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Hermenêutica

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Hermenêutica constitucional
Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2017
A hermenêutica jurídica, analisada a partir da matriz que venho denominando Crítica Hermenêutica do Direito, tem como ponto de partida o estudo da interpretação jurídica, levando em consideração que, na medida em que o Poder Judiciário aplica o Direito constituído sob as bases de um Estado Democrático de Direito, não tem legitimidade para que interprete o Direito conforme suas preferências políticas, morais ou econômicas, mas encontrar a resposta adequada à Constituição. Não há espaço, em uma democracia, para decisões arbitrárias. Desse modo, a questão da hermenêutica jurídica está intimamente relacionada com uma Teoria da Decisão Judicial preocupada em preservar as condições intersubjetivas pelas quais se permita chegar a melhor interpretação do Direito. Assim, a Crítica Hermenêutica do Direito se desenvolve através de uma imbricação entre o pensamento de Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin, preocupando-se em especial com os problemas da discricionariedade judicial da maneira como se mostram no país, na busca da construção de uma teoria que possibilite apontar qual a interpretação adequada do Direito, ou, em outras palavras, o modo como os juízes devem decidir. 
1. Hermenêutica constitucional
Partindo da concepção de que hermenêutica não é método e que não existem hermenêuticas “regionais”, trabalhar com a concepção de hermenêutica constitucional tem apenas o sentido de situar com mais especificidade a “coisa” Constituição. Assim, hermenêutica não é algo que operamos (apenas) para uma determinada finalidade ou somente para alguns momentos. Ao contrário, faz parte do modo como somos. Gadamer explica que a ideia de verdade nas ciências humanas tão apegada ao método estaria equivocada, uma vez que Hermenêutica é filosófica e não (metodo)lógica. Nesta senda o filósofo afirma que na leitura do maior de todos os “livros” é possível demonstrar a tensão e a solução que estruturam o compreender e a compreensibilidade, talvez também a compreensão, e nesse sentido não se pode duvidar da universalidade do problema hermenêutico. Não se trata de um tema secundário. A hermenêutica não é uma mera disciplina auxiliar das ciências românticas do espírito.1 
A linguagem não sendo um instrumento, portanto, não sendo uma terceira coisa entre o sujeito e o objeto, mas sim a condição de possibilidade de acesso ao mundo (da vida), também aponta para a universalidade do labor hermenêutico, que, por isso, não poderia/deveria ser pensado de forma regionalizada nem limitada a textos de determinada natureza.  Do mesmo modo, A universalidade da hermenêutica é confirmada pelo fato de que qualquer compreensão do ser sobre qual os intérpretes chegam a concordar ocorre na linguagem, e a compreensão da linguagem requer interpretação e aplicação, ou seja, hermenêutica.2  
Dito isto, sempre é relevante lembrar que a palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a ideia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido.
Na história moderna, tanto na hermenêutica teológica como na hermenêutica jurídica, a expressão tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito diretivo sobre a lei divina e a lei humana. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, seja em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o sentido a ser atribuído ao texto coloca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos ligados, no entanto, às condições de acesso do homem ao conhecimento acerca das coisas. Assim, a) demonstra-se que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no ato interpretativo, mediante a criação, p. ex., de uma teoria geral da interpretação; b) reconhece-se que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e a sua aplicação a um determinado caso concreto não são de fato atos separados, ou c) reconhece-se, finalmente, que as tentativas de colocar o problema hermenêutico a partir do predomínio da subjetividade do intérprete ou da objetividade do texto não passaram de falsas contraposições fundadas no metafísico esquema sujeito-objeto.
A viragem hermenêutico-ontológica, provocada por Sein Und Zeit (1927) de Martin Heidegger, e a publicação, anos depois, de Wahrheit Und Methode (1960), por Hans-Georg Gadamer, foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir dessa viragem ontológica (ontologische Wendung), inicia-se o processo de superação dos paradigmas metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista (filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm sustentado as teses exegético-dedutivistas-subsuntivas dominantes naquilo que em sendo denominado de hermenêutica jurídica.
A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do Direito deita raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi,subtilitas applicandi, isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão implica a impossibilidade de o intérprete retirar do texto algo que o texto possui-em-si-mesmo, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmo. Veja-se que, já desde sempre, a hermenêutica exsurgida a partir da invasão da filosofia pela linguagem coloca em cheque a cisão dual-estrutural que mantém o positivismo, isto é, de que existam descrições e prescrições. Na descrição já existe prescrição. O olhar externo do positivismo exclusivo, para falar apenas do “positivismo duro” já vem impregnado por aquilo que o positivismo quer evitar: a impregnação do direito pela moral. Assim, ter uma posição que exclua a moral do direito já é, por si, uma posição moral. 
Tudo isto porque temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que é a interpretação. Podemos dizer, então, que estamos condenados a interpretar. O horizonte do sentido nos é dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui. A faticidade, a possibilidade e a compreensão são alguns desses elementos existenciais. É no nosso modo da compreensão enquanto ser no mundo que exsurgirá a norma, produto da síntese hermenêutica, que se dá a partir da faticidade e historicidade do intérprete.
A superação da hermenêutica clássica – ou daquilo que tem sido denominado de hermenêutica jurídica como técnica no seio da doutrina e da jurisprudência praticadas cotidianamente –, implica admitir que há uma diferença entre o texto jurídico e o sentido desse texto, isto é, que o texto não carrega, de forma reificada, o seu sentido (a sua norma). As palavras não “carregam” o seu próprio sentido ou seu sentido próprio. Trata-se de entender que entretexto (lei) e norma (sentido da lei) não há uma equivalência e tampouco uma total autonomização. Entre texto e norma há, sim, uma diferença, que é ontológica, isto porque – e aqui a importância dos dois teoremas fundamentais da hermenêutica jurídica-filosófica – o ser é sempre o ser de um ente e o ente só é no seu ser. O ser existe para dar sentido aos entes. Por isso há uma diferença ontológica (não ontológico-essencialista) entre ser e ente, tese que ingressa no plano da hermenêutica jurídica para superar, tanto o problema da equiparação entre vigência e validade, como o da total cisão entre texto e norma, resquícios de um positivismo jurídico que convive com uma total discricionariedade no ato interpretativo. A incorporação da diferença ontológica da fenomenologia hermenêutica foi incorporada pela Crítica Hermenêutica do Direito (ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, segunda edição, pela Livraria do Advogado) para melhor podermos compreender a diferença entre Lei e Direito. Em Hermenêutica jurídica e(m) crise (décima primeira edição, pela Livraria do Advogado) essa questão está explicitada amiúde.
Nesse sentido, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode significar a possibilidade de este estar autorizado a atribuir sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto (lei) e norma (sentido atribuído) estivessem separados (e, portanto, tivessem existência autônoma). Como bem diz Gadamer, quando o juiz pretende adequar a lei às necessidades do presente, tem claramente a intenção de resolver uma tarefa prática (veja-se, aqui, a importância que Gadamer dá ao programa aristotélico de uma praktische Wissenschaft). Isso não quer dizer, de modo algum, que sua interpretação da lei seja uma tradução arbitrária.
Portanto, ficam afastadas todas as formas de decisionismo, discricionariedade e teses como “a interpretação do Direito é um ato de vontade”. O fato de não existir um método que possa dar garantia a correção do processo interpretativo – denúncia presente, aliás, já no oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen – não autoriza o intérprete a escolher o sentido que mais lhe convém, o que seria dar azo à discricionariedade, característica do positivismo. Sem textos, não há normas. A vontade e o conhecimento do intérprete não permitem a atribuição arbitrária de sentidos, e tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária. Afinal, e a lição está expressa em Verdade e Método (Wahrheit und Methode), se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto te diga algo.
Dito de outro modo, podemos fazer uma relação entre a concepção clássica da metafísica com o “segundo nível” da Teoria Pura de Kelsen. Nesses paradigmas o sujeito/intérprete está aprisionado por estruturas das quais não lhe resta nada a se não ser aceitar as essências, no primeiro caso, e a descrição das normas jurídicas como uma forma de fazer ciência, no segundo. A aproximação se dá pelo fato de que o sujeito está preso a determinada estrutura, sem qualquer tipo de interferência sobre ela. No entanto, para o Direito, a construção deste “segundo nível” acaba esquecendo dos problemas práticos, como a discricionariedade interpretativa dos juízes. Enquanto o “cientista” descreve o Direito – aqui o resquício da metafísica clássica objetivista –, o juiz o aplica conforme sua vontade, o que implica a possibilidade de lançar mão de argumentos morais, políticos, pessoais, etc. (Kelsen chama a isso, efetivamente, de ato de vontade). Essa problemática se estende aos positivismos pós-hartianos, em especial os “positivismos duros”, que cindem moral e direito a partir de um pretenso ato descritivo (ato externo), deixando o ato de aplicação do direito a cargo de raciocínios práticos, espaço inexorável do poder discricionário, seja o nome que se dê a esse ato subjetivista.
Por tudo isso, não basta dizer que o Direito é concretude, e que cada caso é um caso, como é comum na linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente que o Direito é concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não é evidente é que o processo interpretativo é applicatio, entendida no sentido da busca da coisa mesma (Sache selbst), isto é, do não esquecimento da diferença ontológica (de novo, sempre apontando a impossibilidade de se cindir descrição da prescrição). O Direito é parte integrante do próprio caso e uma questão de fato é sempre uma questão de Direito e vice-versa, Hermenêutica não é filologia. É impossível cindir a compreensão da aplicação. Uma coisa é deduzir de um topos ou de uma lei o caso concreto; outra é entender o Direito como aplicação: na primeira hipótese, estar-se-á entificando o ser; na segunda, estar-se-á realizando a aplicação de índole hermenêutica, a partir da ideia de que o ser é sempre ser-em (in Sein).
Assim, embora os juristas – nas suas diferentes filiações teóricas – insistam em dizer que a interpretação deve se dar sempre em cada caso, tais afirmações, infelizmente, não encontram comprovação na cotidianidade das práticas jurídicas. Na verdade, ao construírem pautas gerais, conceitos lexicográficos, verbetes doutrinários e jurisprudenciais (hoje existe uma verdadeira fetichização em torno de “precedentes”) ou súmulas aptas a resolver casos futuros, os juristas sacrificam a singularidade do caso concreto em favor dessas espécies de pautas gerais, fenômeno, entretanto, que não é percebido no imaginário jurídico. Daí a indagação de Gadamer: existirá uma realidade que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre aí a sua realização? Não é a própria realidade o resultado de sua interpretação? A rejeição de qualquer possibilidade de subsunções ou deduções aponta para o próprio cerne de uma hermenêutica jurídica inserida nos quadros do pensamento pós-metafísico. Trata-se de superar a problemática dos métodos, considerados pelo pensamento exegético-positivista como portos seguros para a atribuição dos sentidos. Compreender não é produto de um procedimento (método) e não é um modo de conhecer. Compreender é, sim, um modo de ser, porque a epistemologia é substituída pela ontologia da compreensão.
Uma hermenêutica jurídica capaz de intermediar a tensão inexorável entre o texto e o sentido do texto não pode continuar a ser entendida como uma teoria ornamental do Direito, que sirva tão-somente para colocar capas de sentido aos textos jurídicos. No interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, o compreender não ocorre por dedução. Consequentemente, o método (o procedimento discursivo) sempre chega tarde, porque pressupõe saberes teóricos separados da realidade.
Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. Esta é uma conquista da Critica Hermenêutica do Direito (ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, segunda edição, pela Livraria do Advogado), pela qual não se interpreta para compreender, mas, sim, compreende-se para interpretar. A compreensão antecede, pois, qualquer argumentação. Ela é condição de possibilidade. Consequentemente, quando as teorias analíticas (como o positivismo) dizem que o teórico descreve e o juiz-aplicador faz raciocínios práticos, ali está nitidamente posta o esquecimento da diferença ontológica. Aliás, essa falha filosófica acaba sendo repetida como um vício profissional: as petições dos advogados sempre começam expondo os fatos, para só depois “encaixarem” o Direito.
Do mesmo modo, é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz, primeiro decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento (a justificação). Fundamento e finalidade não são a mesma coisa. Caso contrário, estaríamos diante do sacrifício de qualquer intermediação linguística, tendo o intérprete, assim, “acesso direito aos entes, às coisas”. A “busca da verdade real” sustentada por parcela da comunidade jurídica espelha claramente esse atravessamento epistêmico, que anula a linguagem. A “verdade real” acaba sendo um sonho ontológico-essencialistados juristas. 
Todavia, somente é possível compreender isso a partir da admissão da tese de que a linguagem não é um mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre um sujeito (cognoscente) e um objeto (cognoscível). O abismo gnosiológico que separa o homem das coisas e da compreensão acerca de como elas são, não depende – no plano da hermenêutica jurídico filosófica (e, portanto, da Crítica Hermenêutica do Direito) – de pontes que venham ser construídas - paradoxalmente - depois que a travessia (antecipação de sentido) já tenha sido feita. É o que denomino de “aporia da ponte”.
Daí a importância da pré-compreensão (Vorverständnis), que passa ao patamar à de condição de possibilidade nesse novo modo de olhar a hermenêutica jurídica. Nossos pré-juízos que conformam com nossa pré-compreensão não são jamais arbitrários. Pré-juízos não são inventados; eles nos orientam no emaranhado da tradição, que pode ser autêntica ou inautêntica. Mas isso não depende da discricionariedade do intérprete e tampouco de um controle metodológico. O intérprete não domina a tradição. Os sentidos que atribuirá ao texto não dependem de sua vontade, por mais que assim queiram os adeptos do esquema representacional sujeito-objeto. E se o intérprete impuser sua vontade, já não haverá hermenêutica. Não haverá compreensão. Haverá uma extorsão de sentido. Evidente que pré-compreensão não deve ser confundida com subjetivismo, ideologia, opinião pessoal, etc. Isso seria confundir a pré-compreensão com preconceitos no sentido ruim da palavra.
Uma das preocupações fundamentais da hermenêutica filosófica e, por consequência, da CHD, é enfrentar as críticas do risco do relativismo. Essas acusações se dão pela errônea compreensão de que, contra o formalismo dedutivista do positivismo clássico, bastaria colocar qualquer coisa em seu lugar, como fizeram, por exemplo, as diversas teorias voluntaristas no final do século XIX e no início do século XX, chegando até mesmo ao século XXI, como se pode ver pelas posturas neoconstitucionalistas. Longe disso, a hermenêutica é uma postura não-positivista ou, se quisermos, pós-positivista. A teoria hermenêutica não é uma mera especificação para o Direito de propostas procedentes de um plano filosófico mais geral, lembra bem Rodrigues Puerto (2011). E Ulfried Neumann (1984) e Ulrich Schroth (1989) também advertem para a agregação que o jurídico fez à hermenêutica filosófica. Há, pois, uma especificidade nisso: o texto jurídico. A lei. A jurisprudência.
Nesse sentido, é importante entender que a hermenêutica jurídica, que exsurge desse viés, é parte de uma vertente de racionalidade prática preocupada com o Direito e com o que este tem a ver com os diversos campos de conhecimento no qual se abebera. Por isso, pode-se dizer que foi a ciência jurídica que foi absorvendo a fenomenologia hermenêutica, a partir dos elementos fulcrais como o círculo hermenêutico, a diferença ontológica, a noção de pré-compreensão (que, insisto, não é uma mera subjetividade e nem ideologia) e a própria noção de verdade.
Quem interpreta já compreendeu e sempre tem uma pretensão de verdade. Como diz Gadamer, mais do que combater o relativismo, é necessário destruí-lo. Em termos jurídicos, o relativismo é inimigo da autonomia do Direito e da própria democracia. Gadamer deu uma enorme contribuição para um novo tipo de hermenêutica jurídica. A filosofia que brotou de sua obra inundou o Direito e contribuiu sobremodo para limpar a falsa imagem de irracionalidade que a prática jurídica tinha em relação a uma certa epistemologia moderna. A hermenêutica veio para ficar, exatamente porque é esse intermédio filosófico entre o objetivismo e o subjetivismo.
Por tudo isso, é fácil afirmar que uma sentença judicial é um ato de decisão e não de escolha. É um ato de poder, em nome do Estado. Dworkin diz que a sentença é um ato de responsabilidade política. Por isso mesmo é que a sentença não é uma mera opção por uma ou mais teses. Nesse sentido, Heinrich Rombach deixa claro que a análise autêntica do fenômeno da decisão exige um desprendimento com relação às representações e modelos habituais do fenômeno. Afirma que tanto o decisionismo irracional quanto o racionalismo – e as correspondentes teorias da decisão que se formam a partir deles – acabam por entulhar o problema na medida em que tornam indiferentes o fenômeno da decisão e o fenômeno da escolha. Segundo o autor, decidir é diferente de escolher. E essa diferença não se apresenta em um nível valorativo (ou seja, não se trata de afirmar que a decisão é melhor ou pior que a escolha), mas, sim, estrutural. “Respostas de escolha são respostas parciais; respostas de decisão são respostas totais, nas quais entra em jogo a existência inteira”.3  
No caso da decisão jurídica (sentença), é possível adaptar a fórmula proposta por Rombach para dizer que ela pressupõe um comprometimento por parte do agente judicante com a moralidade da comunidade política. Isso significa, em termos dworkinianos que a decisão é um ato de responsabilidade política. É por isso que a jurisdição, em um quadro como esse, não efetua um ato de escolha entre diversas possibilidades interpretativas quando oferece a solução para um caso concreto. Ela efetua “a” interpretação, uma vez que decide – e não escolhe – quais os critérios de ajuste e substância (moralidade) que estão subjacentes ao caso concreto analisado. Portanto, há uma diferença entre o decidir, que é um ato de responsabilidade política e o escolher, que é um ato de razão prática. O primeiro é um ato estatal; o segundo, da esfera do cotidiano, de agir estratégico.
Para uma hermenêutica (constitucional) preocupada com a democracia, é necessário evitar discricionariedades, decisionismos e a correção moral do direito. Nessa seara, o dever de fundamentar – que é mais do que motivar – não é simplesmente um adereço que será posto na decisão. Tampouco será uma justificativa para aquilo que o juiz decidiu de forma subjetivista-solipsista, substituindo o direito pela moral, política ou economia ou até mesmo suas opiniões pessoais. O Estado Democrático e a Constituição são incompatíveis com modelos de motivação teleológicos do tipo “primeiro decido e só depois busco o fundamento”. Superado o paradigma subjetivista, é a intersubjetividade que será a condição para o surgimento de uma decisão (ver Verdade e consenso, sexta edição, pela Saraiva). Nesse sentido, o juiz deve controlar a sua subjetividade por intermédio da intersubjetividade proveniente da linguagem pública (doutrina, jurisprudência, lei e Constituição). As suas convicções pessoais são – e devem ser – irrelevantes para a decisão. Por isso, a decisão judicial não é fruto do pensamento pessoal ou da “consciência do julgador”. Se a decisão jurídica for fruto de uma “hermenêutica pessoal-solipsista”, obviamente já estaremos falando de hermenêutica, e, sim de uma “interpretação como ato de vontade”. Decisão nesse sentido será nula. Como bem lembra Arruda Alvim, o juiz não decide arbitrariamente, em função de sua mera vontade.4 Como se pode ver pela leitura do art. 371, o novo Código de Processo Civil aboliu a livre apreciação da prova e qualquer forma de livre convencimento. A expulsão do livre convencimento é um elemento de extrema relevância para demonstrar o significado democrático da hermenêutica. Uma hermenêutica apta para implementar a Constituição não pode depender de livres convicções, mesmo que sucedidas da falácia “livre convicção ou livre convencimento motivado”. De novo, a aporia da ponte desmonta a tese do livre convencimento, que, aliás, já desde há muito nada tem a ver com a superação da prova tarifada, passando a ser uma “tese” que nada mais faz do repristinar o protagonismo judicial do final do século XIX e início do século XX.
O advento da Constituição de 1988 exigiu um novo olhar sobre a hermenêutica (constitucional). Por óbvio já não se pode(ria) pensar em trabalhar com instrumentalizações pós-exegéticas, que, sincreticamente, passaram a incorporar posturas como a jurisprudênciados valores alemã, o ativismo judicial norte-americano, a metodologia de Savigny, a ponderação advinda da teoria da argumentação jurídica (não há pistas de que a teoria alexyana tenha sido, efetivamente, aplicada em alguma decisão no Brasil) e outras correntes voluntaristas que, em vez de centrar o olhar na Constituição e seu propósito, passaram a apostar em elementos criteriais, naquilo que Dworkin tão bem denunciou como “aguilhões semânticos”. 
Dito de outro modo, se até o advento da Constituição de 1988 apostava-se em um certo ativismo judicial baseado, por exemplo, nas diversas formas de positivismo fático (realismos jurídicos dos mais variados) como forma específica de luta por espaços no interior do “sistema” na busca de inclusões sociais – mormente no que diz respeito aos direitos de liberdade em um regime político-jurídico autoritário/ditatorial que deixou de fora do direito os conflitos e aspirações sociais –, na sequência, já na vigência da nova Constituição, não foram construídas as condições necessárias para a concretização de um direito agora produzido democraticamente e com feições nitidamente transformadoras da sociedade. Destarte, parece óbvio que a solução para (ess)as novas demandas não adviria de uma aposta nas velhas posturas acionalistas.
Exsurge, assim, a necessidade de se dar novos contornos à interpretação do direito (constitucional), sem que se confundam, contudo, os princípios da interpretação constitucional com os princípios jurídico-constitucionais. Fundamentalmente – e a lembrança é de Gomes Canotilho – há que se ter claro que uma hermenêutica ligada ao caráter compromissório do constitucionalismo contemporâneo terá que construir as condições de possibilidade para que a retórica dos juristas adquira positividade, abrindo “caminhos hermenêuticos capazes de auxiliarem a extrinsecação do direito constitucional”.5 E essa tarefa é indelegável.
Diante disso, uma nova perspectiva hermenêutica vem se forjando a partir de duas rupturas paradigmáticas: a revolução do constitucionalismo, que institucionaliza um elevado grau de autonomia do direito, e a revolução copernicana provocada pelo giro-linguístico-ontológico. De um lado, a existência da Constituição exige a definição dos deveres substanciais dos poderes públicos que vão além do constitucionalismo liberal-iluminista, diminuindo-se o grau de discricionariedade do Poder Legislativo, assim como do Poder Judiciário nos denominados “casos difíceis”. De outro, parece não restarem dúvidas de que, contemporaneamente, a partir dos avanços da teoria do direito, é possível dizer que não existem respostas a priori acerca do sentido de determinada lei que exsurjam de procedimentos ou métodos de interpretação. Nesse sentido, “conceitos” que tenham a pretensão de abarcar, de antemão, todas as hipóteses de aplicação, nada mais fazem do que reduzir a interpretação a um processo analítico, que se caracteriza pelo emprego “sistemático” da análise lógica da linguagem, buscando descobrir o significado dos vocábulos e dos enunciados.
Nesta quadra da história, já não pairam dúvidas de que os métodos de interpretação propalados pela teoria geral do direito – mesmo que esta se ocupe apenas da estrutura dos diversos sistemas jurídicos, e não propriamente do conteúdo normativo – são incompatíveis com esse novo paradigma compreensivo. Não percebemos, de forma distinta (cindida), primeiro os textos para, depois, acoplar-lhes sentidos. Ou seja, na medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo/aplicativo – é unitário, o texto (pensemos, fundamentalmente, na Constituição) não está, e não nos aparece, desnudo, como se estivesse à nossa disposição. Com isso também desaparece qualquer distinção entre estrutura e conteúdo normativo. Destarte – insisto – não podemos esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma que as diversas formas de subjetivismo encontraram para buscar o controle político-ideológico do “processo” de interpretação. Daí a importância conferida ao método, que sempre teve/tem a função de “isolar” a norma (sentido do texto) de sua concretização. Uma questão, assim, é vital para a hermenêutica de cariz constitucional. Se alguém tem que decidir por último, a pergunta que se põe obrigatoriamente é: de que modo podemos evitar que a legislação – suposto produto da democracia representativa (produção democrática do direito) – seja solapada pela falta de legitimidade da jurisdição? Ou, melhor dizendo, com Miranda Coutinho, não propriamente uma “falta de legitimidade”, mas uma “possível” expropriação de um espaço de poder que ele – o juiz – não tem e, portanto, para tal “atribuição” é que não encontra legitimidade. Aponte-se, ademais, que, à diferença da compreensão de outros fenômenos, a hermenêutica jurídica contém uma especificidade: a de que o processo hermenêutico possui um vetor de sentido, produto de um processo constituinte que não pode ser alterado a não ser por regramento próprio constante no próprio processo originário. E isso faz a diferença. A Constituição é o elo conteudístico que liga a política e o direito, d’onde se pode dizer que o grande salto paradigmático nesta quadra da história está exatamente no fato de que o direito deve servir como garantia da democracia. Trata-se, no fundo, de um paradoxo: a Constituição é um remédio contra maiorias, mas, ao mesmo tempo, serve como garantia destas. 
Assim, na medida em que estamos de acordo que a Constituição possui características especiais exsurgidas de um profundo câmbio paradigmático, o papel da hermenêutica passa a ser, fundamentalmente, o de preservar a força normativa da Constituição e o grau de autonomia do direito diante das tentativas usurpadoras provenientes do processo político (compreendidolato sensu). Nesse contexto, a grande engenharia a ser feita é, de um lado, preservar a força normativa da Constituição e, de outro, não colocar a política a reboque do direito. E não permitir que a moral corrija o direito produzido democraticamente.
Essa (inter)mediação é o papel a ser desempenhado pelos princípios forjados na tradição do Estado Democrático de Direito. Princípios funcionam, assim, como Leitmotiv do processo interpretativo, como que a mostrar que cada enunciado jurídico possui uma motivação (Jede Aussage ist motiviert, dirá Gadamer). Princípios têm a função de mostrar/denunciar a ruptura com a plenipotenciaridade das regras; o direito não isenta o intérprete de qualquer compromisso com a realidade. 
Por tais razões, é fundamental que se passe a entender que “metodologia” ou “principiologia” constitucional não querem dizer “cânones”, “regras” ou “metarregras”, mas, sim, um modo de concretizar a Constituição, isto é, o modo pelo qual a Constituição deve ser “efetivamente interpretada”. Afinal, a fragilidade dos “cânones” reside precisamente no fato de que não existe um “método” ou uma “regra” que estabeleça o modo de aplicá-los, a menos que se acredite na possibilidade de um “método dos métodos” ou de um metafísico “método fundamental” (Grundmethode). Do mesmo modo, não há um metaprincípio apto a servir de norte para a aplicação dos diversos princípios cunhados nas diversas fases do constitucionalismo.
Desse modo, propõe-se, aqui, um conjunto mínimo de princípios (hermenêuticos) a serem seguidos pelo intérprete. Tais princípios, sustentados na historicidade da compreensão e na sedimentação dessa principiologia, somente se manifestam quando colocados em um âmbito de reflexão que é radicalmente prático-
-concreto, pois representam um contexto de significações históricas compartilhadas por uma determinada comunidade política, uma vez que abarcam e apontam para além dos diversos princípios, subprincípios, pontos de vista, standards interpretativos, postulados etc. forjados na tradição do Estado Democrático de Direito, tais como a inviolabilidade da Constituição, da vinculação do direito, da rigidez do direito constitucional, da segurança jurídica, da delimitação normatizada de funções, da unidade da Constituição,do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade funcional, da concordância prática, da força normativa da Constituição e da interpretação conforme, para citar apenas os principais. Mas, se as diversas tentativas de autonomizar esses critérios interpretativos fracassaram – em face da própria impossibilidade de se construir uma “teoria geral dos princípios” ou dos cânones – visando a conceder autonomia a estes ou a alguns destes, isso não quer dizer que a interpretação do direito deva ficar à mercê de procedimentos ad hoc ou de atitudes pragmatistas. Por essas razões é que a interpretação do direito somente tem sentido se implicar um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne desse novo paradigma: a democracia. E sobre isso parece não haver desacordo.
Desse modo, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito estabeleci cinco princípios-padrões interpretativos como suportes epistêmicos. Princípios não devem ser vistos como um conjunto de topoi argumentativos, nem como componentes de uma hermenêutica (jurisprudencialista) baseada na tópica ou na nova retórica (por todos, lembremos Theodor Viehweg e Chaïm Perelman), ou, ainda, dependentes, para a sua aplicação, das fórmulas para resolver “casos difíceis” (é o caso, v.g., da ponderação de valores, que não escapa às fortíssimas críticas advindas de autores que vão de Friedrich Müller a Jürgen Habermas). Princípio é, assim, condição de possibilidade de qualquer interpretação, estando presente, de forma transcendental, em cada relação regra-princípio (por isso, não há distinção estrutural entre regra e princípio). Por isso, o princípio funciona como um acentuado grau de “blindagem” contra os desvios hermenêuticos (conveniências políticas, argumentos morais, etc.). Talvez o principal problema da compreensão do princípio esteja em localizá-lo ou confiná-lo no plano analítico, como se fosse uma regra “com adereços” e “comandos de otimização”. E, à medida que essa circunstância, segundo determinadas leituras, leva à “abertura” da interpretação e ao aumento do poder discricionário do intérprete, tem-se, inexoravelmente, um segundo problema: o enfraquecimento da autonomia do direito diante de discursos “corretivos” que, assim compreendido o papel de abertura dos princípios, “penetram” nestas “frestas”, configurando a aludida correção interpretativa com fulcro na moral, na economia, na política, etc. (STRECK, Lenio. Comentários à Constituição do Brasil). Na mesma linha, a (simples) equiparação dos princípios a valores significa negar a historicidade da compreensão. Somente podemos falar no conteúdo dos princípios constitucionais quando nos apropriamos do horizonte histórico hermeneuticamente correto. No caso, p. ex., do due process of law, sua determinação concreta na decisão judicial não poderá obedecer às simples opiniões e aos preconceitos do intérprete-juiz, mas, sim, prestar contas a uma carga histórica complexa que se arrasta no tempo histórico.
Assim, tem-se o primeiro princípio/padrão: a preservação da autonomia do direito, que abarca vários padrões compartilhados pelo direito constitucional a partir do segundo pós-guerra, denominados de métodos ou princípios, tais como o da correção funcional (designado por Müller como princípio autônomo que veda a alteração, pela instância decisória, da distribuição constitucionalmente normatizada das funções nem por intermédio do resultado dela), o da rigidez do texto constitucional (que blinda o direito contra as convicções revolucionárias acerca da infalibilidade do legislador), o da força normativa da Constituição e o da máxima efetividade (sentido que dê à Constituição a maior eficácia, como sustentam, por todos, Pérez Luño e Gomes Canotilho). Mais do que sustentáculo do Estado Democrático, a preservação do acentuado grau de autonomia conquistado pelo direito é a sua própria condição de possibilidade e por isso é erigido, aqui, à condição de princípio basilar, unindo, conteudisticamente, a visão interna e a visão externa do direito. Trata-se, também, de uma “garantia contra o poder contramajoritário”, abarcando a garantia da legalidade na jurisdição. Trata-se de uma autonomia entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente. Afinal, não se pode perder de vista que as palavras que o legislador escolhe são aquelas e não outras, mas são sempre palavras (textos), cuja relação com os objetos dependerá de um longo processo de sedimentação hermenêutico (tradição, coerência, integridade, fusão de horizontes, etc.).  Por isso, a validade do direito perante a política, a economia e a moral, não pode depender de uma jurisprudencialização do direito, isto é, não é a jurisprudência que garante o indispensável grau de autonomia do direito, e, sim, é a autonomia do direito, sustentada em um denso controle hermenêutico, que assegura as possibilidades de a Constituição ter preservada a sua força normativa. Ou seja, não se pode confundir o direito (e suas possibilidades autônomas) com a instância judiciária e, tampouco, a política com a lei (vontade geral sem controle) (Ver Comentários à Constituição do Brasil, editado pela Saraiva e Editora de Coimbra). Para aferir esse grau de autonomia estabeleci as seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei (texto jurídico), explicitadas em Jurisdição constitucional e decisão jurídica (quarta edição, pela Revista dos Tribunais). O segundo princípio é o controle hermenêutico da interpretação constitucional (ratio final, a imposição de limites às decisões judiciais – o problema da discricionariedade), desenvolvido em vários textos e livros, como O que é Isto – Decido conforme minha consciência? (quinta edição conforme o novo CPC, pela Livraria do Advogado). Aqui deve ser respondida a pergunta que atormenta os juristas desde o século XIX: o que fazer com a moral e como resistir ao canto da sereia do subjetivismo. Em outras palavras, o que se chama de discricionariedade judicial nada mais é que do que uma abertura criada no sistema para legitimar, de forma velada, uma arbitrariedade, não mais cometida pelo administrador, mas pelo judiciário. Veja-se o exemplo das interceptações telefônicas, em que o STF (QO no Inquérito n. 2.424-RJ) vem autorizando, com base em um juízo de proporcionalidade, o exercício da interceptação telefônica também na esfera civil para ser utilizada como prova emprestada em processos de outra natureza que não processos criminais. Por isso, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto” nem de longe pode significar a possibilidade de ele estar autorizado a atribuir sentidos de forma discricionária/arbitrária, como se texto e norma estivessem separados (e, portanto, tivessem “existência” autônoma). Se a partir da autonomia do direito apostamos na determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da própria democracia e de seu futuro, as posturas axiologistas e pragmatistas – assim como os diversos positivismos stricto sensu – apostam na indeterminabilidade. É por tais caminhos e condicionantes que passam as novas demandas de uma renovada hermenêutica constitucional.
O terceiro princípio é o respeito à integridade e à coerência do direito, agora colocados no art. 926 do Código de Processo Civil, conforme explicitado em Hermenêutica e jurisprudência no novo Código de Processo Civil: coerência e integridade, a integridade está umbilicalmente ligada à democracia, exigindo que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito.6 Trata-se, pois, de “consistência articulada”. Com isso, afasta-se, de pronto, tanto o ponto de vista objetivista, pelo qual “o texto carrega consigo a sua própria norma” (lei é lei em si), como o ponto de vista subjetivista-pragmatista, para o qual – aproveitando a relação “texto-norma” – a norma pode fazer soçobrar o texto. Nesses casos – e estaríamos sucumbindo ao realismo jurídico – esse texto acaba encoberto nãopela nova norma (sentido), mas, sim, por outro (novo) texto, o que pode facilmente ocorrer quando da edição de súmulas vinculantes. Ou seja, esse respeito à tradição, ínsito à integridade e à coerência, é substancialmente antirrelativista e deve(ria) servir de blindagem contra sujetivismos e objetivismos. Na verdade, a tese hermenêutica da integridade coloca-se contra os dois polos do positivismo – e a feliz observação é de Blackburn (Verdade, op. cit., p. 251): um polo é a visão positivista de que a prática legal é inteiramente ditada por fatos preexistentes, tal como estatutos e decisões em letra gótica que estão, por assim dizer, na folha, ou “simplesmente seja lá como for”; o outro polo, confusamente chamado de “realismo” na filosofia do direito, é, no fundo, o ponto de vista subjetivo ou puramente pragmático, segundo o qual o que os juízes e advogados fazem a nada corresponde, exceto às próprias percepções que eles têm das necessidades momentâneas da sociedade (ou até mesmo apenas às próprias necessidades dos juízes). 
A integridade faz respeitar a comunidade de princípios, colocando efetivos limites às atitudes solipsistas-voluntaristas. Mas, será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Dworkin responde que isso dependerá do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o mais fiel ou precisamente possível, então a integridade não é coerência; é, ao mesmo tempo, mais e menos. Há um direito fundamental a um tratamento equânime. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios mais fundamentais da comunidade política como um todo. A integridade é uma norma mais dinâmica e radical do que parecia de início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em sua busca de coerência com o princípio fundamental. Fundamentalmente – e nesse sentido não importa qual o sistema jurídico em discussão –, trata-se de superar as teses convencionalistas e pragmatistas a partir da obrigação de os juízes respeitarem a integridade do direito e a aplicá-lo coerentemente. 
O quarto princípio quatro é o dever fundamental de justificar/fundamentar as decisões. Se nos colocamos de acordo que a hermenêutica a ser praticada no Estado Democrático de Direito não pode deslegitimar o texto jurídico-constitucional produzido democraticamente, parece evidente que a Sociedade não pode ser “indiferente às razões pelas quais um juiz ou um tribunal toma suas decisões. O direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, cobra reflexão acerca dos paradigmas que informam e conformam a própria decisão jurisdicional”.7 Há, pois, uma forte responsabilidade política dos juízes e tribunais, circunstância que foi albergada no texto da Constituição, na especificidade do art. 93, IX, que determina, embora com outras palavras, que o juiz explicite as condições pelas quais compreendeu. O dever de fundamentar as decisões (e não somente a decisão final, mas todas as do iter) está assentado em um novo patamar de participação das partes no processo decisório. A fundamentação está ligada ao controle das decisões, e o controle depende dessa alteração paradigmática no papel das partes da relação jurídico-processual. Por isso, o protagonismo judicial-processual – que, como já se viu, provém das teses iniciadas por Büllow, Menger e Klein ainda no século XIX – deve soçobrar diante de uma adequada garantia ao contraditório e dos princípios já delineados. Decisões de caráter “cognitivista” (em termos de meta ética, “não-cognitivistas”), de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real” se pretendem “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com o paradigma do Estado Democrático. Veja-se que a Corte de Cassação da Itália (n. 14.637/02) recentemente anulou decisão fundada sobre uma questão conhecida de ofício e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes, chegando a garantir que o recurso deve vir já acompanhado da indicação da atividade processual que a parte poderia ter realizado se tivesse sido provocada a discutir. Em linha similar – e em certo sentido indo além –, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal (Rec. 10.361/01) assegurou o direito de a parte controlar as provas do adversário, implementando a garantia da participação efetiva das partes na composição do processo, incorporando, no decisum, doutrina8 no sentido de que o contraditório deixou de ser a defesa, no viés negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito de influir ativamente no desenvolvimento do processo. O Supremo Tribunal Federal do Brasil (MS 24.268/04, Rel. Min. Gilmar Mendes) – embora venha impedindo, historicamente, a análise de recursos extraordinários que invoquem o aludido princípio – dá sinais sazonais da incorporação dessa democratização do processo, fazendo-o com base na jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, é dizer, a pretensão à tutela jurídica corresponde à garantia consagrada no art. 5º, LV, da CF, contendo os seguintes direitos: (a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; (b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; (c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berucksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo acórdão da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Durig/Assmann, sustentando que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht). Portanto, a historicidade da compreensão gera, para o intérprete-juiz, uma série de compromissos a serem cumpridos na fundamentação de sua decisão. A necessidade da fundamentação impede que as decisões se resumam à citação de enunciados assertóricos, anti-hermenêuticos na origem, por obnubilarem a singularidade dos casos (veja--se que o princípio é o mundo prático do direito; nem mesmo o princípio pode ser resumido a um enunciado assertórico). Este princípio – que é um dever fundamental – vem a ser complementado por outro igualmente fundamental: o do direito de obter uma resposta constitucionalmente adequada à Constituição, isto é, o do direito a obter uma resposta baseada em pretensões juridicamente tuteladas. Advirta-se, por relevante, que o trabalho do intérprete não exclui a dimensão pessoal-valorativa inerente a qualquer atividade compreensiva. Como já referido, o controle rigoroso da interpretação, a preservação da autonomia do direito, o respeito à integridade do direito e o dever fundamental de justificar detalhadamente às decisões não implicam uma “vedação de atribuir sentidos aos textos jurídicos”, ou seja – e me permito insistir nisso –, nada disso implica uma “proibição de interpretar”. Longe disso! Insista-se: a superação (morte) do esquema sujeito-objeto acarretou também o fim da filosofia da consciência, pensada como elemento de fundamentação transcendental. Mas tal circunstância – e isso é de fundamental importância, para evitar mal-entendidos –, não representou a eliminação do sujeito, que evidentemente está presente em qualquer relação de objeto que faz parte de qualquer enunciado (jurídico ou não).  Que fique bem claro: não se pode confundir pré-compreensão com visão de mundo, preconceitos ou qualquer outro termo que revele uma abertura para o relativismo. 
Por último, o quinto princípio: o direito fundamental auma resposta constitucionalmente adequada, tese central para a Crítica Hermenêutica do Direito. Esse princípio/padrão tem uma relação de estrita dependência do dever fundamental de justificar as decisões e daqueles princípios (ou subprincípios) – cunhados pela tradição constitucionalista – que tratam do efeito integrador (ligado ao princípio da unidade da Constituição), da concordância prática ou da harmonização, da máxima efetividade e da interpretação conforme a Constituição. Como princípio instituidor da relação jurisdição-democracia, a obrigação de fundamentar – que, frise-se, não é uma fundamentação de caráter apodítico – visa a preservar a força normativa da Constituição e o caráter deontológico dos princípios. Consequentemente, representa uma blindagem contra interpretações deslegitimadoras e despistadoras do conteúdo que sustenta o domínio normativodos textos constitucionais. Trata-se de substituir qualquer pretensão solipsista pelas condições histórico-concretas, sempre lembrando, nesse contexto, a questão da tradição, da coerência e da integridade, para bem poder inserir a problemática na superação do esquema sujeito-objeto pela hermenêutica jurídica. Se o desafio de uma metódica jurídica, no interior desse salto paradigmático, é “como se interpreta” e “como se aplica”, as próprias demandas paradigmáticas do direito no Estado Democrático apontam para uma terceira questão: a discussão acerca das condições que o intérprete/aplicador possui para encontrar uma resposta que esteja adequada ao locus de sentido fundante, isto é, a Constituição. Quem está encarregado de interpretar a Constituição a estará concretizando, devendo encontrar um resultado constitucionalmente justo (a expressão é de Gomes Canotilho). E esse resultado deve estar justificado, formulado em condições de aferição acerca de estar ou não constitucionalmente adequado. 
Há, assim, um direito fundamental ao cumprimento da Constituição. Mais do que isso, trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Essa resposta (decisão) ultrapassa o raciocínio causal-explicativo, buscando no ethos principiológico a fusão de horizontes (Horizontverschmelzung) demandada pela situação que se apresenta. Antes de qualquer outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso. Mais ainda, há de se indagar em que sentido aponta a pré--compreensão (Vor-verständnis), condição para a compreensão do fenômeno. Para interpretar, é necessário compreender (verstehen) o que se quer interpretar. Este “estar diante” de algo (ver-stehen) é condição de possibilidade do agir dos juristas: a Constituição. 
A decisão constitucionalmente adequada é applicatio (superada, portanto, a cisão do ato interpretativo em conhecimento, interpretação e aplicação), logo, a Constituição só acontece enquanto “concretização”, como demonstrado por Friedrich Müller a partir de Gadamer. Isso porque a interpretação do direito é um ato de “integração”, cuja base é o círculo hermenêutico, sendo que o sentido hermeneuticamente adequado se obtém das concretas decisões por essa integração coerente na prática jurídica, assumindo especial importância a autoridade da tradição (que não aprisiona, mas funciona como condição de possibilidade). A tradição é ponto de partida e não de ponto de chegada, por isso os sentidos, ainda que atualizados, sempre guardam um “DNA”, uma história a ser (re)construída. Não esqueçamos que a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, como bem lembra Gadamer. 
Por fim, o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada não implica a elaboração sistêmica de respostas definitivas. Isso porque a pretensão de se buscar respostas definitivas é, ela mesma, anti-hermenêutica, em face do congelamento de sentidos que isso propiciaria. Ou seja, a pretensão a esse tipo de resposta sequer teria condições de garanti-la. Mas o fato de se obedecer à coerência e à integridade do direito, a partir de uma adequada suspensão da pré-compreensão que temos acerca do direito, enfim, dos fenômenos sociais, por si só já representa o primeiro passo no cumprimento do direito fundamental que cada cidadão tem de obter uma resposta adequada à Constituição. Veja-se, nesse sentido, que Habermas, em seu Era das transições, embora a partir de uma perspectiva não propriamente próxima à hermenêutica, mas, evidentemente antirrelativista – e esse ponto interessa aos propósitos da hermenêutica aqui trabalhada –, afirma que a busca da resposta correta ou de um resultado correto somente pode advir de um processo de autocorreções reiteradas, que constituem um aprendizado prático e social ao longo da história institucional do direito. O direito a uma resposta constitucionalmente adequada será, assim, consequência da obediência aos demais princípios, isto é, a decisão (resposta) estará adequada na medida em que for respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do direito, a partir de uma detalhada fundamentação. O direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, mais do que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime, respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico, porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeito-objeto predominante nas duas metafísicas (clássica e moderna).
Notas
1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II, p.271.
2 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica, p. 180.
3 DWORKIN, Ronald. Decisión. Conceptos fundamentales de filosofía, vol. I., pp. 476-490.
4 ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Manual de direito processual civil, p. 1133.
5 Ver CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito constitucional como ciência de direção. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, p. 118.
6 Cf. DWORKIN, Dworkin. Law’s empire, p. 176.
7 CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional, p. 50.
8 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais, p. 96.
Referências
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Manual de direito processual civil. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito constitucional como ciência de direcção. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2008, pp. 105-127.
__________________; MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013.
CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
DWORKIN, Ronald. Decisión. Conceptos fundamentales de filosofía. Hermann Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder, 1977. Volume I.
DWORKIN, Dworkin. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 2002. 
SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
__________________. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
__________________. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
__________________.Verdade e consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
Citação
STRECK, Lenio. Hermenêutica constitucional. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/18/edicao-1/hermeneutica-constitucional

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