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EU NÃO", “O MEU GRUPO NÃO": REPRESENTAÇÕES SOCIAIS TRANSCULTURAIS DA AIDS

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9. “EU NÃO", “O MEU GRUPO NÃO": REPRESENTAÇÕES SOCIAIS TRANSCULTURAIS DA AIDS
Hélène Jofíe
A Aids como condição estrangeira
Quando confrontadas com doenças epidêmicas incu-
ráveis - tanto histórica como transculturalmente - as 
pessoas responderam: "Eu não", “o meu grupo não” . 
Quando a sífilis começou a varrer a Europa, no século 15, 
as respostas foram semelhantes, e nos oferecem um exem-
plo clássico:
“Era a mancha francesa para os ingleses, a morbus Germa- 
nicus para os parisienses, a doença de Nápoles para os 
florentinos, e a enfermidade chinesa para os japoneses" 
(Sontag, 1989:47).
Desde a década passada, a Aids - nova doença epidê-
mica - também tem sido ligada a nações estrangeiras e a 
grupos marginais. No Ocidente, sua origem é geralmente 
localizada na África. Os africanos, por sua vez, tendem a 
situar a origem da Aids no Ocidente - relacionando-a com 
colonialismo e imperialismo. Além de ligar a Aids a nações 
estrangeiras, cada cultura específica a associa com certos 
grupos marginais: homossexuais e drogados no Ocidente, 
e mulheres, incluindo prostitutas, no mundo subdesenvol-
vido. Doenças epidêmicas incuráveis também têm sido 
associadas a práticas que a ideologia hegemônica constrói 
como “estrangeiras", tais como bestialidade, alcoolismo e
promiscuidade. Se nos ativermos a essas tendências his-
tóricas e transculturais, poderemos observar que as repre-
sentações sociais da Aids muito provavelmente se 
estruturam em torno de um “núcleo central" (Abric, 1984,
1993) que tem a "condição estrangeira" e o "outro" como 
conteúdo principal.
Por que estrangeira?
O medo do desconhecido motiva as pessoas a criar 
representações sociais de novos fenômenos (Moscovici, 
1984; Kaès, 1984). Objetos sociais estranhos evocam medo, 
porque eles ameaçam o sentido de ordem das pessoas e 
sua sensação de controle sobre o mundo. Uma vez repre-
sentado sob uma feição mais familiar, o objeto social se 
torna menos ameaçador e tal processo nos ajuda a entender 
por que a Aids foi inicialmente ancorada a representações 
mais familiares, como a de praga. Temos um exemplo claro 
de tal situação nos meios de comunicação ocidentais, que 
proclamaram a Aids como "praga homossexual”, extraindo 
tal representação do mundo médico. Em 1981, médicos 
norte-americanos isolaram um conjunto de sintomas do 
que, posteriormente, veio a ser chamado Aids, em cinco 
homossexuais americanos. Eles a chamaram de Síndrome 
de Deficiência Imunológica Ligada aos Homossexuais 
("Gay Related Immune Deficiency”). Nos esforços da mídia 
para transformar o achado médico em material interessante 
e atraente para a comunicação de massa foram invocadas 
representações sociais de praga. O novo fenômeno, ao 
circular por entre os meios médicos, entre leigos e na mídia 
ocidental, veio a ser objetificado não apenas na imagem de 
praga, mas em uma praga que se abatia apenas sobre 
identidades marginais: homossexuais, africanos, haitianos, 
drogados, prostitutas. A noção de "praga homossexual" 
ancora a Aids a uma ameaça prévia - a praga bubônica, e 
a torna mais familiar. Mais ainda, ela objetifica a ameaça
da Aids nos homossexuais, um grupo externo, fazendo-a 
menos ameaçadora para o grupo interno.
Embora a permanência histórica do elo entre epide-
mias incuráveis e condição estrangeira seja evidente em 
uma variedade de análises (por exemplo, Markova & Wil- 
kie, 1987; Herzlich 8c Pierret, 1989; Sontag, 1989), poucos 
são os que elucidam o porquê do elo ter sido originalmente 
estabelecido. Minha proposta, neste trabalho, é de que a 
Aids é ligada ã condição estrangeira como parte de uma 
estratégia projetiva, em face da ameaça. Sentimentos re-
manescentes de impotência, não de todo erradicados, 
podem ser evocados em um período de crise massiva 
potencial, e antigos padrões de defesa são convocados 
como meio de proteção. Tal defensividade é a força motora 
subjacente à formação das representações sociais da Aids, 
que desvia a atenção da ameaça colocada pela Aids ao Eu 
(e ao grupo interno), e centra seu olhar sobre o “outro”, 
ameaçado e ameaçador. Eu acredito que uma das formas 
primeiras, pela qual as pessoas se defendem de medos 
associados à Aids, é através da projeção da responsabili-
dade por sua origem e seu desenvolvimento em outros, 
distanciando-se, desse modo, da situação ameaçadora. 
Embora isso resulte em uma variedade de diferentes re-
presentações sociais da Aids, que dependem do grupo que 
está sendo protegido, as representações sociais defensivas 
de grupos hegemônicos são as que atravessam o mundo 
médico e o mundo dos meios de comunicação de massa. 
Ao agirem assim, elas minimizam as tentativas daqueles 
grupos sociais, ligados à Aids por representações hegemô-
nicas de afirmarem: "eu não", "o meu grupo não” .
Metodologia
Antes de esboçar uma teoria dos trabalhos das repre-
sentações sociais da Aids, eu vou discutir os dados que 
iluminam tais processos. Entrevistas em profundidade, 
semi-estruturadas, com sessenta jovens sul-africanos e
britânicos, homens e mulheres, escolarizados, não espe-
cialistas, foram realizadas no início de 1990. Em cada uma 
das duas culturas a amostra se compôs dos seguintes 
grupos: 10 heterossexuais brancos (metade homens, me-
tade mulheres); 10 heterossexuais negros (metade homens, 
metade mulheres); 10 homossexuais homens (6 brancos e 
4 negros; 4 com soro-positivo para o vírus).
A idade média dos sujeitos foi de 23 anos (os sul-afri- 
canos numa faixa de 17 a 37 anos e os britânicos numa 
faixa de 18 a 39 anos). A grande maioria dos respondentes 
possuía ao menos o segundo grau de escolarização, sendo 
que aproximadamente dois terços, em ambos os países, 
eram estudantes universitários. Os tópicos levantados nas 
entrevistas incluíam: onde o HIV/Aids se originou, como o 
HIV/AIDS se dissemina, quais os grupos mais afetados pela 
Aids no país do respondente. Além da análise de conteúdo 
qualitativa dessas entrevistas, também foi realizada a aná-
lise de conteúdo das campanhas oficiais contra a Aids e 
do discurso de políticas públicas sobre a Aids dos governos 
da África do Sul e da Grã-Bretanha. A escolha de um 
método multifacetado se liga ao pressuposto de que as 
representações sociais são plasmadas na interação entre o 
pensamento popular e o contexto social em que esse 
pensamento acontece. Este capítulo discute os resultados 
das entrevistas com não-especialistas, mas também se 
utiliza de aspectos de uma análise mais ampla.
Resultados: “Eu não”, “Não o Meu grupo”
Os dados se caracterizaram pela negação de que a 
Aids se tenha originado no continente com o qual o 
respondente se identificava, e a negação de que o HIV 
estivesse, no momento, se disseminando no interior do seu 
grupo. Continentes e grupos diversos daqueles com os 
quais os respondentes se identificavam eram receptáculos 
de projeções relacionadas à Aids. Desse modo, em primeiro 
lugar e fundamentalmente, as pessoas dizem “eu não",
"não o meu grupo", quando falam sobre a origem e a 
disseminação da Aids. A grande maioria dos sujeitos 
brancos, na amostra total, acredita na origem africana da 
Aids (14 em 16 sujeitos brancos sul-africanos e 11 em 16 
sujeitos brancos britânicos); a maioria dos sujeitos negros, 
na amostra total, acredita na origem ocidental da Aids (10 
em 14 sujeitos negros sul-africanos e 11 em 14 sujeitos 
negros britânicos).
Ao falar sobre os grupos mais atingidos pela Aids em 
seu próprio país, dois terços dos sul-africanos (19 em 30), 
tanto negros como brancos, acreditam que as pessoas 
negras são mais afetadas pela Aids na África do Sul; dois 
terços dos respondentes britânicos (20 em 30), tanto ho-
mossexuais como heterossexuais, acreditam que os ho-
mossexuais são mais afetados pela Aids na Grã-Bretanha. 
Dois pontos precisam ser realçados, com relação a esse 
achado. Em primeirolugar, é importante notar que, quando 
falam sobre a Aids, os sul-africanos dividem espontanea-
mente sua sociedade em grupos raciais, ao passo que os 
britânicos a dividem em relação a grupos sexualmente 
orientados. Em segundo lugar, a divisão da projeção rela-
cionada à Aids não é simétrica. Sul-africanos negros e 
britânicos homossexuais vêem a si próprios, e não outros 
grupos, como mais afetados pela Aids. Esses fatores indi-
cam a maneira como mecanismos psíquicos internos inte-
ragem com forças sociais para forjar as representações 
sociais da Aids: ainda que exista uma tendência para 
imaginar que acontecimentos ruins têm sua origem em 
outros, se alguém é constantemente bombardeado com 
representações que ligam seu próprio grupo a esses acon-
tecimentos, ele pode internalizar tais representações (Joffe,
1994). Da mesma forma, também é importante notar que, 
quando essas entrevistas foram realizadas, as estatísticas 
oficiais do governo da África do Sul não apresentavam a 
população negra como a mais atingida pela Aids. Ao 
contrário, homens brancos e homossexuais estavam afeta-
dos muito mais seriamente. Mas, ao mesmo tempo, os
meios de comunicação de massa de todo o mundo apre-
sentavam uma disseminação exponencial da doença do 
centro da África para as periferias.
Antes de nos voltarmos para a explicação teórica do 
processo "eu não"/“meu grupo não", vejamos o intricado 
conjunto de representações, referentes à ameaça que gru-
pos externos trazem ao grupo próprio. Minha sugestão é 
de que a tendência dominante na representação da Aids 
se relaciona com a responsabilidade, e especialmente com 
a responsabilidade e a culpabilidade do “outro”. Todas as 
três representações que serão ilustradas relacionam-se a 
esse núcleo central. Certos grupos, entretanto, tais como 
homens homossexuais, absorvem a responsabilidade que 
foi projetada neles pelas representações dominantes que 
circulam na sociedade. Tais grupos vêem os outros como 
responsáveis pela Aids em parte, mas consideram-se tam-
bém como os agentes causadores dela.
1. A Representação Social da responsabilidade
Dois terços da amostra total (19/30 sul-africanos e 
20/30 britânicos) empregam um discurso que implica res-
ponsabilidade, quando falam de pessoas que contraíram o 
HIV/AIDS. Quando falam sobre pessoas com Aids, uma 
resposta comum é:
"Muitos deles são irresponsáveis no que se refere a sua vida 
sexuai; não se protegem e acredito que sejam promíscuos" 
(Homem, branco, britânico, heterossexual).
É comum, entre os respondentes, que eles discutam 
consigo mesmos a respeito do grau de culpabilidade de 
várias pessoas com Aids:
"Veja, as pessoas que pegam, em primeiro lugar, do jeito 
como eu vejo, eles na verdade não estão se importando, não 
são pessoas estáveis. Assim eles não serão tão responsáveis 
em primeiro lugar... Mas eu penso que isso não é justo, 
porque há muitas pessoas inocentes que M o pegá-la, não
As conseqüências que recaem sobre as pessoas ten-
dem a ser vistas como controláveis. Contrair Aids está 
relacionado com escolha. As pessoas com Aids são julga-
das como estando "em falta”, ou dignas de acusação, 
porque contraíram um vírus. Indivíduos são considerados 
diretamente responsáveis pela Aids. Entretanto, como ve-
remos a seguir, a Aids também faz "vítimas inocentes".
2. A Representação Social do "vazamento": 
cruzando limites raciais e sexuais
De que forma, então, a Aids alcança suas vítimas 
"inocentes"? Como é possível que a praga do grupo exter-
no se transforme em um problema para o próprio grupo? 
De que forma grupos distintos, cada um com fronteiras 
sociais bem delineadas ao seu redor, podem se contami-
nar? Existem representações poderosas de “vazamento" 
que vêm de um grupo externo, infectado, para o próprio 
grupo,"inocente”.
Quase um terço (8 de 30) da amostra sul-africana cita 
a sexualidade entre raças em conexão com a disseminação 
da Aids.
"Eu penso que durante a relação sexual de pessoas de 
nações diferentes. Por exemplo, eu sou da nação Zulu, ou 
melhor, de uma nação negra. Alguém é da índia e eu sou 
um cara negro e durmo com uma menina de uma nação 
indígena... isso é o que eu penso que causa Aids, como a 
relação sexual de um "de cor" [pessoa miscigenada] e um 
homem negro, em vez de dormir com um "de cor" (Homem, 
negro, sul-africano, heterossexual).
"Os negros - eu garanto que foi de pessoas que vieram lá 
de cima da África e espalharam. Eu não sei sobre os brancos. 
Eu garanto que deve ter havido uma cruza entre negros e
"Se você dorme com sua namorada e você não está seguro 
quanto a ela ou mesmo se ela viveu com alguém de outra 
nação, então ela vem com você e isso é a causa de você 
pegar Aids... Não se preocupe com Aids, elas dizem em 
geral, Aids é coisa de brancos. Assim, se você quiser pegar 
Aids, é só ir para Eldorado, lugar de gente "de cor" [pessoas 
miscigenadas], e você vai pegar Aids. Mas aqui em Soweto 
não há Aids" (Homem, negro, sul-africano, heterosse-
xual).
Como o terceiro exemplo mostra, muitas vezes são 
lugares que fornecem às pessoas objetificações da asso-
ciação entre sexualidade inter-racial e Aids.
Tanto na África do Sul, como na Grã-Bretanha, o 
conceito de "vazamento” da Aids entre o grupo próprio e 
o grupo externo também inclui orientação sexual. A bisse- 
xualidade representa a contravenção da fronteira entre a 
heterossexualidade e homossexualidade. Ela é vista como 
o ponto em que a Aids faz sua transição entre grupos 
homossexuais e heterossexuais por um terço dos sul-afri- 
canos (10 em 30), e para mais de um terço dos britânicos 
(12 em 30). O trecho seguinte é típico:
"Eu penso assim, as pessoas mais perigosas nesses tempos 
são as pessoas bissexuais que são casadas e eles trouxeram 
a Aids pra casa para suas esposas, e então suas esposas, 
quando ficam grávidas, para os filhos..." (Homem, negro, 
inglês, homossexual).
Rock Hudson e Freddy Mercury são muitas vezes 
mencionados quando um respondente procura expressar 
que cruzar fronteiras entre diferentes orientações sexuais 
ocorre com mais freqüência do que nós pensamos.
Uma fonte a mais de vazamento da Aids se dá através 
da sexualidade entre animais e humanos. Um quarto dos 
sul-africanos (8 em 30) e um quinto dos britânicos (6 em 
30) trazem à tona a bestialidade quando falam de Aids:
"Como eu ouvi falar, ela começou na Inglaterra... Ela come-
çou entre um macaco e uma pessoa depois que uma pessoa 
teve relações sexuais com um macaco... depois que a pessoa 
teve relações com o macaco ele nunca se lavou e ele 
procurou sua companheira. Então eles tiveram relações" 
(Homem, negro, sul-africano, heterossexual).
“Os macacos na África. Eu penso que foi isso que ouvi falar 
e isso foi passando Deus sabe de que jeito. Eu ouvi algumas 
histórias horríveis sobre como ela chegou até nós [muita 
risada], Que eu prefiro não dizer.
Entrevistador: Eu, na verdade, estou muito interessada 
em ouvir... Tu poderias me contar, mesmo que seja difícil. 
Respondente: Era exatamente o que se chama de bestia-
lidade, eu penso" (Homem, branco, britânico, heteros-
sexual).
Os grupos a que as pessoas não pertencem são facil-
mente associados com uma sexualidade aberrante. Mas 
que outras práticas são associadas com o continente ou 
grupo infestado pela Aids, o continente ou grupo que são 
vistos como contaminando o próprio grupo? Acima de dois 
terços da amostragem total (21 em 30 britânicos; 23 em 30
Tabela 1: Práticas Associadas ao Continente ou Grupo Infectados pela Aids
sul-africanos) mencionaram pelo menos um dos cinco 
fatores seguintes em associação com contrair HIV:
Um terço da amostra (11 em 30 sul-africanos; 11 em 
30 britânicos) combinam pelo menos dois dos cinco fatores, 
chegando a uma surpreendente mistura, que eu chamo de 
"cocktail de pecados” . O cocktail de pecados envolve acombinação de duas ou mais práticas "aberrantes”, uma 
supergeneralização da medida em que elas são praticadas 
e a sua ligação a determinados grupos. Os seguintes 
extratos das entrevistas expressam o processo de combinar 
um número de práticas pecaminosas do “outro", com o 
objetivo de distanciar da Aids a identidade e as práticas 
do respondente. Respostas à pergunta "Onde se originou 
o HIV/Aids?” seguido da pergunta "Como se dissemina o 
HIV/AIDS" aparecem abaixo. As alusões previamente 
mencionadas sobre bestialidade persistem como parte de 
um cocktail de pecados mais amplo. As respostas da 
população branca, para cada uma das duas culturas, são 
apresentadas primeiro.
"Os macacos na África. Eu penso que foi isso que eu escutei 
que ela se espalhou Deus sabe de que jeito. Eu ouvi falar de 
algumas histórias horríveis sobre como ela chegou até nós 
[ri muito). Que eu prefiro não dizer... Era exatamente o que 
se chama de bestialidade, eu penso... Eu poderia imaginar 
que seria algo como... as tribos na África seriam provavel-
mente mais inclinadas a esse tipo de coisas... Se um homem 
pegou e ele fez sexo com sua mulher e alguém aparece, eu 
não sei como essas tribos vivem, assim eu não sei o julga-
mento moral que se deve fazer sobre eles. Alguém poderia 
chegar e pagar algum dinheiro e fazer sexo com a mulher 
dele e então ele poderia levar isso para seu país e passá-lo 
a sua mulher... Eu imagino que isso é horrível na África. Se 
começou lá, não há jeito de controlar. Não há remédio. Eu 
imagino que realmente isso seria terrível. Eu espero que 
muitos desses países [Terceiro Mundo] serão varridos. Eles 
simplesmente não entendem esse tipo de coisa" (Homem, 
branco, britânico, heterossexual).
"Essas pessoas não se lavam. Quero dizer, eu não quero ser 
preconceituoso [em voz baixa, devido à empregada na casa] 
mas você não sabe por onde eies andam, quero dizer, as 
mulheres são muito sujas, realmente elas são sujas, incrivel-
mente sujas. Eu quero dizer que não existem, eu penso que 
não existem banheiros, eles sentam e urinam onde eles 
dormem, eles defecam onde dormem. Quer dizer, isso só tem 
de causar certa reação... o sexo é tão mal usado que ele se 
toma nojento. Eu não sei, com galinhas, eu não sei o que 
eles usam, eu penso que eles praticam besüalidade, não sei. 
Mas de minha parte eu penso que é devido a isso [que a 
Aids aparece]... poderia ser devido ao incesto, que o cérebro 
desapareceu dessas pessoas, por que essa gente [em voz 
baixa] não sabe. Eles casariam com a irmã deles amanhã" 
(Homem, branco, sul-africano, homossexual).
Todos os sujeitos brancos relacionam a Aids com os 
ritos sexuais aberrantes do "outro" africano. Para os britâ-
nicos, o "Terceiro Mundo” é visto como impotente, porque 
não possui uma medicina ocidental, enquanto que o sul- 
africano (branco) expressa a noção de aberração em termos 
de rituais ligados à sujeira e sua narrativa culmina numa 
idéia de degenerescência. Chama a atenção que esse 
mesmo sujeito (homem, sul-africano, branco) seja homos-
sexual e relate que ele mesmo pratica uma ampla gama de 
atividades sexuais com grande número de parceiros. Mas 
o que dizem os respondentes negros sobre a origem e a 
disseminação da Aids?
"O Ocidente, eles praticam toda sorte de atividades sexuais
- falando da América, Europa, Rússia, etc. Eles têm homos-
sexuais, eles têm bissexuais, heterossexuais, e eles têm 
gente que é tão doente que chega a ter relações com 
animais, etc. Assim que eu penso, porque eles estão sempre 
experimentando, eles estão sempre tentando descobrir. Isso 
e aquilo, isso e aquilo, eles sempre querendo descobir o que 
lhes convém. Assim eles estão sempre experimentando um 
com o outro, com outras coisas, outras criaturas, outros 
objetos quaisquer. Assim se você faz isso sempre, é certo 
que você vai ter alguma coisa errada nessa linha... É certo 
pois eles estão sempre experimentando. Esse filme que eu
vi, 'First B o m e eles tentaram cruzar um gorila com um ser 
humano e eles estão sempre fazendo esse tipo de coisa e 
para mim isso é doença, assim desse jeito, deve ter aconte-
cido algo errado e essa doença apareceu, porque ninguém 
sabia dela antes disso... Se você lê a história da África, a 
história da escravidão, e como os europeus costumavam 
colonizar todos os africanos e todos os outros países, os 
países mais pobres daqueles tempos, toda vez que eles vão 
para um país eles levam uma doença com eles. Como, por 
exemplo, os índios americanos, eles morreram por causa do 
homem branco, porque o homem branco levou doenças, ele 
matou os índios americanos, ele lhes roubou as terras, ele 
lhes roubou todos os seus pertences, etc., e ao mesmo tempo 
ele lhes passou doenças, todo tipo diferente de doenças que 
eles nunca tiveram, que eles nunca tinham tido. Assim para 
mim, olhando para isso desse jeito, o principal problema, não 
há maneta de você contrair a Aids na África porque a África, 
para mim, é o único país, no momento, que não está 
suficientemente ocidentalizado para criar novos problemas" 
(Homem, negro, britânico, heterossexual).
"Como eu ouvi dizer ela começou na Inglaterra... Ela come-
çou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação 
sexual com um macaco... depois que a pessoa teve relações 
com o macaco ele nunca se lavou e procurou sua parceira. 
Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se 
segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela 
se espalhou. Ele nunca se lavou antes de ii jogar futebol e 
assim a Aids foi transmitida às pessoas... porque no futebol 
eles suam. Então depois de suarem, ele se encosta em mim 
suado e então eu pego Aids" (Homem, negro, sul-africa-
no, heterossexual).
Para os respondentes negros o "outro" do Ocidente 
também está relacionado com uma sexualidade aberrante.
O sujeito negro britânico traz a relação entre experimenta-
ção com sexo e rituais experimentais de laboratório. O 
próprio ato de interferir no que é "natural" é visto como 
uma maneira de ser não-africana. Os sul-africanos tendem 
a se mostrar mais preocupados com promiscuidade e com 
falta de higiene, como causadores de Aids.
As quatro narrativas apresentadas são típicas do gran-
de número de questões que surgem do conjunto geral dos 
dados. Elas mostram uma simetria notável: tanto os sujei-
tos negros, como os sujeitos brancos, imaginam que o 
outro seja aberrante em termos de rituais sexuais, e isso é 
visto como a causa da Aids.
3. A Representação Social da conspiração
Certos aspectos da representação social da Aids são 
menos simétricos que o cocktail de pecados. A maioria dos 
sujeitos negros britânicos (8 em 10) e a metade dos respon-
dentes também britânicos, mas homossexuais (negros e 
brancos), acreditam que a Aids é uma conspiração. Embora 
alguns heterossexuais brancos reconheçam a existência 
dessa conspiração, eles o fazem apenas para descartá-la. 
A conspiração sugerida pelos britânicos marginalizados 
dirige-se, em geral, contra seu próprio grupo. A conspira-
ção é muitas vezes objetivada no desejo da CIA (Agência 
Central de Inteligência dos EE.UU.) de varrer do mundo 
grupos marginais:
"Eu penso que ela [Aids] poderia possivelmente ser uma 
guerra química... Eu li pedaços de publicações em que a CIA 
estava ligada, e sejamos realistas aqui. Você sabe, podia 
muito bem ser, você sabe, se você quer erradicar uma 
espécie do mundo, ou uma minoria, ou uma categoria, do 
mundo, sejam insetos ou outra qualquer, você vai ao seu 
sistema reprodutivo, não é, algo onde haveria contato, ou 
contato íntimo... certamente poderia ser a comunidade ho-
mossexual" (Homem britânico, branco, homossexual, 
HIV positivo).
"Há grande possibilidade de ela [Aids] ser um experimento... 
Ela poderia ser usada como uma arma, eu penso, ela poderia 
ser usada como uma arma, não sei. Os americanos inventam 
uma porção decoisas, não é? As pessoas pensam que eles 
são as pessoas mais inocentes, mas eles não são, há uma 
porção de coisas que acontece por detrás das portas fecha-
das... talvez um animal teve essa doença desconhecida, ou
qualquer outra coisa, e eles provavelmente colheram amos-
tras de seu sangue ou seja o que for, poderia ser um macaco, 
um chimpanzé, qualquer coisa, não? - e poderia ter vazado, 
é uma dessas possibilidades, você sabe, um pouco como o 
caso de Chemobyl" (Homem, negro, britânico, heteros-
sexual).
Surpreendentemente, apenas 1, em trinta sul-africa- 
nos, culpa a Aids por ser uma conspiração humana. São os 
grupos marginalizados, na amostra britânica, que freqüen-
temente representam a Aids em termos de conspiração.
Teorizando as Representações Sociais da Aids
Os dados apresentam um quadro em que (i) "o outro" 
é responsável pela Aids, (ii) em que o "vazamento" ocorre 
entre "o outro” e o Eu, ou o próprio grupo, devido a práticas 
aberrantes, e em que (iii) no caso de certos grupos margi-
nalizados, uma conspiração traz a Aids para seus próprios 
grupos. Eu mencionei que o núcleo central do “outro” , nas 
representações sociais da Aids, se relaciona com o proces-
so de ancoragem, em que a Aids é ancorada a epidemias 
incuráveis prévias. Eu também propus que o núcleo central 
do "outro" é um instrumento projetivo de defesa. Aqui, eu 
me proponho a elaborar essas suposições à luz dos dados 
apresentados acima.
Antes de delinear as representações sobre epidemias 
incuráveis que fornecem as âncoras para as representações 
sociais da Aids, é preciso que tenhamos claro de que 
maneira grupos marginalizados têm sido vistos, através da 
história, em períodos de ameaça. Cohn (1976) demonstra 
que desde o século II dC grupos marginais foram o depo-
sitário para fantasias de perversão erótica, canibalismo e 
infanticídio. Tais representações foram formuladas pelos 
romanos, dentro do Império Romano, quando estes se 
encontraram ameaçados pela ascensão do poder cristão, 
um grupo marginal naquele período. A cristandade medie-
vai reativou as fábulas romanas de eroticismo, canibalismo 
e infanticídio, e as aplicou a grupos religiosos externos:
“Sempre de novo, em um período de séculos, seitas heréti-
cas foram acusadas de praticar orgias promíscuas no escu-
ro... ou adorar o demônio" (Cohn, 1976:54).
“Quando se tratou de desacreditar alguns grupos religiosos 
externos, os monges se socorriam desse conjunto de rótulos 
difamatórios" (Cohn, 1976:56).
Cohn (1976) afirma que fantasias referentes a rituais de 
grupos estranhos propiciam uma arma para que o próprio 
grupo desacredite o grupo estranho, construindo suas 
práticas como ameaçadoras para a sociedade. Embora essa 
teoria esteja, em grande parte, confinada a representações 
que emergem em períodos de dissensão religiosa, ela 
também encontra ressonância no que diz respeito ao 
tratamento de grupos estranhos, em períodos de outras 
crises. Epidemias incuráveis - que representam uma crise 
potencial para um grande número de pessoas - têm sido 
ligadas, historicamente, a grupos estranhos, cuja sexuali-
dade é aberrante e cujos rituais são misteriosos. Eu vou 
centrar minha discussão no laço histórico que se estabele-
ceu entre a sífilis e a aberração, ainda que outras "pragas" 
potenciais, tais como a cólera, tenham evocado repre-
sentações semelhantes.
Na cultura ocidental do século XIX, a sífilis caracteri-
zava depravação moral (Gilman, 1985). As mulheres negras 
e as prostitutas eram tidas como as principais transmisso-
ras da doença. Ambos os grupos eram associados a uma 
sexualidade desenfreada. As mulheres negras, em particu-
lar, representavam tanto a hipersexualidade, como o exó-
tico. Elas eram geralmente consideradas como possuindo 
tanto um apetite sexual "primitivo" como os sinais externos 
de tal condição: uma genitália "primitiva". Imaginava-se 
que as mulheres negras copulavam com macacos (Gilman, 
1992). Os museus europeus do século XIX exibiam diagra-
mas e partes da genitália das mulheres Hottentot. As
diferenças entre suas partes sexuais e as das mulheres 
ocidentais eram usadas para provar que elas pertenciam a 
uma espécie inferior. Ao mesmo tempo, as mulheres Hot- 
tentot eram figuradas em obras de arte da época como 
objetos extremamente sexualizados. A forma como os 
europeus degradavam os povos negros, ligada ao seu 
voyeurismo, era evidente na fascinação que ocorria com 
relação aos genitais das mulheres negras, bem como em 
certas práticas institucionais: os zoológicos da Alemanha, 
Áustria e Budapeste, possuíam pessoas africanas antes da
I Guerra Mundial (Gilman, 1985). Tais grupos externos 
eram representados tanto de uma maneira degradante - 
pela sua associação a espécies inferiores -, como de modo 
erótico.
O laço entre grupos estranhos, aberração e doença 
voltou à cena principal nas representações sociais da Aids. 
Isso fica indubitavelmente claro nos cocktails de pecados 
que se depreendem dos trechos das entrevistas apresen-
tadas acima. Mas, é importante salientar que tais idéias 
não se originaram no psiquismo de indivíduos privados: as 
representações médicas e as representações dos meios de 
comunicação sobre a Aids forneceram as sementes para 
essas noções.
A literatura médica ocidental tem sido pródiga na 
elaboração da associação entre a Aids e os rituais que são 
vistos como aberrantes no Ocidente. Farmer (1992) inves-
tigou uma corrente da literatura médica que ligou a Aids 
com as práticas do vudu:
“Os cientistas norte-americanos especularam repetidamen-
te que a Aids pode ser transmitida entre os haitianos através 
dos ritos do vudu, a ingestão de sangue de animais sacrifi-
cados, o alimentar-se de gatos, a homossexualidade rituali- 
zada, etc. - uma rica parafernália de coisas exóticas” 
(P. 224).
Do “vudu", por exemplo, se disse que:
"traz à mente visões de mortes misteriosas, ritos secretos - 
ou bacanais escuros celebradas por negros 'sanguinolentos, 
tarados, enlouquecidos”’ (Métraux, 1972: 15).
O laço entre a Aids, o vudu e o grupo externo haitiano 
penetrou revistas médicas americanas de prestígio, e dali 
deslocou-se para os meios de comunicação de massa e 
para a população leiga. Os meios de comunicação ociden-
tais, cuja penetração vai muito além do Ocidente, conti-
nuaram considerando o mundo subdesenvolvido, e a África 
em particular, como o lugar onde a Aids se originou. O elo 
entre África, macacos e Aids, conquistou a atenção popu-
lar, porque ele se ajusta a pré-concepções relacionadas à 
natureza causadora de doenças da floresta africana. Fan-
tasias relacionadas à sujeira, doenças e promiscuidade 
sexual vêm rapidamente à mente ocidental quando se 
pensa na África (Dada, 1990). A validade dos relatórios 
médicos, que sustentam um elo entre a África, os Macacos 
Verdes e a Aids, somente foi questionada posteriormente, 
devido à pressão que os próprios grupos estigmatizados 
exerceram sobre os médicos.
As nossas entrevistas mostram que, enquanto os oci-
dentais consideram as práticas de grupos que lhes são 
estranhos - africanos e homossexuais - como perversas, 
da mesma forma, também os sujeitos negros viam as 
práticas ocidentais com suspeita. Esses dados corroboram 
a afirmativa de Farmer (1992) de que grupos acusados em 
função da Aids são sugestionáveis a teorias conspiratórias 
sobre a origem da doença. A Aids é considerada como 
tendo sido fabricada em laboratórios de pesquisa - muitas 
vezes pela CIA ou pelo FBI - para fins de engenharia 
genética ou de guerra biológica (Aggleton et al.,1989). Mais 
uma vez, os meios de comunicação desempenharam um 
importante papel na circulação dessa representação. As 
teorias conspiratórias em relação à Aids foram inicialmente 
defendidas no Haiti, onde um folheto denunciou a Aids 
como "uma conspiração imperialista para destruiro Ter-
ceiro Mundo" (Farmer, 1992). Depois disso, teorias conspi- 
ratórias receberam uma atenção regular na imprensa ho-
mossexual da América do Norte e da Europa, e no mundo 
subdesenvolvido. Exatamente aqueles que haviam sido 
acusados de ter introduzido o HIV/AIDS no mundo ociden-
tal foram os principais defensores das teorias conspirató- 
rias. Teorias conspiratórias parecem, assim, ser uma defesa 
retórica de grupos destituídos de poder. Elas são uma 
forma de resistência às representações sociais mais hege-
mônicas, que proliferaram nos meios de comunicação de 
massa de todo o mundo. Uma das representações sociais 
dominantes afirma que a Aids se originou e se disseminou 
a partir dos Macacos Verdes na África. Embora os médicos 
não tenham sugerido a bestialidade, na África, como uma 
forma de contato entre os Macacos Verdes e seres huma-
nos, existe um discurso recorrente, nos meios de comuni-
cação, sobre um tipo de vírus HIV-símio, que se aproxima 
do vírus humano. Ora, a população leiga necessita enten-
der, a seu modo, como esse vírus passou do macaco para 
seres humanos. Quando ligada a transformações incons-
cientes, relacionadas a práticas aberrantes praticadas por 
grupos estranhos na África, uma representação que impli-
que bestialidade passa a ter sentido.
Ainda dentro da teoria de Cohn (1976), o caráter 
estranho dos rituais pertencentes a grupos externos é 
usado tanto para denunciar o grupo externo, como para 
distanciar o próprio grupo desse tipo de ritual. Da mesma 
forma que o canibalismo desempenhou um papel crucial 
de denunciar a civilização indígena do "Novo Mundo” , 
também a bestialidade e outros rituais são utilizados para 
denunciar os africanos. Os cronistas de Colombo superge- 
neralizaram a escala em que o canibalismo, a bestialidade 
e o infanticídio eram praticados, e imaginaram que as 
pessoas combinavam essas três práticas (Thomsen, 1987). 
As concepções européias sobre o "Novo Mundo" conti-
nham uma estranha mistura de mitos, fábulas e fantasias 
coletivas. É essa estranha mistura de mitos com respeito 
à África que fornece hoje aos ocidentais um caminho para
ver os africanos de um modo degradante e alheio, permi-
tindo, ao mesmo tempo, que os ocidentais se distanciem 
dos africanos e da doença que hoje é associada a eles.
Projeção sobre o estrangeiro
O processo histórico, através do qual um poderoso 
conjunto de fantasias ligadas à bestialidade, à sujeira, à 
promiscuidade e à homossexualidade emergiu como res-
posta à Aids, não pode ser meramente explicado olhando- 
se para representações anteriores de epidemias incuráveis. 
É necessário ir mais a fundo para explicar o laço histórico 
entre doença e condição estrangeira. Mudanças no am-
biente social produzem insegurança, que por sua vez 
exacerba conflitos de identidade não resolvidos. Quando 
as pessoas ligam práticas aberrantes a um “outro", já não 
lhes é mais necessário se deparar com os conflitos que 
também lhes pertencem (Gilman, 1985). Por isso, a maneira 
como os europeus representam doenças epidêmicas incu-
ráveis, reflete muito de suas tensões e problemas não 
resolvidos (Gilman, 1988).
Cada grupo social tem vários "depositários" (Sher- 
wood), ou "grupos indefesos” (Gilman, 1988; Andreski, 
1989) como alvos potenciais para projeção desses proble-
mas não resolvidos e tensões. Para a teoria das repre-
sentações sociais, o conhecimento que as pessoas têm 
sobre grupos que podem ser alvo de projeção é construído 
tanto por memórias coletivas, como pelas teorias que 
circulam na comunidade científica, nos meios de comuni-
cação de massa e nas conversações do dia-a-dia. As 
diferenças nas representações sociais que diferentes indi-
víduos sustentam podem ser atribuídas às diferentes posi-
ções sociais de cada indivíduo. Ainda que diferentes 
grupos, em uma sociedade, tenham diferentes “depositá-
rios” para acusar, a ideologia dominante da sociedade 
tende a propagar imagens de alguns grupos específicos
como o seu “outro" total. Os homossexuais tendem a ser 
um dos grupos que ocupa essa posição nas sociedades 
ocidentais. Além do mais, experiências subjetivas e inter-
nas são parte e parcela desses posicionamentos sociais. É 
dentro de um referencial sócio-histórico e psicodinâmico, 
que uma teoria que explique o processo do “eu não / o meu 
grupo não” deve ser desenvolvida.
A projeção de ações socialmente inaceitáveis sobre 
outros está relacionada a sistemas de defesa primários, 
cujos traços permanecem ao longo de toda a vida. A 
defesa, ainda que tenha sua origem no sujeito individual, 
pode ser tanto exacerbada como diminuída, dependendo 
das práticas discursivas que estão em torno do sujeito em 
desenvolvimento. Desse modo, a interação contínua entre 
meios de comunicação e o imaginário popular é central 
para o processo de formação de fantasia. De acordo com 
Klein (1952), desde os primeiros meses de vida a criança 
usa artifícios de autopreservação para se defender contra 
a ansiedade que é sentida quando seu objeto primário - na 
maior parte das vezes, a mãe - não consegue satisfazer 
suas necessidades. Sentimentos de ódio em relação à 
experiência de perseguição por parte do objeto primário 
são superados quando a criança os separa dos sentimentos 
de amor que ela quer conservar. A dissociação, como 
mecanismo inconsciente de defesa, consiste na introjeção 
de experiências e sentimentos prazerosos, e na projeção 
de experiências e sentimentos ruins. A dissociação, a 
introjeção e a projeção estão entre os primeiros processos 
mentais ativos da criança. Resíduos de sentimentos e 
defesas primárias permanecem com o sujeito durante toda 
a vida. Bion (1961), e mais recentemente Young (1991), 
afirmaram que sentimentos e defesas primários se tornam 
parte das vicissitudes da interação cotidiana, que são 
reativados quando a pessoa experimenta impotência em 
relação a objetos do mundo externo. A ameaça de epide-
mias incuráveis é uma dessas experiências. O mecanismo 
de dissociação, que opera entre a criança e seu objeto 
primário, possui uma contrapartida social. No processo de
L
formação da identidade, as pessoas dissociam os “objetos" 
(ou pessoas) do mundo ao seu redor, em grupos bons e 
grupos maus. Essas dissociações naturalmente também 
são geradas por divisões ocorridas na história de suas 
respectivas sociedades. Quando ocorrem mudanças amea-
çadoras no ambiente social, as representações da mudança 
servem para dar às pessoas um sentimento de controle da 
situação potencialmente incontrolável. Surgem então rep-
resentações defensivas da mudança como as repre-
sentações que garantem a idéia do "eu não”, "o meu grupo 
não". O que se busca aqui é controle e sentido de comu-
nidade, através da projeção do medo na realidade externa.
As representações sociais da Aids são formadas atra-
vés da ancoragem da Aids a ideologias que já circulam em 
determinada sociedade, e através da objetificação da Aids 
em certos lugares, práticas ou grupos. Aquelas repre-
sentações sociais da Aids que eu procurei mapear refletem 
ideologias centrais que circulam na África do Sul e na 
Grã-Bretanha. Individualismo, colonialismo e heterossexis- 
mo são comuns a ambas as sociedades, enquanto que 
ideologias ligadas ao apartheid são específicas à África do 
Sul, e teorias conspiratórias são específicas à Grã-Breta-
nha. A predisposição das pessoas para endossar certas 
representações sociais de um acontecimento, e não outras, 
emerge das experiências da infância ligadas às experiên-
cias da vida adulta em constante desenvolvimento, que 
interagem com imagens mediatizadas pelos meios de 
comunicação, lendas e brincadeiras populares.
Gilman (1988) mostra que representações ocidentais 
da doença contêm o medo do colapso. De acordo com o 
processo de projeção, porém, esse medo do colapso não 
permanece internalizado. Ele é projetadono mundo exter-
no, justamente para ser facilmente localizado. Uma vez 
localizado, o medo da desintegração é removido. Esse 
processo é graficamente descrito por Williamson (1989). Ela 
afirma que o pensamento dominante em relação ao 
HIV/AIDS:
"unifica um pântano de realidades impensáveis, em que a 
homossexualidade (para muitas pessoas) já está submergi-
da, um território gótico onde os temores são jogados numa 
espécie de terra mental abandonada, para além das mura-
lhas do castelo do ego" (p. 70).
A construção de um "território gótico" é funcional: ela 
permite a manutenção do controle do próprio território. 
Aqueles que operam dentro do “território gótico" são 
considerados alienígenas. Os alienígenas deixam claro que 
comportamentos os membros da sociedade devem evitar 
e desempenham um papel importante na coesão e identi-
dade do grupo dominante. Junto a esses grupos encontra- 
se um conjunto de práticas que, por serem elas mesmas 
“desvio", constroem os parâmetros que definem as normas 
da sociedade. O “outro" é necessário ao Eu. Ao definir o 
que é um "comportamento antinatural” , os membros de 
um grupo também estabelecem as denotações do que é 
"natural” . De acordo com Gilman (1992), fantasias relacio-
nadas a grupos estranhos permitem às pessoas projetar nos 
outros aquelas facetas de si mesmas que elas, e suas 
respectivas sociedades, consideram inaceitáveis. A “não 
aceitabilidade" é, em grande parte, ditada por aquelas 
práticas que diferem do status quo e por isso o subvertem. 
E aqui é importante que se diga: as representações sociais 
que constroem o “outro" como aberração têm conseqüên-
cias para a prática. Elas permitem que esse “outro" seja 
maltratado e discriminado: a subordinação daquelas pes-
soas, cujos sistemas de valores, práticas e identidades são 
diferentes, passa a ser apenas um desdobramento justo de 
uma lei considerada “natural".
Conclusão
A disseminação da Aids, seja ela representada em 
termos de sexualidade inter-racial, seja em termos de 
conspiração, aparece sempre como responsabilidade de 
grupos que são externos ao próprio grupo. A projeção da
responsabilidade sobre grupos estranhos é um mecanismo 
de defesa que afasta tanto o próprio grupo como o Eu da 
Aids, deixando intacta a sensação de controle. A projeção 
intergrupal ocorre como forma de controlar o que ameaça 
nossos sentimentos de onipotência. A partir da perspectiva 
kleiniana dos processos projetivos (1952), Douglas (1966) 
afirma que as pessoas constroem sistemas simbólicos 
ligados à pureza, a fim de ordenar o conjunto caótico de 
estímulos que existem ao seu redor. Aqueles elementos 
que não podem ser classificados dentro do sistema amea-
çam sua ordem e se tornam, por isso, tanto perigosos, como 
poderosos. A emocionalidade, a espiritualidade e o lado 
instintivo (animal), historicamente associados aos grupos 
estranhos (Cohn, 1976), ameaçam o sentimento de onipo-
tência.
Espero ter enfatizado, suficientemente, o papel do 
afeto - incluindo aqui sentimentos de medo, ansiedade e 
impotência - na formação das representações sociais. A 
teoria das representações socias nos alerta para o fato de 
que essas respostas emocionais não se originam em indi-
víduos isoladamente. Elas são o produto de representações 
emocionais da doença, que surgiram historicamente, mas 
que ainda hoje circulam no meio científico, nos meios de 
comunicação de massa e do pensamento popular. O ato 
mesmo de construção da representação social, como um 
todo, relaciona-se com o medo de impotência diante de 
um objeto social desconhecido. O elemento defensivo, 
contudo, pode ser aumentado na representação social de 
crises.
Nas representações sociais sul-africanas e britânicas 
sobre a origem e a disseminação da Aids, nós podemos 
observar uma cacofonia de pecados postos juntos. O bes-
tial, o bissexual e o conspiracional são "liquidificados" ao 
mesmo tempo, produzindo uma mistura forte de imagens 
e fantasias relacionadas às práticas de grupos estranhos. 
Ao construir cocktails de pecado que geram doenças, as 
pessoas fazem de suas próprias práticas um conjunto de
práticas “puras". Isso vem reforçar um sentimento de 
imunidade diante do HIV/AIDS e sustentar valores hege-
mônicos. Não é, pois, coincidência que a grande maioria 
de minha amostra total sinta que suas chances de contrair 
o HIV são mínimas. Sejam quais forem as práticas pessoais 
de alguém, as práticas do “outro” podem ser construídas, 
ao nível das representações sociais, como mais perversas, 
antinaturais e geradoras de doença. Mas, ao mesmo tempo 
em que se distanciavam das ações do "outro” , os sujeitos 
de meu estudo se mostraram excepcionalmente dispostos 
a teorizar e descrever essas práticas. A qualidade de tal 
teorização, embora freqüentemente expressa em termos de 
repulsa, é uma demonstração de desejo. O desejo co-existe 
com a desumanização das práticas do “outro” . A fascina-
ção do mundo médico, de não-especialistas e dos meios 
de comunicação pela homossexualidade e pela sexualida-
de africana, nesses tempos de Aids, é uma expressão de 
desejo. O gozo é obtido, aqui, através de um olhar voye- 
rístico aos cocktails de pecado que grupos estranhos, 
“exóticos", representam. Como conseqüência, grupos es-
tranhos se deparam com representações que os degradam 
e os sexualizam, ao mesmo tempo. Os dados discutidos 
aqui indicam que os membros de grupos marginalizados 
freqüentemente internalizam tais representações, o que os 
faz surgir com identidades deterioradas. A internalização 
de uma representação degradante e sexualizada se revela 
na fala de muitos membros de grupos marginalizados:
"Eu mesmo sou homossexual, mas os homossexuais são 
repugnantes. Hum, você teve, quero dizer, não vamos ficar 
aqui fazendo rodeios... a coisa é tão violenta que com isso 
agora nós estamos vivendo num tempo em que um homem 
se achega a outro homem em plena luz do dia. Eu fui 
abordado em plena luz do dia, sabe, e em locais públicos e 
coisas assim. E existem, hum, é verdade há uma porção de 
parques, e há multa atividade sexual clandestina acontecen-
do por aí, clubes, camionetas, ônibus; eu foi molestado nos 
piores lugares, sabe. Eu, pessoalmente, passei pelas situa-
ções mais incríveis, há uma porção de desvios de compor-
tamento acontecendo e isso eu não estou dizendo que é
errado, mas é certamente um desvio, sabe" (Homem, ne-
gro, britânico, homossexual).
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