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SAÚDE MENTAL E MEDICINA INTERCONSULTA: ASPECTOS PSICODINÂMICOS Neury J. Botega Universidade Estadual de Campinas ARQUITETURA RELIGIOSA Hospital de Toledo, séc. XVI Hospital do Santo Espírito, Roma séc. XVII Europa Século XIV Até 1300 1300 - 1500 1500 - 1700 1700 - 1800 PRIMEIROS HOSPITAIS “...Não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo [...] a quem se dar o último sacramento [...] conseguir a sua salvação [...] O hospital era um morredouro.” Foucault, 1981 CARÁTER TRANSACIONAL A relação entre um médico e um paciente é sempre e invariavelmente o resultado de um compromisso entre as ofertas e as exigências do paciente e as respostas do médico TRANSFERÊNCIA CONTRATRANSFERÊNCIA A INTERCONSULTA NO BRASIL Leitura psicanalítica das situações clínicas Conteúdo latente das solicitações Psicodinâmica: médico - paciente - especialista Psicanálise do funcionamento institucional Ausência de aspectos da psiquiatria clínica 1977 1979 Michael Balint Década de 50, Londres: Seminários semanais com médicos generalistas, sobre aspectos psicológicos da prática médica "A maneira de falar do médico a respeito de seu paciente, com todas as falhas e inexatidões de seu relato, as omissões, os pensamentos secundários, as adições tardias e as correções, etc., [...] Todas essas coisas contam uma história familiar e facilmente inteligível para nós, analistas. Esta história é aquela, evidentemente, da implicação afetiva do médico, de sua contratransferência" O remédio mais consumido pelo paciente é o médico, devendo, portanto, ser conhecido em suas indicações, efeitos colaterais e toxicidade. Cumplicidade no anonimato, Nas instituições assistenciais, ninguém assume a responsabilidade final pelo que acontece ou deixa de acontecer com o paciente. 1 9 5 7 Júlio de Mello Filho Psicossomática Interconsulta “ A concepção psicossomática partiu de uma posição unidirecional inicial (psique – soma) para outra, atual, que procura abranger todo o conjunto de fenômenos relacionados ao adoecer.” 1979 Depende do que a gente sente. Tem pacientes que confiam em você. Então dá pra gente tentar conversar e trabalhar aquilo tranquilamente. Mas às vezes não tem condições... Às vezes parece que eles não estão confiando, acreditando no médico. Querem fazer exames de sangue, já foi várias vezes a outros médicos, muito pesquisados. Ficam sem acreditar mesmo que a problemática é emocional. Às vezes a gente dá alta, mesmo: ‘procure novamente o ambulatório só se for realmente preciso!..’ CRISE DE CONFIANÇA Incerteza Resultados terapêuticos pobres Sentido de responsabilidade Problemas na interação Funcionamento institucional MÉDICO ESPECIALISTA PACIENTE Uma Paciente Problemática... Não sei...São aqueles pacientes [os encaminhados] com quem já tentei conversar por uma, duas consultas mais longas... Não me sentindo satisfeita, encaminho. Eu sempre procurei resolver as coisas pelo lado mais prático, mais simples, deixando o emocional para segundo plano. Então, as pessoas que rodeiam muito e têm dificuldade de trabalhar isso, eu tenho muita dificuldade e acabo encaminhando por causa disso [...] Outros que a gente encaminha são aqueles que acabam te aborrecendo de alguma forma, porque diferem muito da sua personalidade, personalidade de quem tá atendendo. ...ou então, supostamente cardíacos, que não são. São pacientes ansiosos, muito comum mulher, desajuste matrimonial. Não vou muito a fundo nisso... Mas duas, três consultas, e você chega lá, né?! Na primeira consulta, não: ela quer saber se tem um problema no coração. E eu também. Na segunda ou terceira consulta, se ela tem um eletrocardiograma normal, se tem prolapso... Então eu pergunto assim pra moça: ‘Viu, e em casa... tudo bem...?’. ‘É, tudo bem...’ ‘E os filhos, dão muito trabalho?’ ‘É, dão...’ ‘E o marido...? ‘Meu marido é um santo...!’ Todas falam isso. Aí eu já penso: então tá desgraçada! ‘Quer dizer, então, que o marido é bão...?’ ‘É, não deixa faltar nada em casa, trabalhador....’ Mas a vida sexual é terrível.... ENCAMINHAMENTO ELABORADO O Encaminhamento Automático (“Passei a bola pra frente... me livrei!”) ENCAMINHAMENTOS AUTOMÁTICOS Quando a coisa tá muito fora de meu conhecimento, do meu controle, isso me angustia, e a minha primeira atitude, a única coisa que passa na minha cabeça, e que eu tento fazer, é passar a bola pra frente. Isso é típico! Acho que o encaminhamento em geral, não só para a psiquiatria, é um ‘me livrei’, passei pra outro... Instalei a diálise nela. Decidi hoje, eu! Não ia deixar ela ir sozinha. No meu plantão ela não vai morrer. A ordem do chefe da enfermaria era pra não fazer nada. Só que cheguei lá hoje, e a mulher completamente zoró... O plantão é meu, assumi e acabou. Se ela morrer, pelo menos com peso na consciência eu não vou ficar. Cada um se livra como pode e livra o que pode ENCAMINHAMENTO BOMBA-RELÓGIO ...Paciente terminal... e aí a gente joga a bomba pro psiquiatra. Eu não acho isso correto também, só que às vezes a gente não tem estrutura pra assumir. Então a gente precisa de uma orientação... CARÁTER PROJETIVO O interconsultor pode ajudar o médico a reconhecer a riqueza e a utilidade das respostas emocionais, tanto em si mesmo, quanto em seu paciente, e instrumentá-las com êxito a fim de evitar a emergência de situações de conflito. [...] . Através desta e de outras intervenções o interconsultor, em uma ou sucessivas interconsultas, ajuda o médico a restabelecer a confiança em sua própria ação e promove assim a manutenção essencial de sua autoestima. ENCAMINHAMENTO E RITMO INSTITUCIONAL Aqui a gente quase que encaminha sempre [...] São automaticamente encaminhados. E, discutindo com o docente: ‘Encaminha pra saúde mental, não dá tempo, não é nosso assunto aqui dentro’... A gente até percebe, mas falta tempo pra aprofundar na questão. E outra falha grave nossa: a gente não se aprofunda porque não sabe o que fazer, não tenho preparo, não tenho respostas. Na área da sexualidade, a gente fala: ‘Olha, na próxima consulta...’ ou ‘a senhora conversa com seu marido e...’. A gente não tem preparo nenhum pra lidar com isso, a gente foge na hora. O máximo é fazer um esclarecimento, uma orientação ridícula que qualquer revista faria igual... Não vale nada, não é o que ela tá querendo. No próximo retorno não a atenderei mais, ou o que falamos não anoto e não lembro... Saí daquele quarto com enjôos, querendo por para fora uma sensação de medo e dor, como há muito tempo não sentia. M.H. e seu sofrimento me acompanharam naquela noite... Com as dores de M.H. adormeci e, ao acordar, pude perceber claramente que as dores que eu trazia para casa eram minhas próprias dores diante do inexorável que é a pespectiva do morrer. Naquela noite casualmente me encontro com a médica que cuidava da paciente, no refeitório do hospital. Ela me perguntou o que eu havia feito, pois a paciente havia chorado toda a tarde (...) Pude perceber que em muitos momentos eu falava de alguémque precisava de ajuda no caminho de morrer, e os colegas médicos falavam de uma possibilidade de aumentar seus meses de vida. Nessas ocasiões percebia que eu representava o lado da morte, e os médicos mostravam o desejo de dar à paciente a vida. O MÉDICO ÁVIDO Necessita de pronta resposta, porque suas inquietudes, relacionadas ao paciente ou não, são urgentes. O MÉDICO TOMA LÁ DA CÁ Só encaminha paciente ao especialista que lhe encaminhou outro paciente, num gesto de agradecimento, de manutenção do coleguismo. O paciente terá que ser “persuadido”. O MÉDICO ESQUECIDO Não avisa o paciente sobre a interconsulta, não lembra de redigir o pedido de interconsulta no impresso próprio, se esquece de conversar com o interconsultor sobre o caso. Ele geralmente deixa essas tarefas para a enfermeira ou para um subalterno seu. A interconsulta geralmente é solicitada às vésperas da alta do paciente. Desnecessário dizer que esse médico vai-se esquecer de ler as anotações do interconsultor. O MÉDICO APOLOGÉTICO Excede-se nas justificativas prestadas ao paciente e a familiares, a fim de disfarçar seu embaraço ao ter de chamar um psiquiatra. Ele poderá referir-se ao psiquiatra como “neurologista”, “médico especialista nesses problemas”, enaltecendo sua amizade e inabalada confiança no profissional. Acrescentará que, afinal, não custa nada bater um papinho, que mal não vai fazer mesmo, que inclusive não sei quem um dia já precisou e foi muito bom... O MÉDICO EXPERT Na realidade, já sabe de tudo. Apenas gosta de ouvir um especialista que confirme suas acertadas opiniões. Ele não tem dúvidas, mas quer estar “perfeitamente seguro”. Se ouvir do interconsultor uma opinião diversa da sua, poderá dizer que havia mesmo pensado nessa possibilidade, disfarçará seu desagrado, para, em seguida, pedir uma opinião “independente” de outro especialista “que está despontando” (e mais condescendente!). O MÉDICO PUNIDOR Vale-se do encaminhamento para punir seus pacientes quando a relação médico-paciente se abala. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando o paciente o questiona por que não tem melhorado. Sua raiva e frustração são “encaminhadas” a outro profissional, às vezes sem que o paciente seja adequadamente preparado para tanto, numa situação que pune tanto o paciente quanto o interconsultor. Confio muito, por outro lado fico meio evitante... A gente tem visto que as psicólogas encontram problemas demais... Opa! Não sei se isso existe, ou tá na cabeça da profissional! Tenho solicitado várias interconsultas com as psicólogas. Facilitou muito o nosso trabalho. Rolou uma lágrima na paciente, a gente já pede avaliação da psicologia! botega@fcm.unicamp.br 4ª EDIÇÃO
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