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9. “EU NÃO", “O MEU GRUPO NÃO": REPRESENTAÇÕES SOCIAIS TRANSCULTURAIS DA AIDS Hélène Jofíe A Aids como condição estrangeira Quando confrontadas com doenças epidêmicas incu- ráveis - tanto histórica como transculturalmente - as pessoas responderam: "Eu não", “o meu grupo não” . Quando a sífilis começou a varrer a Europa, no século 15, as respostas foram semelhantes, e nos oferecem um exem- plo clássico: “Era a mancha francesa para os ingleses, a morbus Germa- nicus para os parisienses, a doença de Nápoles para os florentinos, e a enfermidade chinesa para os japoneses" (Sontag, 1989:47). Desde a década passada, a Aids - nova doença epidê- mica - também tem sido ligada a nações estrangeiras e a grupos marginais. No Ocidente, sua origem é geralmente localizada na África. Os africanos, por sua vez, tendem a situar a origem da Aids no Ocidente - relacionando-a com colonialismo e imperialismo. Além de ligar a Aids a nações estrangeiras, cada cultura específica a associa com certos grupos marginais: homossexuais e drogados no Ocidente, e mulheres, incluindo prostitutas, no mundo subdesenvol- vido. Doenças epidêmicas incuráveis também têm sido associadas a práticas que a ideologia hegemônica constrói como “estrangeiras", tais como bestialidade, alcoolismo e promiscuidade. Se nos ativermos a essas tendências his- tóricas e transculturais, poderemos observar que as repre- sentações sociais da Aids muito provavelmente se estruturam em torno de um “núcleo central" (Abric, 1984, 1993) que tem a "condição estrangeira" e o "outro" como conteúdo principal. Por que estrangeira? O medo do desconhecido motiva as pessoas a criar representações sociais de novos fenômenos (Moscovici, 1984; Kaès, 1984). Objetos sociais estranhos evocam medo, porque eles ameaçam o sentido de ordem das pessoas e sua sensação de controle sobre o mundo. Uma vez repre- sentado sob uma feição mais familiar, o objeto social se torna menos ameaçador e tal processo nos ajuda a entender por que a Aids foi inicialmente ancorada a representações mais familiares, como a de praga. Temos um exemplo claro de tal situação nos meios de comunicação ocidentais, que proclamaram a Aids como "praga homossexual”, extraindo tal representação do mundo médico. Em 1981, médicos norte-americanos isolaram um conjunto de sintomas do que, posteriormente, veio a ser chamado Aids, em cinco homossexuais americanos. Eles a chamaram de Síndrome de Deficiência Imunológica Ligada aos Homossexuais ("Gay Related Immune Deficiency”). Nos esforços da mídia para transformar o achado médico em material interessante e atraente para a comunicação de massa foram invocadas representações sociais de praga. O novo fenômeno, ao circular por entre os meios médicos, entre leigos e na mídia ocidental, veio a ser objetificado não apenas na imagem de praga, mas em uma praga que se abatia apenas sobre identidades marginais: homossexuais, africanos, haitianos, drogados, prostitutas. A noção de "praga homossexual" ancora a Aids a uma ameaça prévia - a praga bubônica, e a torna mais familiar. Mais ainda, ela objetifica a ameaça da Aids nos homossexuais, um grupo externo, fazendo-a menos ameaçadora para o grupo interno. Embora a permanência histórica do elo entre epide- mias incuráveis e condição estrangeira seja evidente em uma variedade de análises (por exemplo, Markova & Wil- kie, 1987; Herzlich 8c Pierret, 1989; Sontag, 1989), poucos são os que elucidam o porquê do elo ter sido originalmente estabelecido. Minha proposta, neste trabalho, é de que a Aids é ligada ã condição estrangeira como parte de uma estratégia projetiva, em face da ameaça. Sentimentos re- manescentes de impotência, não de todo erradicados, podem ser evocados em um período de crise massiva potencial, e antigos padrões de defesa são convocados como meio de proteção. Tal defensividade é a força motora subjacente à formação das representações sociais da Aids, que desvia a atenção da ameaça colocada pela Aids ao Eu (e ao grupo interno), e centra seu olhar sobre o “outro”, ameaçado e ameaçador. Eu acredito que uma das formas primeiras, pela qual as pessoas se defendem de medos associados à Aids, é através da projeção da responsabili- dade por sua origem e seu desenvolvimento em outros, distanciando-se, desse modo, da situação ameaçadora. Embora isso resulte em uma variedade de diferentes re- presentações sociais da Aids, que dependem do grupo que está sendo protegido, as representações sociais defensivas de grupos hegemônicos são as que atravessam o mundo médico e o mundo dos meios de comunicação de massa. Ao agirem assim, elas minimizam as tentativas daqueles grupos sociais, ligados à Aids por representações hegemô- nicas de afirmarem: "eu não", "o meu grupo não” . Metodologia Antes de esboçar uma teoria dos trabalhos das repre- sentações sociais da Aids, eu vou discutir os dados que iluminam tais processos. Entrevistas em profundidade, semi-estruturadas, com sessenta jovens sul-africanos e britânicos, homens e mulheres, escolarizados, não espe- cialistas, foram realizadas no início de 1990. Em cada uma das duas culturas a amostra se compôs dos seguintes grupos: 10 heterossexuais brancos (metade homens, me- tade mulheres); 10 heterossexuais negros (metade homens, metade mulheres); 10 homossexuais homens (6 brancos e 4 negros; 4 com soro-positivo para o vírus). A idade média dos sujeitos foi de 23 anos (os sul-afri- canos numa faixa de 17 a 37 anos e os britânicos numa faixa de 18 a 39 anos). A grande maioria dos respondentes possuía ao menos o segundo grau de escolarização, sendo que aproximadamente dois terços, em ambos os países, eram estudantes universitários. Os tópicos levantados nas entrevistas incluíam: onde o HIV/Aids se originou, como o HIV/AIDS se dissemina, quais os grupos mais afetados pela Aids no país do respondente. Além da análise de conteúdo qualitativa dessas entrevistas, também foi realizada a aná- lise de conteúdo das campanhas oficiais contra a Aids e do discurso de políticas públicas sobre a Aids dos governos da África do Sul e da Grã-Bretanha. A escolha de um método multifacetado se liga ao pressuposto de que as representações sociais são plasmadas na interação entre o pensamento popular e o contexto social em que esse pensamento acontece. Este capítulo discute os resultados das entrevistas com não-especialistas, mas também se utiliza de aspectos de uma análise mais ampla. Resultados: “Eu não”, “Não o Meu grupo” Os dados se caracterizaram pela negação de que a Aids se tenha originado no continente com o qual o respondente se identificava, e a negação de que o HIV estivesse, no momento, se disseminando no interior do seu grupo. Continentes e grupos diversos daqueles com os quais os respondentes se identificavam eram receptáculos de projeções relacionadas à Aids. Desse modo, em primeiro lugar e fundamentalmente, as pessoas dizem “eu não", "não o meu grupo", quando falam sobre a origem e a disseminação da Aids. A grande maioria dos sujeitos brancos, na amostra total, acredita na origem africana da Aids (14 em 16 sujeitos brancos sul-africanos e 11 em 16 sujeitos brancos britânicos); a maioria dos sujeitos negros, na amostra total, acredita na origem ocidental da Aids (10 em 14 sujeitos negros sul-africanos e 11 em 14 sujeitos negros britânicos). Ao falar sobre os grupos mais atingidos pela Aids em seu próprio país, dois terços dos sul-africanos (19 em 30), tanto negros como brancos, acreditam que as pessoas negras são mais afetadas pela Aids na África do Sul; dois terços dos respondentes britânicos (20 em 30), tanto ho- mossexuais como heterossexuais, acreditam que os ho- mossexuais são mais afetados pela Aids na Grã-Bretanha. Dois pontos precisam ser realçados, com relação a esse achado. Em primeirolugar, é importante notar que, quando falam sobre a Aids, os sul-africanos dividem espontanea- mente sua sociedade em grupos raciais, ao passo que os britânicos a dividem em relação a grupos sexualmente orientados. Em segundo lugar, a divisão da projeção rela- cionada à Aids não é simétrica. Sul-africanos negros e britânicos homossexuais vêem a si próprios, e não outros grupos, como mais afetados pela Aids. Esses fatores indi- cam a maneira como mecanismos psíquicos internos inte- ragem com forças sociais para forjar as representações sociais da Aids: ainda que exista uma tendência para imaginar que acontecimentos ruins têm sua origem em outros, se alguém é constantemente bombardeado com representações que ligam seu próprio grupo a esses acon- tecimentos, ele pode internalizar tais representações (Joffe, 1994). Da mesma forma, também é importante notar que, quando essas entrevistas foram realizadas, as estatísticas oficiais do governo da África do Sul não apresentavam a população negra como a mais atingida pela Aids. Ao contrário, homens brancos e homossexuais estavam afeta- dos muito mais seriamente. Mas, ao mesmo tempo, os meios de comunicação de massa de todo o mundo apre- sentavam uma disseminação exponencial da doença do centro da África para as periferias. Antes de nos voltarmos para a explicação teórica do processo "eu não"/“meu grupo não", vejamos o intricado conjunto de representações, referentes à ameaça que gru- pos externos trazem ao grupo próprio. Minha sugestão é de que a tendência dominante na representação da Aids se relaciona com a responsabilidade, e especialmente com a responsabilidade e a culpabilidade do “outro”. Todas as três representações que serão ilustradas relacionam-se a esse núcleo central. Certos grupos, entretanto, tais como homens homossexuais, absorvem a responsabilidade que foi projetada neles pelas representações dominantes que circulam na sociedade. Tais grupos vêem os outros como responsáveis pela Aids em parte, mas consideram-se tam- bém como os agentes causadores dela. 1. A Representação Social da responsabilidade Dois terços da amostra total (19/30 sul-africanos e 20/30 britânicos) empregam um discurso que implica res- ponsabilidade, quando falam de pessoas que contraíram o HIV/AIDS. Quando falam sobre pessoas com Aids, uma resposta comum é: "Muitos deles são irresponsáveis no que se refere a sua vida sexuai; não se protegem e acredito que sejam promíscuos" (Homem, branco, britânico, heterossexual). É comum, entre os respondentes, que eles discutam consigo mesmos a respeito do grau de culpabilidade de várias pessoas com Aids: "Veja, as pessoas que pegam, em primeiro lugar, do jeito como eu vejo, eles na verdade não estão se importando, não são pessoas estáveis. Assim eles não serão tão responsáveis em primeiro lugar... Mas eu penso que isso não é justo, porque há muitas pessoas inocentes que M o pegá-la, não As conseqüências que recaem sobre as pessoas ten- dem a ser vistas como controláveis. Contrair Aids está relacionado com escolha. As pessoas com Aids são julga- das como estando "em falta”, ou dignas de acusação, porque contraíram um vírus. Indivíduos são considerados diretamente responsáveis pela Aids. Entretanto, como ve- remos a seguir, a Aids também faz "vítimas inocentes". 2. A Representação Social do "vazamento": cruzando limites raciais e sexuais De que forma, então, a Aids alcança suas vítimas "inocentes"? Como é possível que a praga do grupo exter- no se transforme em um problema para o próprio grupo? De que forma grupos distintos, cada um com fronteiras sociais bem delineadas ao seu redor, podem se contami- nar? Existem representações poderosas de “vazamento" que vêm de um grupo externo, infectado, para o próprio grupo,"inocente”. Quase um terço (8 de 30) da amostra sul-africana cita a sexualidade entre raças em conexão com a disseminação da Aids. "Eu penso que durante a relação sexual de pessoas de nações diferentes. Por exemplo, eu sou da nação Zulu, ou melhor, de uma nação negra. Alguém é da índia e eu sou um cara negro e durmo com uma menina de uma nação indígena... isso é o que eu penso que causa Aids, como a relação sexual de um "de cor" [pessoa miscigenada] e um homem negro, em vez de dormir com um "de cor" (Homem, negro, sul-africano, heterossexual). "Os negros - eu garanto que foi de pessoas que vieram lá de cima da África e espalharam. Eu não sei sobre os brancos. Eu garanto que deve ter havido uma cruza entre negros e "Se você dorme com sua namorada e você não está seguro quanto a ela ou mesmo se ela viveu com alguém de outra nação, então ela vem com você e isso é a causa de você pegar Aids... Não se preocupe com Aids, elas dizem em geral, Aids é coisa de brancos. Assim, se você quiser pegar Aids, é só ir para Eldorado, lugar de gente "de cor" [pessoas miscigenadas], e você vai pegar Aids. Mas aqui em Soweto não há Aids" (Homem, negro, sul-africano, heterosse- xual). Como o terceiro exemplo mostra, muitas vezes são lugares que fornecem às pessoas objetificações da asso- ciação entre sexualidade inter-racial e Aids. Tanto na África do Sul, como na Grã-Bretanha, o conceito de "vazamento” da Aids entre o grupo próprio e o grupo externo também inclui orientação sexual. A bisse- xualidade representa a contravenção da fronteira entre a heterossexualidade e homossexualidade. Ela é vista como o ponto em que a Aids faz sua transição entre grupos homossexuais e heterossexuais por um terço dos sul-afri- canos (10 em 30), e para mais de um terço dos britânicos (12 em 30). O trecho seguinte é típico: "Eu penso assim, as pessoas mais perigosas nesses tempos são as pessoas bissexuais que são casadas e eles trouxeram a Aids pra casa para suas esposas, e então suas esposas, quando ficam grávidas, para os filhos..." (Homem, negro, inglês, homossexual). Rock Hudson e Freddy Mercury são muitas vezes mencionados quando um respondente procura expressar que cruzar fronteiras entre diferentes orientações sexuais ocorre com mais freqüência do que nós pensamos. Uma fonte a mais de vazamento da Aids se dá através da sexualidade entre animais e humanos. Um quarto dos sul-africanos (8 em 30) e um quinto dos britânicos (6 em 30) trazem à tona a bestialidade quando falam de Aids: "Como eu ouvi falar, ela começou na Inglaterra... Ela come- çou entre um macaco e uma pessoa depois que uma pessoa teve relações sexuais com um macaco... depois que a pessoa teve relações com o macaco ele nunca se lavou e ele procurou sua companheira. Então eles tiveram relações" (Homem, negro, sul-africano, heterossexual). “Os macacos na África. Eu penso que foi isso que ouvi falar e isso foi passando Deus sabe de que jeito. Eu ouvi algumas histórias horríveis sobre como ela chegou até nós [muita risada], Que eu prefiro não dizer. Entrevistador: Eu, na verdade, estou muito interessada em ouvir... Tu poderias me contar, mesmo que seja difícil. Respondente: Era exatamente o que se chama de bestia- lidade, eu penso" (Homem, branco, britânico, heteros- sexual). Os grupos a que as pessoas não pertencem são facil- mente associados com uma sexualidade aberrante. Mas que outras práticas são associadas com o continente ou grupo infestado pela Aids, o continente ou grupo que são vistos como contaminando o próprio grupo? Acima de dois terços da amostragem total (21 em 30 britânicos; 23 em 30 Tabela 1: Práticas Associadas ao Continente ou Grupo Infectados pela Aids sul-africanos) mencionaram pelo menos um dos cinco fatores seguintes em associação com contrair HIV: Um terço da amostra (11 em 30 sul-africanos; 11 em 30 britânicos) combinam pelo menos dois dos cinco fatores, chegando a uma surpreendente mistura, que eu chamo de "cocktail de pecados” . O cocktail de pecados envolve acombinação de duas ou mais práticas "aberrantes”, uma supergeneralização da medida em que elas são praticadas e a sua ligação a determinados grupos. Os seguintes extratos das entrevistas expressam o processo de combinar um número de práticas pecaminosas do “outro", com o objetivo de distanciar da Aids a identidade e as práticas do respondente. Respostas à pergunta "Onde se originou o HIV/Aids?” seguido da pergunta "Como se dissemina o HIV/AIDS" aparecem abaixo. As alusões previamente mencionadas sobre bestialidade persistem como parte de um cocktail de pecados mais amplo. As respostas da população branca, para cada uma das duas culturas, são apresentadas primeiro. "Os macacos na África. Eu penso que foi isso que eu escutei que ela se espalhou Deus sabe de que jeito. Eu ouvi falar de algumas histórias horríveis sobre como ela chegou até nós [ri muito). Que eu prefiro não dizer... Era exatamente o que se chama de bestialidade, eu penso... Eu poderia imaginar que seria algo como... as tribos na África seriam provavel- mente mais inclinadas a esse tipo de coisas... Se um homem pegou e ele fez sexo com sua mulher e alguém aparece, eu não sei como essas tribos vivem, assim eu não sei o julga- mento moral que se deve fazer sobre eles. Alguém poderia chegar e pagar algum dinheiro e fazer sexo com a mulher dele e então ele poderia levar isso para seu país e passá-lo a sua mulher... Eu imagino que isso é horrível na África. Se começou lá, não há jeito de controlar. Não há remédio. Eu imagino que realmente isso seria terrível. Eu espero que muitos desses países [Terceiro Mundo] serão varridos. Eles simplesmente não entendem esse tipo de coisa" (Homem, branco, britânico, heterossexual). "Essas pessoas não se lavam. Quero dizer, eu não quero ser preconceituoso [em voz baixa, devido à empregada na casa] mas você não sabe por onde eies andam, quero dizer, as mulheres são muito sujas, realmente elas são sujas, incrivel- mente sujas. Eu quero dizer que não existem, eu penso que não existem banheiros, eles sentam e urinam onde eles dormem, eles defecam onde dormem. Quer dizer, isso só tem de causar certa reação... o sexo é tão mal usado que ele se toma nojento. Eu não sei, com galinhas, eu não sei o que eles usam, eu penso que eles praticam besüalidade, não sei. Mas de minha parte eu penso que é devido a isso [que a Aids aparece]... poderia ser devido ao incesto, que o cérebro desapareceu dessas pessoas, por que essa gente [em voz baixa] não sabe. Eles casariam com a irmã deles amanhã" (Homem, branco, sul-africano, homossexual). Todos os sujeitos brancos relacionam a Aids com os ritos sexuais aberrantes do "outro" africano. Para os britâ- nicos, o "Terceiro Mundo” é visto como impotente, porque não possui uma medicina ocidental, enquanto que o sul- africano (branco) expressa a noção de aberração em termos de rituais ligados à sujeira e sua narrativa culmina numa idéia de degenerescência. Chama a atenção que esse mesmo sujeito (homem, sul-africano, branco) seja homos- sexual e relate que ele mesmo pratica uma ampla gama de atividades sexuais com grande número de parceiros. Mas o que dizem os respondentes negros sobre a origem e a disseminação da Aids? "O Ocidente, eles praticam toda sorte de atividades sexuais - falando da América, Europa, Rússia, etc. Eles têm homos- sexuais, eles têm bissexuais, heterossexuais, e eles têm gente que é tão doente que chega a ter relações com animais, etc. Assim que eu penso, porque eles estão sempre experimentando, eles estão sempre tentando descobrir. Isso e aquilo, isso e aquilo, eles sempre querendo descobir o que lhes convém. Assim eles estão sempre experimentando um com o outro, com outras coisas, outras criaturas, outros objetos quaisquer. Assim se você faz isso sempre, é certo que você vai ter alguma coisa errada nessa linha... É certo pois eles estão sempre experimentando. Esse filme que eu vi, 'First B o m e eles tentaram cruzar um gorila com um ser humano e eles estão sempre fazendo esse tipo de coisa e para mim isso é doença, assim desse jeito, deve ter aconte- cido algo errado e essa doença apareceu, porque ninguém sabia dela antes disso... Se você lê a história da África, a história da escravidão, e como os europeus costumavam colonizar todos os africanos e todos os outros países, os países mais pobres daqueles tempos, toda vez que eles vão para um país eles levam uma doença com eles. Como, por exemplo, os índios americanos, eles morreram por causa do homem branco, porque o homem branco levou doenças, ele matou os índios americanos, ele lhes roubou as terras, ele lhes roubou todos os seus pertences, etc., e ao mesmo tempo ele lhes passou doenças, todo tipo diferente de doenças que eles nunca tiveram, que eles nunca tinham tido. Assim para mim, olhando para isso desse jeito, o principal problema, não há maneta de você contrair a Aids na África porque a África, para mim, é o único país, no momento, que não está suficientemente ocidentalizado para criar novos problemas" (Homem, negro, britânico, heterossexual). "Como eu ouvi dizer ela começou na Inglaterra... Ela come- çou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação sexual com um macaco... depois que a pessoa teve relações com o macaco ele nunca se lavou e procurou sua parceira. Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela se espalhou. Ele nunca se lavou antes de ii jogar futebol e assim a Aids foi transmitida às pessoas... porque no futebol eles suam. Então depois de suarem, ele se encosta em mim suado e então eu pego Aids" (Homem, negro, sul-africa- no, heterossexual). Para os respondentes negros o "outro" do Ocidente também está relacionado com uma sexualidade aberrante. O sujeito negro britânico traz a relação entre experimenta- ção com sexo e rituais experimentais de laboratório. O próprio ato de interferir no que é "natural" é visto como uma maneira de ser não-africana. Os sul-africanos tendem a se mostrar mais preocupados com promiscuidade e com falta de higiene, como causadores de Aids. As quatro narrativas apresentadas são típicas do gran- de número de questões que surgem do conjunto geral dos dados. Elas mostram uma simetria notável: tanto os sujei- tos negros, como os sujeitos brancos, imaginam que o outro seja aberrante em termos de rituais sexuais, e isso é visto como a causa da Aids. 3. A Representação Social da conspiração Certos aspectos da representação social da Aids são menos simétricos que o cocktail de pecados. A maioria dos sujeitos negros britânicos (8 em 10) e a metade dos respon- dentes também britânicos, mas homossexuais (negros e brancos), acreditam que a Aids é uma conspiração. Embora alguns heterossexuais brancos reconheçam a existência dessa conspiração, eles o fazem apenas para descartá-la. A conspiração sugerida pelos britânicos marginalizados dirige-se, em geral, contra seu próprio grupo. A conspira- ção é muitas vezes objetivada no desejo da CIA (Agência Central de Inteligência dos EE.UU.) de varrer do mundo grupos marginais: "Eu penso que ela [Aids] poderia possivelmente ser uma guerra química... Eu li pedaços de publicações em que a CIA estava ligada, e sejamos realistas aqui. Você sabe, podia muito bem ser, você sabe, se você quer erradicar uma espécie do mundo, ou uma minoria, ou uma categoria, do mundo, sejam insetos ou outra qualquer, você vai ao seu sistema reprodutivo, não é, algo onde haveria contato, ou contato íntimo... certamente poderia ser a comunidade ho- mossexual" (Homem britânico, branco, homossexual, HIV positivo). "Há grande possibilidade de ela [Aids] ser um experimento... Ela poderia ser usada como uma arma, eu penso, ela poderia ser usada como uma arma, não sei. Os americanos inventam uma porção decoisas, não é? As pessoas pensam que eles são as pessoas mais inocentes, mas eles não são, há uma porção de coisas que acontece por detrás das portas fecha- das... talvez um animal teve essa doença desconhecida, ou qualquer outra coisa, e eles provavelmente colheram amos- tras de seu sangue ou seja o que for, poderia ser um macaco, um chimpanzé, qualquer coisa, não? - e poderia ter vazado, é uma dessas possibilidades, você sabe, um pouco como o caso de Chemobyl" (Homem, negro, britânico, heteros- sexual). Surpreendentemente, apenas 1, em trinta sul-africa- nos, culpa a Aids por ser uma conspiração humana. São os grupos marginalizados, na amostra britânica, que freqüen- temente representam a Aids em termos de conspiração. Teorizando as Representações Sociais da Aids Os dados apresentam um quadro em que (i) "o outro" é responsável pela Aids, (ii) em que o "vazamento" ocorre entre "o outro” e o Eu, ou o próprio grupo, devido a práticas aberrantes, e em que (iii) no caso de certos grupos margi- nalizados, uma conspiração traz a Aids para seus próprios grupos. Eu mencionei que o núcleo central do “outro” , nas representações sociais da Aids, se relaciona com o proces- so de ancoragem, em que a Aids é ancorada a epidemias incuráveis prévias. Eu também propus que o núcleo central do "outro" é um instrumento projetivo de defesa. Aqui, eu me proponho a elaborar essas suposições à luz dos dados apresentados acima. Antes de delinear as representações sobre epidemias incuráveis que fornecem as âncoras para as representações sociais da Aids, é preciso que tenhamos claro de que maneira grupos marginalizados têm sido vistos, através da história, em períodos de ameaça. Cohn (1976) demonstra que desde o século II dC grupos marginais foram o depo- sitário para fantasias de perversão erótica, canibalismo e infanticídio. Tais representações foram formuladas pelos romanos, dentro do Império Romano, quando estes se encontraram ameaçados pela ascensão do poder cristão, um grupo marginal naquele período. A cristandade medie- vai reativou as fábulas romanas de eroticismo, canibalismo e infanticídio, e as aplicou a grupos religiosos externos: “Sempre de novo, em um período de séculos, seitas heréti- cas foram acusadas de praticar orgias promíscuas no escu- ro... ou adorar o demônio" (Cohn, 1976:54). “Quando se tratou de desacreditar alguns grupos religiosos externos, os monges se socorriam desse conjunto de rótulos difamatórios" (Cohn, 1976:56). Cohn (1976) afirma que fantasias referentes a rituais de grupos estranhos propiciam uma arma para que o próprio grupo desacredite o grupo estranho, construindo suas práticas como ameaçadoras para a sociedade. Embora essa teoria esteja, em grande parte, confinada a representações que emergem em períodos de dissensão religiosa, ela também encontra ressonância no que diz respeito ao tratamento de grupos estranhos, em períodos de outras crises. Epidemias incuráveis - que representam uma crise potencial para um grande número de pessoas - têm sido ligadas, historicamente, a grupos estranhos, cuja sexuali- dade é aberrante e cujos rituais são misteriosos. Eu vou centrar minha discussão no laço histórico que se estabele- ceu entre a sífilis e a aberração, ainda que outras "pragas" potenciais, tais como a cólera, tenham evocado repre- sentações semelhantes. Na cultura ocidental do século XIX, a sífilis caracteri- zava depravação moral (Gilman, 1985). As mulheres negras e as prostitutas eram tidas como as principais transmisso- ras da doença. Ambos os grupos eram associados a uma sexualidade desenfreada. As mulheres negras, em particu- lar, representavam tanto a hipersexualidade, como o exó- tico. Elas eram geralmente consideradas como possuindo tanto um apetite sexual "primitivo" como os sinais externos de tal condição: uma genitália "primitiva". Imaginava-se que as mulheres negras copulavam com macacos (Gilman, 1992). Os museus europeus do século XIX exibiam diagra- mas e partes da genitália das mulheres Hottentot. As diferenças entre suas partes sexuais e as das mulheres ocidentais eram usadas para provar que elas pertenciam a uma espécie inferior. Ao mesmo tempo, as mulheres Hot- tentot eram figuradas em obras de arte da época como objetos extremamente sexualizados. A forma como os europeus degradavam os povos negros, ligada ao seu voyeurismo, era evidente na fascinação que ocorria com relação aos genitais das mulheres negras, bem como em certas práticas institucionais: os zoológicos da Alemanha, Áustria e Budapeste, possuíam pessoas africanas antes da I Guerra Mundial (Gilman, 1985). Tais grupos externos eram representados tanto de uma maneira degradante - pela sua associação a espécies inferiores -, como de modo erótico. O laço entre grupos estranhos, aberração e doença voltou à cena principal nas representações sociais da Aids. Isso fica indubitavelmente claro nos cocktails de pecados que se depreendem dos trechos das entrevistas apresen- tadas acima. Mas, é importante salientar que tais idéias não se originaram no psiquismo de indivíduos privados: as representações médicas e as representações dos meios de comunicação sobre a Aids forneceram as sementes para essas noções. A literatura médica ocidental tem sido pródiga na elaboração da associação entre a Aids e os rituais que são vistos como aberrantes no Ocidente. Farmer (1992) inves- tigou uma corrente da literatura médica que ligou a Aids com as práticas do vudu: “Os cientistas norte-americanos especularam repetidamen- te que a Aids pode ser transmitida entre os haitianos através dos ritos do vudu, a ingestão de sangue de animais sacrifi- cados, o alimentar-se de gatos, a homossexualidade rituali- zada, etc. - uma rica parafernália de coisas exóticas” (P. 224). Do “vudu", por exemplo, se disse que: "traz à mente visões de mortes misteriosas, ritos secretos - ou bacanais escuros celebradas por negros 'sanguinolentos, tarados, enlouquecidos”’ (Métraux, 1972: 15). O laço entre a Aids, o vudu e o grupo externo haitiano penetrou revistas médicas americanas de prestígio, e dali deslocou-se para os meios de comunicação de massa e para a população leiga. Os meios de comunicação ociden- tais, cuja penetração vai muito além do Ocidente, conti- nuaram considerando o mundo subdesenvolvido, e a África em particular, como o lugar onde a Aids se originou. O elo entre África, macacos e Aids, conquistou a atenção popu- lar, porque ele se ajusta a pré-concepções relacionadas à natureza causadora de doenças da floresta africana. Fan- tasias relacionadas à sujeira, doenças e promiscuidade sexual vêm rapidamente à mente ocidental quando se pensa na África (Dada, 1990). A validade dos relatórios médicos, que sustentam um elo entre a África, os Macacos Verdes e a Aids, somente foi questionada posteriormente, devido à pressão que os próprios grupos estigmatizados exerceram sobre os médicos. As nossas entrevistas mostram que, enquanto os oci- dentais consideram as práticas de grupos que lhes são estranhos - africanos e homossexuais - como perversas, da mesma forma, também os sujeitos negros viam as práticas ocidentais com suspeita. Esses dados corroboram a afirmativa de Farmer (1992) de que grupos acusados em função da Aids são sugestionáveis a teorias conspiratórias sobre a origem da doença. A Aids é considerada como tendo sido fabricada em laboratórios de pesquisa - muitas vezes pela CIA ou pelo FBI - para fins de engenharia genética ou de guerra biológica (Aggleton et al.,1989). Mais uma vez, os meios de comunicação desempenharam um importante papel na circulação dessa representação. As teorias conspiratórias em relação à Aids foram inicialmente defendidas no Haiti, onde um folheto denunciou a Aids como "uma conspiração imperialista para destruiro Ter- ceiro Mundo" (Farmer, 1992). Depois disso, teorias conspi- ratórias receberam uma atenção regular na imprensa ho- mossexual da América do Norte e da Europa, e no mundo subdesenvolvido. Exatamente aqueles que haviam sido acusados de ter introduzido o HIV/AIDS no mundo ociden- tal foram os principais defensores das teorias conspirató- rias. Teorias conspiratórias parecem, assim, ser uma defesa retórica de grupos destituídos de poder. Elas são uma forma de resistência às representações sociais mais hege- mônicas, que proliferaram nos meios de comunicação de massa de todo o mundo. Uma das representações sociais dominantes afirma que a Aids se originou e se disseminou a partir dos Macacos Verdes na África. Embora os médicos não tenham sugerido a bestialidade, na África, como uma forma de contato entre os Macacos Verdes e seres huma- nos, existe um discurso recorrente, nos meios de comuni- cação, sobre um tipo de vírus HIV-símio, que se aproxima do vírus humano. Ora, a população leiga necessita enten- der, a seu modo, como esse vírus passou do macaco para seres humanos. Quando ligada a transformações incons- cientes, relacionadas a práticas aberrantes praticadas por grupos estranhos na África, uma representação que impli- que bestialidade passa a ter sentido. Ainda dentro da teoria de Cohn (1976), o caráter estranho dos rituais pertencentes a grupos externos é usado tanto para denunciar o grupo externo, como para distanciar o próprio grupo desse tipo de ritual. Da mesma forma que o canibalismo desempenhou um papel crucial de denunciar a civilização indígena do "Novo Mundo” , também a bestialidade e outros rituais são utilizados para denunciar os africanos. Os cronistas de Colombo superge- neralizaram a escala em que o canibalismo, a bestialidade e o infanticídio eram praticados, e imaginaram que as pessoas combinavam essas três práticas (Thomsen, 1987). As concepções européias sobre o "Novo Mundo" conti- nham uma estranha mistura de mitos, fábulas e fantasias coletivas. É essa estranha mistura de mitos com respeito à África que fornece hoje aos ocidentais um caminho para ver os africanos de um modo degradante e alheio, permi- tindo, ao mesmo tempo, que os ocidentais se distanciem dos africanos e da doença que hoje é associada a eles. Projeção sobre o estrangeiro O processo histórico, através do qual um poderoso conjunto de fantasias ligadas à bestialidade, à sujeira, à promiscuidade e à homossexualidade emergiu como res- posta à Aids, não pode ser meramente explicado olhando- se para representações anteriores de epidemias incuráveis. É necessário ir mais a fundo para explicar o laço histórico entre doença e condição estrangeira. Mudanças no am- biente social produzem insegurança, que por sua vez exacerba conflitos de identidade não resolvidos. Quando as pessoas ligam práticas aberrantes a um “outro", já não lhes é mais necessário se deparar com os conflitos que também lhes pertencem (Gilman, 1985). Por isso, a maneira como os europeus representam doenças epidêmicas incu- ráveis, reflete muito de suas tensões e problemas não resolvidos (Gilman, 1988). Cada grupo social tem vários "depositários" (Sher- wood), ou "grupos indefesos” (Gilman, 1988; Andreski, 1989) como alvos potenciais para projeção desses proble- mas não resolvidos e tensões. Para a teoria das repre- sentações sociais, o conhecimento que as pessoas têm sobre grupos que podem ser alvo de projeção é construído tanto por memórias coletivas, como pelas teorias que circulam na comunidade científica, nos meios de comuni- cação de massa e nas conversações do dia-a-dia. As diferenças nas representações sociais que diferentes indi- víduos sustentam podem ser atribuídas às diferentes posi- ções sociais de cada indivíduo. Ainda que diferentes grupos, em uma sociedade, tenham diferentes “depositá- rios” para acusar, a ideologia dominante da sociedade tende a propagar imagens de alguns grupos específicos como o seu “outro" total. Os homossexuais tendem a ser um dos grupos que ocupa essa posição nas sociedades ocidentais. Além do mais, experiências subjetivas e inter- nas são parte e parcela desses posicionamentos sociais. É dentro de um referencial sócio-histórico e psicodinâmico, que uma teoria que explique o processo do “eu não / o meu grupo não” deve ser desenvolvida. A projeção de ações socialmente inaceitáveis sobre outros está relacionada a sistemas de defesa primários, cujos traços permanecem ao longo de toda a vida. A defesa, ainda que tenha sua origem no sujeito individual, pode ser tanto exacerbada como diminuída, dependendo das práticas discursivas que estão em torno do sujeito em desenvolvimento. Desse modo, a interação contínua entre meios de comunicação e o imaginário popular é central para o processo de formação de fantasia. De acordo com Klein (1952), desde os primeiros meses de vida a criança usa artifícios de autopreservação para se defender contra a ansiedade que é sentida quando seu objeto primário - na maior parte das vezes, a mãe - não consegue satisfazer suas necessidades. Sentimentos de ódio em relação à experiência de perseguição por parte do objeto primário são superados quando a criança os separa dos sentimentos de amor que ela quer conservar. A dissociação, como mecanismo inconsciente de defesa, consiste na introjeção de experiências e sentimentos prazerosos, e na projeção de experiências e sentimentos ruins. A dissociação, a introjeção e a projeção estão entre os primeiros processos mentais ativos da criança. Resíduos de sentimentos e defesas primárias permanecem com o sujeito durante toda a vida. Bion (1961), e mais recentemente Young (1991), afirmaram que sentimentos e defesas primários se tornam parte das vicissitudes da interação cotidiana, que são reativados quando a pessoa experimenta impotência em relação a objetos do mundo externo. A ameaça de epide- mias incuráveis é uma dessas experiências. O mecanismo de dissociação, que opera entre a criança e seu objeto primário, possui uma contrapartida social. No processo de L formação da identidade, as pessoas dissociam os “objetos" (ou pessoas) do mundo ao seu redor, em grupos bons e grupos maus. Essas dissociações naturalmente também são geradas por divisões ocorridas na história de suas respectivas sociedades. Quando ocorrem mudanças amea- çadoras no ambiente social, as representações da mudança servem para dar às pessoas um sentimento de controle da situação potencialmente incontrolável. Surgem então rep- resentações defensivas da mudança como as repre- sentações que garantem a idéia do "eu não”, "o meu grupo não". O que se busca aqui é controle e sentido de comu- nidade, através da projeção do medo na realidade externa. As representações sociais da Aids são formadas atra- vés da ancoragem da Aids a ideologias que já circulam em determinada sociedade, e através da objetificação da Aids em certos lugares, práticas ou grupos. Aquelas repre- sentações sociais da Aids que eu procurei mapear refletem ideologias centrais que circulam na África do Sul e na Grã-Bretanha. Individualismo, colonialismo e heterossexis- mo são comuns a ambas as sociedades, enquanto que ideologias ligadas ao apartheid são específicas à África do Sul, e teorias conspiratórias são específicas à Grã-Breta- nha. A predisposição das pessoas para endossar certas representações sociais de um acontecimento, e não outras, emerge das experiências da infância ligadas às experiên- cias da vida adulta em constante desenvolvimento, que interagem com imagens mediatizadas pelos meios de comunicação, lendas e brincadeiras populares. Gilman (1988) mostra que representações ocidentais da doença contêm o medo do colapso. De acordo com o processo de projeção, porém, esse medo do colapso não permanece internalizado. Ele é projetadono mundo exter- no, justamente para ser facilmente localizado. Uma vez localizado, o medo da desintegração é removido. Esse processo é graficamente descrito por Williamson (1989). Ela afirma que o pensamento dominante em relação ao HIV/AIDS: "unifica um pântano de realidades impensáveis, em que a homossexualidade (para muitas pessoas) já está submergi- da, um território gótico onde os temores são jogados numa espécie de terra mental abandonada, para além das mura- lhas do castelo do ego" (p. 70). A construção de um "território gótico" é funcional: ela permite a manutenção do controle do próprio território. Aqueles que operam dentro do “território gótico" são considerados alienígenas. Os alienígenas deixam claro que comportamentos os membros da sociedade devem evitar e desempenham um papel importante na coesão e identi- dade do grupo dominante. Junto a esses grupos encontra- se um conjunto de práticas que, por serem elas mesmas “desvio", constroem os parâmetros que definem as normas da sociedade. O “outro" é necessário ao Eu. Ao definir o que é um "comportamento antinatural” , os membros de um grupo também estabelecem as denotações do que é "natural” . De acordo com Gilman (1992), fantasias relacio- nadas a grupos estranhos permitem às pessoas projetar nos outros aquelas facetas de si mesmas que elas, e suas respectivas sociedades, consideram inaceitáveis. A “não aceitabilidade" é, em grande parte, ditada por aquelas práticas que diferem do status quo e por isso o subvertem. E aqui é importante que se diga: as representações sociais que constroem o “outro" como aberração têm conseqüên- cias para a prática. Elas permitem que esse “outro" seja maltratado e discriminado: a subordinação daquelas pes- soas, cujos sistemas de valores, práticas e identidades são diferentes, passa a ser apenas um desdobramento justo de uma lei considerada “natural". Conclusão A disseminação da Aids, seja ela representada em termos de sexualidade inter-racial, seja em termos de conspiração, aparece sempre como responsabilidade de grupos que são externos ao próprio grupo. A projeção da responsabilidade sobre grupos estranhos é um mecanismo de defesa que afasta tanto o próprio grupo como o Eu da Aids, deixando intacta a sensação de controle. A projeção intergrupal ocorre como forma de controlar o que ameaça nossos sentimentos de onipotência. A partir da perspectiva kleiniana dos processos projetivos (1952), Douglas (1966) afirma que as pessoas constroem sistemas simbólicos ligados à pureza, a fim de ordenar o conjunto caótico de estímulos que existem ao seu redor. Aqueles elementos que não podem ser classificados dentro do sistema amea- çam sua ordem e se tornam, por isso, tanto perigosos, como poderosos. A emocionalidade, a espiritualidade e o lado instintivo (animal), historicamente associados aos grupos estranhos (Cohn, 1976), ameaçam o sentimento de onipo- tência. Espero ter enfatizado, suficientemente, o papel do afeto - incluindo aqui sentimentos de medo, ansiedade e impotência - na formação das representações sociais. A teoria das representações socias nos alerta para o fato de que essas respostas emocionais não se originam em indi- víduos isoladamente. Elas são o produto de representações emocionais da doença, que surgiram historicamente, mas que ainda hoje circulam no meio científico, nos meios de comunicação de massa e do pensamento popular. O ato mesmo de construção da representação social, como um todo, relaciona-se com o medo de impotência diante de um objeto social desconhecido. O elemento defensivo, contudo, pode ser aumentado na representação social de crises. Nas representações sociais sul-africanas e britânicas sobre a origem e a disseminação da Aids, nós podemos observar uma cacofonia de pecados postos juntos. O bes- tial, o bissexual e o conspiracional são "liquidificados" ao mesmo tempo, produzindo uma mistura forte de imagens e fantasias relacionadas às práticas de grupos estranhos. Ao construir cocktails de pecado que geram doenças, as pessoas fazem de suas próprias práticas um conjunto de práticas “puras". Isso vem reforçar um sentimento de imunidade diante do HIV/AIDS e sustentar valores hege- mônicos. Não é, pois, coincidência que a grande maioria de minha amostra total sinta que suas chances de contrair o HIV são mínimas. Sejam quais forem as práticas pessoais de alguém, as práticas do “outro” podem ser construídas, ao nível das representações sociais, como mais perversas, antinaturais e geradoras de doença. Mas, ao mesmo tempo em que se distanciavam das ações do "outro” , os sujeitos de meu estudo se mostraram excepcionalmente dispostos a teorizar e descrever essas práticas. A qualidade de tal teorização, embora freqüentemente expressa em termos de repulsa, é uma demonstração de desejo. O desejo co-existe com a desumanização das práticas do “outro” . A fascina- ção do mundo médico, de não-especialistas e dos meios de comunicação pela homossexualidade e pela sexualida- de africana, nesses tempos de Aids, é uma expressão de desejo. O gozo é obtido, aqui, através de um olhar voye- rístico aos cocktails de pecado que grupos estranhos, “exóticos", representam. Como conseqüência, grupos es- tranhos se deparam com representações que os degradam e os sexualizam, ao mesmo tempo. Os dados discutidos aqui indicam que os membros de grupos marginalizados freqüentemente internalizam tais representações, o que os faz surgir com identidades deterioradas. A internalização de uma representação degradante e sexualizada se revela na fala de muitos membros de grupos marginalizados: "Eu mesmo sou homossexual, mas os homossexuais são repugnantes. Hum, você teve, quero dizer, não vamos ficar aqui fazendo rodeios... a coisa é tão violenta que com isso agora nós estamos vivendo num tempo em que um homem se achega a outro homem em plena luz do dia. Eu fui abordado em plena luz do dia, sabe, e em locais públicos e coisas assim. E existem, hum, é verdade há uma porção de parques, e há multa atividade sexual clandestina acontecen- do por aí, clubes, camionetas, ônibus; eu foi molestado nos piores lugares, sabe. Eu, pessoalmente, passei pelas situa- ções mais incríveis, há uma porção de desvios de compor- tamento acontecendo e isso eu não estou dizendo que é errado, mas é certamente um desvio, sabe" (Homem, ne- gro, britânico, homossexual). Referências bibliográficas ABRIC, J.-C. (1984). 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