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168 Ü COMPARATISMO EM TEOLOGIA DAS RELIGIÕES da Palavra de Deus, sempre reconl- ~,...endo o estatuto plena- mente humano e histórico da Es, Se fosse necessária uma l- sobre o comparatismo, seria temológico de uma teologi<" da fé não se opõe ao respr Muito ao contrário, é o f tidade crente que pode f da crença do outro pa telectual difícil, trat bre o seu próprio r renunciar à sua p1 julgamen~o. E, n rr,· ~ ·S .$.i) qJ ~ "''-aio :pis- priori ;rença. ia iden- ~ ~ -~ ·r!' ~ ?s JY .preensão 1titude in- .o outro so- ~ ~ do parceiro lew ·S a, ~ _tem por isso .nimento e -de pela alteridade ,a de sua própria /erdade mais alta identidade e f e mais comr dá testemu' respectiva entre mr gia com transp i,,· ~ ~ Ji lí ' ~rr, J' ,.,,. ~ ~ li ry (:, ~' -e?" ~~ :::, .· :::, ~ ,..ro <.J ~ v. ·' o· ii:' ~ 45 Q..tt, (j I~ e,; / particular de que . Essa integração da Ner, toda a diferença .religiosa e uma teolo- / seria mais do que uma / das religiões. q 1 Capítulo 8 l A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS NOS TRÊS MONOTEÍSMOS Temos o costume de designar as três religiões mono- teístas, que estão ligadas à posteridade de Abraão, como as religiões do Livro. Não é falso, na medida em que cada uma dessas religiões se refere a um texto fundador, quer se trate da Torá, da Bíblia cristã ou do Corão. E, de fato, esse texto- -fonte, essa Escritura dita santa, é o meio pelo qual a voz ausente de Deus se torna Palavra de Deus para os homens. É evidentemente possível falar, desde agora, de revelação, em sentido amplo, a propósito de muitas outras religiões que também invocam Escrituras sagradas. 1 Mas só há revelação, em sentido estrito, quando Deus se dirige em primeira pes- soa pela mediação de uma Escritura diretamente inspirada por ele. É o caso da herança comum a todos os filhos de Abraão, que creem em um Deus que falou pelos profetas. Entretanto, é impossível evocar essa herança que lhes é co- mum sem, ao mesmo tempo, salientar quão diferente é o funcionamento dessa relação fundamental entre Escritura e Palavra de Deus na economi3; de cada uma das três religiões. Neste breve capítulo, começarei por insistir na origi- nalidade de um Deus que se revela pela palavra. Tratarei, em seguida, de procurar compreender a relação estruturan- te Escritura-Palavra.em cada religião monoteísta. Constata- remos, em cada uma, um estatuto diferente da Escritura e uma relação diferente com a história. Mas, a despeito des- sas divergências, é importante, sobretudo na época moder- 1 Permito-me remeter ao meu estudo "Révélation et Révélations", na Encyclopédie des religions, II, Paris, Bayard Éditions, 1997, p. 1415- 1424. 170 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... na, ressaltar a homologia entre as três religiões, na medida em que estão sujeitas a uma abordagem hermenêutica. É a única ~efia de rtão ido1átrar a letra da.Escritu;;·e de resistir à tentação do fundamentalismo. A ORIGINALIDADE DE UM DEUS QUE FALA A palavra "revelação" serve para designar o ato pelo qual o que nos concerne de maneira incondicional_ nos in- vade. Essa irrupção do incondicionado no condicionado não pode ser objetivada, mas a presença do incondicionado na consciência compreende, necessariamente, um momen- to de conhecimento. Por definição, o que nos concerne êie maneira incondicional permanece absolutamente oculto. É por isso que esse alg9 só pode se manifestar indiretamente, por revelação, a partir de alguns sinais. Embora se trate de longínquas analogias, em relação a uma revelação em sen- tido religioso, toda existência humana inclui experiências reveladoras nás quais ãfolltece algo gratuito que íiao pÕde s~r reqy_zid9 __ à reconstrução subjetiva;ifei~a por aq\iêfe ·que interpreta sua _exp~riência. Por exemplo, na expê:dêncía ·aõ amor, ou na experiência estética, experimentamos alguma coisa que transcende nossa experiência ordinária. Experi- ência e interpretação estão intimamente misturadas. Mas --a-interpretação é sempre segunda em relação à irrupção de alguma coisa inédita náºtrama de nossas vidas. .,. -- ! ~:· ... · Nas religiões pagãs, os deuses, ou o divino, se tornam presentes aos homens nesses sinais sagrados que são as grandes realidades do cosmo, ou na interioridade mística da consciência religiosa. Estamos no registro da manifes- tação, que nos remete a uma divindade cósmica tornada presente no universo mudo das coisas ou na intimidade da consciência . O que é absolutamente notável, a propósito da reve- lação bíblica, é o acento posto sobre a palavra e a Escritu- 1 t J f .. .,., "_ ·. _.Jlj 1 DE BABEL A PENTECOSTES 171 ra, bem como a importância dada às mediações históricas. Trata-se de uma revelação por modo de proclamação e não simplesmente de manifestação.2 Essa revelação em sentido estrito se desenvolve na dimensão de uma palavra, de um sujeito divino que fala e cuja voz, prolongada pela Escritura, ressoa através de testemunhas privilegiadas. "Dize-me qual é a tua língua e eu te direi qual é o teu Deus": A religião de Israel introduziu, assim, uma polaridade nova na esfera do religiÜso,-~ ~aber, a da palavra_ q'ue o_trans12.mta acima 9-.0 . sagiadô-õü-aõ-numino;~·-das religiões pagãs. Basta evocar a lufa dos profetas de Israel c~ntra os cultos cananeus, contra os mitos agrários, e contra todo o sagrado da natureza e do cosmo. O Deu_~ ele Abraão, de Jsaac e de Jacó, que se revela às grandes testemunhas de Israel, não _.to Deus da natureza, mas o Deus da história. Não é o Deus da fecundidade, ou da imortãHdâ.de, m;s -~ beus criador que abençoa as realidades ~~ mundo e que faz aliança com um povo. A divinização do mundo ou o sagrado da natureza recuam diante da impor- tância dada à palavra, ao mandamento ético e à história. O Deus único do monoteísmo judaico, monoteísmo tardio quer~~Õntiiâ.os· sécufos' VII e VI antes del-c., é um Deus Údo e não visto, como os deuses do paganismo, que se manifestam.graças às teofanias a partir dos fenômenos da natureza. O nascimento do Deus único, criador do céu e da terra, tem uma ligação secreta com a invenção de um sis- tema de escrita alfabética sobre o papiro. E como diz, com muita graça, Régis Debray, o Deus de Israel é um Deus por- tátil, ao contrário dos deuses do politeísmo, que são locais, atados a lugares sagrados, uma cidade, um templo, ídolos de pedra.3 Pode-se dizer que os três monoteísmos têm uma 2 Ver o artigo de Paul RICOEUR, "Manifestation e proclamation" (já citado no capítulo precedente), n. 3, p. 146. 3 Ver R. DEBRAY, Dieu, un itinéraire, Paris, Odile Jacob, 2001. i 1 11•! ;1111111 1:1 ,l )! 11 1 !U·L- 172 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... ligação privilegiada com o Logos e com a escrita. E, fatal- mente, quem diz Escritura diz tradição e interpretação vin- culadas a uma comunidade que conta com instâncias insti- tucionais de regulação. A TENSÃO ENTRE A ESCRITA E A PALAVRA DE DEUS Para distinguir as três religiões monoteístas das reli- giões de revelação em sentido amplo, chamo-as de religiões Escriturárias, isto é, aquelas que se referem simplesmente a textos sagrados. E se os três monoteísmos que pertencem à herança de Abraão conheceram, frequentemente, no cur- so da história, um tipo de rivalidade fratricida, é justamente porque cada uma invoca um Livro que é considerado como própria· Palavra de Deus, quer se trate da Torá, d.a Bíblia cristã ou do Corão. Nos três casos, há uma tensão necessá- ria entre a Escritura (o livro sagrado) e a Palavra de Deus. O livro sagrado, por mais santo que seja, é um livro humano escrito em hebraico, em grego ou em árabe.Dito isso, é li preciso respeitar a especificidade de cada tradição religiosa. A relação Escritura-Palavra de Deus é estrutural, e há ma- neiras diferentes de compreendê-la. Isso se deve à natureza da mediação entre a Palavra inacessível de Deus e o recep- tor humano, e também à respectiva importância que cadâ- religião dá à história. A Torá de Deus No caso do judaísmo, só se pode compreender a reve- lação divina no quadro de uma aliança com um povo parti- cular situado na história, Israel. Sendo assim, não se pode identificar a Palavra de Deus com um livro que teria caído do céu, sem relação com os acontecimentos da história. A revelação, no sentido judaico, evoca um Deus que escreve a história, em vez de um livro. A palavra hebraica para revela- ' JI 1 DE BABEL A PENTECOSTES 173 ção significa a ação de Deus na história. Mas só se pode falar em revelação, em sentido estrito, quando essa história sus- cita um testemunho profético que se torna uma Escritura, a Torá. Essa é uma palavra que quer dizer, antes de tudo, Lei, mas que serve para designar os cinco livros do Pentateuco. Não há, portanto, revelação imediata, no sentido de pala- vras pronunciadas por Deus mesmo, por intermédio de um mensageiro ou de um autor sagrado, puramente passivo. Deus se revela nos acÓntecimentos da história que são já "palavras de Deus", quer se trate de um apelo dirigido a Abraão, da aliança com Moisés, do Êxodo, do retorno do Exí- lio. Eles contribuem para forjar uma história santa que já é, por si mesma, reveladora. Mas esses acontecimentos só mostram sua plenitude de sentido quando atualizados na consciência profética do povo de Deus. E, visto que a revela- ção se inscreve na história, ela se reveste, sobretudo, de uma exigência ética. A Torá, como expressão da vontade de Deus, propõe menos um conhecimento propriamente dito do que uma via (halaka), uma atitude prática e um conjunto de pres- crições de ordem moral (ver o Decálogo). Ao passo que, nas religiões pagãs, os ritos cultuais con- sistem essencialmente em repetir, na história, o que foi fi- xado, uma vez por todas, num tempo inicial (ver o mito do eterno retorno segundo Mircea Eliade), a revelação do Deus de Israel está intimamente ligada ao conteúdo de promes- sas para o futuro, e não a teofanias ou a epifanias do divino em lugares sagrados. O Êxodo, a saída do Egito, é a figura mais adequada para designar a essência mesma da religião de Israel como religião messiânica, isto é, como marcha libertadora liderada pelo próprio Deus. Mas não compreenderíamos nada da relação entre Es- critura e Palavra de Deus na economia do judaísmo se es- quecêssemos que a Torá escrita ou, ainda, a Bíblia hebraica (que corresponde grosso modo ao Antigo Testamento dos cristãos) foi sempre acompanhada, desde a sua elaboração, 11uaul: 1111 !1'" il., il !~- 174 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... de uma tradição oral que se esforçava por interpretar e, ª!l!él...:_ lizar o ensinamento de Deus em função dos grandes aconte- cimentos do povo de Deus. É preciso esperar pela dest~uiçã~ do Templo, setenta anos depois do nascimento de Jesus, e a emergência do que chamamos de judaísmo rabínico, para que a palavra Torá designe inseparavelmente a Torá escrita e a Torá oral. Em outras palavras, a Palavra de Deus só é viva nessa dialética entre a Escritura e uma tradição inter- pretativa determinada por situações sempre novas. Depois da destruição do Templo, é o rabino que, de certa manei- ra, se torna, por ocasião da leitura dos rolos da Torá, a voz dos antigos profetas. A tradição oral memorizada será posta por escrito na Mixná, por volta de duzentos anos depois do nascimento de Jesus. E o conjunto desses documentos dará origem, pór volta de seiscentos depois do nascimento de Jesus, ao Talmud da Babilô~ia. EJTI todo caso, é essencial reter que:emoõra:--; língua.hebraica seja uma língua santa, o judaísmo rabínico, isto é, o judaísmo da dupla Torá, ~11?:~fi= idolatrou a letra da Escritura. Esta só ~ Palavra de Deus . se for atualizada pela interpretação do rábi:t;10 que é ouvido como um novo Moisés. Cristo ou a Palavra de Deus feita carne Com o monoteísmo cristão, a revelação se concentra na pessoa de Cristo e, portanto, nãoriüm livro, embora inspira: ,, - do, nem num povo, embora santo. Verifica-se, assim, a pro- funda divergência entre as três religiões monoteístas, mes- mo que em cada uma se encontre uma relação estrutural entre a Escritura e a Palavra de Deus. No caso do islã, o livro do Corão equivale adequadamente à Palavra de Deus, sem que a mediação do profeta Maomé tenha podido interferir: a Palavra de Deus é feita Livro. Para o judaísmo, a Torá escrita é él cl<:!limitaçª-9_ concreta operada num conjunto muito mais vasto de Escrituras, todas inspiradas por Deus. A Escritur~- 1 t l' "l ¾:- i -i ,;ç ~'~ A DE BABEL A PENTECOSTES 175 remete a uma comunidade interpretante e as duas proce- dem, ao mesmo tempo, de uma eleição e de uma inspiração. No cristianismo, o livro da Bíblia cristã (Antigo e Novo Testamento) não se fecha em si mesmo e não se autojusti- fica. Ele remete, necessariamente, Àquele que se dá como signãtario e referência última, Jesus Cristo, revelação pes- soaf d~beus. A-~ovidade cristã reside no fato de que os dÕis--polos historicamente identificáveis, o Livro e o Povo, remetem a um terceiro polo, ausente e, no entanto, presen- te: Cristo ressuscitado, sempre vivo, que é ontologicamen- te primeiro e que faz explodir uma concepção puramente linear da história. O corpus das Escrituras tem um vínculo indissociável com ó corpo do Ressuscitado, sempre vivo, e cóm a Igreja, que é seu corpo. Na assembleia litúrgica, onde se anuncia a morte de Jesus até que ele volte (lCor 11,26), a Igreja reconhece seu Senhor, que lhe fala cada vez que o Evangelho é proclamado. Pode-se, portanto, falar de uma relação dialética entre esses trê~ __ termos que se reclamam mutuament~: c:;!is!~1.a.Jg~~j_a_e o Livr~:~risto é, ao m~~@.9, tempo, a Palavra definitiva de Deus dirigida ao homem _e ? resposta totaldô homem a Deus. A Igreja é a comunidade susdtida pelo dom e pela aé9lhida dessa Palavra: o livro das Santas Escrituras é o lugar onde a comunidade eclesial toma consciência de seu ser profundo. · ---Jã irisísti sobre a origin~lidade dé\ revelação bíblica como comunicação de Deus na história. Essa concepção da revelação como autocomunicação de Deus encontra, se- gundo a fé cristã, seu acabamento no acontecimento Jesus Cristo. Ela foi particularmente valorizada pelo Concílio Vaticano II, que tomou suas distâncias diante de uma con- cepção demasiadamente nocional da revelação identificada a um corpus de verdades sobrenaturais. 4 Deve-se compre- 4 Refiro-me, evidentemente, à constituição dogmática sobre a Reve- lação: Dei Verbum. 1;1111 'I li 1 1 ~ ; 1111 "!IU~ 176 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... endê-la, antes, como o ato pelo qual Deus entra em relação com os homens por intermédio da pessoa de Jesus, de Sllfl palavra, de seus atos e gestos, de modo especial por mei~- da sua morte e da sua ressurreição. Desse modo, no cristia- nismo é impossível hipostasiar uma Escritura santa como único intermediário entre Deus e os homens. Jesus de Nazaré não escreveu e, portanto, não há texto cuja tradução seria impossível. Ele nem mesmo ditou suas revelações a seus companheiros ou discípulos, co.mo no caso do profeta Maomé. Assim, à exceção de algumas ipsis- sima verba de Jesus, não podemos remontar até a tradição· ~!al de seu ensino. É a versão grega do Novo Testamento . que nos transmite a sua mensagem e nos conta o que ele féz 1 ao passar entre os homens. E é uma tentação tipicamente fundamentalista preJender quea versão grega dos quatro Evangelhos seja a reprodução de uma versão ar;-m;ica da qual os ouvintes de Jesus teriam sido os estenógra]õ-s. _Q_texto_c:l_Q._Novo Testamento já-é, portanto, uma in- terpretaçãQ: É o ~to de interpretação .da comunid;J~ mitiva. E, ao contrário do que frequentell?-ente se imagina, convém saber que a Igreja primitiva viveu, durante cento e cinquenta anos, teiiâõ como única Escritura a BíbÜa hebrai-- ca, isto é, a Lei e os P[Ofetas. Pouco a pouco, assistiu-se ao processo de ser posto, por escrito, o testemunho apostólico. Os primeiros escritos, que eram lidos diante da comunida- de cristã, coexistiam com uma tradição oral cujos traços se 1 encontram nas cartas de Paulo. Defrontamo-nos, portanto, com uma multiplicidade de diversos testemunhos sobre a vida e as palavras de Jesus, à luz da fé na ressurreição do Se- nhor. Antes de pretender remontar à palavra viva de Jesus como enviado de Deus, é preciso tomar a sério a relativi- dade histórica de um corpus escriturário que contém hesi- tações, omissões, divergências e até mesmo contradições, em função das necessidades e dos interesses da comunidade nascente. Não há, portanto, nas origens do cristianismo, DE BABEL A PENTECOSTES 177 um texto fundador, supostamente inspirado, mas uma co- munidade crente e interpretante sob a moção do Espírito de Cristo sempre vivo. Segundo o Evangelho de João (16,13), foi o próprio Jesus quem anunciou aos discípulos que de- pois de sua partida "o Espírito santo os conduziria à verda- de plena" .5 Assim, pode-se concluir que, no cristianismo, não há língua sagrada que pretendesse ser a língua de Deus. A vo- cação da língua grega do Novo Testamento é a de ser tradu- zida em todas as línguas das nações. Como se vê, a partir da narrativa dos Atos dos Apóstolos, no dia de Pentecos- tes, os apóstolos anunciam a ressurreição do Senhor na sua língua materna, e os ouvintes, reunidos em Jerusalém, os compreendem na sua própria língua. É a cada um que o Espírito dá o dom de ser tradutor. É muito importante, com efeito, que a unidade essencial da mensagem evangélica se enraíze na originalidade de cada uma das línguas humanas. O Corão ou a Palavra de Deus feita livro6 A revelação feita ao profeta Maomé, no Corão, não está relacionada a uma "história santa" da qual Deus seria o agente. A revelação consiste essencialmente no milagre pelo qualbeus mandou o arcanjo Gabriel ditar o Corão para o -I;rof ~ta. A revelação corânica não é uma nova revelação em relação às revelações anteriores. Antes do profeta Mao- mé, Adão, Abraão, Moisés e Jesus já transmitiam a mesma mensagem sobre a unicidade de Deus. O que há de melhor nos "homens da Escritura" (judeus e cristãos) é a parte de islã (submissão) de que eram portadores sem o saber. Há, 5 Ver C. GEFFRÉ, "La lecture fondamentaliste de l'Ecriture dans le christianisme", Études, dezembro de 2002, p. 635-645. 6 Resumo, aqui, o conteúdo de meu artigo já citado no capítulo pre- cedente: "Révélation chrétienne et révélation coranique", Revue des sciences philosophiques et théologiques, 81, p. 239-242. ! 178 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS,,, portanto, como que uma "desistorização" da história san- ta tal como está contada na Bíblia judaica. É por isso que não é exato falar do islã como religião bíblica. Mas, em vez de considerá-la uma religião natural, anterior à religião de Israel, é preferível compreendê-la como uma religião onto- lógicà;fiindâda sobre a aliança "transistórica" que coi~~I~I;;- com a,.criação do primeiro Adão. ·-·· · Conforme o ensino tradicional, o profeta Maomé não é o autor do Corão: é apenas um transmissor. O autor é o próprio Deus, e Maomé é designado como o "selo da pro- fecia", porque o Corão, que lhe foi ditado, constitui o livro -· ' p~_~feito, incomparável, inimitável, que não só complt:!taJ revelação sobre a unicidade de Deus, mas fornece o critério a-partir do qual se pode discernir, nas Escrituras judaica.~ .. e . cristãs, o que é autêntico e o que é falsificado. O Corão não foi inventado por alguém outro que Deus, ele é a confirma- ção do que existia antes (ver sura7 10,3 7). É difícil, portanto, estabelecer uma simetria entre a maneira pela qual o Novo Testamento completa a Lei e os profetas, e a maneira pela qual o islã completa as duas religiões monoteístas anterio- , res. De fato, ele não tem só a pretensão de completar, no sentido de confirmar, ele substitui. Conforme o ensino oficial do islã, o Corão teria ~!~~ ditado por Deus, ao profeta Maomé, na sua literalidade. É equívoco· dizer, portanto, que o Corão é inspirãà.~, no sentido em que os cristãos dizem que a Bíblia é inspirada. Neste último caso, corri 'efeitÓ, fala-se de uma inspiração na ordem da mensagem religiosa que salvaguarda a plena humanidade do autor sagrado e sua liberdade na escolha da linguagem. Deve-se, antes, falar de uma inspiração verbal no sentido em que a entendem ainda certos fundamentalis- tas protestantes. É sabido que os muçulmanos estão dispos-·· 7 Sura: seção, versículo ou capítulo do Corão; surata. Fonte: Houaiss da língua portuguesa. (N.R.) DE BABEL A PENTECOSTES 179 tos a acolher as palavras mesmas de Jesus como Palavra de Deus; mas eles julgam que o conjunto dos escritos do Novo Testamento, como ato de interpretação do acontecimento Jesus Cristo pela primeira comunidade cristã, já comporta uma falsificação da revelação da qual Jesus é testemunha. Em outras palavras, a doutrina oficial do islã permanece impermeável à ideia corrente, entre os teólogos cristãos, de uma inspiração concebida como tradição interpretativa sob a- açào-do Espírito de Deus. Mas convém observar que, ·enfrê-õs novos pensadorés do islã, há um número cada vez maior de autores que têm o cuidado de distinguir o Corão escrito, ou Mushaf, e o Corão recitado, ou discurso corâni- co, que seria a reprodução direta do Livro incriado junto de Deus. 8 Isso vai ao encontro da distinção que Mohammed Arkoun sempre faz entre o fato corânico e o fato islâmico. ·; No Corão nos é dito que Deus falou em árabe claro (ver sura 26,195). E uma, certa tradição muçulmana não hesita em considerar o árabe como a língua própria de Deus. Em outras palavras,. a Pala_~ra_d~l!§_~m J!~&l!~Jra_!Je 11ãCJ ~e- ria somente divina na ordem do significado, isto é, da men- Sãgem religiosa, m;!S na ktr~..( Isto é, na ordem do próprio signi_fiç<!nte. É o mesmo que.di~·er que#9 Corão é intraduzí- -----· ·""-· vel, porque traduzir é tentar dizer a mesma coisa çle outro iii'ôdo ê,"i;>ortanto, jáé interpretar. Isso permite medir adis- tância entre o islã e os dois outros monoteísmos que, entre- tanto, não hesitam em considerar a Bíblia como a Palavra de Deus. Os hebreus veneram o hebraico como uma língua santa, mas para tornar a mensagem da Torá acessível ao mundo grego, não tiveram receio em empreender a tradu- ção dos Setenta. E como se viu, desde que o ensino de Jesus, em aramaico, foi posto por escrito, foi o grego que serviu de 8 Remeto ao livro de Rachid BENZINE, Les Nouveaux Penseurs de l'islam, Paris, Albin Michel, 2004. O autor apresenta os representantes mais importantes de uma corrente que se pode designar como modernis- ta aos olhos do islã oficial. i 111' 11 il IH' lii :1111 11i 1-- 180 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... meio de transmissão. É verdade que, no caso da revelação corânica, há continuidade entre a língua original do profeta e a língua do Corão como livro humano escrito em árabe. Mas a questão é a de saber se, mesmo nesse caso 1 );1-ão se deve dar seu lugar a uma tradição interpretâüvà. - A EXIGÊNCIA HERMENÊUTICA DOS TRÊS MONOTEÍSMOS Tomamos consciência das profundas divergências en- tre as três tradições monoteístas, seja quanto ao estatutoda Escritura dita santa, seja quanto à relação com a histç,- ria. Estamos, então, mais livres para reconhecer certa ho- mologia no que concerne à relação entre a Palavra sempre ausente de Deus e os sinais de revelação, a saber, a's expres- sões humanas e históricas dessa Palavra. Os próprios mu- çulmanos estão prontos a admitir que o Corão, como livro escrito, é uma revelação inadequada em relação à plenitude da palavra de Deus que se encontra no livro incriado, que subsiste junto de Deus. \1 Quer se trate da Torá, dos Evangelhos ou do Corão escrito (Mushaf), e seja qual for a concepção teológica da primeira enunciação (ditado por Deus a um profeta, ou carisma profético de uma tradição interpretativa), as três religiões escriturárias têm em comum o fato de estar em -- situação hermenêutica, .pelo fato de que, em todas elas, há passagem da oralidade para {im texto. 9 É necessário, por- tanto, passar por um texto fixado graficamente para aceder a uma palavra original em hebraico, em aramaico ou em árabe, que está irremediavelmente perdida. Ao longo de um processo muito complexo, os textos que foram assim 9 Tentei refletir sobre a mudança hermenêutica da teologia cristã no meu livro Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théo- logie, Paris, Éd. du Cerf, 2001. 1 DE BABEL A PENTECOSTES 181 progressivamente reunidos se tornam Escrituras canom- cas ou corpora oficiais, reconhecidos por comunidades que obedecem à jurisdição de autoridades que decidem sobre a interpretação correta. Estamos, em cada caso, em presença do que Mohammed Arkoun chama de "as sociedades do livro", sociedades nas quais se leem os textos fundadores para ~xtrair-deles sistemas teológicos, uma lei, prescrições que in.stauraram a ordem doutrinal, moral, jurídica de cada fori:ninidade. Descobre-se, então, a importância da tradição e da tra- illli 1111 li li '1111 dução para cada religião monoteísta, isto é, a importância . 1, 1'1 1111 da necessária atualização do texto sagrado, a fim de que seja .' 1 1 1 • 1 -_, :11 recebido como Palavra de Deus pelos homens e mulheres · 1 de hoje. E, cada vez, trata-se de uma operação hermenêuti-1 / 1 1i] ca. O -~~~~a.-~-~i,re>Jisco do fundamentalismo escriturário é o ,Jf :1 ! desconhecimento da necessária abordagem hermenêutica 1 -/\ aplicacfã-n;·1êitura de qualquer texto. \_ ' A tradição repousa sobre o postulado segundo o qual os textos consignados nos corpora oficiais são a reprodução i fiel dos enunciados originais da revelação. Ora, por causa dos jogos de poder, a tradição pode se tornar um processo de manipulação e de esclerose. Sabe-se, por exemplo, como, no correr dos séculos, os cristãos e os muçulmanos pude- ram dogmatizar e legislar sacralizando, de maneira abusi- l11', va, ensinamentos e preceitos contingentes, em nome de uma Verdade revelada, absoluta e definitiva, que escapava a qualquer historicidade. Normalmente, uma tradição só é viva se obedece a uma dialética de continuidade e de ino- vação, e se pratica um discernimento hermenêutico entre a intenção religiosa permanente de um texto sagrado e o veículo cultural dessa mensagem, isto é, os diversos sig- nificantes que têm a relatividade e a contingência de uma dada época. Ao longo da história, houve necessariamente reinterpretação da mensagem original em função de novas culturas e de outro crível disponível do espírito humano. 1 ' 1 ,,1 1 1 1 1 11 i 1 11 : ·1 l 182 A RELAÇÃO ENTRE ESCRITURA E PALAVRA DE DEUS ... Tudo isso foi pretexto para um novo texto sob forma de comentários, de enunciados teológicos, de prescrições de ordem ética ou jurídica. Finalmente, mesmo no interior de uma me§ma cultu- ra, um texto sagrado SÓ pode ser Palavra deõeus e~~ôtido ··fmfe;''fstó-é, suscitar uma experiência religiosa que coincida ··ro:rrrúma. comunhão com Deus e uma nova possibilid;d;de · existência, à custa de certa tradução. Sabe-se que a le{tura mais objetiva de um texto, sagraâci ~u não, dá lugar a uma pluralidade de interpretações. Ora, é próprio de uma men- talidade fundamentalista pretender que um texto inspira- do, não importa quão obscuro seja, é portador de um único sentido, o sentido literal, como dizem os exegetas, que cor- responderia ao que queria dizer o autor sagrado que seria, ele mesmo, o porta-voz do querer dizer do próprio,peus. A ideia de que um texto particular da Escritura só tem sentido à luz do conjunto das Escrituras, e que dependeu de uma pluralidade de leitores ao longo da história de sua recep- ção, não passa pela cabeça dos defensores de uma leitura fundamentalista. Aceitar reconhecer que só podemos crer interpretando, istõe,··ênivirtÚde de uml ing~n:~lida~e.§t!- gunda que passou pela prova da crítiç_1! hiê.tórica eqé1._Ç.:çíJica _ literária, já seria cair _!\.um liberalism9 _s.gi_çig~ p_é!YLa_tt Hoje, a boa tradução de um texto sagrado antigo não é a transposição literal do mesmo conteúdo para uma língua compreensível. Às vezes é preciso ser infiel à materialidade do texto para ser mais fiel à intenção de sentido do texto. Para ser bem-sucedido nessa arte difícil, é preciso dar prova de imaginação analógica. 10 Q critérig_da-bg.a~ portanto..,_ .. da boa interpret;ção.€qu~--o tex_to.se.torne inter- pretante para o ouvinte e o leitor de hoje . .. ------------------· 10 Tomo emprestada essa feliz expressão do teólogo americano Da- vid TRACY. Ver Pluralité et ambiguité (trad. fr.). Prefácio de Cl. Geffré, Paris, Éd. du Cerf, 1999. ' 1 j 1 1 DE BABEL A PENTECOSTES 183 Ao final desse breve sobrevoo das três religiões mono- teístas como religiões de revelação em sentido estrito, eu diria que_~_~!}~~!~-~~:a. i~~P,2~ª-~ª é s~mpre o testerr1_~!}:~~-, . {.,.,., de uma comumd?_ª~ cr~gt~ e.. mterprt.:tante, que tem a reia-1t tivíclãde-âêtudo o que é histórico. Falar. <la Êscrhuiitê;iiio 'tesfêmunhÕ-é-~t;~ fd~'f;t;;r a lefra dà EScriforã.cõino se elãiõssé-ãp{ópri~·Pafaviã'àe Deus. A ~scritura é um:·t~ste- 'muntiõ'q1üfremefepãra o aj~\rwces_sív~Lg_a_pl:SPiiij:êf~- · aaTa1avrãõroéu;1. suprimir a __ _gi.stâ._Ilcia entre a Escritura "êaPãtavfa···aê· neu:s-já seÍi;·d~~respei tar a·ciáusura.'In;iQ-;." 7ãvél do sífênêTõ aet5élliçQ~Õ-indício .. dé ·ªº·ª ver4adeira, '·trãnscendê~""Ta.: ·---· . --- . . - ..... ··-· ·---~~---·'-- ,•"•"""'""'- !l:1 i 1 .,1,I
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