povo foi reconhecido como entidade política3 que exerce o poder quer direta, quer indiretamente por meio de seus representantes, conduz a uma conclusão: O verdadeiro autor das leis da República é o povo, e, como poder legislativo, pode (deve) exigir a fiel execução das leis e a punição daqueles que as descumprem, isto é, o povo é o detentor do poder de fazer as leis, do poder de fazer com que elas sejam executadas e ainda de julgar a sua aplicação. Ocorre que, diante da complexidade dos Estados contemporâneos, o povo acaba por não exercer diretamente4 esses poderes, sendo necessário nomear um corpo burocrático para exercer as funções legislativas, executivas e judiciárias em seu nome e em seu proveito, cabendo aos seus representantes criar e interpretar as leis atribuindo sentido e coerência ao texto. O problema é que as leis são criadas nessas sociedades organizadas como instrumento de controle social, funcionando como normas gerais balizadoras de conduta (normas que dispõem sobre padrão geral de comportamento para multidão de indivíduos), sendo produzidas sempre de forma abstrata e genérica 2 Neste trabalho serão utilizadas preferencialmente as expressões “interpretação de texto”, “de texto legal” ou “de texto normativo” quando se estiver fazendo menção ao objeto da interpretação, ou seja, a atribuição de sentido ao vocábulo legal fruto de um enunciado do discurso prescritivo elaborado por uma autoridade normativa e identificável como fonte do direito de um determinado sistema jurídico. Aqui também não se desconhece a problemática na utilização dessa expressão (interpretação de texto) na medida em que ela não comporta em seu conteúdo os “fatos” que são extremamente relevantes e de indispensável consideração para a perfeita formação do produto resultado da interpretação, ocorre que, embora problemática tal conceituação, pretende-se com ela evitar a confusão quanto às expressões comumente utilizadas “interpretação de normas” ou “interpretação do direito”, eis que as normas não são os textos, mas o resultado da interação entre o interprete e o texto legislativo, e a expressão “interpretação do direito” embora designe o gênero relativo aos textos, normas, fatos, jurisprudência, costumes,entre outros, seria inapropriadamente utilizado para designar aquilo que ele mesmo compõe – a hermenêutica. Sgarbi (2007: 434). 3 A Constituição Federal proclama no seu artigo 1°, Parágrafo único: “[...] Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 4 Há exceções constitucionais de democracia direta em que o povo exercita o seu poder diretamente como disposto no artigo 14 da Constituição Federal: [...] I - plebiscito, II – referendo, III - iniciativa popular. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 14 para que orientem a maior quantidade de casos possíveis e também para que sejam facilmente compreensíveis por toda a universalidade de indivíduos que compõem essa sociedade. Em virtude de sua abstração e generalidade, muitas vezes, o texto legal objeto de interpretação apresenta-se vago ou incerto, facultando ao intérprete inúmeras possibilidades hermenêuticas, eis que, não apenas no campo das normas, mas em todos os campos da existência humana, existe um limite que a linguagem geral pode oferecer como orientação às pessoas. Assim, para H.L.A. Hart os próprios cânones interpretativos não servem para eliminar a indeterminação e a incerteza própria da linguagem comum. “É certo que existem casos claros, que reaparecem constantemente em contextos semelhantes, aos quais as fórmulas gerais são nitidamente aplicáveis (‘se algo é um veículo, um automóvel o é’) mas haverá também casos aos quais não está claro se elas se aplicam ou não (‘a palavra aqui usada ‘veículo’, incluirá bicicletas, aviões, patins?’). Estas últimas são situações de fato, continuamente criadas pela natureza ou pela inventividade humana, que possuem apenas alguns dos traços presentes nos casos simples, enquanto outros estão ausentes. Os cânones de ‘interpretação’ não podem eliminar essas incertezas, embora possam minorá-las, pois estes cânones constituem, eles próprios, normas gerais para o uso da linguagem e empregam termos gerais que exigem eles próprios interpretação”5. Assim, embora os padrões de comportamento transmitidos por meio de legislação funcionem na maioria dos casos, em outros as fórmulas gerais de conduta6 não serão tão claras, de modo que, nesses casos específicos, podem ocorrer incertezas quanto ao comportamento exigido dos indivíduos. Daí a relevância do estudo do texto normativo ao lado da atividade interpretativa, pois muitas regras em virtude da textura aberta7 da linguagem são 5 Hart (2009: 164). 6 Os ordenamentos jurídicos podem ser simples ou complexos dependendo da abrangência tipológica da regra. Serão simples, aqueles sistemas jurídicos formados somente por “normas de conduta” ou primárias; já os sistemas complexos são aqueles que conjugam normas primárias com secundárias ou “atributivas de poderes”. Assim, nem toda norma veicula uma fórmula geral de comportamento, pois tal característica é exclusiva das normas de conduta, enquanto às normas secundárias funcionam para assegurar eficiência às primeiras veiculando “conceitos especificamente jurídicos de interesse profissional para o jurista e o profissional do direito, como os de obrigações e direitos, validade e fontes de direito,legislação e jurisdição e sanção” Hart (2009: 127). Segundo Hart, as sociedades atuais conjugam normas primárias com secundárias de três ordens: regra de reconhecimento (destinada a identificar as normas primárias pertencentes à ordem jurídica), regras de modificação (regulam o processo de criação, eliminação e transformação das normas primárias) e regras de julgamento (instauram, identificam e regulam os órgãos de aplicação das normas primárias). Hart (2009: 103/128). 7 Será analisado mais adiante no decorrer da dissertação. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 15 plurissignificativas, cabendo ao intérprete desvendar o seu significado. Tal atividade é de suma importância para o estudo do direito, já que essas fórmulas gerais de conduta constituem o próprio Direito como instrumento destinado ao controle social8. É certo também que o mesmo problema da indeterminação na aplicação e na interpretação da legislação ocorre nas sociedades que adotam os precedentes9 como estratégia de comunicação dos padrões gerais de conduta, uma vez que, tanto os precedentes quanto a legislação exibem padrões de comportamento limitados e pré-definidos, sendo impossível imaginar de antemão todos os possíveis acontecimentos, condutas ou circunstâncias que ocorreriam no futuro para que a legislação ou os precedentes abrangessem todas essas hipóteses. Assim, como exemplificado por Hart, quando uma lei faz referência a um veículo, claramente estará mencionando um automóvel (caso claro), no entanto, não fica claro se a lei inclui em seu dispositivo outros objetos destinados ao transporte de pessoas como bicicletas, motocicletas, quadriciclo, velocípedes, patins, entre outros, tratando-se então de um caso difícil (hard case)10. Assim, seja por meio da legislação ou de precedentes, sempre se deve procurar criar regras gerais de orientação social baseada em classes de pessoas, classes de condutas, coisas e circunstâncias relacionadas à vida social, cabendo ao 8 Aqui o direito é descrito como um instrumento destinado ao controle social em virtude da sua capacidade de veicular condutas destinadas à ordenação e à sistematização da sociedade, Possui função harmonizadora da vida social ao lado da religião, da moral e dos costumes. Émile Durkheim ensina que “a sociedade sem o direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço para adaptar o mundo exterior às suas necessidades de vida”. Durkheim (1960: 17). 9 O modelo do Common Law, comum aos países de colonização inglesa, “descreve as decisões judiciais como principal elemento irradiador de normas, conferindo-lhes efeitos vinculantes e gerais e atribuindo à lei papel secundário. Nesse sistema, a partir das soluções proferidas em cada caso, buscar-se-ia, por indução, formular as regras aplicáveis a situações análogas. O desenvolvimento do direito, por isso, ocorreria, na medida em que associações e distinções entre casos ensejassem a aplicação de resultados idênticos ou provocassem a criação de novos precedentes. Já nos ordenamentos de origem românica, caberia à lei a função de protagonizar a manifestação do direito, incumbindo-se às decisões papel meramente acessório e mediato, como fonte explicitadora e declaradora do significado do ordenamento positivo. Assim, a determinação da solução aplicável a uma demanda específica dar-se-ia pelo mecanismo da subsunção das situações de fato na regra geral legislada, cujo significado seria revelado através da atividade interpretativa”. Mello (2008: 12). 10 Será analisado mais adiante no decorrer da dissertação, inclusive com os desdobramentos do clássico exemplo apresentado por Hart. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 16 intérprete fazer a devida associação da regra geral ao caso particular de forma silogística11. Ocorre que, seja na legislação ou nos precedentes, a linguagem geral (formulações verbais) e os exemplos serão sempre insuficientes para englobar toda a imensidão de acontecimentos futuros e inesperados, isso porque o significado de formulações gerais nunca pode ser completamente esclarecido ou definido já que os termos empíricos das afirmações são dotados de uma textura aberta impedindo uma observação conclusiva com respeito ao seu significado. Hart expõe duas formas distintas de comunicação de critérios gerais de conduta para que o controle social seja efetivo (formulações gerais e exemplos), o que no plano jurídico significa dizer que as regras legais podem ser efetivadas por intermédio da legislação positivada ou do uso dos precedentes, ocorre que, em uma ou outra, a textura aberta da linguagem impede uma observação conclusiva com respeito ao seu significado. Vale dizer, a regra é formada por palavras e estas possuem semanticamente uma textura aberta de significação cujo sentido em seu núcleo é fixo, mas permeado por uma zona de penumbra de modo que, inevitavelmente, circunstâncias da vida ocorrerão e se enquadrarão nessa zona periférica em que a aplicabilidade da própria regra jurídica poderá ser colocada em dúvida12. Neste sentido, Hart utiliza-se de um exemplo simples e não jurídico para diferenciar a estratégia de controle social fulcrada nos precedentes daquela fundada na legislação, vejamos: 11 Neste caso, a premissa maior é a norma válida – verdade universal (P), a premissa menor é o acontecimento fático – particularidade factual (p) e a conclusão é a norma a ser aplicada ao caso particular– interação entre as duas premissas anteriores (c); na seguinte fórmula aristotélica: P + p → c”. Guastini (2005 : 227/235). 12 Será retomada mais adiante a apreciação e análise conceitual da textura aberta das normas descritas por Hart, mas, preambularmente, podemos descrevê-la como sendo uma característica comum das regras que “têm uma trama aberta e, por isso, também uma ‘zona de penumbra’. Mas no centro da trama há uma ‘zona de luz’, no âmbito da qual a interpretação e a aplicação da norma não são controvertidas. Na medida em que as normas possuem uma ‘zona de luz’, uma ciência de normas é possível. Em Hart, portanto, a ideia de área de penumbra serve não tanto para afirmar que as normas são enunciados vagos, de incerta aplicação, mas antes para sublinhar, paradoxalmente, o oposto: apesar de um certo grau de imprecisão, as normas também têm uma área de aplicação pacífica. A ‘penumbra’, de fato, define-se em negativo como a zona em que não há luz e, nem, tampouco, total escuridão. Nem todos os casos são dúbios: a área dos casos dúbios é delimitada, ‘circundada’, pela área dos casos claros (de uma parte, o conjunto dos casos aos quais a norma é certamente aplicável; de outra parte, o conjunto dos casos aos quais, também, certamente, a norma não é aplicável).” Guastini (2005 :147). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 17 “Podem-se ver os traços distintivos das duas estratégias nos seguintes casos simples e não jurídicos. Antes de ir à igreja, um pai diz ao filho: ‘Ao entrarem na igreja, todos os homens e meninos devem tirar o chapéu’. Outro pai, descobrindo a cabeça ao entrar na igreja, diz ‘esta é a maneira certa de se comportar em ocasiões como esta’” 13. Segundo esse ilustrativo exemplo, a formulação geral apresentada pelo pai ao filho “ao entrarem na igreja, todos os homens e meninos devem tirar o chapéu’” apresenta-se tão incerta quanto a estratégia adotada pelo outro pai de valer-se do exemplo “esta é a maneira correta de entrar na igreja”, eis que, em ambasas situações, podem ocorrer dúvidas de qual o alcance da formulação geral ou de como o filho deve seguir o exemplo do pai, já que é impossível descrever com certeza absoluta quais são os fatos contingentes e quais são os fatores essenciais que constituem o exemplo, deixando assim um amplo leque de possibilidades e, portanto, de dúvidas sobre o que se pretende e sobre questões que a própria pessoa que transmite o ensinamento já tenha examinado com clareza. “até que ponto o comportamento deve ser imitado? Fará diferença se, para tirar o chapéu, eu usar a mão esquerda em vez da direita? Que a ação seja executada lentamente ou com rapidez? Que o chapéu seja colocado debaixo do assento? Que, dentro da igreja, não seja recolocado na cabeça? Todas essas são variações de perguntas genéricas que a criança poderia fazer a si mesma: ‘De que formas minha conduta deve assemelhar-se à dele para que seja correta?’; ‘o que, exatamente, na conduta dele, deve servir-me de orientação?’” 14 Assim, é certo que, qualquer que seja a estratégia utilizada para a transmissão dos padrões gerais de conduta, se por meio de precedentes ou de formulações gerais, sempre restará uma zona de incerteza quanto ao tipo de comportamento por elas exigido, criando, em maior ou em menor grau, um leque de alternativas e de dúvidas para o intérprete. 1.2 O que é indeterminação Em Ottawa, no Canadá, nenhuma pessoa pode capturar ou possuir rãs a menos que a tíbia do animal tenha cinco centímetros ou mais de longitude. 13 Hart (2009 :162). 14 Hart (2009 :162). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 18 Com esse exemplo, Tymothy A. O. Endicott15 procura demonstrar o quanto a lei em Ottawa pode ser indeterminada, e por conseguinte também o quanto pode ser indeterminada a responsabilidade dos caçadores de rãs na capital canadense. É que, embora o legislador que criou a lei de proteção das rãs tivesse o cuidado de não utilizar termos imprecisos como “rã grande” ou “rã adulta”, valendo-se então de uma constante métrica (centímetros), ainda assim, mesmo com o seu zelo na escolha das palavras não será capaz de erradicar a indeterminação linguística. Nesse caso, há uma série de hipóteses em que a aplicabilidade da lei será indeterminada no Canadá, como por exemplo, o que ocorreria se uma rã tivesse uma tíbia maior do que cinco centímetros e a outra menor, ou mesmo se a sua tíbia tivesse quatro centímetros quando curvada mas cinco centímetros quando alinhada em uma régua? Assim, é certo que inumeráveis indeterminações podem surgir com as formulações linguísticas das regras jurídicas, sejam ambiguidades léxicas, como, por exemplo, se por pessoa proibida de caçar rãs também se entende as pessoas jurídicas ou somente as físicas; ou ambiguidades sintáticas tal como: a rã deve ser caçada em Ottawa ou basta possuir uma rã com uma tíbia inferior a cinco centímetros mesmo que ela tenha sido capturada em qualquer outro lugar do mundo para incidir nas sanções da lei? E a pessoa que a possui, também deve estar em Ottawa? Da mesma forma que o exemplo canadense citado por Endicott, é possível imaginar um exemplo bem mais próximo da nossa realidade e que também apresenta um grave problema de indeterminação. No Estado de Mato Grosso do Sul, o ingresso nos quadros da polícia militar depende sempre de prévia aprovação em concurso público no qual se exige que o candidato, além do preenchimento de outros requisitos16 não possua “qualquer tatuagem permanente no corpo, mesmo estilizada, que possa expressar ou sugerir qualquer ligação com gangues, organizações criminosas ou de estímulo à violência e ao uso de drogas; que seja contrária aos princípios e aos valores da liberdade e da democracia, à moral, à lei, à ordem e aos bons costumes ou, cujo 15 Endicott (2006: 31). 16 Conforme artigo 8° da lei estadual n.3.808/09. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 19 conteúdo, constitua-se em apologia à conduta delituosa ou que ofenda os deveres e as obrigações militares, a ética, a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe” (art. 8°, I, ‘p’ da lei estadual n° 3.808/09). Assim, em atenção à lei estadual é possível imaginar diversas hipóteses em que a restrição de acesso a cargo público aos possuidores de tatuagens seja indeterminada no Estado de Mato Grosso do Sul, ou mesmo, casos em que a lei não delimite com exatidão o alcance da restrição imposta ao princípio constitucional da ampla acessibilidade aos cargos públicos17. Em uma primeira analise é fácil perceber que a finalidade da lei é coibir o acesso à carreira policial daquelas pessoas que se utilizem do próprio corpo para fazer apologia a condutas criminosas ou mesmo que se declarem integrantes de grupos criminosos por meio da tatuagem corporal, ou seja, pretende a lei manter uma coerência entre os valores éticos institucionais da polícia militar e o seu corpo de profissionais, vedando o acesso à instituição policial daquelas pessoas que, por convicção ou demonstração de afetos, aparentemente não comunguem dos mesmos princípios. Dessa forma, é simples imaginar que um candidato que tenha tatuado em seu corpo um emblema do “comando vermelho” ou do “primeiro comando da capital” deveria ser impossibilitado de ingressar na polícia nos termos da restrição prevista na lei estadual, eis que o estímulo e a vinculação à violência desses grupos criminosos é evidente18. No entanto, em outra situação hipotética projetada, em que um determinado candidato tenha tatuado em seu corpo uma sereia, ou uma cruz, ou uma teia de aranha, ou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ou mesmo de Jesus, nessa hipótese seria, ou deveria ser, aplicável a lei estadual que impede o acesso ao cargo público em virtude de alguma apologia ao crime? Em princípio não, uma vez que essas tatuagens representam figuras mitológicas ou mesmo bíblicas que procuram identificar serenidade, doçura, 17 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; 18 É de domínio público que tanto o comando vermelho quanto o PCC são organizações com finalidades criminosas. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 20 harmonia e tranquilidade de seu possuidor, no entanto, ao mesmo tempo em que possuem essa simbologia também podem representar e identificar uma personalidade criminosa ou os delitos cometidos por seu possuidor19. Só pelos exemplos citados podemos constatar que o símbolo tatuado no corpo por si só não é capaz de identificar se a pessoa está fazendo alguma apologia ao crime ou incitando a violência, eis que a cruz poderia tanto representar uma pessoa perigosa e, portanto, incitando a violência, quanto poderia ser utilizada como expressão de religiosidade. Assim, quando a tatuagem estará sugerindo que o candidato ao cargo policial possui ligação com uma gangue? Ou mesmo que estimule a violência ou faça apologia ao uso de substâncias entorpecentes? Quando ofende a democracia, a moral, aos costumes ou o pundonor policial? Como deveria ser encarada a situação de alguém fanático pelas artes militares que tatuou uma metralhadora no peito? Ele faz apologia à violência ou exalta o poder e a potência da instituição? De certo que inumeráveis indeterminações que enriquecem e muitasvezes dificultam o processo interpretativo surgem das formulações jurídicas criadas por indeterminações linguísticas existentes nas próprias regras jurídicas, tais como as decorrentes de ambiguidades léxicas ou ambiguidades sintáticas, da textura aberta das normas, da vagueza do texto, da imprecisão da norma, dos unfinished standards20 ou mesmo do contexto em que se situa a norma e seus intérpretes. A tais indeterminações linguísticas e semânticas devem ser somadas as indeterminações jurídicas do próprio e complexo sistema normativo (discrepâncias normativas e contradições normativas), como o conflito de normas ou o conflito aparente de normas. Por exemplo, teria o Estado de Mato Grosso do Sul competência legislativa para criar uma regra restritiva de acesso a cargo público de natureza militar? Em se tratando de competência legislativa 19 Na linguagem dos presidiários, a sereia representa uma pessoa condenada pelo crime de estupro, a cruz representa uma pessoa perigosa, Jesus um latrocida, teia de aranha significa que se trata de um matador de cúmplices e a Nossa Senhora representa um latrocida ou estuprador dependendo da sua localização no corpo da pessoa. disponível em: <http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/monografia cezinando.pdf> 20 Na tradução em espanhol unfinished standards aparecem como estándares inconclusos. Endicott (2006: 88). No Brasil, unfinished Standards indicam os “conceitos jurídicos indeterminados” que serão melhor abordados no decorrer deste trabalho. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 21 concorrente (art. 22, XXI, CRFB) a lei estadual n° 3.808/09 poderia aumentar, diminuir ou criar exigências diversas daquelas previstas na lei nacional21 (lei 6.880/80 – Estatuto dos Militares)? Inclusive, os candidatos ao cargo militar ainda enfrentariam incertezas relativas às imposições sobre tatuagens que não são nem linguísticas e nem jurídicas, tal como a discricionariedade do administrador ao aplicar a norma quando da realização do próprio certame ou mesmo o seu desconhecimento quanto às características desabonadoras no símbolo tatuado. Tais indeterminações sem natureza linguística existem porque a vida e os sistemas jurídicos são complexos, sendo mais complicado de eliminá-las do que as indeterminações linguísticas, uma vez que, em virtude da capacidade das pessoas de selecionar suas palavras é possível conceber ao menos que as indeterminações linguísticas poderiam ser erradicadas ou minoradas com o uso mais cuidadoso da própria linguagem, como na hipótese das rãs, na qual o legislador canadense procurou se valer de um qualitativo métrico para definir a regra. No caso sul-mato-grossense das tatuagens, poderia o legislador ter utilizado expressões mais objetivas para vedar o ingresso na carreira militar daqueles candidatos que possuíssem “tatuagens com mais de 10 centímetros” ou “tatuagens de caveira”, ou “de sereia”, ou outras formas mais objetivas, em vez de termos genéricos como “bons costumes”, “moral”, “princípios e aos valores da liberdade e da democracia”, “ética”, “honra”, “pundonor” ou “decoro”, para que a lei gerasse menos dúvidas. No entanto, ainda que o legislador do ente federado fosse mais cuidadoso, mesmo assim, fracassaria no intuito de eliminar a indeterminação do texto, eis que, novos questionamentos poderiam surgir como, por exemplo, e se a tatuagem 21 Aqui se utilizou a expressão lei nacional em atenção à diferenciação criada pela doutrina pátria a respeito de lei nacional e lei federal: [...] “O Congresso Nacional é órgão legislativo do Estado Federal e da União. Na primeira qualidade edita leis nacionais, na segunda, leis federais. As leis nacionais superam e transcendem às circunscrições políticas internas. As leis federais, ao lado das estaduais e municipais, circunscrevem-se à área de jurisdição da pessoa a que se vinculam e somente obrigam os jurisdicionados stricto sensu de cada qual. que a lei federal. Em outras palavras, a Constituição confere à lei nacional amplíssimo poder para regular matérias específicas em todo o território nacional, abstração feita da sujeição dos destinatários da norma, quer à União, quer a Estados e Municípios. Já a lei federal, embora editada pelo mesmo órgão, onera, circunscritamente, somente os jurisdicionados da União.” [...]. Geraldo Ataliba (1968: 94). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 22 tiver 10 cm de um lado e 5 cm de outro, ou mesmo se a tatuagem possui uma caveira mas de forma encoberta? Com esse exemplo pretende-se demonstrar tão somente que mesmo que o legislador procure ser mais cuidadoso na escolha de suas palavras, ainda assim, o texto fruto do procedimento legislativo remanescerá sempre de frestas interpretativas passíveis de infindáveis digressões teóricas a respeito de sua interpretação, isto porque a vagueza é uma característica essencial das expressões linguísticas que compõem a linguagem e como corolário do próprio direito. Nesse sentido, é certo que a vagueza pode ser reduzida, não suprimida. Assim, por ser a indeterminação uma característica própria da linguagem e do direito que não pode ser eliminada, é de fundamental importância compreender como funciona o processo interpretativo, pois a norma jurídica a ser aplicada aos casos concretos será fruto desse procedimento. Ocorre que, antes de ingressar no conceito de textura aberta e no bojo da dissertação é importante delimitar qual a extensão da zona de indeterminação de um texto, ou seja, para uns como Jacques Derrida, todas as nossas pré-concepções sobre a linguagem podem ser acertadamente “descontruidas”, razão pela qual, ao fazer o uso das palavras não haveria que se pensar na ocorrência de um núcleo de certeza de significação dessa linguagem uma vez que ela, por ser o “fruto de construções culturais que sistematicamente foram concebidas como se verdades absolutas fossem”22, bastaria a alteração desses paradigmas culturais para que o significado da linguagem seja discrepante. O filósofo Friedrich Waissman ensina que o uso da linguagem em determinadas ocasiões pode descrever com exatidão ou alcançar de forma exata aquilo que se está fazendo menção, no entanto, em outras ocasiões pode ocorrer uma imprecisão ou dúvida sobre aquilo que as nossas palavras pretendem descrever, nestes casos, está-se diante da textura aberta da linguagem. H.L.A. Hart adota esse conceito empregado para a linguagem natural como um todo, demonstrando que no direito, assim como na linguagem, regras podem ser aplicadas sem maiores problemas em determinados casos particulares, enquanto em outros, sua aplicação será problemática exigindo a utilização de uma argumentação que escapa a mera referência às regras legais23. 22 Leal (2009 : 5). 23 Struchiner( 2002 : 7). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 23 1.3 A zona de penumbra na linguagem A teoria jurídica do século passado popularizou a metáfora, segundo a qual a indeterminação linguística deve ser concebida como uma zona de penumbra, uma zona marginal entre a clara aplicabilidade de uma determinada expressão e a sua clara inaplicabilidade. Segundo Endicott24, muito embora tradicionalmente se tenha atribuído a construção dessa metáfora a H.L.A. Hart, é certo que antes dele Benjamin Cardozo já havia escrito, em 1921, a respeito da “zona marginal – a penumbra onde se inicia a controvérsia” e, Glanville Williams já havia publicado um trabalho em que expunha os casos marginais e as incertezas do direito25. Diante dessa zona de penumbra em que não se reconheceria a aplicabilidade ou a inaplicabilidade patente da lei, em que a disposiçãolegal não ofereceria um único significado possível, caberia ao magistrado, nos limites de seu arbítrio, atuar tal qual um legislador, definindo se a situação encontrar-se-ia abrangida no campo de incidência da lei ou não. Para H.L.A. Hart26, a textura aberta da linguagem produz núcleos de significado certo contornados por áreas de penumbra, ocorre que, muitos teóricos do direito têm insistido que a ideia de Hart acaba por atribuir falsamente às palavras uma espécie de certeza, de completude, de imunidade à variação, o que seria equivocado. “[...] Desde que Hart popularizo la metáfora del núcleo y de la penumbra, muchos teóricos Del Derecho han insistido em que la idea atribuye falsamente a las palabras una especie de certeza, completitud, independencia del contexto, o inmunidad al cambio, y que la indeterminación, sin embargo, es más que um magen de poca importancia. Ellos no han cuestionado la noción de penumbra, pero sí la de certeza.”27 24 Endicott (2006: 32). 25 Segundo Williams: “[…] Dado que el derecho tiene que ser expresado en palabras, y las palabras tienen una penumbra de incertidumbre, los casos marginales están destinados a acontecer”. Williams (1945) apud Endicott, (2006: 33). 26 Endicott (2006 : 33). 27 Endicott (2006 : 33) DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 24 Endicott refuta tais teorias de indeterminação radical e da desconstrução, ao asseverar que elas acabam por refutar a si mesmas, quando prescrevem que “ningún enunciado significa nada, incluyendo éste”28, de modo que tais teorias acabam por não explicar nada a respeito do significado - “la desconstrucción no dice nada sobre el significado” 29. Dennis Patterson e Stanley Fish descrevem que toda a aplicação do direito requer uma compreensão e de que somente se compreende quando se interpreta30, assim, para Fish, tudo que uma pessoa faz em relação a expressões de outras pessoas decorre de uma interpretação: “[...] las comunicaciones de toda clase están caracterizadas exactamente por las mismas condiciones – la necessidad del trabajo interpretativo, lo inevitable de la perspectiva, y la construcción por actos de interpretación, las intenciones, las características y las porciones del mundo”.31 Ocorre que, não é porque toda realização do homem em relação à outra pessoa ou mesmo porque todas as questões jurídicas reclamem alguma interpretação que se perpetra a ideia de que qualquer compreensão ou de que qualquer interpretação deve ser validamente aceitável. Para exemplificar tal afirmação pode-se partir da interação entre um determinado motorista e um semáforo de trânsito, na qual incumbirá a ele interpretar o significado da cor que estiver aparecendo na lanterna conforme seus conhecimentos prévios, não podendo ele responder ao sinal acertadamente se não fizer um exercício mental lógico-dedutivo de interpretação do signo no semáforo. Assim, aparecendo o signo vermelho deve o motorista concluir que ele deve parar; signo amarelo – atenção e signo verde - siga32. Há evidentemente um processo interpretativo realizado pelo motorista/intérprete, no entanto, não é porque esse motorista interpreta o signo 28 Endicott (2006 : 36) 29 Endicott (2006 : 36) 30 A teoria de Patterson é denominada “Interpretive Universalism and Contemporary Legal Theory”. Patterson (1993) apud Endicott, (2006: 36). 31 Endicott (2006 : 37) 32 Endicott (2006 : 40/41) DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 25 constante no semáforo que ele pode chegar a qualquer conclusão, pois do contrário ele não estaria compreendendo o próprio signo33. Nesse caso, embora seja evidente que existe uma interpretação realizada pelo motorista (associar o sinal vermelho à determinação de parar), não se pode dizer o mesmo em relação à reação (compreensão esperada) que o motorista deve ter ao fazer tal associação (sinal vermelho = pare; sinal vermelho ≠ siga) eis que não há qualquer possibilidade de escolhas diante do signo “vermelho”. Segundo esse exemplo, é possível ainda afirmar que só havia uma hipótese interpretativa admissível ao motorista (vermelho – pare) e que o aspecto determinado seria a inadmissibilidade de todas as demais interpretações (ex. vermelho – siga ou vermelho - atenção), de modo que, nenhuma hermenêutica dos signos do semáforo seria necessária e que compreensão desse sinal luminoso não deixava nenhum espaço para interpretação, pois não havia quaisquer opções quanto ao significado do signo no semáforo: “La ‘interpretación’ parece ser um término útil (y a menudo se utiliza) para referirse a opciones que tenemos em cuanto al significado de una expressión o de un texto. Pero aun cuando podamos tener opciones en el momento de conducir havia una señal de ‘stop’(e.g., la elecciónde si hay de pararse), es claro que no hay ninguna opción que evaluar acerca de su significado. De acuerdo a este empleo del término ínterpretacción, interpretamos cuando podemos reformular una regla en el modo en que clarifica su significado. Pero no interpretamos señales de ‘stop’ ”.34 Assim, compreender não é sinônimo de interpretar e nem toda aplicação do direito sempre corresponde a uma interpretação, razão pela qual se apresenta como frágil a associação realizada por Levinson35 em sua teoria da indeterminação baseada no pragmatismo de Richard Rorty. Endicott36 resume assim o pragmatismo de Rorty: “Rorty piensa que un interprete ‘simplemente moldea um texto de una forma que servirá a sus proprios propositos’. Y él insiste em que no hay ninguma distinción entre esa actividad y la compreensión de um texto” 33 Tal conclusão deve ser tirada de forma aparente, pois sem analisar o contexto e a intenção do motorista não poderíamos concluir se ele tinha a vontade de contrariar a indicação do semáforo, analisando as circunstâncias, o intérprete pode chegar à conclusão de que o motorista fez a interpretação correta (vermelho = pare), no entanto, por outras razões decidiu ignorar o comando. 34 Endicott (2006 : 39) 35 Levinson (1982), apud (Endicott, 2006 : 39) 36 Endicott, (2006 : 39, 41). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 26 Para Levinson, toda interpretação é tão boa quanto qualquer outra37, ocorre que, tal tese tende a sustentar que todas as aplicações de expressões linguísticas corresponderiam a interpretações e que todas as interpretações (conclusões) seriam possíveis, contrapondo-se assim à teoria de H.L.A. Hart em que a textura aberta da linguagem possui tanto zonas de penumbra (incerteza de significado a priori passíveis de serem interpretadas) quanto zonas convencionalmente ajustadas como de certeza de significação38. 1.4 As fontes da indeterminação A linguagem por si só não pode ser considerada como indeterminada conforme apresentado pelas teorias interpretativistas radicais em que o sentido do texto aparentemente pode significar qualquer coisa tal como descrito por Rosenfeld e Derrida. De fato, há uma textura aberta na linguagem, uma verdadeira zona nebulosa que não franqueia um significado exaustivo ou completo de seu conteúdo, existindo assim sempre espaços inconsistentes ou duvidosos quanto à significação das palavras, o que não importa dizer que uma determinada palavra quando empregada em certa ocasião possa significar qualquer coisa como querem os autores mais radicais. Da mesma forma que a linguagem geral, também as regras jurídicas, por serem o fruto do legislador humano, e transmitidaspela linguagem cuja capacidade de orientação e significação são intrinsecamente limitadas, também acabam sendo imprecisas. Se as regras são formadas por palavras e as palavras são peculiarmente imprecisas daí que as regras também apresentam uma indeterminação latente. Assim, as indeterminações linguísticas ou não surgem e são relevantes para o Direito porque a vida e os sistemas jurídicos são complexos, de modo que, em qualquer campo da existência e mais precisamente no terreno das normas, 37 “toda interpretación es tan buena como cualquier otra”. Levinson apud Endicott (2006, 41) 38 A textura aberta na visão de Hart será tratada em tópico subsequente. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 27 sempre haverá um limite que a linguagem geral pode oferecer de orientação para as pessoas. É certo também que os legisladores humanos não podem prever todas as combinações possíveis de circunstâncias que o futuro pode trazer, no entanto, devem formular regras de controle social para serem utilizadas nesse futuro potencialmente imprevisível e ainda expressar tais regras por meio de palavras. Dessa forma, como as regras são elaboradas com o uso de palavras que possuem um núcleo de significação fixo e uma ‘textura aberta’ de significação periférica (zona de penumbra), inevitavelmente, alguns cenários da vida ocorrerão e serão enquadrados dentro da zona de penumbra em que não é possível determinar com segurança se a palavra se aplica ou não. Comumente as pessoas se utilizam da expressão “vago” para descrever o uso da linguagem de modo incompleto ou carente de informações, tais como insinuações, ameaças, promessas ou enunciações. Vago, nesse contexto de uso, significa que faltou alguma especificação útil para a correta ou integral compreensão do intérprete. A vagueza no universo das regras jurídicas está associada à existência de casos marginais de aplicação da regra, ou seja, na linguagem geral “vago” consiste em uma enunciação carente de informação, no Direito, “vago” é uma regra que comporta “casos marginais de aplicação”. Mark Sainsbury conceitua a “vagueza” da seguinte forma: “una palavra vaga admite casos marginales, casos em los cuales no sabemos si se aplica la palabra o no, aun cuando tengamos todos los tipos de información que normalmente consideraríamos suficiente para decidir el asunto39 Já H.P. Grice apresenta a seguinte definição de “vagueza”: “decir que una expressión es vaga (en un sentido amplio de vago) es probablemente, más o menos, decir que hay casos (actuales o posibles) em los que uno simplesmente no sabe si hay que aplicar o no una expressión y el hecho de que uno no sepa no se debe a la ignorancia de los hechos””40 Assim, é certo que a incerteza quanto ao significado presente nos casos marginais deve corresponder à indeterminação na aplicação de uma expressão (no caso das regras jurídicas de uma lei) não podendo ser confundida com uma 39 Sainsbury (1995) apud Endicott (2006 : 66). 40 Grice (1989) apud Endicott (2006 : 65/66). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 28 ignorância do intérprete quanto ao significado da expressão. Por exemplo, a palavra “bald” (calvo) não é uma expressão vaga simplesmente porque uma pessoa que está aprendendo o idioma inglês não sabe se deve aplicá-la a um homem que não tenha cabelo, no entanto, se a pessoa conhece a aplicação correta da palavra “bald”, adjetivando um homem desse modo, será necessário avaliar os aspectos relevantes aos paradigmas de sua aplicação (analisar o contexto, a forma de utilização, os parâmetros comparativos utilizados, dentre outros). Para Timoty Endicott “la vaguedad em el Derecho genera indeterminación jurídica”41 e uma determinada expressão será considerada vaga quando comportar casos marginais de aplicação e interpretação. Portanto, a ocorrência de indeterminação na aplicação das regras deve ser encarada como uma consequência natural de expressões carentes de informação. Dessa forma, afastada a hipótese da ignorância, analisar a indeterminação consiste em examinar a vagueza consoante as diversas classes de linguagem que se encontram bem adaptadas aos seus usos42, e, no plano jurídico, consiste em analisar os casos marginais (casos de penumbra ou fronteiriços) criados pela indeterminação semântica da linguagem utilizada nas regras jurídicas43. 41 Endicott (2006 : 67). 42 Timoty Endicott aponta várias fontes da indeterminação jurídica ao assinalar que a vagueza no direito é originária de fenômenos linguísticos que compreendem a sua própria formação. Assim, a indeterminação no direito ocorrerá sempre que uma regra apresentar algum componente “vago” que poderá se manifestar em alguma das seguintes “espécies de vagueza”: a textura aberta, a imprecisão, a incompletude, a incomensurabilidade, a imensurabilidade, a contestabilidade, a ambiguidade, os unfinished standards e a vagueza pragmática. Neste trabalho, será dado enfoque principalmente na problemática que recai sobre a vagueza decorrente da textura aberta das normas (item 5.1), quanto às outras fontes da indeterminação arroladas não serão abordadas diretamente no curso deste trabalho, no entanto, podem vir a ser analisadas de forma subsidiária e complementar como reforço de argumentação ou como nota explicativa. Endicott (2006 : 65/97). 43 Quanto à indeterminação semântica, não se trata de um desconhecimento sobre as circunstâncias que compõem o caso jurídico, mas sim de uma incapacidade de classificar esses mesmos fatos dentro da linguagem previamente fornecida pelo Direito. Nessas circunstâncias, a solução a ser encontrada pelo juiz não poderá estar embasada somente em nossas convenções linguísticas já que estas se revelarão insuficientes para classificar os fatos do caso em questão, incumbindo ao juiz, nesses casos marginais, fazer uso de outros critérios como será exposto no decorrer desta dissertação. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 29 1.4.1 A textura aberta Hart introduziu na filosofia do Direito o termo “textura aberta” referindo- se à presença de um núcleo de certeza circundado por uma zona de incerteza de significação da linguagem ordinária. Para isso, Hart empregou algumas das lições de Friedrich Waismann44 sobre a linguagem geral, aplicando-a ao direito, de modo que a textura aberta seria uma propriedade tanto de termos45 quanto de sentenças e regras. Sua inquietação decorre das dificuldades de aplicação de uma regra geral a um determinado caso concreto, tendo em vista a possibilidade da coexistência de regras contraditórias no mesmo ordenamento jurídico, da existência de uma linguagem vaga e/ou ambígua na confecção das regras pelo legislativo ou até da absoluta inexistência de qualquer regramento previsto para algum caso específico. Assim, a ocorrência de casos que não estivessem antecipadamente previstos pelo ordenamento jurídico criaria um impasse, entre a obrigação46 do 44 Segundo Endicott: “Hart tomó prestado el término de Friedrich Waissmann, quien lo usó para describir una característica del significado de palabras como ‘silla’, palabras que Wittgenstein había destacado, señalando: que ‘la aplicación de una palabra no está sujeita en todas partes por reglas’. No hay respuesta a una pregunta del tipo de si la palabra ‘silla’ se aplica a algo que se parece a otras sillas, solo se puede decir que desaparece y reaparece de vez en cuando”. Endicott, (2006: 74). 45 Segundo Struchiner: “[...] por mais que o fornecimento do método de verificação possa auxiliarno processo de aprendizagem do significado da afirmação sobre um objeto material, o significado nunca vai ser esclarecido completamente e de forma definitiva porque os termos empíricos que compõem as afirmações são dotados de uma textura aberta que impossibilita que as afirmações sejam verificadas de forma conclusiva. Hart percorre o caminho parecido e provavelmente inspirado nas investigações de Waissmann em sua análise das regras. Apesar de Hart não colocar o problema nesses termos, o que ele pretende saber é se as regras podem ser verificadas de forma conclusiva. Assim, como Waissmann investiga a questão do método de verificação para saber em que situações uma afirmação é verdadeira ou pode ser usada com segurança, Hart pretende perquirir em que situações as regras são verdadeiras, ou, de maneira mais precisa, em que situações a regra pode ser aplicada com certeza” in Struchiner (2002: 34). 46 No direito romano era admitido que o pretor (juiz) pudesse deixar de julgar nos casos em que as provas das alegações não estivessem claras. Não convencido da realidade dos fatos podia simplesmente jurar sibi non liquet exonerando-se de julgar a causa. No direito processual brasileiro, em decorrência da distribuição do ônus probatório, não há possibilidade de o magistrado se desincumbir de julgar, alegando que os fatos não restaram comprovados, de modo que, se não restar convencido pela alegação de qualquer das partes deverá assim mesmo proferir uma decisão, levando em consideração os fatos que não restaram eficientemente comprovados. Arenhart (2006: 30) DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 30 magistrado de encontrar uma solução ao caso concreto e a denominada lacuna do direito. Tais dificuldades de aplicação resultam nos chamados “hard cases” (casos difíceis) em que as regras aplicáveis não demandam de uma forma lógica, apenas uma única resposta correta. Segundo Hart, quando as regras, por elas mesmas, não são capazes de fornecer uma única resposta correta está-se diante dos casos difíceis, cabendo ao juiz apelar para o uso de seu poder discricionário47 para resolver o caso concreto. Hart expõe dois fenômenos que produzem as denominadas lacunas do direito: a regra de reconhecimento48 e a textura aberta da linguagem. O primeiro fenômeno não será abordado no presente trabalho, já o segundo consiste em seu cerne. Segundo Hart, a textura aberta da linguagem faz com que as regras apresentem sempre a possibilidade de uma nebulosidade, de uma zona cinzenta de aplicabilidade ou uma penumbra de dúvida49 em que não é possível precisar com clareza se a regra é aplicável ou não. 47 Será analisado mais adiante no decorrer da dissertação. 48 Segundo Struchiner: “[...] De acordo com Hart, a regra de reconhecimento é a regra fundamental para distinguir um direito primitivo, ou uma situação pré-jurídica, de um sistema jurídico desenvolvido. A função da regra de reconhecimento é determinar quais são as regras legais válidas de uma comunidade. ‘A regra de reconhecimento estabelece as condições necessárias e suficientes para que uma norma possa contar como parte do direito de uma comunidade’ (Coleman 1999: 249). Para que uma regra seja considerada uma regra válida e, consequentemente, uma regra do sistema jurídico, é necessário que ela passe em todos os testes exigidos pela regra de reconhecimento. Sendo assim, é concebível, que possa surgir um caso particular que não esteja regulado por nenhuma das regras que satisfizeram os testes exigidos pela regra de reconhecimento. A regra de reconhecimento comporta um conjunto de regras finito e quando o caso concreto que pode surgir não estiver regulado em nenhuma destas regras, então haverá uma lacuna do direito. Nesse caso, o juiz não poderá recorrer a uma regra legal para a solução da disputa, mas terá que aplicar critérios que estão além das regras legais válidas. Dito tudo, pode-se derivar que Hart considera o direito um sistema de regras. As regras que satisfizerem a regra de reconhecimento são exaustivas do direito e sempre que elas não são capazes de resolver um caso legal, deve-se recorrer a elementos extralegais”. Struchiner (2002: 32). 49 Hart utiliza em sua clássica obra ‘O conceito de direito’ as expressões ‘núcleo de certeza’ e ‘penumbra de dúvida’ para caracterizar as situações em que a aplicabilidade da regra será clara e as outras ocorrências em que será problemática: “[...] Todas as normas envolvem o reconhecimento ou classificação de casos particulares como exemplo de termos gerais e, no que diz respeito a tudo que nos dispomos a chamar de norma, é possível distinguir casos claros, nucleares, aos quais ela certamente se aplica, de outros, em que há razões tanto para se afirmar quanto para se negar que a mesma seja aplicável. Nada pode eliminar essa dualidade entre um núcleo de certeza e uma penumbra de dúvida quando procuramos acomodar situações particulares ao âmbito das normas gerais. Isso confere a todas as normas uma margem de vagueza ou ‘textura aberta’, o que pode afetar tanto a norma de reconhecimento que especifica critérios últimos usados para a identificação do direito quanto uma lei especifica.” (2009 : 158). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 31 Nesse sentido Carrió: “Respecto de todas ellas vale la siguiente metáfora esclarecedora. Hay un foco de intensidad luminosa donde se agrupam los ejemplos típicos, aquellos frente a los cuales no se duda que la palabra es apicable. Hay una mediata zona de oscuridad circundante donde caen todos los casos en los que no se duda que no lo es. El tránsito de una zona a otra es gradual; entre la total luminosidad y la oscuridad total hay una zona de penumbra sin límites precisos. Paradójicamente ella no empieza ni termina en ninguna parte, y sin embargo existe. Las palabras que diariamente usamos para aludir al mundo en que vivimos y a nosotros mismos llevan consigo esa imprecisa aura de imprecisión. […] Esta característica de vaguedad potencial que los lenguajes naturales necesariamente exhíben ha sido llamada por Waismann ‘la textura abierta del lenguaje’.”50 E completa: “Las palabras que aperecem en las normas jurídicas para aludir a hechos, sucesos o actividades humanas, y proporcionar pautas o criterios para guiar o juzgar estas últimas, tienen, pues, una zona de penumbra, es decir, son actual o potencialmente vagas.”51 Dessa forma, existem casos simples nos quais os termos gerais não exigem qualquer atividade interpretativa, inclusive quanto aos casos familiares, “que reaparecem continuamente em contextos semelhantes, a respeito dos quais existe um juízo consensual quanto à aplicabilidade dos termos classificatórios”52. No entanto, quanto mais situações fáticas diferentes ocorrerem mais possivelmente a nova situação individual se afastará do “núcleo de certeza”, de modo que a variação dos casos familiares, cuja aplicabilidade geralmente é incontroversa se reverterá gradualmente para a “penumbra de dúvida” de aplicabilidade da regra, tal como um ruído sonoro se afastando da fonte - quanto mais próximo, mais convicção se tem daquilo que se escuta e quase não há controvérsia quanto ao conteúdo, na medida em que se afasta da fonte, a convicção do ouvinte diminui na mesma intensidade em que aumenta a controvérsia quanto ao significado de seu conteúdo. Assim, existem casos familiares em que a aplicabilidade da regra geral ocorre sem dúvidas, mesmo que a hipótese regulada na norma não seja idêntica ao 50 Carrió (1979: 33-35). 51 Carrió (1979: 55). 52 Hart (2009 : 164). DBD PUC-Rio - CertificaçãoDigital Nº 1012881/CA 32 caso em questão, uma vez que a variação estará incluída no “juízo consensual”53 e as variações da linguagem admitem sem maiores problemas tais adaptações. Ocorre que, na medida em que os novos casos fáticos surgidos se afastarem do “núcleo de certeza” – termo geral classificatório da regra, menor será o consenso em torno de sua aplicabilidade, até o momento em que haverá um consentimento em torno de sua inaplicabilidade. É que a decisão sobre a aplicação da regra em um determinado caso específico incide no ponto sobre o significado do termo geral classificatório previsto na regra. Assim, se a norma proíbe o ingresso de veículos no parque, a sua aplicação dependerá da classificação fornecida pelo intérprete ao significado de “veículo” (carros, caminhões e motocicletas), vedação que será consensualmente estendida aos casos familiares54 (tratores, guindastes, retroescavadeiras), no entanto, sua aplicação será controvertida em relação às situações em que os termos gerais das regras extrapolarem suas ocorrências ordinárias, cabendo ao magistrado valer-se de seu poder discricionário e legislar para o caso concreto, tal como enunciado por Hart acerca das bicicletas, dos patins ou dos carros elétricos de brinquedo. Vejamos nas palavras de Hart: “Qualquer que seja a estratégia escolhida para a transmissão de padrões de comportamento, seja o precedente ou a legislação, esses padrões, por muito facilmente que funcionem na grande massa dos casos comuns, se mostrarão imprecisos em algum ponto, quando sua aplicação for posta em dúvida; terão o que se tem chamado de ‘textura aberta’. Até aqui temos apresentado isso, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana; a incerteza nas zonas limítrofes é o preço a pagar pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação referente a questões factuais.”55 Portanto, os padrões de comportamento transmitidos, quer por meio de precedentes, ou mesmo da legislação positivada, poderão ser imprecisos em 53 Núcleo de certeza do texto normativo objeto de interpretação em que não se instala qualquer dúvida sobre o seu conteúdo ou a sua aplicação. A certeza de significação ocorre porque as regras são formadas a partir de termos gerais classificatórios (das regras jurídicas e da linguagem) que comportam experiências exaustivas e são utilizadas para os casos recorrentes, assim, o “juízo consensual” consiste na aplicação de uma regra a um determinado caso recorrente onde inexiste dissenso sobre o significado da expressão. Tal ocorre no exemplo de Hart sobre a vedação de veículos no parque, situação em que não há dúvidas quanto a vedação de acesso de carros ou motocicletas em suas dependências. 54 As semelhanças de família e a sua relevância para a dissertação será melhor tratada no último capítulo. 55 Hart (2009 : 166). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 33 algumas circunstâncias limítrofes de sua aplicação, sempre que os termos gerais classificatórios contidos nas regras extrapolarem suas ocorrências ordinárias, situação em que caberá ao magistrado valer-se de seu poder discricionário e legislar para o caso concreto. 1.4.2 Do poder discricionário dos juízes diante dos hard cases Todo o arcabouço jurídico de uma determinada sociedade é construído e pensado por seres humanos, assim, no sistema romano-germânico (civil law) os responsáveis por sua criação são as pessoas que compõem o órgão legislativo. Evidentemente, que tais pessoas não podem deter o conhecimento de todas as combinações possíveis de circunstâncias fáticas que podem ocorrer no futuro. É simplesmente impossível para eles tentar imaginar o amanhã para de antemão construir uma regra a ser aplicada em situações imprevisíveis. Então, para proteger determinados bens e valores jurídicos socialmente relevantes das variações no tempo, o poder legislativo acaba por estabelecer padrões gerais de regulamentação que deverão ser integrados posteriormente na medida em que os casos concretos ocorrerem e exigirem uma nova resposta para a efetiva tutela desses valores jurídicos. O poder legislativo estabelece padrões gerais de regulamentação para que as regras sejam duradouras, isso porque não se pode antever todos os casos futuros e suas variações, devendo legislar genericamente os casos recorrentes quando então a regra será aplicada sem maiores problemas. Trata-se do uso de termos gerais classificatórios da regra jurídica (e, da linguagem) que comportam experiências exaustivas e são utilizadas para os casos recorrentes, contudo, na medida em que as circunstâncias fáticas do mundo vão alterando e incluindo novas experiências, não se saberá se a norma as terá alcançado, como no exemplo da proibição de ingresso de veículo no parque, não se saberá de antemão se a vedação também inclui o carro elétrico de brinquedo ou os patins. “Às vezes se reconhece desde o início que, na esfera a ser controlada judicialmente, as características dos casos individuais variarão tanto, em aspectos imprevisíveis mas socialmente relevantes, que o poder legislativo não pode criar antecipadamente e de modo útil normas uniformes a serem aplicadas caso a caso, DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 34 sem orientação oficial posterior. Consequentemente, aquele poder estabelece, para regulamentar essa esfera, padrões muito gerais, e delega então a um órgão normativo, conhecedor dos vários tipos de casos, a tarefa de formular normas adaptadas as suas necessidades específicas.”56 Ao estabelecer padrões gerais para as hipóteses recorrentes (casos normais), o legislador deixa em dúvida a sua aplicação aos casos que extrapolem as ocorrências ordinárias, isso porque, tal como exposto anteriormente, as regras são formadas por palavras, e o seu significado é formado por experiências prévias limitadas (não exaustivas), de modo que o seu uso anterior (no momento da confecção da norma) não delimitará todos os seus usos futuros, eis que as palavras sempre poderão apresentar uma textura aberta. Nessas hipóteses em que a imprecisão das regras acarretarem a insuficiência da descrição dos fatos (termos gerais classificatórios), está-se diante dos casos excepcionais ou hard cases, em que os legisladores não anteciparam a sua regulamentação. Nestes casos, caberá ao juiz utilizar seu poder discricionário57 para decidir o caso concreto, atuando como verdadeira autoridade normativa em tais circunstâncias58. Da mesma forma, nos sistemas jurídicos que transmitem os seus padrões normativos gerais por meio dos precedentes, as indeterminações e vaguidades na aplicação das regras aos casos concretos ocorrerão ainda com mais intensidade do que naqueles sistemas que somente se utilizem de regras editadas por um órgão normativo competente. 56 Hart (2009 : 169/170). 57 Como será exposto no próximo item deste trabalho, neste caso, fala-se em discricionariedade judicial como a liberdade de escolhas atribuída aos magistrados para, no caso particular, definir entre soluções juridicamente possíveis e igualmente justas aquela que resolve mais eficientemente a vagueza da regra. Por outro lado, na discricionariedade administrativa incumbe à autoridade exercer um ato de vontade realizando uma escolha dentro de um espaço de livre apreciação previsto na própria norma. 58 Dworkin talvez seja o mais célebre crítico do positivismo hartiano, sobretudo quanto à possibilidade conferida pelo jusfilósofo inglês a respeito do poder discricionário dos juízes para decidir os hard cases, isto é, aqueles casos em que em virtude da textura aberta das normas haverá incertezas entre a suaclara aplicabilidade e a sua clara inaplicabilidade, ou seja, uma zona de penumbra. Hart sustenta que o juiz deverá decidir discricionariamente tais hipóteses eis que o direito não é capaz de oferecer respostas para todos esses casos. Dworkin, ao contrário, sustenta posição diferente, em que os casos difíceis possuem uma resposta correta, apoiada no modelo do juiz Hércules. Hart ainda apresenta objeções às críticas de Dworkin em seu pós-escrito. Dworkin (ref. 2: 2007: 55/108) e (ref. 3 : 2005 : 175/266); Hart (2009 : 305/356). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 35 Hart justifica que a transmissão de normas gerais por meio de exemplos (precedentes), além de possuir a abertura semântica presente na “textura aberta” das regras jurídicas escritas que culmina na discricionariedade judicial para os casos difíceis, também acaba por conferir outra capacidade criadora ou legislativa aos juízes, que poderão, em um novo julgamento posterior, alterar a regra derivada do precedente, bastando criar exceções não consideradas anteriormente para restringir a regra extraída do precedente, criando assim, uma nova regra. “Por outro lado, os tribunais que julguem uma causa posterior podem chegar a uma conclusão oposta à contida no precedente; para tanto, restringem a norma extraída do precedente, admitindo exceções não consideradas anteriormente, ou no caso de terem sido consideradas, deixadas em aberto. Esse processo de ‘distinguir’ o caso anterior envolve a descoberta de alguma diferença juridicamente pertinente entre o caso passado e o atual, sem que a natureza dessas diferenças jamais possa ser determinada exaustivamente.”59 Para ilustrar tal situação pode-se imaginar uma regra formada a partir de por um precedente judicial que proíbe a entrada de animais em parques, porque, nesse caso, um senhor que levava suas ovelhas para pastar em um parque causava grandes tumultos e constrangimentos aos outros frequentadores. Posteriormente, em um novo caso, outro senhor caminhava com o seu cachorro no mesmo parque, interpelado judicialmente já que estaria violando a regra que proíbe o ingresso de “animais no parque” (termo geral classificatório - animais), sobrevém uma nova e discrepante decisão judicial, em que o precedente anterior acaba sendo relativizado e excepcionado sob o fundamento de que “cachorro é um animal de pequeno porte e que não causa tumultos, diferente das ovelhas”. Assim, a regra que veda o acesso de animais no parque passou a conter uma exceção – “não é permitida a entrada de animais no parque, salvo de pequeno porte”, regra que ainda poderia ser excepcionada por várias vezes na medida em que novas circunstâncias do mundo dos fatos aconteçam, como por exemplo, se alguém entrasse com um cachorro bravo no parque e fosse feita uma nova exceção à regra por algum tribunal, tal como, “não é permitida a entrada de animais no parque, salvo de pequeno porte e dócil”, e assim, sucessivamente, conforme ocorra a variação das circunstâncias fáticas. 59 Hart (2009 : 174/175). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 36 No entanto, tal como enunciado por Hart no pós-escrito, o poder discricionário60 que ele atribui aos juízes para a solução desses hard cases não é irrestrito ou ilimitado, de forma que os magistrados estarão sempre sujeitos a constrangimentos substantivos e deverão atuar como um legislador consciencioso agiria justificando de forma satisfatória as regras por eles criadas61. “É importante que os poderes de criação que eu atribuo aos juízes, para resolverem os casos parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam diferentes dos de um órgão legislativo: não só os poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos que estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que os poderes do juiz são exercidos apenas para ele se libertar de casos concretos que urge resolver, ele não pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou novos códigos. Por isso, os seus poderes são intersticiais, e também estão sujeitos a muitos constrangimentos substantivos. Apesar disso, haverá pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer decisão que seja correta e, para decidir os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso de forma arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e valores. Mas se ele satisfizer estas condições, tem o direito de observar padrões e razões para a decisão, que não são ditadas pelo direito e podem diferir dos seguidos por outros juízes confrontados com casos difíceis semelhantes.”62 Assim, feita a ressalva do “juiz consciencioso”, Hart conclui de forma enunciativa que a textura aberta é um fato incontestável, mesmo quando os tribunais tentam disfarçá-la. “[...] Está claro que casos comuns, como esses, vão surgir em qualquer sistema; por isso, o fato de os tribunais terem jurisdição para resolvê-los, escolhendo entre as alternativas que a lei deixa em aberto, parece ser um elemento – conquanto apenas implícito – das normas que regem a atividade judicial, mesmo que os tribunais pretendam maquiar essa escolha entre alternativas, apresentando-a como uma ‘descoberta’.”63 Nesse sentido, embora impondo algumas limitações, Hart outorga aos magistrados a tarefa de solucionar os “hard cases” decorrentes da textura aberta 60 Tal argumentação será retomada no terceiro capítulo da dissertação, quando será abordado o uso da analogia e dos casos de família. 61 No mesmo sentido Neil MacCormick: “Dentro da estrutura das regras cujo significado está suficientemente claro para alguns propósitos, há e deve haver um espectro considerável de discricionariedade para os juízes e outras autoridades. E, ao exercer essa discricionariedade, eles devem considerar, necessária e devidamente, fatores não jurídicos, tais como opiniões morais e políticas, conveniência e raison d’état, assim como o contexto geral das regras e princípios jurídicos, em busca da orientação que estes podem fornecer”. In MacCormick (2010: 43). 62 Hart (2009 : 352). 63 Hart (2009 : 198). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 37 do direito, sempre que os padrões gerais veiculados na norma ou nos precedentes extrapolem as ocorrências ordinárias. 1.5 Uma breve digressão: a textura aberta, a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados Conforme apresentado, a textura aberta da linguagem faz com que as regras apresentem uma penumbra de dúvida, em que não é possível precisar com clareza se a regra é aplicável ou não àquela determinada circunstância fática. Nessas situações (hard cases), em que há uma insuficiente descrição dos termos gerais classificatórios pela regra jurídica, incumbe ao magistrado solucionar o caso concreto, valendo-se de seu poder discricionário, atuando como verdadeira autoridade normativa, mas cuja decisão estará sempre condicionada a sua justificabilidade nos termos da argumentação e fundamentação apresentadas quando do seu julgamento64. Assim, embora a solução encontrada por Hart para a problemática que envolve a indeterminação normativa dos casos insólitos decorrente da presença da textura aberta, seja atribuir aos juízes o exercício de uma discricionariedade para a resolução desses casos, é certo que, tal mister não se confunde com a discricionariedade administrativa presente em grande medida no direito administrativo brasileiro que designa outra circunstância,qual seja, a possibilidade de o administrador público ter “um espaço de livre apreciação” ou uma margem de atuação legal diante de uma determinada situação concreta65. Assim, tal como descrito por Hart, a “discricionariedade” para a solução de um determinado caso judicial, no qual o preceito normativo de regência é incompleto ou vago, não se confunde com a discricionariedade administrativa em 64 Hart (2009 : 352). 65 Para Celso Antônio Bandeira de Mello, atos discricionários “seriam os que a administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou de decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles” Mello (2003 : 394). DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 38 que o próprio legislador faculta ao gestor público a possibilidade de realizar uma escolha dentro de certos parâmetros legais66. Discorrendo sobre os estándares inconclusos, Endicott apresenta um exemplo em que é fácil perceber a diferença entre um conceito “vago” e um conceito “discricionário”: “[...] estoy yendo a la tienda y me piden que compre plátanos. Pregunto cuántos debería comprar, y me dicen, ‘los suficientes’. Quizás ‘suficientes’ significa ‘la cantidad correcta’: la persona que me pidió los plátanos se resiste a solicitar una cantidad concreta, pero si me pide que tome em consideración las circunstancias relevantes para decir cuántos plátanos debo llevar a casa?Es vaga su petición? Podemos decir dos cosas: (1) no parece ser una petición precisa – el tomar em consideración las circunstancias relevantes para lo correcto de la cantidad, generalmente no exige que lleve a casa una cantidad determinada de plátanos (no obstante que podamos imaginar circunstancias que si exigen uma cantidad precisa); y (2) este ejemplo es diferente de una petición vaga ordinária tal como ‘aproximadamente media docena’ – en este segundo caso podemos decir que no se solicita um cantidad (vaga o de outro tipo), pero sí se solicita que elijamos una cantidad. El decir ‘suficientes’ es como decir ‘tú decides cuántos’. Pero es diferente de decir ‘los que quieras’ – la petición misma exige que consideremos lo que es apropriado.”67 O exemplo é preciso ao diferenciar uma enunciação vaga (“compre uma quantidade suficiente de bananas”) de uma proposição discricionária (“compre aproximadamente meia dúzia de bananas”), na medida em que, no primeiro caso, caberá à pessoa realizar uma interpretação do conceito indeterminado “suficiente”, inferindo-o em relação ao contexto e as circunstâncias fáticas do caso, para poder precisar quantas bananas deve comprar para que a sua compra fique “adequada” às expectativas do seu interlocutor; assim, como exemplo, se comprasse duas bananas seria adequado a um desjejum, mas em nenhuma circunstância seria suficiente para fazer uma bananada. Logo, o conceito “suficiente” é vago na medida em que exige uma complementação contextual para perder ou diminuir a sua indeterminação, mas, sua execução será vinculada aos parâmetros contextuais quando fornecidos. Situação diversa, quando se solicita que alguém compre “aproximadamente meia dúzia de bananas” não se está fornecendo qualquer 66 Diogo de Figueiredo afirma que a discricionariedade “é a qualidade da competência cometida por lei à administração pública para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessária para integrar a definição de elementos essenciais à prática de atos de execução, necessária para atender um interesse público específico”. Moreira Neto (1991 : 22). 67 Endicott (2006 : 87/88) DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 39 parâmetro interpretativo, vago ou não, apto a indexar o comportamento da pessoa no mercado. Nesse caso, basta a pessoa comprar uma quantidade aproximada de meia dúzia que ela estará cumprindo satisfatoriamente a exigência, por isso, o parâmetro de eleição do quantitativo de bananas a ser comprado será discricionário conforme a vontade da pessoa que foi à loja. A grande diferença entre as duas situações é que no primeiro caso o comprador de bananas estará vinculado ao conceito indeterminado “suficiente”, não havendo juízo de escolhas de quantas bananas deve comprar, uma vez que “suficiente” significa a “quantidade correta” consoante expectativa do interlocutor (duas bananas para o desjejum e duas dúzias para a bananada). Já no segundo caso, a compra será totalmente discricionária, eis que foi solicitado ao comprador que escolhesse quantas bananas comprar, dentro do parâmetro “meia dúzia”, que servirá como meio de orientação a ser seguido, mas não vinculativo. Hart, ao descrever a sua teoria da textura aberta e apresentar a discricionariedade judicial como meio de solução para os hard cases, parece não atribuir aos juízes um espaço de livre apreciação para escolher, conforme seu arbítrio, a solução para esses casos em que as regras aplicáveis não demandam de uma forma lógica apenas uma única resposta correta. Na verdade, a vagueza decorrente da textura aberta do direito e a ocorrência de indeterminação nos casos marginais de aplicação de regras gerais, parece estar muito mais próxima do modelo de interpretação dos “conceitos jurídicos indeterminados”, do que da aplicação de um juízo de oportunidade e conveniência, em que seria livre a apreciação dessa vagueza pelos juízes68. 68 Como no caso da fixação do “justo preço” nas expropriações que, por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, não permite que o juiz fixe o valor da indenização conforme seu arbítrio, ele deve fazer, na verdade, um juízo de estimação e valoração para definir o “justo”, conforme excelente exemplo de Santiago Tawil citando um julgamento do Tribunal Supremo Espanhol: “[...] mientras que el concepto jurídico indeterminado es configurado por la ley como un supuesto concreto de tal forma que solo se da una única solución justa em la aplicación del concepto a la circunstancia de hecho, como ocurre en el caso de actuación del jurado de expropriación que, como organismo encaregado de aplicar el concepto indeterminado de ‘justo precio’ a unos bienes expropiados, no es libre de decidir, a traves de un proceso volitivo de discrecionalidad, entre varios posibles justos precios, sino que realizando un proceso de juicio o estimación, há de atenerse necesariamente, sin libertad de decisión, a las circunstancias reales que ha de calificar y al sentido jurídico preciso que la ley ha asignado al concepto de ‘justo precio’, para determinar, a traves de su valoración, no cualquier posible, sino el precio que real y efectivamente sea el verdadero y justo, y por ello, dicha función, al no admitir más que una solución adecuada y conforme a la norma, constituye un proceso de subsunción de la categoria de justo precio em el supuesto concreto que se contemple, es decir, se trata de un supuesto normal de aplicación del derecho, sometido sin traba alguna, por eso, precisamente, a la funcción jurisdicional, encargada DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012881/CA 40 Assim, muito embora Hart designe a atividade empreendida pelos juízes para a resolução dos hard cases como sendo “discricionária”, na verdade, os juízes não exercem um juízo de escolhas como no caso da compra de meia dúzia de bananas, neste caso, eles exercem uma atividade interpretativa, recaindo a eleição somente em relação à valoração e ponderação dos fatores contextuais, depois que esses são desvendados, a atividade seria vinculada. Ademais, como relacionado no item anterior, a discricionariedade judicial que Hart atribui aos juízes para a solução
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