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Prefácio e Cap 1 Sensibilidade do Intelecto

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1 
 
OSTROWER, Fayga. A sensibilidade do intelecto. (Prêmio Literário Jabuti 1999) 
Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1998. Disponível na Internet: 
http://pt.scribd.com/doc/77291471/OSTROWER-Fayga-a-Sensibilidade-Do-Intelecto. Acesso 
em 13 nov. 2013 
 
 
 
PREFÁCIO 
 
 Assim como uma pedra jogada na água torna-se o centro e causa de muitos 
círculos, e o som se difunde no ar em círculos crescentes, assim também qualquer 
objeto que for colocado na atmosfera luminosa propaga-se em círculos e preenche os 
espaços em sua volta com infinitas imagens de si, reaparecendo com todas e 
em cada uma de suas múltiplas partes. 
Leonardo da Vinci 
 
"Quando encontrei esta belíssima imagem, de Leonardo da Vinci, eu soube de repente 
qual poderia ser a forma deste livro. Há tempos, vinha estudando a questão de certas 
visões paralelas de espaço-e-tempo, que vejo existirem na arte e n a c i ê n c i a . A 
i d é i a m e f a s c i n a v a , e q u a n t o m a i s p e n s a v a n e l a e a e x p u n h a 
a o u t r a s p e s s o a s , m a s e l a s e aprofundava, se enriquecia e ganhava 
novos contornos. Trata-se de correspondências bastante significativas, e 
evidentes, tanto nas perguntas feitas sobre a vida e o mundo, quanto nas 
respostas que se tornaram possíveis em determinadas épocas, e que se manifestam 
através das formas que então foram criadas". 
Entretanto, ao me dar conta da imensidade e da abrangência desta 
temática, recuei. Ela envolvia uma série de problemas, que se desdobravam mais 
e mais, quase colocando-me diante da tarefa de ter que redigir uma espécie de filosofia 
da arte, acompanhada por outra ciência - empreendimento este, de ordem enciclopédica, 
e obviamente fora d e mi nh as p os s i b i l i d ad es . D e f a t o , e s t i v e a p o n t o d e 
ab and on a r o p ro j e to d es t e l i v r o . N o fu n do , p o r ém, o m eu interesse 
nem era poder expor uma seqüência cronológica da criação artística ou 
científica senão focalizar certos p e r í od os c r í t i co s , n os q u a i s s e 
t r an s fo rm ar am as i d é i as e a p r ópr i a v i s ão d e m und o . N es t es 
p e r í od os po demo s observar o surgimento de determinadas questões e 
enfoques análogos, ocorrendo simultaneamente nas formas expressivas da arte 
e da ciência. Senti que minha abordagem teria de partir dos próprios 
problemas artísticos, ou seja, dos problemas concretos da estrutura formal, 
das tensões e do equilíbrio das imagens, para poder exemplificar cer tas 
correspondências com as formas da ciência. Eu só não sabia como proceder 
sem me orientar pela linearidade da História. Assim, a imagem poética de 
Leonardo da Vinci, de círculos concêntricos, cada vez mais largos e abrangentes que os 
anteriores, foi uma verdadeira revelação para mim. Apontou um caminho e 
2 
 
também a forma em que eu poderia elaborar as reflexões deste livro. Este 
texto foi discutido durante um ano, página por página, com um grupo de 
pessoas convidadas por mim: Lilia Sampaio, pintora e professora de 
educação artística, Luiz Alberto Oliveira, físico nuclear, cosmólogo e 
filósofo, Roberto Santoro de Almeida, psiquiatra e musicólogo, Isabel 
Gurgel valente, psicanalista, e Gilda Salem Szklo, professora de literatura 
brasileira e francesa. Foram discussões fascinantes, que nos levaram muitas 
vezes a outras disciplinas e outras áreas do conhecimento. Devo-lhes sugestões 
valiosas, que enriqueceram não apenas o texto do livro, mas também a minha própria 
visão dos problemas artísticos. Além disso, estreitaram nossa amizade. Nem sei como 
lhes agradecer o seu interesse estimulante e sua generosa dedicação, pondo 
tanto tempo e trabalho à minha disposição. Também quero agradecer a Margarida 
Myrtô Tournillon por sua ajuda e grande paciência na ingrata tarefa de copiar e revisar o 
texto várias vezes. 
Evidentemente, a não ser quando indicado o autor de certos 
depoimentos e citações, assumo plena responsabilidade pelas opiniões aqui 
publicadas - e também pelos erros que eu possa ter cometido. Este livro destina-se a 
todas as pessoas que se comovem diante da milagrosa capacidade do ser humano de 
sentir e criar beleza, quer na arte ou na ciência, ou no viver a vida". 
 
 
 
Capítulo I: 
DO IMPRESSIONISMO AO CUBISMO 
 
Às vezes ocorrem situações na vida que, em si, nada têm de excepcional ou de 
muito importante. Mas, relembradas tempos depois numa visão retrospectiva, se 
revelam ter sido momentos significativos, momentos de insight, de um 
vislumbre de novas possibilidades. É como se uma faísca iluminasse de repente um 
novo rumo de reflexões. Pois foi justamente assim, num encontro casual e numa 
conversa sobre artistas e problemas artísticos, que me vieram as primeiras 
idéias - ampliadas e aprofundadas no decorrer dos anos -, que constituiriam, finalmente 
a abordagem e os temas principais deste livro. 
 H á ce r ca d e v i n t e an os , eu l ec io n ava n os E s t ad os Un id os . 
H av i a t e r min ado d e l e c io n a r p o r um s em es t r e nu m a faculdade de 
Atlanta, quando recebi o convite da Universidade de Filadélfia para participar de um 
congresso sobre o tema "Ensino superior nas universidades americanas". Acabou sendo 
uma semana bastante interessante que superou minhas expectativas. As manhãs 
eram dedicadas a programas acadêmicos, palestras, debate s, ao passo que as 
tardes ficavam livres para eventos sociais. Certo dia estava eu almoçando na cantina, 
quando sentou a meu lado um cavalheiro, já meio grisalho. Ele olhou para o meu crachá 
- o que em congressos, parece constituir uma espécie de ato-reflexo automático - e, em 
seguida, olhou para mim e, muito admirado, perguntou: 
 
3 
 
Você vem do Brasil? 
- Sim. - respondi. 
- O que você faz? 
- Sou artista, pintora e gravadora. Também sou professora de teoria de arte. - me 
identifiquei. Perguntei de volta: - E o senhor, o que faz?- Ele me disse seu nome, 
acrescentando que era diretor do Instituto de Astrofísica da Universidade. 
- Muito prazer. 
- Muito prazer. 
Estávamos apresentados. Ele continuou perguntando: 
- E o que você está fazendo aqui em Filadélfia? 
- Ora! - respondi Estou participando deste congresso... 
- Não, desculpe, não é o que quis dizer. Além do congresso, você vai fazer o quê? 
- Como assim? 
- Talvez você pretenda visitar o Museu de Arte. 
- Mas é claro! - respondi - Embora já o conheça bastante bem. É um dos grandes 
museus dos Estados Unidos. 
- E o que você vai querer ver no museu? 
- Não sei ainda. De fato, é preciso escolher, já que o museu é riquíssimo. 
Talvez as salas de arte oriental, onde há obras magníficas. Também poderia rever 
a coleção cubista, que é das mais representativas deste estilo. Sim, penso que vou querer 
ver mesmo o Cubismo. 
- Você se importaria se eu a acompanhasse nessa visita? - perguntou o professor. 
- De modo algum. - respondi 
- Será um prazer. 
- Então amanhã de manhã? 
- Está bem. Amanhã. Combinado. 
Na tarde seguinte fomos ao Museu de Arte, e nos dirigimos diretamente à 
sala do Cubismo. Logo na entrada havia uma pintura de Picasso, Cabeça 
de Mulher (ilustração 2) . 
Parando abruptamente diante do quadro, o professor não se conteve e 
exclamou: 
Mas que horror! Veja só aqui! Os olhos, o nariz, a boca, está tudo deformado, as mãos, 
os braços! Tudo está fora do lugar, tudo parece quebrado! Será que Picasso não sabia 
desenhar direito? 
- É c l a r o q u e P i c a s s o s a b i a d e s e n h a r d i r e i t o - r e t r u q u e i - , s e 
 p o r " d i r e i t o " s e e n t e n d e r e p r o d u z i r a s f e i ç õe s anatomicamente 
corretas. Aos quinze anos, Picasso já terminara os estudos na Escola de Belas-Artes em 
Barcelona, onde seu pai era um dos professores de arte. Em termos acadêmicos, o 
jovem artista não tinha mais nada a aprender. Basta olhar para alguns dos quadros 
que ele pintou na adolescência, após deixar a escola, para ver que Picasso 
dominava perfeitamente a anatomia de um rosto, das articulações das mãos, braços, 
pernas, enfim, do corpo humano em qualquer posição (ainda que tais pinturas 
apenas demonstrem o grande talento e a habilidade do futuro artista estando 
4 
 
longe de merecerem a qualificação de arte). Aliás, em outra fase de sua carreira, na 
chamada fase clássica, influenciada pela arte grega, Picasso criou imagens 
belíssimas de figuras humanas, respeitando as proporções anatômicas do corpo 
humano. Veja, por exemplo, o retrato de Maria Picasso, mãe do artista. (Ilustração 3). 
 
- Então você quer dizer que estas deformações aqui são propositais? 
- Sim , foram feitas intencionalmente. 
 
 
- Pior ainda! - irritou-se o professor. 
Mas que sentido pode haver em distorcer a natureza de tal maneira? Como é 
que você explica isso? Picasso estava com raiva? Ou não há explicação? 
- Há, sim - respondi. 
Só que não será o bastante explicar as formas expressivas em termos puramente 
pessoais de temperamento, estado de humor, aspirações, frustrações, pois 
se trata de uma questão de estilo. No estilo, todas as feições da personalidade 
estão presentes e se fundem, mas elas são transformadas em termos de linguagem. E 
este é um ponto crucial: a arte como linguagem. É preciso entender que a arte não é uma 
mera técnica de reprodução das aparências de figuras humanas, paisagens ou 
objetos (como se fosse uma espécie precursora da fotografia de 
documentação). 
A arte é uma linguagem própria, cujos termos específicos - cores, 
linhas,formas são expressivas e m s i , e cu j os con t r a s t es e ên f as e s 
f o rm a i s t amb ém se t o rn am ex pr e s s iv os . 
A s "d i s t o r çõ es " , p o r ex emp lo , correspondem a ênfases formais, 
ênfases seletivas acentuando certos aspectos no conteúdo expressivo de uma 
mensagem. Na verdade, a deformação como princípio de seletividade não 
somente é inevitável como também é indispensável para a expressividade de uma 
imagem - em todas as épocas e todos os estilos. Entretanto, eu não pretendo 
começar minhas explicações enunciando meia dúzia de conceitos. Não 
esclarecem o essencial e até podem falsificar o sentido da criação artística, levando a 
uma super-racionalização do processo criador e ignorando a dinâmica da intuição e o 
papel fundamental da sensibilidade. Por exemplo, as pessoas poderiam pensar que um 
estilo surge em função de certas teorias preconcebidas, o Cubismo, a partir de terem 
sido formuladas teorias cubistas, o Impressionismo, ilustrando teorias impressionistas, o 
Renascimento, teorias renascentistas etc. O conceito s e r i a an t e r i o r ao a to de 
c r i a ção - o qu e é u m a in v e rs ão to t a l do p r o ces so v er d ad e i ro . E 
a i nd a t a l pens amen t o implicaria a idéia de um estilo poder ser previs to, 
programado, planejado ou inventado de alguma maneira - o que, novamente, é 
um grande equívoco. E não passa de literatice banal. 
No entanto, em nossos dias esta visão não é tão 
r a r a a s s i m , p o i s " e s t i l o " é c o n f u n d i d o c o m u m a q u e s t ã o d e 
5 
 
 m o d a . A d e m a i s , s e m p r e s e p r o c u r a u m r ó t u l o intelectualizado para 
que as explicações pareçam mais objetivas e mais "científicas", mais aceitáveis. Não é 
assim? 
O professor olhou para mim, meio alarmado com a veemência de minhas palavras. 
Procurei tranqüilizá-lo. 
- Não se assuste. - disse - As coisas são bem mais simples sem nunca deixarem de ser 
complexas. Acima de tudo, de tudo mesmo, está o viver, a própria vida vivida. É nela 
que temos nossa referência máxima - ela constitui, ao mesmo t em po , a r e f e r ênc ia 
e o co n t ex to p a r a o s no ss os v a l o r e s . A s s im , é em fu n ção d a v i da 
q u e s u r gem as f o rm as expressivas da arte. Então, ao longo dos milênios da 
história da humanidade, primeiro vem a criação realizada pelos artistas. Depois, 
eventualmente, surgem classificações, análises, teori as, conceitos, 
formulados a partir das obras criadas. P or o u t ro l ad o , va l e r e t omar 
b r ev em en te a n oção de a r t e com o l in gu agem. T od as a s f o rm as 
a r t í s t i c as s e n os apresentam como formas de linguagem: pintura, 
escultura, música, dança, poesia, arquitetura, e assim por diante. Dentro da 
especificidade de cada linguagem, as formas - visuais, musicais, cinéticas, 
arquitetônicas - nos comunicam u m co n t eúd o , m as n ão ao n ív e l i l u s t ra t i vo 
o u an ed ó t i co , r ep ro d uz in do a l gum ob j e to ou ep i só d i o i n c id en t a l . 
S eu conteúdo é bem mais profundo. Por isso nos comove. Pois a arte se 
refere em última instância à própria condição humana e a certos 
questionamentos sobre a realidade de nosso viver. Ela sempre formula uma 
visão de mundo. É neste nível que ocorrem suas indagações e as tentativas de 
resposta. 
 
Então eu queria saber a que tipo de realidade se refere o Cubismo - repetiu o professor. 
- Certo - concordei. 
- Só que, para poder explicar a evolução de um estilo como o Cubismo, seria 
necessário recuar um pouco no tempo, e ter um ponto de referência e de 
comparação fora do cubismo. Digamos, recuar a Cézanne. Mas isto ainda seria 
insuficiente. Pois para entender o significado das obras de deste mestre e de sua 
extraordinária co n t r i bu i ção à l i n guagem ar t í s t i c a – r e fo rm ul and o to d a 
e s t r u t u ra es p ac i a l e en r iq u ecen do en orm em ent e n oss a sensibilidade -, 
em suma, para poder avaliar a profunda influência de Cézanne sobre o Cubismo, ainda 
teríamos que recuar uma geração, até o Impressionismo, como possível contexto inicial 
para entender a lógica dos desdobramentos estilísticos que levaram ao Cubismo. 
 
- V am os f az e r o s egu i n t e r o t e i r o . - p ro p us ao p ro f es so r . 
- Es t e m us eu t em um a s a l a l i nd í s s im a d e p in t u r as d e Cézanne. 
E uma outra com pinturas impressionistas. Primeiro podemos ver algumas obras 
do Impressionismo. Depois passaremos a Cézanne, e de lá voltaremos novamente a 
Picasso. Está bem? 
- Está bem. 
6 
 
Iniciou-se assim nossa visita aos impressionistas. 
No século XIX, após a Revolução Francesa, inaugura-se um período inédito 
na história da arte, marcado por numerosas, e também radicais, 
transformações estilísticas: Neoclassicismo, Romantismo, Realismo, 
Impressionismo, Expressionismo, entre outros. Os dois grandes movimentos que 
surgem na segunda metade do século, em sucessão direta, Realismo e 
Impressionismo, são de um cunho essencialmente descritivo, participando, 
portanto, ambos, da mesma corrente básica do Naturalismo. No entanto, há uma 
diferença fundamental entre eles. Na verdade, há um abismo entre os dois estilos, pois 
eles contrastam em todos os aspectos, desde o motivo pictórico até a elaboração formal 
dos elementos e de sua composição. Por conseguinte, formulam conteúdos expressivos 
diametralmente opostos. 
No Realismo, nas imagens de Gustave Courbet (1819-1877), um dos maiores 
artistas do século XIX - aliás, o século inteiro é de gigantes na arte -, 
encontramos como conteúdo expressivo uma visão de dignidade e de 
nobreza da existência física. A partir deste sentimentode vida, o artista configura a 
materialidade do mundo - paisagens, figuras humanas, objetos - em composições 
majestosas, de grande densidade, dando um peso visual à própria matéria 
pictórica das imagens (Ilustração 4.) 
Já no Impressionismo, não é mais a materialidade das coisas que está sendo 
enfocada, e sim um fenômeno de ordem imaterial: a luminosidade atmosférica. Tema 
principal das obras impressionistas, a luz atmosférica transfigura todos os 
objetos. Embora não altere sua essência, muda no entanto sua aparência com 
o passar das horas do dia. Encantava aos artistas essa radiosidade sempre 
cambiante, seus reflexos cintilantes que transformavam o cotidiano em visões de 
inesperado esplendor. Foi o impacto sensorial deste espetáculo feérico que os artistas 
procuravam captar do modo mais fiel e objetivo, traduzindo a luminosidade - fenômeno 
natural - para os termos da linguagem visual, usando cores intensas e vibrantes. Nas 
obras dos principais pintores impressionistas, Monet e Renoir, podemos 
observar a imagem sendo construída, pincelada a pincelada, por inúmeras 
manchinhas de colorido vivo. Somente se usavam cores primárias e secundárias: azul-
vermelho-amarelo, e laranja, verde, violeta (outras gamas como, por 
exemplo, marrom, ocre cinzento, preto, foram abolidas). Em vez de se misturarem 
as diversas nuances na palheta, as cores eram justapostas na tela, puras, para 
que, quando enfocadas a certa distância, ela se fundissem na percepção 
do espectador, num processo óptico-sensorial direto. Desta maneira, o 
colorido como um todo tornou-se vibrante e altamente excitante. Nunca 
antes as cores atingiram tamanho grau de sensualidade. Quero ainda comentar certos 
aspectos da elaboração formal da cor no Impressionismo, que são determinantes para a 
estrutura espacial de suas imagens. Entre as diversas modalidades de se articular um 
conjunto de cores, a que vem predominar nas imagens impressionistas é a relação de 
cores complementares. Esta relação colorística se distingue das outras (das 
relações de tonalidades, de cores primárias-secundárias, de cores quentes-
7 
 
frias) pela ênfase da cromaticidade das cores, jogando com contrastes 
cromáticos entre as diversas gamas, e novamente acentuando o caráter de 
sensualidade da cor. Em termos espaciais, a complementaridade pode ser usada de duas 
maneiras: criando tensões espaciais, ou então fusões espaciais. Dependerá de intervalos, 
físicos ou cromáticos. Nos quadros impressionistas prevalecem as fusões. Tanto em 
áreas maiores de massa colorida quanto nas menores, vemos ocorrer lado a lado 
tons vermelhos e verdes, ou azuis e laranjas, ou amarelos e roxos . Ainda que 
possam sobressair certas gamas, digamos, o verde das plantas e folhagens, 
ou o azul do céu e da água, há sempre uma quantidade suficiente de manchinhas 
vermelhas e alaranjadas intercaladas, para fechar visualmente a complementar, ou seja, 
para os grupos complementares se unirem, completando-se nesta 
proximidade e anulando as áreas de tensão. O que vemos são pequenos núcleos de 
fusão. E tais núcleos encontram-se distribuídos de modo tão regular ao longo do plano 
pictórico, que eliminam tensões maiores que poderiam formar-se através de intervalos 
físicos ou até mesmo através de diferenciações e distanciamentos cromáticos. 
D es t a m an e i r a , o co lo r i do im p r es s io n i s t a s e caracteriza mais uma vez pelo 
alto grau de sensualidade e excitação, sem no entanto apresentar tensões internas. O que 
evidentemente se reflete no conteúdo expressivo das obras. Este conteúdo é 
invariavelmente lírico e sereno. Não é dramático e nunca é agressivo. São imagens que 
nos cativam com sua radiante luminosidade. Tanto mais espantosa então é a incrível 
hostilidade e a fúria agressiva com que estas obras foram recebidas pelo público e 
também pela maioria dos críticos de arte. Choviam piadas ofensivas e insultos de baixo 
calão. Mas por que tanta violência? Teria sido unicamente um caso de 
incompreensão ante um estilo novo? Não. De fato, era mais do que isto. 
Para nós, hoje, familiarizados que somos com as obras abstratas produzidas 
no século XX, talvez seja difícil imaginar o impacto causado na época pelo 
grau de abstração que já se evidenciara nas pinturas impressionistas. Pois 
nelas, as figuras humanas e os objetos não mais apresentavam contornos 
nítidos nem cores próprias que pudessem identificá-los. Ademais, sequer 
existia nas imagens, no espaço formulado pelos artistas, qualquer indicação 
de primeiro plano ou fundo; o espaço havia se tornado plano, bidimensional, 
uma espécie de tapeçaria com incontáveis reflexos colorísticos brilhando 
numa r ad i os id ade e t é r ea , p o rém s em co r po r e i d ad e (ilustração 5). 
. 
 S o m o s t o m a d o s p o r u m a s e n s a ç ã o d e p u r o e n c a n t a m e n t o 
E n o e n t a n t o . . . A p e s a r d e t o d a b e l e z a e s e n s u a l i d a d e d o c o l o
r i d o , s u r g i u u m p r o b l e m a b a s t a n t e s é r i o n o impressionismo. 
Um problema de ordem estrutural. Tanto mais sério quanto era problema 
insolúvel, porque ligado intrinsecamente ao próprio estilo. Ao traduzirem 
a luminosidade atmosférica em cores, relacionando estas cores em 
co mpl em en t a r es f ech ad as e em nú c l eo s d e fu s ão , e d i s t r i bu i nd o os 
n ú c l eos un i f o rm emen t e ao lo n go do p l an o pictórico da imagem - os 
artistas haviam criado espaços extremamente fluidos. Excessivamente 
8 
 
fluidos. Com as fusões ocorrendo em toda expansão da imagem, não existiam mais 
contrastes ou subdivisões internas, ou intervalos espaciais diferenciados que 
permitissem seqüências rítmicas. Enfim, não havia mais estru tura interna 
que pudesse articular e conter os movimentos visuais dentro da imagem. O fluxo só 
era contido pelas margens do plano pictórico. O Impressionismo havia chegado a um 
impasse. Levado às últimas conseqüências, isto implicaria a possibilidade de o formato 
da imagem ser alterado, aumentado ou recortado, como se fosse a metragem 
de um tecido, sem que se alterasse algo de fundamental no sentido da composição, e 
evidentemente também no conteúdo expressivo. Mas isto é impossível na arte. Ou 
bem as formas e os espaços criados pelo artista são plenamente 
significativos, e portanto indispensáveis, não podendo ser alterados, ou então são 
desnecessários e supérfluos, sem sentido. Não há meio-termo. O p r o b lem a , como 
m en c io n am os , e r a i n s o l úv e l . S e po r u m l ado d e co r r i a d a p r óp r i a 
e s co lh a d o t em a , po r o u t ro também se deveu à postura dos artistas dentro do 
estilo impressionista. Ou seja, originava-se na atitude "objetiva" dos artistas, que 
procuravam observar e transcrever fielmente um fenômeno natural, que não 
tem estrutura espacial – a a t m os f e r a s en do d i fu s a d em ai s p a r a p e rmi t i r 
q u a l qu e r s ub d i v i s ão o u d e l imi t ação e s p ac i a l . A ss i m, nem o t ema 
propunha novas soluções nem os artistas se acharam com o direito de tomar certas 
liberdades com este tema. 
 
Assistimos então a uma situação insólita na história da arte. Após terem 
participado de uma visão comum, da mesma temática e de sua elaboração formal, 
e após terem cristalizado o estilo, todos os membros do grupo 
impressionista acabaram saindo do Impressionismo. Todos, sem exceção, o 
abandonaram, em busca de uma nova temática, de novas estruturas e novas 
formas expressivas. 
V e j am os o cami nh o d e a l gu ns a r t i s t a s . G eo r ges S eu ra t ( 18 5 9 -
1 8 91 ) . Co n t i nu ando com a p os tu r aob j e t i v a d o Impressionismo, e até 
mesmo levando-a a um rigor quase "científico", Seurat passa a substituir as pequenas 
manchas coloridas por pontinhos de cor, colocados lado a lado, criando assim um estilo 
chamado Pointillisme. No fundo, porém, tal procedimento caracteriza mais uma técnica 
do que propriamente um estilo, pois os pontinhos representam apenas um efeito de 
superfície, uma textura; não chegam a ter um sentido formal maior. O que na obra deste 
artista se torna relevante, em termos de estrutura, é a retomada de contornos nítidos, 
com os quais passa a delinear figuras e objetos, dando-lhes uma determinada 
posição no espaço. Outrossim, ele reintroduz a profundidade espacial, 
articulando um plano frontal, planos intermediários e de fundo, e 
acompanhando o recuo de figuras e objetos pela diminuição de tamanha 
(ilustração 7), sem no entanto usar o sistema da perspectiva, isto é, sem eixos e sem 
ponto de fuga. 
9 
 
Seurat morreu muito jovem, aos 32 anos. Do ponto de vista estilístico, 
ele não chegou a desligar-se inteiramente da visão impressionista, E não 
sabemos aonde teria chegado, digamos, uns dez anos depois. 
Paul Gauguin (1848-1903). Inicialmente, o caminho deste artista toma 
um rumo semelhante. Também ele passa a reconstruir o espaço em diversos 
planos, contornando-os por linhas ondulantes e rítmicas. Embora preserve 
uma certa bidimensionalidade, já as figuras humanas e os objetos adquirem 
um novo peso visual e grande densidade e, com isto também, um acentuado 
sentido de existência corpórea. Tudo se torna tenso e mais dramático. 
Gauguin também abandona o uso exclusivo de cores primárias e secundárias e suas 
complementares fechadas, introduzindo em suas imagens certas escalas que 
parecem 'estranhíssimas", devido a novas proximidades cromáticas: tons 
violáceos junto a rosas e marrons, ao lado de azuis -escuros ou cinzentos 
(cores absolutamente impossíveis no Impressionismo). Tanto este colorido, 
belíssimo, como também os arabescos, em que Gauguin transforma as linhas de 
contorno, já prenunciam o clima de Art Nouveau na virada do século (ilustração 8). 
Vincent Van Gogh (1853-1890) é outro artista que se afasta do Impressionismo. 
Na verdade, sua fase impressionista situa-se entre duas fases expressionistas, no 
início e no final de sua curta vida. Embora para Van Gogh a atitude de 
objetividade, de distanciamento interior de suas emoções, implícita na visão 
impressionista, fosse de todo impossível - dado seu temperamento impulsivo e 
veemente, e os terríveis conflitos existenciais que o atormentavam - , ainda 
assim, não há dúvida de que o encontro, em 1885 em Paris, com o 
movimento impressionista foi decisivo para o futuro desenvolvimento 
estilístico do artista. A partir deste encontro, vemos Van Gogh libertar -se do 
claro-escuro monocromático predominante em suas pinturas - influência do venerado 
mestre, Rembrandt - e "descobrir" as cores. E m seu e s t i l o d e m at u r id ad e , V an 
G o gh l ev a ad i an te a ex p e r i ên c i a d o Im p re ss io n i s mo , m as e l ab or a os 
v á r i os elementos de uma maneira totalmente diferente. As pequenas manchas de cor, 
informes, agora se tornam pinceladas curtas e nervosas; agrupadas em seqüências 
rítmicas, criam fortes contrastes na composição. Semelhante ênfase formal é 
dada à elaboração das cores. Conquanto Van Gogh preserve o princípio de 
complementaridade, ele passa a diferenciar e a distanciar os componentes individuais de 
um par, afastando-os antes de reuni-los. Este distanciamento se dá pelos intervalos 
físicos na localização das cores, e mais ainda através de desvios cromáticos, 
entrando em outras gamas, por tons frios ou quentes, gamas aparentemente já no 
limite ou mesmo fora da complementar. Assim Van Gogh cria grandes tensões - 
espaciais e também emocionais. Quando vemos suas pinturas, temos a 
impressão das cores terem sido esticadas, como se fossem uma corda 
elástica a ponto de romper-se, antes de finalmente o artista reuni-las e 
fechar a complementar. Parece uma trajetória cheia de obstáculos. Daí o 
conteúdo altamente dramático formulado por Van Gogh em suas imagens - imagens, 
cujo motivo às vezes é um simples vaso com flores (ilustração 9). 
10 
 
Cabe dizer aqui que, com toda a dramaticidade e as altas tensões 
espaciais, e também emocionais, formuladas, as composições de Van Gogh são 
plenamente equilibradas. E também cabe frisar a lucidez e o extraordinário poder de 
sublimação deste artista. A intensidade das cores, dos contrastes, 
das tensões, corresponde à intensidade de seus sentimentos. No entanto, 
suas imagens jamais são mórbidas, sequer são amargas ou negativas diante 
do viver. Ao contrário, tanto na escolha dos temas: sol, semeador, colheita, árvores, 
flores, como também na elaboração de cores predominantemente quentes, o artista 
enaltece sempre os aspectos produtivos da vida. Por esta sua conquista 
espiritual, sublimando suas angústias e seus íntimos conflitos pessoais, é 
que é q u e V a n G o g h n o s c o m o v e t ã o profundamente. Até mesmo os 
principais expoentes do movimento, Monet e Renoir, haverão de sair do 
Impressionismo, passando em seu 
estilo p o s t e r i o r p a r a a g r a n d e c o r r e n t e d o E x p r e s s i o n i s m o . 
O c a s o d e C l a u d e M o n e t ( 1 8 4 0 - 1 9 2 6 ) é particularmente 
interessante, não apenas em virtude de suas obras e sua estatura de artista, mas também 
por ilustrar uma questão mais ampla, a do indivíduo buscando permanentemente a 
realização de suas potencialidades criativas. Se olharmos a trajetória percorrida 
por Monet, chegamos à conclusão de que, embora tenha sido ele o expoente 
máximo do movimento impressionista e, sem dúvida, também o maior artista do grupo, 
ainda assim em seu caminho de vida o Impressionismo constituiu uma fase 
transitória, uma espécie de prelúdio ante a plenitude criati va que alcança nas 
duas últimas décadas de vida. É o próprio artista com suas obras quem estabelece as 
referências para tal conclusão. A partir dos 60 anos de idade, Monet ainda cresce para 
um novo patamar de criação, o mais magnífico de sua arte (ilustração 6). 
Nessas décadas em que, felizmente, o artista ainda pode viver e 
trabalhar, ele é capaz de reconstruir o próprio vocabulário de sua linguagem. As 
pinceladas transformam-se em largos ritmos livres, e as cores se intensificam em 
uma matéria pictórica densa e vibrante. 
As imagens como que mergulham em visões telúricas, 
a m pl i and o os con t eú d os l í r i co s p a r a a l c an ça r d im ens õ es ép i cas . 
S ão i magen s ch e i as d e s en su a l id ad e , qu e transmitem a mais plena 
aceitação da condição de ser e viver, num entendimento que ultrapassa o 
racional para o transcendental. 
Chegamos a Paul Cézanne (1839-1906). Também ele sente - ou sabe 
intuitivamente - que o Impressionismo não poderia ser o seu caminho 
verdadeiro. 
 Inquieto, impulsivo, contraditório, já o temperamento mediterrâneo 
do artista impedia que ele se identificasse com a postura impassível dos 
impressionistas. E ao procurar incessantemente algum princípio ordenador mais 
fundamental, tampouco lhe era possível aceitar a visão fenomenológica do 
Impressionismo, reduzindo a realidade do mundo a um jogo de reflexos óticos. 
11 
 
A s s im C ézann e in g r e s sa n o Im p r e ss ion i s mo e l o go em s egu i da 
o ab an do n a . P or ém e l e n ão s ab e p ar a o n de i r . Envereda por caminhos 
dos mais diversos. Tenta o Romantismo e o abandona. O Simbolismo. O 
Expressionismo. Nada lhe parece certo. Novas buscas e tentativas estilísticas.Insatisfeito, Cézanne volta a Paris e se junta novamente ao g r u p o d e ami gos 
a r t i s t a s , D egas , Co u be r t , P i s s a r r o , M on e t , R en o i r , Van Go gh . 
D i s cu t em mu i to e no f in a l s e desentendem. Cézanne retorna à Provence. Volta 
novamente a Paris. Retorna de novo à Provence. Sempre inquieto,trabalhando 
febrilmente e não gostando de nada do que faz. Assim leva uns dez anos, entre 1862 e 
1873. Finalmente, quase aos 40 anos de idade, Cézanne começa a vislumbrar algo em 
seu próprio trabalho, algo que retomará até o fim de sua vida e que ele chama de la 
réalisation, visão interior, na qual ele transforma suas percepções imediatas 
em formas sugestivas das ordenações e dos grandes ritmos da natureza (ilustração 10). 
O que Cézanne buscava (e talvez só agora, ao conhecer seu caminho 
de vida e de desenvolvimento estilístico, seja possível tentar defini-lo em 
palavras) era reconstruir aquilo que o Impressionismo acabara de dissolver. 
Ele queria recuperar a dinâmica e a concretude do espaço. Todavia, como 
artista, não iria abrir mão das reais conquistas do Impressionismo, no que se 
refere à espontaneidade na observação diante da natureza e, sobretudo, no que se refere 
à sensualidade e à expressividade das cores. (Até o fim de sua vida, Cézanne preservou 
um sentimento de profunda g r a t i d ã o a P i s s a r r o p o r t ê -
l o i n i c i a d o a o m o v i m e n t o i m p r e s s i o n i s t a e d e s p e r t a d o n e l e o
 e n t e n d i m e n t o d a s possibilidades expressivas da cor) A questão era 
recuperar o espaço em seus ritmos dinâmicos e sua profundidade. Mas como 
proceder? Retornar simplesmente ao sistema da perspectiva, e à sua visão de mundo, 
era impossível. Afinal, este não era mais o século XV; era o século XIX, outro clima 
mental, outros problemas de vida, outros conhecimentos, outra sensibilidade. 
Ao acompanharmos a trajetória estilística de Cézanne, podemos observar as 
várias modificações que o nortearam na reformulação 
dos preceitos impressionistas e determinaram uma nova estrutura espacial. 
Tais modificações são ao m es m o t emp o de o r d em t écn i ca e f o r ma l . Por 
ex empl o , a s m an ch in h as in f o r m es qu e ex i s t i am l ado a l ado n as 
composições impressionistas, agora vão sendo transformadas em pequenas superfícies - 
cada pincelada constituindo um pequeno plano, cobrindo parcialmente outra 
pincelada, outro plano. Assim se formam superposições, de planos que 
ora se encontram na frente ora atrás de outras, reintroduzindo um espaço 
de profundidade (ilustração 10). 
Será esta noção o fio condutor para o desdobramento formal dos diversos 
elementos com que Cézanne articula a estrutura espacial em suas imagens. 
 
Porém não é só o espaço que está sendo articulado. Cabe ver que, em todas 
as imagens de arte, as indicações espaciais representam simultaneamente 
12 
 
indicações temporais. Pois os movimentos visuais que estruturam a 
espacialidade na imagem têm caráter rítmico, ou seja, nesses movimentos 
também se diferenciam e se articulam os tempos - em termos expressivos, 
evidentemente, não se trata de um tempo uniforme, cronológico. Portanto, 
nas s u p e rp os i çõ es , co m s eu s av an ços -e - r ecuo s n a p ro f und id ad e do 
e s p aço , o s p l an os d e " f r en t e " e " t r á s " t am b ém significam um "antes" e 
"depois" no tempo, indicando o sentido rítmico do espaço. 
O s v á r i os e l em en tos q u e Céz an n e in t ro d uz em s uas com po s i ções 
s ão e l ab o r ad os f o r m al me n t e d e m an e i r a semelhante e se sustentam 
mutuamente. Por exemplo, em cada superposição os pequenos planos (das pinceladas) 
t am b ém s ão p or t ad o r es d o e l em en to co r . E aqu i s e ev id en c i a a 
co e r ên c i a d o p ens amen t o d e C éz an n e , s u a sensibilidade diante 
das formas expressivas da linguagem visual, ao elaborar as cores de 
um modo completamente diferente do Impressionismo, de um modo 
condizente com a estrutura espacial que ele tinha em mente. Cézanne escolhe 
a relação de cores quentes-e-frias (ilustração 11). 
Segue aqui um breve resumo do princípio básico desta relação colorística. O 
contexto referencial é novamente o arco-íris. Nele encontramos três cores: 
vermelho-laranja-amarelo, que são consideradas quentes pelas associações 
espontâneas que fazemos com calor e fogo. Elas se estendem às conotações de 
aconchego, proximidade, terra, peso e densidade. Em contrapartida, a escala de azul e 
de certos verdes que tendem ao azul (turquesa) são consideradas cores frias, conotando, 
por sua vez, céu, água, gelo, distâncias, leveza e transparência. Quando então vemos 
em uma pintura, colocados lado a lado, tons quentes e frios, este contraste 
de "temperatura" produz um efeito vibratório no campo visual, um 
movimento de simultâneo avanço-e-recuo. Ao passo que as cores quentes 
parecem avançar ligeiramente, as frias parecem recuar. É fácil entender por 
que Cézanne tenha escolhido (ou encontrado, o que vem a ser a mesma coisa) esta 
relação específica. Nela, as cores acompanham perfeitamente o movimento visual dos 
planos em superposição, de avanços e recuos, formulando um espaço de profundidade. 
Também as linhas que Cézanne introduz na composição acompanham 
o sentido espacial e rítmico da imagem. Por intermédio delas, o artista estabelece 
movimentos laterais, em seqüências e intervalos diferenciados, levando o ritmo visual 
para os lados, de margem a margem do plano pictórico, como se fosse um leque a abrir-
se e fechar-se. Assim, além de articular um espaço de profundidade, Cézanne 
restabelece, e justifica novamente, a função referencial do plano pictórico. Esta é uma 
questão da maior importância. O plano pictórico representa um dado primeiro, concreto 
e objetivo, para a configuração a ser criada pelo artista. Em si, tal plano já 
constitui uma forma de espaço: é uma superfície bidimensional. Ela será 
reestruturada e reformulada ao longo da criação artística, resultando em uma nova 
espacialidade: a das vivências do artista, incorporando as dimensões de sua visão de 
vida e seus valores. Entretanto, n e s t e p ro ces so d e e s t ru tu r a r a con f i gu r ação 
d e um n ov o es p aço ex p r es s iv o o p l an o p i c tó r i co o r i g i n a l n ão é 
13 
 
s im pl esm en t e abo l id o . Ao co n t r á r io , s eu ca r á t e r e s t r u t u r a l e s eu f o r
m at o con t in u am s e rv in do com o r e f e r ênc i a permanente para se poder avaliar 
a extensão das novas dimensões (espaciais e emocionais) articuladas pelo artista e 
atuantes na imagem. É precisamente nestas correspondências estabelecidas, anteriores e 
ulteriores, entre o espaço do plano pictórico e a imagem, como espaço estruturado pelo 
artista, que se fundamentam os múltiplos significados do conteúdo expressivo de uma 
obra de arte. Na equivalência de forma-e-conteúdo, essência da arte, os dois espaços 
têm que se justificar reciprocamente. A estrutura espacial nas imagens de Cézanne 
jamais é esquematizada ou de ordem geométrica. Nem sequer há uma 
b us ca im pl í c i t a d e p r o t ó t i po s geom ét r i cos e m ui t o m en os h á 
p r ece i tos geo m et r i z an te s p ré e s t ab e l ec i dos . N em geo me t r i a s n em 
s im et r i a s . 
M ui to a o con t r á r i o , a s o rd enaçõ es d e C éz an n e s ão s em p re a s s i m ét r i
c a s , l i v r es e essencialmente dinâmicas. Nas obras de maturidade, os movimentos 
visuais ocorrem de todos os lados e em todas as áreas do plano pictórico. A 
p a r t i r da s p r im eir as p in ce l ad as 
n o q uad ro , t u do , des d e a e l ab o ração f o r m al 
d os e l em en to s i n d iv id u a i s a t é a configuração do equilíbrio global de ritmos e 
tensões, tudo expressa movimento e transformação (ilustração 15). 
 
Tudo se torna relativo a tudo, determinando-se reciprocamente. As 
diversas áreas na composição se justapõem como cam p os en e r gé t i cos , 
a cu and o em f u nção d e s eu p es o v i s u a l e d e s u a s t ens õ es e s p ac i a i s , 
m as semp r e un s em r e l a ç ã o a o s o u t r o s . 
N e s t a i n t e r d e p e n d ê n c i a d e t o d o s o s r e l a c i o n a m e n t o s f o r
m a i s - d e a p r o x i m a ç õ e s o u distanciamentos, expansões ou 
contrações, avanços ou recuos, em ritmos diferenciados, andamentos ora 
mais rápidos ora mais lentos, de acordo com as transições ou os contrastes 
formulados - nesta interdependência dos múltiplos componentes e do 
contexto global, constituído pelos próprios componentes e do qual recebem 
funções específicas - os espaços dos movimentos visuais se interligam com 
padrões rítmicos, ordenando-se em uma só grande, complexa e coerente 
forma de espaço-tempo. Cézanne nos mostra imagens de espaços pulsantes 
nos eternos ritmos da natureza (ilustração 14). 
Para Cézanne, a noção de ordenações universais não representava 
algum conceito abstrato - era, sim, uma íntima convicção, um sentimento de vida 
a ser formulado de novo, e de novo, em cada pintura que empreendia. Foi para ele uma 
permanente busca espiritual. Em cada obra se manifesta o crescente 
deslumbramento diante da natureza, tingido, todavia, de dúvidas e de hesitações, e 
de um profundo senso de responsabilidade face a um universo, cujas 
d im en sõ es s e am pl i av am co ns t an t emen t e em su a s en s i b i l i d ad e . E r a 
s em dú v id a u m desa f io f as c i n an t e , m as a s su s t ad o r , u ma 
j o rn ad a d en t ro d e s i , r umo ao d e sco nhec i do . N es t a b us ca d e es p aço
14 
 
s e r i tmo s un iv e rs a i s , procurando reestruturar suas percepções imediatas, Cézanne 
partia muitas vezes de motivos absolutamente banais. Veja-se, por exemplo, a 
monótona paisagem suburbana, desinteressante em si e como que vista da 
janela de um ônibus, motivo este que o artista consegue transformar nas 
belíssimas imagens da montanha Sainte Victoire, a montanha surgindo 
majestosa e transcendental, com sobretons de eternidade (fotografia de Erle Loran e 
ilustrações12 e 13). 
É um motivo que Cézanne retoma mais de 120 vezes, sempre em novas 
variações, cada uma maravilhosa. A grandeza desta visão foi um choque que 
surpreendeu Picasso e Braque ao "descobrirem" a obra de Cézanne – em 1907, um ano 
após a morte do artista (ilustração 15). Picasso tinha então 27 anos de idade e, 
estilisticamente, estava numa fase bastante diferente: a chamada "fase azul", 
influenciada por Toulouse-Lautrec. Após os primeiros tempos do academicismo 
juvenil, Picasso encontrara na obra de Toulouse-Lautrec algo que 
correspondia, na época, às suas próprias afinidades e inquietações. Esta 
questão da "influência" no desenvolvimento de um artista precisa ser bem 
entendida. A influência nunca vem de fora, ou seja, nunca é imposta a 
alguém - o que, aliás, seria impossível. Ao contrário, é sempre o próprio 
artista que sai em procura de seu mestre - uma procura intuitiva, é claro -, 
buscando assimilar certos aspectos de sua obra, que de algum modo o tocam 
intimamente. Portanto é preciso entender que Picasso não tenta "imitar" 
Toulouse-Lautrec, assim como mais tarde não tentará "imitar Velásquez" - o 
que, em si,também seria impossível. O que encontramos na fase azul é um Picasso 
aprendendo algo de Toulouse-Lautrec, das formas desse artista, algo que evidentemente 
correspondia aos sentimentos e valores do jovem Picasso. Entretanto, ao i n t e rp r e t a r 
e s t e "a l go " e ao i n t eg r a r as ên f as e s f o rm ai s em seu p ró pr io 
v o cab u l á r i o , P i cas s o acabo u c r i an do conteúdos expressivos inteiramente 
diferentes. (Basta observar o quanto Picasso é romântico na fase azul, por vezes até 
mesmo beirando o sentimental, em comparação com a objetividade contida 
de Toulouse-Lautrec. Mas também Picasso ainda é muito jovem e tem direito a um 
certo sentimentalismo. ) O "algo" que em seguida Picasso haveria de descobrir 
nas formas de Cézanne, e que tanto o impressionou, já é de outro nível 
vivencial (ilustração 15). Talvez o atingiu diretamente em seu temperamento 
vigoroso e seu senso de v i t a l i dad e . Po i s o f a to d e t e r p a s s ado d o 
r o man t i sm o d a f ase a z u l p a ra u m a v i s ão d e es p aço como a cu b i s t a 
representa uma virada estilística tão radical, que implica uma mudança no 
íntimo sentimento de vida. No mínimo, implica que a excessiva introspecção e o 
subjetivismo deram lugar a uma atitude mais sóbria e mais aberta às forças d a v id a e , 
p o r co ns egu i n t e , an t e d e s i m es mo t am b ém . A in d a q ue P i cas so 
n u nca d e ix e de s e r ap a ix on ad o – e apaixonante -, tal mudança estilística deve 
ter correspondido a um crescimento, a um processo de maturação de sua personalidade. 
E m t e rm os es t i l í s t i co s , o Cu b i smo n ão s u r g i u d e um a s ó v ez n em s e 
co n f i gu ro u d e mod o r e t i l í neo , p o i s f o i s e cruzando com diversas 
15 
 
tendências que naqueles anos, influenciando o rumo formal do novo estilo (entre outras, 
a arte africana e, mais tarde, o Dadaísmo). Todavia, podemos distinguir duas fases 
diferentes: a do Cubismo analítico e do C u b i smo s in t é t i co . 
A q u i no s o cup a r emo s m a i s da p r im e i ra f a s e ana l í t i c a . N e l a se 
e s t ab e l ecem e t amb ém s e caracterizam os princípios básicos do estilo cubista, 
sobretudo o seu sentido estrutural e expressivo. No início, a influência de Cézanne é 
claramente reconhecível (ilustrações 15, 16 e 17), evidenciando-se nos aspectos 
tectônicos da estrutura das imagens. Vemos os volumes dos objetos sendo decompostos 
em diversas faces, as quais são focalizadas simultaneamente de vários ângulos e 
posições. Já isto resulta em modificações radicais da estrutura e s p ac i a l . Po r o u t ro 
l ado , im p ed e qu e s e con f i gu r e na co mp os i ção o s i s t em a da 
p e r sp ec t i v a ( b as ead o em e ix os centrais e no recuo uniforme e 
consistente dos volumes para o ponto de fuga no horizonte). Por outro, 
aumenta consideravelmente a mobilidade de todos os espaços no plano 
pictórico. Em seguida - e a evolução do processo 
estilístico é bastante rápida - observamos uma crescente fragmentação dos 
objetos; eles vão sendo partidos em segmentos cúbicos, e estes, em facetas 
Sempre menores, acentuadas ainda por contrastes formais: claro/escuro, 
curvas/ângulos, horizontais/verticais. Tais facetas contrastantes não representam mais - 
nem procuram representar -as feições naturais de figuras humanas (por 
exemplo: em vez de vermos a curvatura de um seio de mulher, vemos 
s úb i t os r e co r t e s an gu l a r e s ) . O m ot ivo p i c tó r i co , no cas o , f i gu r as 
h um an as o u o b j e t os , s e rv e ap en as com o um a espécie de trampolim para o 
verdadeiro tema das imagens: uma visão abstrata da estrutura espacial da composição.A 
esta altura, uma nova influência vem se cruzar com a abordagem c ubista: é a 
influência dos fetiches africanos. À primeiravista, tal rumo dos 
acontecimentos não deixa de ser surpreendente, dada a grande distância 
cultural e espiritual que existe entre a tradição da arte ocidental - 
ainda cristalizada nas obras de Cézanne - e a da arte negra. No fundo, 
porém, os artistas cubistas, e Picasso em primeiro lugar (embora até 
colecionasse esculturas africanas), não estavam minimamente interessados no 
simbolismo ou nos significados culturais dos fetiches. O que os fascina é a 
i n t en s i d ad e do s con t ra s t e s fo rm ai s e a ex t rao rd in á r i a l i be r d ade d os 
a r t i s t a s a f r i c an os , s u a "ous ad i a fo rma l " - comparada com as convenções 
acadêmicas ocidentais - dispensando qualquer tipo de preocupação com questões de 
"cópia da natureza", "fidelidade anatômica" ou "deformação" ao 
representarem o corpo humano (ilustração 18). 
Evidentemente, tanto a motivação como também o sentido expressivo das 
esculturas africanas eram outros: referiam-se a rituais de iniciação e a cultos de 
fertilidade, numa visão de mundo ainda preeminentemente mágica. Impressionava 
 aos cubistas o poder de abstração e a insólita força e agressividade 
dos contrastes nesses fetiches. Sua influência introduz um aspecto de 
agressividade até então inexistente nas imagens cubistas (ilustração 19) – e 
16 
 
totalmente ausente na obra de Cézanne. Concomitantemente, modificam-se os 
conteúdos expressivos do Cubismo e o próprio caráter do estilo. Devido aos 
fortes contrastes formais que agora vêm a predominar na elaboração dos 
e l e m e n t o s , e t a m b é m d e v i d o a o s r i t m o s i n t e n s i f i c a d o s d o s 
m o v i m e n t o s v i s u a i s , r e s u l t a n t e s d a c r e s c e n t e f r agm en t ação o 
 e s t i l o cu b i s t a s e t o r n a ex p r es s io n i s t a ( i l u s t r a çõ es 2 0 -2 1) 
 en t r an do n a g r an de co r r en t e do Expressionismo - ao passo que o estilo de 
maturidade de Cézanne deve ser entendido como essencialmente idealista, p e lo 
eq u i l í b r i o h a rm on io so en t r e m ov im en t o e c a lm a - , s endo C éz an ne 
u m do s r a ro s a r t i s t a s c l ás s i co s d a a r t e moderna (ilustração 14). 
Por volta de 1911, a fase analítica do Cubismo chega a seu auge (ilustração 1). A 
fragmentação torna-se mais e mais radical. Já não tem a menor importância qual 
seja o motivo pictórico da imagem, que seja uma figura humana, uma 
guitarra, uma simples cadeira. Os objetos são em si indiferentes, servindo 
apenas como ponto de partida, como p r e t ex to , po r as s im d iz e r , po i s 
f r agm en t ad os em face t as s em pr e m eno r e s s e r ão r eduz i do s a uma 
e s p éc i e d e partículas elementares de matéria, das quais se construirá uma nova 
espacialidade dinâmica, baseada em contínuos movimentos rítmicos. É uma 
espacialidade praticamente desmaterializada. Para tal efeito visual contribui 
também o colorido. As cores esmaecidas são deliberadamente desvestidas de 
seu caráter cromático e de sua sensualidade, sendo relacionadas em 
complementares indiretas de ambos os lados: cinzentos (referidos às escalas 
de azuis) opostos a tons ocres(referidos às escalas de amarelo e laranja). 
Assim a complementaridade dos componentes do par se estabelece apenas por 
referências indiretas (ilustrações 20 e 21). 
P or t an t o , o s ob j e tos q u e com põ em o mu n do f í s i co s ão ap re s en t ad os 
i n t e i r am en t e d es ca rac t e r i z ad os em su a corporeidade e configuração, tendo 
perdido seu peso e sua densidade, e também suas cores específicas. Deparamo-nos, no 
Cubismo, com a visão de um universo como que em processo de criação, a matéria 
atomizada, homogênea e ainda diferenciada. Matéria-energia. Mas os espaços 
estão sendo estruturados. Observamos nas imagens que, em vários secares 
do plano pictórico, se acumulam superposições acentuadas por contrastes formais, 
resultando daí um peso visual e uma densidade maior. T a i s á r eas rep r e s en t am 
n ú c l eos , p r o j e t and o camp os d e t en são e s p ac i a l e m su a v o l t a , o s q u a
i s , i n t e r ag i nd o reciprocamente, haverão de regular a extensão possível dos 
intervalos espaciais. Destas diferenciações surgem movimentos visuais nas 
várias partes da imagem, movimentos de avanço-e-recuo e também laterais. São 
oscilações r í t mi cas q u e , n o f i n a l , s e i n t e r l i gam e co n f lu em em 
gr an d es c í r cu lo s r o t a t iv os , ab r an gen do a co mp os ição 
t od a .Configuram-se assim as orientações de espaço-tempo no Cubismo. Vale frisar 
ainda que, embora sendo movimentos con t í nu os - po r ém em n ad a 
co mp ar áv e i s ao f lux o a tm os f é r i co do s qu ad ros i mp r ess io n i s t as - , 
s ão mo vim en to s contidos, porque balanceados por tensões espaciais 
17 
 
internas, além de sempre serem referidos às margens e ao formato do plano 
pictórico original. N a f a s e ana l í t i ca d o C ub i sm o , a p ro b l em át i ca da 
e s t r u t u ra es p ac i a l n a s im agens e r a um a q u es t ão t ão p ouco subjetivista 
que, por vezes, se torna difícil distinguir entre quadros pintados por Picasso ou Braque, 
tão semelhantes são suas soluções e tão impessoal é o seu estilo; será preciso 
verificar a assinatura no quadro a fim de identificar o seu autor (ilustrações 20 e 
21). Também representa este o ponto máximo de abstração a ser alcançado no Cubismo 
-pois em suas obras futuras nem Picasso nem Braque haveriam de enveredar pelos 
caminhos da pura abstração.A fase seguinte, sintética, ainda preserva os princípios 
cubistas determinando a estrutura espacial das imagens, mas já os artistas retomam a 
figuração do motivo pictórico, as pessoas e os objetos representados sendo 
novamente caracterizados por certos aspectos de sua aparência física. 
Também a cor é retomada como um dos elementos formais predominantes na 
composição, e elaborada em suas possibilidades cromáticas. Desta maneira, 
o estilo de c a d a a r t i s t a v o l t a a s e r m a i s p e s s o a l , p o d e -
s e d i z e r " m a i s s u b j e t i v o " , m a i s d i r e t a m e n t e e x p r e s s i v o d e s u
a personalidade e de seus sentimentos (ilustrações 26 e 27). 
P i ca s s o , s em d úv i da um d os m ai o r e s a r t i s t a s d e n os so s écu lo , ex ím i
o p in to r , d e s en h i s t a , g r avado r , e s cu l to r , ceramista, mestre mas ao mesmo 
tempo escravo de sua genialidade, sempre inquieto, sempre ousado e 
contraditório,continua trabalhando incessantemente. Da enorme produção e 
diversidade de obras, destacamos aqui Guernica, painel monumental 
produzido em 1937 - a ser analisado mais a fundo no Capítulo III, em 
relação aos caminhos i m ag in a t iv os do a r t i s t a e ao s p ro ce ss os de 
c r i a ção ( i l u s t r a çõ es 2 9 a 3 4 ) . T am b ém so b es t e ân gu lo , i n c l u in do a 
questão da complexidade das formas expressivas, e como ligeira amostra da vasta obra 
gráfica de Picasso, veremos, no Capítulo VI, uma lindíssima seqüência de 
litografias produzida em 1945, versões diferentes da imagem de um touro 
(ilustrações 35 a 45). 
Vinte anos depois de Guernica, em 1957, Picasso empreende uma série de 
Variações sobre o quadro de Velásquez, Las Ninas. O quadro de Velásquez é 
simplesmente uma das maravilhas da arte de todos os tempos (ilustração 22). É 
maravilhoso como pintura, como composição, maravilha de lucidez 
e paixão. Evidentemente, Picasso não pretende "copiar" Las Ninas. Para ele, este 
quadro representa uma espécie de "motivo", motivo extraordinário,sem dúvida, no qual 
se incendiou sua imaginação, mas um motivo, como eventualmente poderia ter sido a 
figura de uma pessoa, de q u em o a r t i s t a p in t a r i a um r e t r a t o . É c l a ro q ue , 
em se t r a t an do d e V e l ás qu ez , P i cas s o s e d á b em co n t a d e su a 
responsabilidade. Em outras palavras: o ato em si inevitavelmente propõe comparações 
e avaliações. Não há como escapar disso. Mas o que Picasso faz é impressionante. 
Nas mais de quarenta variações que Picasso irá produzir (da composição 
toda de Las Ninas ou de detalhes), a riqueza de soluções é tamanha - além 
de em todas as imagens transparecer a excitação do artista e o total 
18 
 
encantamento com o próprio ato de pintar - que parece estarmos diante de 
uma fonte inesgotável, jorrando jatos e mais jatos de água. Tem-se a impressão de que 
Picasso mal teve tempo de terminar uma imagem e já lhe ocorriam cinco outras 
variações possíveis, todas diferentes e fascinantes (ilustrações 23 - 24 e 25), e de uma 
liberdade criativa deveras extraordinária. Não se trata mais de questões técnicas ou 
mesmo estruturais – estes são níveis há muito ultrapassados - trata-se, sim, de questões 
de criação. Questões fundamentais da forma e de seu sentido. Questões de 
espontaneidade, de intuição, de avaliação, de sensibilidade, enfim, é a 
questão tão antiga quanto a própria humanidade, e questão sempre nova: o que é 
criar? 
Prezado leitor: não se esqueça de que ainda nos encontramos no 
Museu de Arte de Filadélfia, visitando a sala do Cubismo. A essa altura, frente a 
um quadro de Picasso, virei-me para o professor e lhe perguntei: 
- E agora? Está gostando mais de Picasso? 
- Para falar com toda franqueza, não gosto, não - disse o professor. -
 Embora talvez agora eu veja melhor o que ele pretendia fazer. Mas gostar 
mesmo, confesso que não gosto. Por favor, não se ofenda. Eu jamais poria 
um quadro desses na minha parede. 
- Ora, por que eu me sentiria ofendida? - retruquei. - Gostar ou não gostar é 
sempre uma questão de afinidades. E cada pessoa tem o direito de gostar ou não 
seja lá do que for. É como o amor. Não precisa racionalizar nem justificar coisa alguma, 
nem para si mesmo. E não há como discutir o assunto. Mas, evidentemente, o gosto não 
é uma base suficiente para avaliar a qualidade artística de uma obra, se a composição da 
imagem é boa ou não, se as formas são expressivas e verdadeiras ou talvez 
meramente sensacionalistas (como acontece muito hoje em dia). Aí já será 
n e c e s s á r i o e n t e n d e r u m p o u c o d a l i n g u a g e m d e a r t e . D i g a m o
s , é c o m o n o c a s o d e u m a f ó r m u l a q u í m i c a . Obviamente, será 
preciso entender de química para poder apreciá-la, ou julgar a validade de 
um experimento, dos resultados ou, até mesmo, das hipóteses. Só que a arte é uma 
linguagem mais universal e bem mais acessível do que a química. 
- A arte é uma linguagem do espaço, a linguagem de nós todos. Veja, além da 
arquitetura do cérebro, que todos têm em comum, ou dos circuitos cerebrais, ou da 
bioquímica do metabolismo, além desses aspectos funcionais, todos os seres humanos 
têm em comum certas experiências básicas, tanto físicas como mentais, 
que envolvem o espaço. O espaço é o meio e ao mesmo tempo o conteúdo de 
tais experiências. Todas as crianças começam a vida olhando para as coisas 
e tocando-as; todas têm que sentar e engatinhar, ficar de pé antes de andar, é 
a ordem natural do d e s env o l v im en to . E s emp r e s ão no vo s es p aço s q ue 
d e s co b rem e d en t ro do s q u a i s e l a s s e d e scob r em . T a i s experiências 
espaciais constituem para cada indivíduo o seu caminho de conscientização 
e também a formação de seu próprio senso de identidade. São experiências comuns a 
todos, e feitas da mesma maneira, em todas as épocas e culturas, desde os tempos 
pré-históricos até os dias de hoje, mas cada indivíduo tem que fazê-las por 
19 
 
si, pela primeira e última vez. Aprenderá o que é "pequeno" ou "grande", 
"próximo" ou "distante", "redondo" ou "quadrado", "pontudo" ou "plano", enfim, 
as noções elementares do espaço. Assim as pessoas entendem espontaneamente que a 
"verticalidade" corresponde à "posição em pé" e a "horizontalidade", à 
"posição deitada". 
 E a isto se ligam certos significados vivenciados. Evidentemente, nas 
diversas culturas 
t a i s s i gn i f i c ado s a in d a po d e rã o gan h a r n ov as associações e conotações - 
digamos, ao "acima" e "abaixo" podem ser associadas idéias de "paraíso" ou "inferno"; 
no entanto, as noções de "alto" ou "baixo" continuam significativas em si (na verdade, 
sempre referidas à figura humana), independentes do contexto cultural. 
- Então, estas noções não apenas fundamentam todos os processos de percepção e de 
interpretação daquilo que nós 
v e m o s , c o m o t a m b é m c o n s t i t u e m o r e f e r e n c i a l d i r e t o d a l i n g
u a g e m a r t í s t i c a . 
D a í a a r t e n ã o n e c e s s i t a r d e codificações, pois os significados são 
incorporados em suas formas visuais, tornando-se explícitas através delas. E ao se 
referirem a experiências e situações da condição humana em geral, as formas de arte 
podem atravessar fronteiras geográficas, culturais e temporais, sem perder os seus 
significados.- Ainda quero mencionar um outro ponto. Quando se comenta 
que alguém é artista, pintor, poeta, músico, vem logo em seguida a pergunta: "E 
o que ele faz?". Quer dizer: o fazer artístico não é considerado um "fazer", um fazer 
sério a ser respeitado, de responsabilidade assumida. É aparentemente uma 
diversão, um "passatempo" para quem tem "tempo a perder". E há outras 
perguntas do mesmo gênero: "Para que serve a arte?", "Qual é sua utilidade 
prática? São perguntas ditas "objetivas", realistas, pragmáticas, típicas da mentalidade 
utilitarista e tecnicista de nossa época. E de uma insensibilidade total, "robotiana". 
Aparentemente a arte é apenas um luxo, bonito mas dispensável; também pode-se viver 
sem ela. Eu considero estas perguntas não somente como sendo falsas 
mas, sobretudo, deliberadamente enganosas. Pois certamente existem outras 
metas e motivações determinando o fazer humano do que as meramente 
utilitaristas, motivações de maior importância e da mais profunda necessidade. Tais 
motivações se centram nas potencialidades criativas e nas qualidades que fazem 
do homem um ser humano: sua consciência sensível e inteligente, e também 
co ns c i ên c i a n o s en t i do m o r a l , do sen so d e r e sp on s ab i l i d ad e , su a 
i mag i n ação e s eu p od e r d e s im b o l i zação e associação livre, 
sua permanente busca de significados maiores, sua capacidade de empatia, 
de amizade e de real amor, sua generosidade, em suma, sua vida espiritual. Do ponto 
de vista pragmático se perguntaria: Para que serve a vida espiritual? Só poderia receber 
como resposta: "Para a pessoa realizar-se como um ser humano." 
 As potencialidades criativas afluem da vida espiritual inerente à 
consciência e às suas inquietudes. E a realização dessas potencialidades nunca 
20 
 
se afigurou aos homens como um divertimento, mas sim como uma necessidade e um 
r e a l d e s a f i o . A a r t e é u m a n e c e s s i d a d e d e n o s s o s e r , u m a 
n e c e s s i d a d e e s p i r i t u a l t ã o p r e m e n t e q u a n t o a s necessidades físicas. 
A prova disso é o fato irrefutável de todas as culturas na história da humanidade, todas 
elas sem exceção, desde o passado mais remoto até os tempos presentes, 
terem criado obras dearte, em pintura, escultura, música, dança, como 
expressão da essencial realidade de seu viver - uma realidade de dimensões bem 
maiores do que a utilitarista. As formas de arte representam a única via de acesso a este 
mundo interior de sentimentos, reflexões e valores de vida, a única maneira de 
expressá-los e também de comunicá-los aos outros. E sempre as pessoas 
entenderam perfeitamente o que lhes fora comunicado através da arte. Pode-se dizer 
que a arte é a linguagem natural da humanidade. Acabou sendo um verdadeiro 
discurso. O professor o ouviu calado, refletindo. Depois, olhou para mim e 
com um sorriso me disse: 
- Quero fazer-lhe um convite. Se algum dia você quiser deixar de ser artista, 
venha trabalhar comigo no Instituto de Astrofísica.Tomada de surpresa, comecei a 
rir. 
- Mas professor, eu não lhe serviria para nada. Nem sei ler uma simples equação 
matemática. 
- Isto não tem importância alguma - respondeu o professor; equações se 
aprendem; é uma técnica apenas. Mas a v i s ão e sp ac i a l que v o cê fo i 
c ap az d e ex po r pa r a mi m, ao comen t a r a e s t r u t u r a d a s ob r as 
i mp r es s io n i s t as e a s transformações no Cubismo, contém pensamentos bem 
interessantes. De fato, aproximam-se de certas conjecturas q u e nós e s t amos 
f o rm ul and o p ar a t en t a r ex p l i c a r c e r to s f enôm eno s no u n i v er so e , 
t a l v ez , a p r óp r i a o r i gem do u n i v er so . O q u e nece s s i t am os 
n a p e sq u i s a é ex a t am en t e 
d i s t o : a m en t e ab e r t a p a r a no v as p oss ib i l i d ad es , a imaginação e a 
capacidade de relacionar dados de maneira diferente, intuindo contextos 
globais, em que tais dados poderiam se encaixar em uma nova visão da realidade. 
Naturalmente, depois tudo necessita de repetidas verificações. Mas pense nisto; estou 
falando sério. 
Eu me senti extremamente emocionada. 
O senhor me fez um grande elogio - respondi. 
 - E também me ofereceu um presente, do qual talvez nem se dê conta. O que 
acaba de dizer significa muito, e não apenas que tenha entendido as minhas explicações 
sobre certas questões e s t i l í s t i c a s n a a r t e . E n v o lv e m ai s do q u e i s to . 
T amb ém co nf i r m a u m a í n t im a co nv i cção mi nh a , d e q u e a a r t e 
representa um caminho de conhecimento da realidade humana. 
- M as , a in d a a l ém d i s t o , con f i rm a u m o u t ro pens amen t o n ão 
m eno s im po r t an t e p a r a mim: d e qu e ex i s t e um a coerência e unidade 
espiritual em cada cultura, manifestando-se tanto nas indagações como nas 
respostas que se tornam possíveis em determinadas épocas. Quando, por exemplo, 
21 
 
olhamos para um vaso grego produzido no séculoV a.C. por algum artesão anônimo, e 
observamos a justeza de tudo, do material utilizado e da maneira sensível como foi 
utilizado, de suas formas e suas proporções, e ainda dos ornamentos e do 
desenho figurativo, que talvez outro artesão especialista acrescentou nos 
sobrevém um sentimento de felicidade por nos identificarmos com a verdade 
contida na clareza e expressividade dessas formas. E quando encontramos este mesmo 
senso de clareza e harmonia nas esculturas ou nas formas rítmicas das colunadas 
dos templos, ou ainda no pensamento dos filósofos e poetas, então 
percebemos a unidade de uma visão de mundo que perpassa pelas diversas 
áreas da sensibilidade e da inteligência, da imaginação e do próprio sentimento de 
vida. É disto que se trata quando se fala de cultura grega. 
- Porém, hoje em dia os campos de conhecimento se ramificam de tal 
modo, tornando-se tão vastos e ainda tão especializados, que é praticamente 
impossível ter-se a noção de uma coerência espiritual em nossa época, coerência esta 
que se estenderia das formas de raciocínio às formas de sensibilidade, 
abrangendo ciência e arte. Então seu convite, além de gratificante, tem um 
significado todo especial para mim. Ele vem reafirmar que esta minha idéia – de que 
em cada contexto cultural existem visões paralelas de espaço e tempo - tem 
um fundamento real e não é uma fantasia. 
- Não posso aceitar seu convite; não pretendo tornar-me cientista, pois sinto-me 
orgulhosa em poder ser artista. Mas em todo caso, mais uma vez obrigada pelo convite; 
ele me comoveu muito.

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