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362 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 RESENHAS REVIEWS Educação Profissional no Brasil. Silvia Maria Manfredi. São Paulo: Cortez Editora, 2002, 317 pp. Edgard D. A. T. Bedê Doutorando em Educação, Universidade Federal Fluminense <edgardbede@terra.com.br> O livro de Silvia Manfredi compõe a Coleção Do- cência em Formação e destina-se a subsidiar os cursos de formação de professores para atuarem neste campo. No capítulo I da 1a Parte (“Traba- lho, Profissão e Escolarização: visitando concei- tos”), a autora aponta que, apesar de um certo grau de correlação entre escolaridade e empre- gabilidade, essas relações resultam, na verdade, de uma complexa rede de determinações e con- tradições sócio-históricas. De forma acertada, ela afirma que as mudanças macro-econômicas ocorridas a partir de 1990, caracterizadas pela nova inserção subordinada do Brasil à economia global, provocaram a diminuição do emprego in- dustrial e o aumento do desemprego, do subem- prego e da informalidade. Conseqüentemente, a Educação Profissional (doravante, EP) em si não gera diretamente tra- balho nem emprego, conforme avalia com muita pertinência a autora, constituindo-se como um processo condicionado e determinado de quali- ficação social. O trabalho e o emprego depen- dem, segundo Manfredi, da organização dos pro- cessos estruturais de produção, das condições do mercado de trabalho, das políticas regulató- rias da economia capitalista. Entretanto, justa- mente por assumir essa visão da questão, deve- ria estar presente, nesse capítulo, uma análise mais substancial e histórica sobre a crise do for- dismo e a emergência da acumulação flexível, por serem categorias determinantes no processo sócio-histórico da metamorfose do trabalho e do emprego no capitalismo global competitivo, com conseqüências profundas nas reformas atuais da EP no Brasil. No capítulo II, ainda na 1a Parte (“Histórias da Educação Profissional”), Manfredi busca re- construir a história das práticas educativas do Brasil, não apenas apresentando uma narrativa de sucessão de fatos, mas se preocupando em analisá-los em conexão com as transformações estruturais da sociedade brasileira. Assim, a eco- nomia colonial escravista restringiu a EP aos al- deamentos jesuítas, onde ocorreram as primei- ras experiências de ensino de ofícios. No Perío- do Imperial, surgiu primeiramente o ensino su- perior para a aristocracia escravista formar a ca- mada de burocratas da monarquia. Os ensinos primário e secundário surgiram com caráter pro- pedêutico. A EP de ofícios era desenvolvida em academias militares, liceus de artes e ofícios e casas de educandos artífices. Na Primeira Repú- blica, com o trabalho assalariado na cafeicultu- ra e as primeiras indústrias, a autora destacou a criação de uma rede de escolas profissionalizan- tes nos Estados, pelo governo federal, as quais futuramente tornaram-se os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets). No Estado Novo, com a implantação do mo- delo de substituição das importações e com a política intervencionista de Estado, surgiram novos padrões e mecanismos de controle e capa- citação da nova classe operária para atender à industrialização em massa. Nesse período, a au- tora destacou a separação dual entre o ensino propedêutico e o ensino profissional pelas Leis Orgânicas. Ressaltou, ainda, a construção do Sis- tema S para a formação da mão de obra opera- cional, sob controle exclusivo das entidades em- presariais. Sobre a EP no Regime Militar, apesar de a au- tora destacar a tentativa fracassada de implan- tar o ensino técnico obrigatório através da Lei 5692/71 de reforma do ensino de 1o e 2o graus, a obra carece de uma análise mais dedicada às de- terminações históricas dessa reforma, que esta- belecesse as múltiplas relações entre, de um la- do, a expansão do capitalismo monopolista ba- seado nas empresas estatais e multinacionais, a tecnoburocracia estatal e a nova dependência externa, e, de outro lado, a necessidade de for- mação profissional de nível técnico em massa para atender ao chamado “milagre brasileiro”. A segunda parte do livro se divide em cin- co capítulos. No capítulo I (“A Reforma do En- sino Médio e Profissional nos Anos 90: a cons- trução de uma nova institucionalidade”), a au- tora dedica-se a analisar os embates políticos na definição da EP nos anos 90, em especial no go- verno FHC. Manfredi afirma, corretamente, que a nova LDB e o Decreto 2208/97 representaram o triunfo do projeto de reforma da EP oriundo da classe empresarial, mantendo a dualidade e criando uma nova institucionalidade da EP. Dentro desse governo, havia uma divergência entre o projeto de reforma da EP encaminhado 363 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 reviews pelo Ministério do Trabalho (através da Secre- taria de Formação e Desenvolvimento Profissio- nal) e o encaminhado pelo Ministério da Educa- ção (mediante a Secretaria de Educação Média e Tecnológica): o primeiro, envolvendo amplos se- tores da sociedade civil, buscava a superação da dicotomia entre ensino médio e ensino profis- sional; o segundo atualizava essa dicotomia, priorizando o aumento de escolaridade e a (re)- qualificação profissional para a nova estrutura produtiva. Essa divergência refletia o embate de projetos – escola unitária universal e escola funcional ao mercado – oriundos da sociedade civil. O capítulo II (“A Rede de Educação Profis- sional”) retoma a reforma da EP, ao radiografar, de forma brilhante, a nova institucionalidade instaurada pela reforma – que organizou o ensi- no em três níveis, básico, técnico e tecnológico – como uma multifacetada rede composta pelos sistemas de ensino, Sistema S, universidades, es- colas de empresas, escolas de sindicatos, ONGs, sindicatos e cursos livres. No nível básico, a au- tora destaca o Plano Nacional de Formação (PLANFOR), que, através do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), financia projetos de esco- larização e (re)qualificação em parcerias com sindicatos, escolas, ONGs e empresas. No nível técnico, a autora alertou para o risco de “senai- zação” dos Cefets devido, entre outros fatores, ao descomprometimento da União com a expan- são da rede federal de escolas técnicas e ao in- centivo de parcerias dos Cefets com empresas, para atender mais organicamente às necessida- des do mercado e obter o auto-financiamento através da especialização em cursos modulares e não regulares de curta duração para capacitação profissional. No capítulo III (“Sistema S”), Manfredi ca- racteriza o Sistema S como uma rede institucio- nal de EP, articulada a atividades sócio-recreati- vas, culturais e assistenciais e mantida por ver- ba pública, mas sob controle exclusivo das enti- dades empresariais oriundas dos diferentes se- tores da economia. O Sistema S, analisa correta- mente a autora, funciona, ao mesmo tempo, co- mo um mecanismo de racionalização, disciplina- mento e controle da mão de obra, e como força ideológica de incentivo à paz social entre o ca- pital e o trabalho. Contudo, como processo so- cial mediado, o Sistema S está atravessado por contradições que transformam esses aparelhos educacionais em palcos de tensões e disputas in- ternas de projetos de EP. As entidades sindicais dos trabalhadores vêm questionando o monopó- lio dos empresários sobre o Sistema S e apontan- do para a criação de um sistema gestor triparti- te de empresários, governo, trabalhadores, tal como o FAT. No Capítulo IV (“Educação Profissional e as Entidades da Sociedade Civil”), o livro enfoca o crescimento da participação das ONGs na EP a partir dos anos 90, com o PLANFOR e as verbas do FAT. Nesse capítulo, foram apresentados, de forma bem fundamentada, o Projeto do MST e o Projeto AXÉ, escolhidos pela autora por possuí- rem em comum uma perspectiva de intervenção crítica em realidades sociais tão distintas quan-to injustas: a luta pela terra no campo e a luta pela sobrevivência nas periferias urbanas. Contudo, está ausente, nesse capítulo, uma análise comparativa desses projetos, ressaltando suas diferenças políticas. O Projeto do MST pos- sui claramente um caráter contra-hegemônico, de formação de intelectuais orgânicos para par- ticiparem como dirigentes na intervenção social de ocupação, resistência e produção da terra do latifúndio; o Projeto AXÉ apresenta um caráter de inclusão social, pela formação da cidadania, socialmente necessário, sem dúvida, mas limita- do à construção da identidade social como novo instrumento da política de consenso. Tal dife- rença pode ser constada, de forma empírica, na diferença política do tratamento, pela grande mí- dia, aos dois projetos (apesar de ambos terem si- do premiados pela Unicef/Unesco). No capítulo V (“Educação Profissional na Organização dos Trabalhadores”), Manfredi de- dica-se a demonstrar o processo de participação crescente das centrais sindicais (Central Única dos Trabalhadores, Força Sindical, Confedera- ção Geral dos Trabalhadores), a partir de 1996, nos programas de (re)qualificação profissional e escolarização, em parceria com o PLANFOR e financiados com recursos do FAT. Até 1995, dentro da CUT, havia uma séria divergência so- bre se seria ou não papel do movimento sindi- cal substituir o Estado na EP. Segundo a autora, o processo histórico de transformação do siste- ma produtivo, o crescimento do desemprego es- trutural e o recuo do movimento sindical im- puseram a necessidade de uma atuação siste- mática da CUT na EP. Assim, em 1999, o Progra- ma Integração, da CUT, foi viabilizado pelo 364 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 resenhas Saúde Paidéia. Gastão Wagner de Sousa Campos. São Paulo: Editora Hucitec, 2003, 185 pp. Monica Vieira Pesquisadora do Observatório dos Técnicos em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz <monicavi@fiocruz.br> Elaborado como coletânea de textos, Saúde Pai- déia busca expressar e ultrapassar os desafios da gestão, presentes no encontro com o real do tra- balho em saúde. Os autores, convocados pelos encontros e pelas experiências do cotidiano de trabalho, percorrem aspectos que circundam o tema central da intervenção, já que “saúde é um campo comprometido com a prática” (p. 11). A função ‘paidéia’ é entendida como uma dimen- são da gestão, no sentido de produzir sujeitos e coletivos organizados e de reforçar o compro- misso com os valores de uso nas atividades pro- fissionais de trabalhadores da saúde. No entendimento de que a compreensão do cotidiano depende de conceitos, métodos e teo- rias, o livro, dividido em quatro partes, relacio- na o conceito de ‘paidéia’ – de origem grega, que significa o desenvolvimento integral do ser humano – com temáticas como “saúde coletiva”, “clínica ampliada”, “modelos” e “a experiência de Campinas”. A obra pode ser melhor apreen- dida se lida na perspectiva de um desdobramen- to da produção anterior do autor: Um método para análise e co-gestão de coletivos (Hucitec, 2000), um livro que trata de conceitos, métodos e teorias que devem ser construídos previamen- te à análise do real. No livro, Gastão reforça a necessidade de construção de abordagens compreensivas sobre as formas de atuar nas organizações de saúde, buscando-se analisar os espaços de expressão do trabalho e alcançar propostas de gestão que te- nham como eixo a construção de alternativas de relacionamento com o trabalho. Na primeira parte – intitulada “Saúde Cole- tiva e o Método Paidéia” – o autor aponta que o método reafirma a possibilidade dos sistemas de saúde contribuírem para a constituição do sujei- to, considerando que a gestão e as práticas pro- fissionais têm a capacidade de modificar pa- drões de subjetividade. Assim, noções como “vínculo”, “arranjos” e “roda” são apresentadas como norteadoras da ação humana no interior dos espaços organizacionais, podendo contri- buir para orientar a reflexão sobre a gestão do trabalho e sobre a qualificação de trabalhadores nos serviços públicos de saúde. Em “Clínica Ampliada”, segunda parte da obra, o autor, utilizando os conceitos de “cam- po” e de “núcleo de saberes e responsabilida- des”, identifica a gestão colegiada e a conforma- ção de unidades de produção como favoráveis à construção de projetos terapêuticos. Nos encon- tros e desencontros dos movimentos entre traba- lho e gestão, situam-se os desafios que podem si- nalizar caminhos de mudança. Nessa ciranda, PLANFOR, bem como outros programas da FS e da CGT. A EP passa ser entendida agora como um campo de disputas de concepções e práticas de domínio do novo saber/fazer operacional e téc- nico pelos trabalhadores, para o enfrentamento das novas estratégias de controle do capital so- bre o trabalho coletivo. Entretanto, a autora per- deu a oportunidade de ressaltar as contradições desencadeadas por essa institucionalização dos projetos educativos através de recursos do FAT. Ou seja, o livro não problematiza até que ponto esses programas em parceria com o PLANFOR significam realmente uma resistência contra-he- gemônica ao controle do capital, numa fase de recuo da capacidade de organização e luta da classe trabalhadora, ou constituiriam, ao contrá- rio, novas estratégias da política de consenso, buscando a colaboração e domesticação do novo sindicalismo, tão temido na década de 80 como alternativa radical da classe trabalhadora. De modo geral, a obra de Silvia Manfredi busca sistematizar, de forma inédita, os conhe- cimentos e as discussões acumuladas e atuais so- bre EP no Brasil. As transformações da base téc- nica e organizacional das empresas, a mundiali- zação do capital e as reformas em curso no Bra- sil colocam na ordem do dia a importância estra- tégica do domínio e da disputa sobre o novo sa- ber/fazer do trabalho coletivo e sobre o caráter da EP. Nesse sentido, a leitura desse livro torna- se obrigatória para todos os educadores-sindica- listas envolvidos na intervenção política por uma educação na perspectiva emancipatória, em contraposição à perspectiva instrumental volta- da para o mercado. 365 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 reviews deslocam-se saberes e reconstroem-se possibili- dades, definidas numa abordagem dialética que descobre diferentes eixos de análise e de inter- venção. A análise realizada nos textos parte de uma concepção ampliada acerca da categoria “traba- lho” e do interesse pela constituição dos modos de ser trabalhador. Dessa forma, consideramos relevantes noções como “serviço”, “espaço or- ganizacional”, “situação de trabalho”, “identi- dade profissional” e “qualificação”, dado seu caráter complementar à conformação do “méto- do paidéia”. Como pano de fundo das questões presentes no livro, coexistem distintas correntes de pen- samento diante das transformações no mundo do trabalho, incluindo o setor de serviços. Uma se aproxima da percepção de que, à medida que a racionalização elimina as condições para as orientações “morais” em relação ao trabalho, sua dimensão subjetiva, associada à “dignidade” e ao reconhecimento social do trabalhador, tam- bém se enfraquece. Caminha-se, assim, para um processo de não envolvimento com o trabalho, acreditando-se que este não pode mais signifi- car o fundamento ético da sociedade nem ofere- cer o eixo em torno do qual fixar identidades e projetos de vida. A outra corrente sinaliza o sur- gimento de espaços para a expressão subjetiva no trabalho, que pode traduzir o desenvolvi- mento de uma consciência do seu significado. Essa abordagem indica a possibilidade de reva- lorização do trabalho a partir das brechas de participação mais autônoma e criativa em seus espaços. Nas discussões das dimensões complexas da gestão, presentes na terceira parte do livro, bus- ca-se integraro mundo cotidiano com o mundo da produção, aproximando-se da visão de que a importância do trabalho relaciona-se com sua possibilidade de significar fonte de realização, de ser percebido como central na constituição do homem como sujeito. O trabalho surge, des- sa forma, como criador de valor de uso, como atividade vital que possui uma intenção voltada para o processo de humanização. Os autores pa- recem apostar que o setor de serviços, por sua lógica e racionalidade próprias – margem mais ampla de atuação, indeterminação de ativida- des, maior necessidade de comunicação e quali- ficação – deve encontrar-se mais protegido do processo de degradação do trabalho. Outro aspecto apontado pelos autores nesse terceiro segmento da obra, especialmente no texto de Rosana Onocko Campos – “A Gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas” –, refere-se à necessidade de reativar a questão do sentido na vida organizacional. Compreende-se que as concepções do pensa- mento administrativo clássico, na busca de téc- nicas úteis para produzir dominação e consen- so, obediência e docilidade, desconsiderando desejos e interesses, tenham dado origem a per- cepções de pessoas e de relações de trabalho car- regadas de conseqüências negativas para a vida de trabalhadores. A quarta e última parte do livro, que trata da experiência de Campinas (SP), apresenta dois textos elaborados pela equipe envolvida nos projetos da Secretaria de Saúde do município. O primeiro identifica as diretrizes do Projeto de Saúde da Família, na busca da reforma e amplia- ção da rede básica de Atenção à Saúde. Os auto- res recuperam a noção de “clínica ampliada”, apresentada anteriormente, enfatizando a neces- sidade de redefinição do trabalho a ser realizado e apontando alguns eixos que norteiam a pro- posta, como acolhimento e responsabilização, sistema de co-gestão e capacitação. O segundo texto desta parte final discute uma experiência de intervenção institucional nas equipes dos distritos sanitários e no hospital Mário Gatti de Campinas, também orientada pelo “fator Pai- déia”, ou seja, pela perspectiva de que uma con- cepção ampliada de gestão possa influir na cons- tituição de sujeitos com maior autonomia e ati- tude crítica. Um dos méritos do livro é permitir a refle- xão sobre os pressupostos centrais dos aportes teóricos que têm servido de modelagem para a prática administrativa. Assim, percebe-se que o espaço organizacional, tradicionalmente perce- bido como aquele que constrange e tolhe a ex- pressão de sensibilidade, é capaz de gerar expe- riências inovadoras entre os trabalhadores, e en- tre estes e os usuários dos serviços de saúde. Em suma, a abordagem utilizada no livro amplia os enquadramentos normalmente utiliza- dos na gestão do trabalho e impulsiona para uma compreensão do trabalhador como criador de história, ou seja, a obra parte do princípio que a identificação com o trabalho só é possível quando o trabalhador consegue assumir o ato de trabalhar como seu, apropriando-se dele como 366 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 resenhas por examinar a obra em questão não necessaria- mente a partir dos conjuntos de artigos que com- põem cada uma dessas partes, mas em termos de uma interpretação da clássica tripartição que dis- tingue a ‘linguagem sobre o trabalho’, ‘a lingua- gem no trabalho’ e a ‘linguagem como trabalho’. Essa opção implica em explorar o estatuto que a linguagem assume com relação ao próprio trabalho de cada um dos autores/pesquisadores. Embora cada um dos aspectos dessa tripartição apresente problemas de ordem prática e epistemo- lógica, na medida em que, em situação concreta, seja difícil, ou até mesmo impossível, estabelecer diferenças entre os dois últimos conceitos, concor- damos com Nouroudine quando conclui ser o sal- do final mais positivo do que negativo, principal- mente quando se opta por privilegiar, dentre os múltiplos problemas a serem examinados, “aquele que articula a questão do sujeito no trabalho ten- do em vista a complexidade da relação lingua- gem/trabalho” (p. 18) e, em decorrência, as ques- tões que envolvem a produção do saber. Além disso, tal visão tripartite, do modo apre- sentado pelo autor, está subordinada ao conceito de ‘práticas linguageiras’, tomado como termo ge- nérico que abrange esses três aspectos da lingua- gem, preservando a idéia de uma unidade no âm- bito da experiência antropológica em geral e, em particular, no âmbito da experiência de trabalho. Em decorrência da natureza das lentes com que nos propusemos a olhar para o livro, faz-se ne- cessário um enquadramento inicial da situação de trabalho dos próprios autores que assinam os tex- tos da obra em questão. Segundo os dados biográ- ficos que figuram no livro, com exceção da co-au- tora de um dos artigos que trabalha em um museu, todos são, ou foram, professores e pesquisadores lotados em universidades. Desse aspecto decorre o fato de ser a escrita de artigos e ensaios uma tarefa que faz parte das atividades de trabalho desses grupos de profissionais. Pode-se identificar, por- tanto, por meio desses produtos-textos, um traço geral e comum de ‘linguagem como trabalho’ no sentido “de uma fala para si e fala ao outro, para o outro” (Teiger, apud Nouroudine, p. 19), centrada essencialmente na necessidade, no campo da ciên- cia, de compartilhar os desafios enfrentados na rea- lização do trabalho de investigação e, ao mesmo tempo, de marcar a existência de uma identidade pessoal dentro da comunidade acadêmica. Desse modo, todos os textos constituem-se como exem- plares de ‘linguagem como trabalho’. sujeito. Nesse sentido, os vínculos sociais devem ser reconstruídos, permitindo a intensificação das possibilidades de formas de vida dignas de serem vividas. Linguagem e Trabalho. Maria Cecília Souza-e- Silva e Daniel Faïta (orgs.). São Paulo: Cortez, 2002, 240 pp. Maristela Botelho França Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) <mbfranca@hotmail.com> Linguagem e Trabalho, coletânea de textos organi- zada pelos lingüistas Maria Cecília Souza-e-Silva e Daniel Faïta, é uma importante obra que merece e precisa ser bem divulgada. Importante pela consis- tência teórica que se observa nos artigos, além do fato de representar um marco no intercâmbio entre Brasil e França com respeito ao trabalho de cinco grupos. Dos Programas de Pós-Graduação em Lin- güística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC- SP, em Letras da PUC-Rio e em Engenharia de Pro- dução da COPPE/UFRJ advêm os grupos do lado brasileiro, composto principalmente por lingüis- tas. Do lado francês, os grupos são constituídos por duas equipes pluridisciplinares, oriundas, na épo- ca da realização do livro, da Université de Proven- ce-Aix.Marseille e da Université de Rouen. Entre esses grupos, há em comum o interesse em discutir questões que afetam os diferentes mundos do trabalho contemporâneo, com o reco- nhecimento do papel fundamental que a lingua- gem desempenha como mediadora e construtora desses mundos. Os textos apresentados fornecem um leque de possibilidades para se pensar essas questões sem fugir ao desafio de fazer avançar o terreno teórico. O livro está harmonicamente dividido em três partes: “Diversidade de enfoques e de campos de intervenção” é o título da primeira, que reúne cin- co artigos; “Saberes acadêmicos, formação profis- sional e escola” constitui a segunda, com quatro artigos; por fim, “Construção de identidades, rela- ções de serviço e espaço empresarial” fecha o livro, com cinco artigos. Inspirados no excelente artigo “A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do traba- lho” que abre a coletânea, do filósofo comoriano Abdallah Nouroudine, optamos, nesta resenha, 367 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 reviews Por outro lado, prosseguindo em nossa análise daobra, na grande maioria dos textos que com- põem o livro, particularmente naqueles assinados por lingüistas, essa ‘linguagem como trabalho’ se reveste de uma outra particularidade que se traduz pela escolha mesma do objeto de análise que carac- teriza a produção textual como ‘metalinguagem’. Afinal, trata-se da linguagem sobre a linguagem. Essa metalinguagem pode ser, porém, percebida em dois diferentes níveis: no primeiro, a linguagem é constituída como objeto a partir do qual se visa à reflexão e ao debate sobre o próprio trabalho se- ja do professor – Regine Delamotte-Legrand em “A profissão de professor: relação com os saberes, diá- logo e colocação em palavras”; seja do ergonomista – Francisco Duarte, Vera Cristina Rodrigues e Day- se Lima com “A construção da ação ergonômica no projeto de modernização de uma refinaria de pe- tróleo: análise de interações entre operadores, en- genheiros e ergonomistas”; seja de assessoria pres- tada por lingüistas – Anna Rachel Machado e Ma- ria Cecília Magalhães com “A assessoria a professo- res na universidade brasileira: a emergência de uma nova situação de trabalho a ser desvelada”. No segundo nível, o posicionamento escolhido constitui a linguagem do outro, no caso, do prota- gonista do trabalho como objeto de análise. Nesses estudos, os objetos são analisados em termos de uma abordagem sócio-interacional com vistas a ve- rificar processos de “Construção e reconstrução de identidade em interações de trabalho” (Bastos, p. 159); processos de “Construção da identidade ge- rencial masculina no jogo interpessoal das emoções em uma reunião empresarial” (Pereira, p. 175); ou os efeitos de “Vozes superpostas em duetos e solos: um estudo da sobreposição numa reunião empre- sarial” (Oliveira, p. 193); e, por fim, “A pulsão co- municativa: jogos e desafios no questionamento entre entrevistador-entrevistado” de Jeannine Ri- chard-Zappella. Esses dois níveis refletem uma das problemáti- cas centrais entrevista em alguns dos textos: o pró- prio estatuto do papel do lingüista e de seu objeto no campo do trabalho. Esse é o assunto diretamen- te abordado por Daniel Faïta em sua excelente “Análise das práticas linguageiras e situações de trabalho: uma renovação metodológica imposta pe- lo objeto”, que propõe uma discussão de particu- lar interesse para aqueles que já se lançaram ou que pretendem se lançar nos estudos da linguagem em situação de trabalho. Os que se lançaram certa- mente irão se identificar com o tipo de questiona- mento proposto. Além do já mencionado problema de uma definição do papel do lingüista na análise do trabalho, o autor se pergunta se será mais ade- quado considerar, como verdadeiro objeto de sua pesquisa, o próprio funcionamento da linguagem ou as condutas dos atores e seus efeitos? Ou ainda, se os ensinamentos que são obtidos referem-se às atividades de trabalho ou se tendem mais a recons- tituir a especificidade da própria linguagem? (p. 4) O autor conclui que a análise da atividade, sob a perspectiva da linguagem, principalmente em si- tuação de trabalho, exige que os pontos de vista se- jam ampliados, o que diz respeito tanto ao objeto quanto à postura do lingüista. Suas conclusões apontam também para a necessidade de uma ‘ati- tude dialógica’, enfatizando o fato de o lingüista ser o profissional que está em condições de apreen- der os movimentos discursivos no âmbito de um diálogo instaurado entre ele próprio e os ‘textos’ recolhidos. Essa atitude dialógica, aliás, constitui-se como fio condutor que entrelaça vários textos. Nourou- dine, por exemplo, no já citado artigo, aponta para a necessidade de se construir uma ‘linguagem so- bre trabalho’ adequada em relação ao objeto ‘tra- balho’. Segundo o autor, essa linguagem “passa pe- la realização de um processo dialógico e dialético em que as duas linguagens (a dos trabalhadores e a dos pesquisadores) se confrontarão para “co-elabo- rar” uma “linguagem sobre o trabalho’ de um no- vo gênero” (p. 28). Além de fazer referência ao pro- cesso socrático de duplo sentido, defendido pelo fi- lósofo Yves Schwartz sob a forma de um dispositi- vo de três pólos (as disciplinas constituídas, os pro- tagonistas do trabalho e a exigência epistemológi- ca e ética), a conclusão de Nouroudine destaca o princípio dialógico bakhtiniano como orientação a ser considerada para o conhecimento das ativida- des humanas. Como um dos elos na cadeia dialógica que o li- vro proporciona, o artigo “Perspectiva dialógica, atividades discursivas, atividades humanas”, da especialista em teoria enunciativa Beth Brait, per- segue justamente o objetivo de discutir “as formas de mobilização e a pertinência de uma perspectiva dialógica para a análise das especificidades discur- sivas constitutivas das situações em que a lingua- gem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, como é o caso dos contextos de trabalho” (p. 31). Em seu texto, a autora oferece uma leitura sobre as principais noções que com- põem o pensamento dialógico bakhtiniano por 368 Trabalho, Educação e Saúde, 2(1):362-368, 2004 resenhas meio da justaposição e articulação de variadas fon- tes bibliográficas. Maria Cecília Souza-e-Silva, em “A dimensão linguageira em situações de trabalho”, descreve e comenta várias pesquisas realizadas por membros do Grupo Atelier que, de certa forma, exemplifi- cam a transformação do papel do lingüista e de sua relação com o objeto de análise, enunciada por Faï- ta, tomando por base, principalmente, uma atitu- de dialógica. Exemplos típicos de ‘linguagem sobre o traba- lho’ são “Criação e trabalho: um mapeamento de análise identitária”, de Eric Delamotte, e “A abor- dagem do trabalho reconfigura nossa relação com os saberes acadêmicos: as antecipações do traba- lho”, de Yves Schwartz. Trata-se de abordagens bastante interessantes de onde se podem extrair elementos de diálogo sobre o tema que mobilizará a comunidade acadêmica em 2004: a discussão so- bre o papel e a reforma da universidade de um mo- do a afirmá-la como instituição pública. Como um último motivo que confirma o méri- to de Linguagem e Trabalho, o artigo de Décio Ro- cha, M. Del Carmen Daher e Vera Sant’Anna “Pro- dutividade das investigações dos discursos sobre trabalho” ajuda a construir uma dimensão amplia- da da idéia de ‘linguagem no trabalho’, analisando discursos oficiais e midiáticos que, capazes de in- fluenciar as atividade e situações cotidianas, com- provam a possibilidade de recuperação e constru- ção de uma memória discursiva sobre o trabalho, indo buscar as influências que vão além dos muros onde as atividades se desenvolvem. Por tudo isso, o livro poderá ser de particular interesse para aqueles que aceitaram ou desejam realizar pesquisas que visem a contribuir para os conhecimentos das situações contemporâneas de trabalho.
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