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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PABLO RODRIGO FERREIRA ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE: INCOERÊNCIAS ENTRE AS DOUTRINAS BÍBLICAS E O DISCURSO E A PRÁTICA DO CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO São Paulo 2013 PABLO RODRIGO FERREIRA ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE: INCOERÊNCIAS ENTRE AS DOUTRINAS BÍBLICAS E O DISCURSO E A PRÁTICA DO CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO Trabalho de graduação interdisciplinar apresentado à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Teologia. Orientador: Prof. Dr. Christian Brially Tavares de Medeiros São Paulo 2013 PABLO RODRIGO FERREIRA ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE: INCOERÊNCIAS ENTRE AS DOUTRINAS BÍBLICAS E O DISCURSO E A PRÁTICA DO CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO Trabalho de graduação interdisciplinar apresentado à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Teologia. Aprovado em ___/___/___ BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ____________________________________________________________ A Deus, criador e provedor da vida. À minha esposa Uiara Live Andrade Ferreira, pelo exercício de paciência e dedicação nos tempos dos meus estudos. À minha pequenina Ana Letícia, por sua alegria contagiante e revigorante. Aos meus pais Osmar e Olinda, meus primeiros investidores em amor. Resumo FERREIRA, Pablo Rodrigo. Espiritualidade independente: incoerências entre as doutrinas bíblicas e o discurso e a prática do cristianismo contemporâneo. Trabalho de graduação, São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2013. Este estudo apresenta uma breve análise, segundo a doutrina bíblica, sobre a espiritualidade cristã contemporânea, intitulada como espiritualidade independente. Serão apresentadas as características dessa espiritualidade, fazendo uma menção histórica dos seus fundamentos. Feito isso, o trabalho se propõe a confrontar a espiritualidade independente, partindo da verificação das Escrituras Sagradas que é o fundamento da espiritualidade cristã ortodoxa. Em seguida, trata-se da principal doutrina bíblica, a saber, a pessoa de Deus, que é o objeto da espiritualidade cristã, de maneira que evidencie-se a inconsistência da espiritualidade independente. Por fim, o estudo apresenta a pessoa de Jesus Cristo e sua salvação, como revelada na Bíblia, o que confirma a incoerência dessa espiritualidade cristã contemporânea com aquilo que a tradição cristã, desde a igreja primitiva, procurou defender e viver. Em suas considerações finais, o trabalho evoca todos cristãos, especialmente a liderança da igreja atual, a refletir sobre o seu papel e a importância de se ater as Escrituras para lidar com essa tendência perigosa para a vida da igreja cristã. Palavras-chave: Espiritualidade, cristianismo, doutrinas bíblicas, teologia e igreja contemporânea. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS a.C. Antes de Cristo AGEU Livro de Ageu APOCALIPSE Livro de Apocalipse ATOS Livro de Atos cf. Conferir em COLOSSENSES Carta aos Colossenses DANIEL Livro de Daniel DEUTERONÔMIO Livro de Deuteronômio EFÉSIOS Carta aos Efésios ÊXODO Livro de Êxodo FILIPENSES Carta aos Filipenses GÁLATAS Carta aos Gálatas GÊNESIS Livro de Gênesis HABACUQUE Livro de Habacuque HEBREUS Carta aos Hebreus ISAÍAS Livro de Isaías JEREMIAS Livro de Jeremias JÓ Livro de Jó JOÃO Evangelho de João JUDAS Carta de Judas LEVÍTICO Livro de Levítico LUCAS Evangelho de Lucas MALAQUIAS Livro de Malaquias MARCOS Evangelho de Marcos MATEUS Evangelho de Mateus NEEMIAS Livro de Neemias NÚMEROS Livro de Números OSÉIAS Livro de Oséias PROVÉRBIOS Livro de Provérbios ROMANOS Carta aos Romanos RUTE Livro de Rute SALMOS Livro de Salmos TIAGO Carta de Tiago TITO Carta a Tito ZACARIAS Livro de Zacarias 1CORÍNTIOS Primeira Carta aos Coríntios 1JOÃO Primeira Carta de João 1PEDRO Primeira Carta de Pedro 1REIS Primeiro Livro dos Reis 1TESSALONICENSES Primeira Carta aos Tessalonicenses 1TIMÓTEO Primeira Carta a Timóteo 2CORÍNTIOS Segunda Carta aos Coríntios 2PEDRO Segunda Carta de Pedro 2TESSALONICENSES Segunda Carta aos Tessalonicenses 2TIMÓTEO Segunda Carta a Timóteo Sumário INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 1. ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS 11 1.1 Da compreensão lato de espiritualidade a espiritualidade cristã ......... 11 1.2 Um pano de fundo para a espiritualidade independente ..................... 15 1.3 Que espiritualidade é essa? ................................................................ 29 2. A OBJETIVIDADE E AUTORIDADE DAS ESCRITURAS VERSUS A ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE ............................................................ 36 2.1 Consolidando conceitos relevantes ..................................................... 41 2.1.1 Revelação ..................................................................................... 41 2.1.2 Inspiração ..................................................................................... 45 2.1.3 Iluminação .................................................................................... 46 2.1.4 Cânon ........................................................................................... 48 2.2 Características das Escrituras ............................................................. 51 2.2.1 A autoridade das Escrituras .......................................................... 52 2.2.2 A clareza das Escrituras ............................................................... 54 2.2.3 A necessidade das Escrituras ...................................................... 55 2.2.4 A suficiência das Escrituras .......................................................... 56 3. A PESSOA DE DEUS E A ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE .............. 58 4. A SALVAÇÃO EM CRISTO E A ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE ..... 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 84 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 86 9 INTRODUÇÃO O presente estudo, intitulado como: “Espiritualidade independente: incoerências entre as doutrinas bíblicas e o discurso e a prática do cristianismo contemporâneo”, se propõe a refletir sobre uma tendência cada vez mais frequente na igreja cristã brasileira, ou seja, as incoerências entre os ensinos das Escrituras Sagradas e o discurso e a prática de uma espiritualidade independente adotada por muitos cristãos da atualidade. A espiritualidade independente entre os cristãos é uma tendência que não encontra respaldo bíblico e tem contaminado a igreja de Cristo, à medidaque traz para o indivíduo a capacidade que não está nele mesmo, mas no Senhor da igreja, Cristo. Nota-se que as sociedades contemporâneas, em sua maioria, têm se caracterizado por um individualismo considerável, que vem acompanhado da ausência de absolutos, da relativização, da ação pela conveniência, da inversão de valores e das mais diversificadas tentativas pessoais de solucionar a sua crise existencial. A geração do “eu acho”, das tribos urbanas, das redes sociais, dos tablets, dos fones de ouvido, dos serviços personal, dos fast-foods, do dinheiro virtual, das organizações não- hierárquicas e das famílias multifacetadas, tem chegado à igreja e encontrado outras gerações que ainda estão aprendendo a se posicionar no que, atualmente, conhecemos como pós-modernidade. Diante disso, um trabalho que trate a respeito da incoerência entre a espiritualidade independente crescente entre os cristãos é algo que, por si só se reveste de importância, pois conforme visto, tal espiritualidade constitui-se como uma ameaça para a vida da igreja e, em última instância, para a vida da sociedade, já que um povo distante da verdade é um povo mergulhado nas trevas do pecado. Para organizar e dar credibilidade, então, ao estudo, procurou-se considerar os princípios bíblico-teológicos, traçados no decorrer do pensamento cristão, além de outros princípios modernos e pós-modernos do pensamento humano, para enriquecer a pesquisa a respeito da espiritualidade independente no meio cristão. O procedimento adotado, do ponto de vista da 10 técnica de levantamento de dados, caracteriza-se como pesquisa bibliográfica. Algumas doutrinas bíblico-cristãs essenciais à teologia cristã serão consideradas para confrontarem o que muitos cristãos pensam e como reagem a respeito de alguns aspectos cotidianos da vida contemporânea. Portanto, para responder algumas questões a respeito dessa espiritualidade independente, como: quais seus princípios fundamentais e suas características; como as Escrituras Sagradas se opõem a essa conduta; em que o conhecimento de Deus evidencia sua incoerência; e o que o conteúdo bíblico a respeito da salvação em Cristo apresenta como um despertamento para seus adeptos; desenvoloveu-se as unidades desse estudo. Na primeira unidade do trabalho, pretendeu-se apresentar as características da espiritualidade independente, que tem crescido na sociedade contemporânea e no meio cristão, mesmo que esta seja permeada por cosmovisões não-bíblicas, como o existencialismo, relativismo, hedonismo, naturalismo, marxismo, entre outras. Na segunda parte, buscou-se expor a defesa da Bíblia, como Palavra de Deus, com seus dois dos principais atributos, a saber, a objetividade e a autoridade, diante da espiritualidade independente. Em seguida, trabalhou-se o argumento como o Deus da Bíblia, com o seu padrão expresso para a criação, não dá qualquer vazão para o desenvolvimento de uma fé independente da sua vontade revelada. O último capítulo, enfim, a salvação em Cristo foi apresentada com o intuito de ampliar a compreensão da fé salvadora e seus desdobramentos, inclusive sobre o pecado, a fim de confrontar a negligência da espiritualidade independente. Os capítulos que se seguem, então, merece a atenção do leitor, a começar pela compreensão dessa espiritualidade, aqui, denominada, independente à revelação divina. 11 1. ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS 1.1 Da compreensão lato de espiritualidade a espiritualidade cristã A definição do que venha a ser espiritualidade é algo que requer atenção do presente estudo, afinal, o termo é definido de maneiras diferentes conforme a cosmovisão que se apropria do mesmo. Ainda que a espiritualidade cristã seja o fundamento de todo o estudo proposto aqui, considera-se oportuna uma breve apresentação do que se compreende a respeito da espiritualidade fora dos círculos cristãos para que depois seja possível discorrer brevemente sobre a espiritualidade cristã. O Dicionário Michaelis define a espiritualidade como a qualidade do que é espiritual, ou seja, de algo relativo ao espírito, místico, uma propriedade antônima ao que é material. Particularmente sobre o último sentido apresentado pelo dicionário, Alister McGrath (2008, p. 57), contribui para uma melhor compreensão, quando comenta que “o termo “espiritualidade” tem sido amplamente utilizado em anos recentes para referir-se à reação contra as perspectivas puramente materialistas do mundo”. Portanto, parece que a espiritualidade, em linhas gerais, é a relação da porção imaterial do ser humano, da alma, do espírito, do caráter, das faculdades intelectuais, enfim, daquilo que não se pode ver, nem tocar, mas que anima o ser vivo. Sob esse prisma, Ricardo Barbosa de Souza (2005, p. 13) amplia o discussão sobre o termo, ao considerar que a espiritualidade “tornou-se, na cultura moderna, um termo abstrato, vago e presente em quase todos os segmentos da vida: da religião à economia, da ecologia ao mundo dos negócios”, produto de uma sociedade desiludida com o modelo racional, científico e positivo, que pregou a bondade humana. Assumindo o papel de trazer algum sentido para a vida, a espiritualidade surge na contemporaneidade como uma reação à objetividade e à mentalidade cartesiana da modernidade, enfatizando mais a subjetividade e a individualidade. 12 O novo sentido de espiritualidade, portanto, relaciona-se com toda essa transformação da cultura ocidental, que leva a busca pela auto-realização e à interiorização, contudo Philip Sheldrake (2007, p. 2, tradução nossa) comenta que no início do novo milênio também há sinais de que a palavra ''espiritualidade'' expandiu-se para além de uma busca do sentido individualista. Aparece cada vez mais nos debates sobre valores públicos ou sobre a transformação das estruturas sociais - por exemplo, em referência aos cuidados de saúde , educação, e mais recentemente ao reencantamento das cidades e da vida urbana. Sendo assim, não se torna difícil compreender a leitura que essa nova percepção de espiritualidade trouxe à religião, que foi o berço da compreensão do termo, partindo da ideia do relacionamento de Deus com o ser humano. Mesmo que, atualmente, se tente separar a espiritualidade da religião, ou melhor, das tradições religiosas, o que se destaca é a releitura da espiritualidade, que, até certa medida, não abandona a ideia do sagrado, ainda que esse último, também, seja reinterpretado. A respeito da religião, Roger Bastide1, ao tratar das transformações do sagrado dentro da experiência humana, contribui para a discussão com a seguinte consideração: “o homem é visto como um “máquina de fazer deuses” que, à medida que o sagrado se torna “frio” (froid) nas instituições religiosas (igrejas) recria o sagrado “quente” (chaud)” (BASTIDE apud MENDONÇA, 2004, p. 31). O que merece atenção no comentário de Bastide é o fato da espiritualidade, na contemporaneidade, estar ligada à condição humana de buscar no sagrado – isto é, algo que vá além da realidade palpável – a possibilidade de recriar a sua experiência, que por sua vez, é sentida e registrada pelo que, em geral, se entende como espírito, que é essa parte imaterial do ser humano. Ainda que o termo religião carregue toda a estrutura da institucionalização, em se tratando da espiritualidade – no sentido lato que adquiriu com a contemporaneidade – é considerada simplesmente a provisão para a necessidade fundamental que todo ser humano tem de se orientar na vida, ou seja, as respostas para as questões existenciais“Quem sou eu? De onde 1 Roger Bastide foi o pioneiro dos estudos sociológicos da religião no Brasil (MENDONÇA, 2004). 13 venho? Para onde vou?”, levantadas por Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker (2001), como bases para todas as religiões. Quer faça parte de uma religião tradicionalmente reconhecida, quer opte por uma vida alheia às instituições religiosas, a espiritualidade contemporânea é “o protesto do espírito humano, que brada esta mensagem: existe uma realidade mais profunda que a leitura superficial do racionalismo impessoal” (de SOUZA, 2005, p. 16). É a escolha individual e subjetiva que o ser humano adota para encarar a vida e seus desdobramentos, inclusive, a morte. Enfim, espiritualidade, em linhas gerais, refere-se aos valores mais profundos e sentidos pelos quais as pessoas procuram viver. Em outras palavras [...] implica em algum tipo de visão do espírito humano e do que irá ajudá- lo a alcançar pleno potencial (SHELDRAKE, 2007, p. 2, tradução nossa). Até mesmo o uso do termo espiritualidade cristã, que parece ser uma única e bem definida entidade, atualmente requer inúmeras considerações quando o intuito é a conceituação, já que o cristianismo tornou-se uma religião complexa e diversificada. Alistes McGrath (2008), ao discorrer sobre o assunto, considera três fatores que produzem tipos de espiritualidade cristã, a saber: questões pessoais; as considerações denominacionais; e as atitudes para com o mundo, a cultura e a história. Cada um desses fatores são responsáveis pela produção de diversas percepções de espiritualidade no meio cristão, que às vezes pode convergir em alguns tópicos, contudo, outras vezes, podem ter consideráveis discrepâncias. Mas o sentido de espiritualidade nem sempre foi tão amplo, subjetivo, ou até mesmo, tão desgarrado do transcendental, do Deus da Bíblia. Antes de toda essa reação ao racionalismo moderno e até mesmo de toda complexidade do cristianismo, o termo espiritualidade invariavelmente direcionava a compreensão humana para o relacionamento de Deus com o ser humano. Na realidade, as origens do termo espiritualidade encontram-se nas Escrituras judaico-cristãs, com as palavras hebraica ruah, no Antigo Testamento, e grega pneuma, no Novo Testamento, que, na maioria das vezes, entende-se como espírito, dando a ideia de sopro da vida procedente de Deus, do impulso ou disposição dominante da vida, (DOUGLAS, 2007). 14 Da compreensão da origem do termo, emerge uma característica da espiritualidade cristã, de não enfatizar o contraste entre parte material e imaterial do ser humano. Na percepção cristã, a espiritualidade considera a disposição interior do homem, mas procura não desassociar o seu espírito do restante; pelo contrário, busca afirmar a indissociabilidade do homem, como um ser criado à imagem e semelhança de Deus, com o “gene” da espiritualidade – a capacidade de se relacionar com Deus – impresso em si, mesmo que tal vocação, por si mesma, não necessariamente o conduza ao relacionamento estipulado pelo próprio Deus. Sobre essa característica, Sheldrake (2007, p. 3, tradução nossa) assinala que É importante notar que o “espírito” e “espirituais” não são os opostos de “físico” ou ''materiais'' (soma do grego, corpus do latim), mas de “carne” (sarx do grego, caro do latim) no sentido de tudo contrário ao Espírito de Deus. O contraste não é destinado portanto, entre o corpo e a alma, mas entre duas atitudes para vida. Uma “pessoa espiritual” (ver 1CORÍNTIOS 2.14-15) era simplesmente alguém dentro de quem o Espírito de Deus habitava ou que vivia sob a influência do Espírito de Deus. A menção dessa característica para os dias atuais assume uma relevância, pois com essa compreensão, a espiritualidade cristã afirma um redentor encarnado com a disposição perfeita para Deus e, por causa disso, não comunga com a conduta gnóstica e dualista, que abre espaço para uma vida leviana e sincrética, sem a percepção e a vivência da graça divina tratada nas Escrituras Sagradas. Dessa maneira, a meditação como fuga do corpo, todo o tipo de promiscuidade, o poder da mente e tantas outras condutas gnósticas não encontram suporte na espiritualidade cristã. Outra particularidade da espiritualidade cristã refere-se aos seus pressupostos bíblicos, ou seja, a noção clara da existência de uma revelação objetiva, que é o ponto central da elaboração da teologia, que por sua vez, fornece os fundamentos para a experiência humana na devoção a Deus. Isto quer dizer que a espiritualidade cristã parte do princípio que Deus, em determinado momento da história, forneceu a sua revelação para que a experiência espiritual – a relação com o Sagrado – de Israel e, por conseguinte, a da Igreja, viesse a existir. Assim sendo, a espiritualidade cristã não atribui distinção entre cognição e devoção e, muito menos, assume o divórcio entre a teologia e a experiência espiritual, iniciada especialmente com o escolasticismo do fim da Idade Média, que 15 passa a distinguir o conhecimento de Deus, que surgia do amor e da relação com o Criador, daquele que era propriamente científico e dogmático [e reforçada com a postura racional do] Iluminismo, que gerou um novo tipo de teólogo: aquele que nunca orou porque, para ser teólogo, bastava dominar as ciências da religião. (de SOUZA, 2005, p. 17). Como decorrência dessa integralidade entre teologia e devoção, a espiritualidade cristã caracteriza-se, também, por uma fé prática, ou seja, por convicções transformadas que transformam atitudes reais. A devoção dessa espiritualidade tem fundamentos objetivos que conduzem o indivíduo e/ ou comunidade a pensar com uma mente nova e a fazer de maneira nova. Outro aspecto distintivo da espiritualidade cristã é a percepção ampliada da vida, ou seja, por meio da devoção e da teologia bíblica, o ser humano transformado pelo sagrado passa a viver com novos valores. A vida deixa de ser avaliada apenas por resultados palpáveis e passa a ser vivida sob a perspectiva da condução divina e com a expectativa além das circunstâncias. Sobre isso, Ricardo de Souza (2005, p. 24) comenta que libertar-se da ótica jornalística e pragmática é reconhecer a presença de Deus no seu dia-a-dia, experimentar o descanso da alma,provar o sossego da confiança de quem aprendeu a crer no cuidado divino, perceber o poder de Deus, seja num evento extraordinário ou em outro, singelo e discreto. É isso que significa um “ser espiritual”. Entendido um pouco sobre o assunto, nos tópicos seguintes do capítulo, apresentar-se-á as raízes do que venha a ser a espiritualidade independente e alguns dos traços dessa espiritualidade que contrastam com a espiritualidade cristã, a ser melhor tratada nos próximos capítulos. 1.2 Um pano de fundo para a espiritualidade independente A primeira década do século XXI passou, já se aproxima a metade da segunda e o mundo ainda busca compreender qual é o período em que a história da humanidade alcançou, ou seja, sobre qual (is) pensamento(s) as pessoas têm se apoiado, como têm percebido o mundo e qual (is) comportamento(s) as mesmas vêm produzindo nos mais diversos âmbitos da vida privada e coletiva. O certo é que, mesmo sem uma compreensão exaustiva ou, ao menos, satisfatória, o mundo vem apresentando mudanças significativas que requerem 16 maior atenção, especialmente, da parte da igreja, que têm resistido há séculos e continua com o seu propósito imutável, refletir a glória de Deus ao mundo. Sobre essas transformações vivenciadas pela contemporaneidade, StuartHall2 comenta que alguns teóricos acreditam que as identidades modernas estão entrando em colapso, desenvolvendo o seguinte argumento. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo [...] Esses processos de mudanças, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada. (2002, pp. 9, 10) Entre os estudiosos sociais, que acreditam que os absolutos da modernidade se fragmentaram nos tempos atuais, o mundo entrou no período da história denominado como pós-modernidade. O pós-modernismo é caracterizado por sua desilusão fundamental com os grandes temas da modernidade [...] é geralmente entendido como algo de sensibilidade cultural sem absolutos, certezas fixas ou fundamentos, que deleita no pluralismo e divergência, e que objetiva pensar profundamente o “estabelecimento” radical de todo o pensamento humano. Em cada um desses assuntos, isso pode ser visto como uma reação consciente e deliberada contra a totalização do Iluminismo [...] há um compromisso pré-existente com o relativismo ou pluralismo dentro do pós-modernismo, em relação às questões a respeito da verdade” (MCGRATH, 2007, pp. 151-156). Contudo, outros pensadores, como David Harvey3 (2001), ainda que admitam mudanças admiráveis nas práticas culturais e político-econômicas, acreditam que tais transformações sejam mais de aparência superficial do que, de fato, a inauguração de uma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial. Para o pensador há mais continuidade do que diferença entre a ampla história do modernismo e o movimento denominado pós-modernismo. Parece- me mais sensível ver este último [o pós-modernismo] como um tipo particular de crise do primeiro [o modernismo] [...] Obcecado pela desconstrução e pela deslegitimação de toda espécie de argumento 2 Stuart Hall é um renomado estudioso social, cultural e político jamaicano, que atua no Reino Unido. 3 David Harvey é um geógrafo britânico, com influências marxistas, reconhecido por suas análises das crises do modelo capitalista. 17 que encontra, eles [os pós-modernistas] só podem terminar por condenar suas próprias reivindicações de validade [...] (HARVEY, 2001, pp. 111-112, inclusão nossa). Ainda que este período da história seja alvo de muitas discussões, quer a modernidade tenha sido superada ou apenas remodelada, vale destacar o fato da contemporaneidade estar carregada de pensamentos contrários à cosmovisão cristã, que vêm reproduzindo uma espiritualidade independente, ou seja, uma maneira estranha de se relacionar com Deus, total ou parcialmente desconexa à revelação divina: as Escrituras Sagradas. Ao contrário da espiritualidade bíblico-cristã, que “refere-se à obra do Espírito Santo na vida de todo o crente, da qual, em última instância, derivam suas atitudes interiores e ações exteriores” (NIENKIRCHEN, 2001, p. 264) e “o viver o encontro com Jesus Cristo [...] ou “praticar a presença de Deus”” (MCGRATH, 2008, p. 21), a espiritualidade independente tem mais relação com a carnalidade, com o homem tomando as rédeas da busca por um deus de faz de conta. Antes, porém, de caracterizar o que possa ser a espiritualidade independente, como convencionou-se neste estudo, no intuito de ampliar o entendimento das raízes desse problema, merece destaque certas considerações sobre alguns pensamentos diferentes do teísmo cristão no decorrer da história moderna, conforme a seguir. Depois de Cristo, desde o primeiro século até o século XVI – mesmo com algumas variações doutrinárias e com a tentativa de avanço do islamismo, especialmente no século VII – o teísmo cristão prevaleceu na história ocidental como cosmovisão hegemônica. Contudo, a partir do séc. XVII, com o surgimento do movimento cultural-filosófico, denominado, de Iluminismo, que tinha suas bases firmadas no racionalismo4 e no empirismo5, surgem cosmovisões alternativas, que questionavam a tradição da Igreja Católica Romana, mantida por muitos séculos, e a própria autoridade das Escrituras, defendida pela Reforma Protestante, do séc. XVI. 4 Princípio proposto pelo pensador francês René Descartes, no séc. XVII, que atribui à razão humana a capacidade exclusiva de conhecer e de estabelecer a verdade; já que a mesma é inata, imutável e igual em todos os homens, sendo original, em última análise, em Deus (SPROUL, 2002). 5 Princípio proposto pelo pensador britânico John Locke, no séc. XVII, que pretende dar uma explicação do conhecimento a partir da experiência, eliminando a noção de ideia inata, considerada obscura e problemática. Para os empiristas, todo o nosso conhecimento provém de nossa percepção do mundo externo, ou do exame da atividade de nossa própria mente (SPROUL, 2002). 18 Para os iluministas a razão – a luz capaz de superar as trevas do pensamento medieval – era o único meio de se alcançar o conhecimento, a convivência social com equidade, a liberdade e a felicidade. Por ser assim, o Iluminismo foi um movimento antropocêntrico, ou seja, o homem deveria tomar o lugar que, antes, foi atribuído ao transcendental, ao divino, enfim, a Deus. A ideia de que o homem era essencialmente bom e poderia se aperfeiçoar num meio mais justo; de que a ciência era o recurso exclusivo para se alcançar a explicação de todos os fatos; e a busca pela liberdade política, econômica e religiosa, constituiu-se como o pilar central desse movimento, com grandes repercussões sobre o pensamento humano, especialmente no ocidente, até os dias atuais. No intuito de reforçar a compreensão desse movimento histórico, vale mencionar as considerações de Francis Schaeffer (2003, p. 76): O sonho utópico do Iluminismo pode ser resumido em cinco palavras: razão, natureza, felicidade, progresso e liberdade. Seu modo de pensar era totalmente secular. Os princípios humanistas que surgiram durante a Renascença tornaram-se uma onda avassaladora no Iluminismo. Aqui estava o homem partindo absolutamente de si mesmo. [...] Para os pensadores do Iluminismo, o homem e a sociedade tinham a capacidade de chegar à perfeição. Em termos de religião, dentro do Iluminismo, merece destaque o deísmo, uma espécie de cosmovisão que “desenvolveu-se, alguns dizem, como uma tentativa de restaurar a unidade de um caos de discussão teológica e filosófica, que no séc. XVII, viu-se atolado em debates intermináveis [...]” (SIRE, 2009, p. 56). Em geral os deístas acreditavam que Deus abandonou a sua criação para funcionar por conta própria, não desenvolvendo um relacionamento pessoal com a sua criação e não exercendo a provisão e a soberania sobre os assuntos humanos. Na realidade, “o deísmo reduz o número de características que Deus revelou. Ele é uma força ou energia transcendente, um primeiro acionador ou primeira causa [...] Para o deísta, então, Deus é distante,alheio, alienado” (2009, pp. 60-61). O ser humano, dentro dessa perspectiva, mesmo sendo inteligente e pessoal, está despido de alguma significância e de algum padrão de certo e errado, pois faz parte de um sistema fechado, com uniformidade de causa e efeito, semelhante a um relógio, onde tudo o que existe é verdade. 19 Apesar de ter exercido considerável influência sobre o mundo intelectual da França e da Inglaterra entre o final do séc. XVII e a primeira metade do séc. XVIII, e ainda estar presente nas formas populares e entre alguns cientistas contemporâneos, por causa das suas muitas inconsistências, o deísmo, como cosmovisão prevalecente, logo cedeu lugar para outra cosmovisão, que levou algumas de suas implicações mais adiante: o naturalismo. Para se entender o naturalismo filosófico, faz-se necessário entender um pouco sobre o surgimento da ciência moderna. Mesmo que o surgimento da ciência moderna não conflite com o que a Bíblia ensina; pelo contrário, surgindo de uma cosmovisão cristã, como insistiam o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947) e o cientista J. Robert Oppenheimer (1901-1967) (SCHAEFFER, 2003); o desenrolar da Revolução Científica se afastou em muito dos pressupostos bíblicos. Com o avanço do método científico a partir da Renascença, os cientistas pouco a pouco aperfeiçoaram procedimentos pelos quais poderiam obter conhecimento e estudar o universo físico. Muitos cientistas pensavam que a natureza era governada por “lei”. Essa concepção de lei levou-os a crer que a principal tarefa, como cientistas, era descobrir e registrar todas as leis da natureza. Dessa compreensão sobre a lei da natureza – princípios estabelecidos a partir da observação dos fenômenos naturais – que regem o universo, como um sistema fechado, é que surgiu uma das principais correntes de pensamento do século XVIII: o naturalismo filosófico. Partindo da dificuldade do método científico em descobrir os propósitos das coisas, os naturalistas passaram a desconsiderar o teor teleológico6 dos fatos e deduziram que os propósitos talvez nunca tivessem existido, a não ser na mente das pessoas (MCHARGUE, 2001). A moderna ciência moderna deixou de lado a base epistemológica da ciência original – a base original de que o mundo foi criado por um Deus racional, e de que o homem pode descobrir coisas sobre o universo, pelo uso da razão. Quando esta base cristã foi abandonada, os cientistas tentaram tornar a filosofia do Positivismo a sua base filosófica de conhecimento. O Positivismo foi criado na primeira metade do século 19 pelo filósofo francês Auguste Comte (1798- 1857) e Herbert Spencer (1820-1903) desenvolveu-o como a base para toda a ciência. Relacionado ao Empirismo de Jonh Locke (1632- 6 Argumento que fundamenta-se na necessidade das cosias terem uma finalidade, ou seja, uma causa final, um fim. Dentro desse pensamento, encontra-se a citação de que todo relógio precisa de um relojoeiro. 20 1704), o Positivismo é uma filosofia um tanto ingênua que diz basicamente que uma coisa só existe se podemos observá-la. Os dados que lhe entram pelos órgãos do sentido são os que nos permitem conhecer vem o objeto, de uma forma direta e descomplicada. (SCHAEFFER, 2003, p. 139) Partindo dessas considerações, o conteúdo do naturalismo filosófico, segundo James Sire (2009), pode ser resumido, conforme a seguir: A matéria sempre existiu - O universo é, em última instância, algo sem qualquer relação com um ser transcendental; não existe ‘deus’, muito menos ‘criador’. O universo é um sistema fechado – Ele não está aberto ao reordenamento a partir do exterior, do transcendental. Os seres humanos são máquinas complexas – a personalidade surge da inter-relação de propriedades químicas físicas ainda não totalmente compreendidas, sendo os seres humanos uma parte do universo, onde há uma única substância: matéria. De forma alguma, o ser humano transcende o universo. A morte é a extinção da personalidade – Homens e mulheres são constituídos de matéria e a morte é o processo que desorganiza a matéria constituinte em um indivíduo, aniquilando-o. A história é uma corrente linear de eventos ligada por causa e efeito – não possui uma proposta abrangente, um alvo predeterminado, sendo a história humana paralela à história natural. A ética é estritamente humana – não possui relação alguma com o transcendental (que não existe), apenas é fruto de convenções estipuladas pelo convívio e levadas adiante. No que tange a Deus, o naturalismo filosófico reafirma o ateísmo, ou seja, a negação da existência do transcendental, do sobrenatural, enfim, de qualquer divindade. Por causa das teses naturalistas, a figura de Deus não passa do fruto da imaginação humana, que não conseguiu lidar com a sua condição efêmera e sem significância. Os cientistas dos séculos 17 e 18 continuaram a usar a palavra Deus, mas empurraram Deus cada vez mais para algum canto dos seus sistemas de pensamento. No final, os cientistas desta corrente de pensamento acabaram passando a adotar a ideia de um sistema completamente fechado. Com isto, não se deixava espaço algum para Deus. Mas também não se deixava espaço para o homem. O homem desaparece e passa a ser visto como alguma espécie de 21 máquina determinista e behaviorista. Tudo é uma parte da maquia cósmica, inclusive as pessoas. (SCHAEFFER, 2003, p. 97) Em decorrência do naturalismo, da exaltação da razão pelo Iluminismo, outros pensamentos surgiram, dentre eles, o materialismo, niilismo, existencialismo, entre outros, a serem vistos mais adiante. Antes, porém, de mencionar outras cosmovisões, é oportuna a menção de um marco histórico na construção do pensamento humano. Entre o deísmo e o naturalismo filosófico, surge um nome notável, apesar das suas crises em lidar com a realidade de Deus. Destacado contribuinte para o enfraquecimento do deísmo, chegando a levar alguns deístas diretamente ao ateísmo, e, também, um questionador da ciência natural quanto ao pronunciamento a respeito de Deus, encontra-se Immanuel Kant (1724-1804), um filósofo considerado por muitos o divisor de águas da filosofia moderna. Kant refutou com veemência um dos principais argumentos deístas: o argumento teleológico, afinal sua lógica se pautou na descrença da possibilidade do conhecimento de Deus pela experiência humana, ou seja, pela percepção das coisas palpáveis do mundo. Para Kant, o que se poderia conhecer estava no âmbito do fenomenal, isto é, o mundo que o experimentamos pelos sentidos. Já o objeto numenal, que eram as coisas que existiam por si mesmas, independente da percepção humana, dentre elas Deus, Kant não acreditava que poderia ser percebido. Deus, segundo Kant, nunca pode ser percebido. Ele não faz parte dos sentidos múltiplos [...] É importante lembrar que Kant não nega a existência de Deus. Ele nega que a existência de Deus possa ser provada racionalmente, mas também que a ideia da não existência de Deus possa ser provada racionalmente. (SPROUL, 2002, pp. 120- 126.) O agnosticismo de Kant, ou seja, essa impossibilidade racional de negar ou afirmar a existência de Deus é apenas um passo recuado da concepção da grande parte dos adeptos do naturalismo em relação a Deus, a saber, a não- existência do divino, do transcendental. Ainda que pareça que a menção de Kant seja um parêntese um tanto quanto desconexo, é relevante perceber que a sua construção do fenomenal e numenal contribuíram consideravelmente para o melhor entendimento das decorrências do naturalismo filosófico, como o materialismodialético ou o materialismo marxista. No século dezenove, em larga medida devido ao ceticismo ou agnosticismo metafísico de Kant, os filósofos voltaram sua atenção à construção de uma filosofia da história. Antes de Kant, os principais enfoques da filosofia eram a metafísica e a epistemologia. Depois 22 dele, passaram a ser a história e a antropologia [...] a ênfase desde Kant tem sido claramente na área do fenomenal – o campo deste mundo. (p.129) Ainda que o marxismo seja mais popularmente conhecido como uma ideologia política, a proposta do filósofo Karl Marx (1818-1883) está impregnada de humanismo secular e de ateísmo. Como afirmam Josh McDowell e Don Stewart, o marxismo “é também uma cosmovisão, uma maneira de encarar e explicar o mundo. Assim sendo, o marxismo abarca filosofia e religião, embora paradoxal e vigorosamente afirme o ateísmo e despreze a filosofia” (1993, p. 37). O materialismo de Marx é histórico e dialético7, vendo a história humana como uma série de lutas dialéticas, em que os fatores econômicos constituem os determinantes primários. Nessa perspectiva, o ser humano – entendido como matéria – é visto como um agente que trabalha para satisfazer as suas necessidades materiais e, por causa da divisão de trabalho, cria-se os conflitos entre a classes dominante dos meios de produção e a classe dominada, que vende a sua mão-de-obra (SIRE, 2009). No ideal de Marx, as lutas de classes serão superadas pela manifestação do proletariado, que forçará o modelo a produzir abundância de material, promovendo, assim, uma nova sociedade sem divisão de classes, sem a opressão de classes, com indivíduos menos individualistas e competitivos, enfim, algo semelhante ao Reino de Deus, da cosmovisão cristã, porém, sem Deus. Francis Schaeffer (2003, p.142) comenta que “o objetivo fundamental de Marx era acabar com a propriedade privada através da propriedade dos meios de produção pelo estado. Isso criaria a ordem utópica de uma sociedade sem classes, sonho este desfeito na União Soviética e na china maoista.” Ainda que a ideologia marxista tenha se enfraquecido após a fragmentação dos modelos políticos que tentaram implementá-la, vale ressaltar, que os pressupostos do naturalismo filosófico no materialismo dialético ainda se perpetuam no imaginário de muitas pessoas, inclusive, formadores de opinião, e, também, entre cristãos, que no afã de erguerem a bandeira da justiça social, quase sempre se esquecem do antagonismo do pensamento marxista em relação ao cristianismo bíblico. 7 O termo dialética diz respeito à tensão entre as ideias, em que uma ideia inicial (tese) é contrariada por uma ideia posterior (antítese), gerando uma outra ideia (síntese), que, por sua vez, se torna uma tese e abre o espaço para a continuidade do processo de tensão e produção de modelos. 23 Contudo, como todas as outras cosmovisões já citadas até aqui, o naturalismo presente no Marxismo cedeu espaço para questionamentos e novos pensamentos sobre o mundo. Questões relativas à incompetência da aplicação do modelo na vida cotidiana; à redução das necessidades humanas ao campo material; à incoerência de uma luta por dignidade humana em um modelo sem valores morais absolutos, capazes de avaliar certo e errado; à impossibilidade de continuar a defender que a maldade humana – egoísmo – deve ser atribuída ao meio desigual; e outras, abriram a discussão quanto à suficiência do naturalismo. Nesse contexto de fissuras nas bases do naturalismo filosófico, enfim, em meio à crise do pensamento humano que pensava ter encontrado pela razão a resposta para o mundo, surge o Niilismo. É como se o niilismo fosse um filho perturbado do naturalismo. O Niilismo é mais um sentimento que propriamente uma filosofia. Sendo mais preciso, o niilismo, de forma alguma, é uma filosofia, mas uma negação dela, da possibilidade de conhecimento e de tudo aquilo que possui valor. [...] o niilismo é a negação de todas as coisas – conhecimento, ética, beleza, realidade. No niilismo nenhuma afirmação possui validade; nada tem significado. Antes, tudo é gratuito, dispensável, isto é, apenas existe. (SIRE, 2009, pp. 109-110) Diante do que parece impossível se conhecer, o niilismo entregou-se à impossibilidade de se definir o propósito das coisas. Para Friedrich Nietzsche (1844-1900), considerado o pai do Niilismo, uma das principais questões a respeito da existência humana encontra-se na negação de qualquer valor metafísico – que seja transcendental – e de qualquer possibilidade da existência da moral. Diante dessa ausência de sentido para as coisas, inclusive para a vida, o homem atinge o vazio, que é oportuno para aprender a ver-se como criador de valores. Diante do abismo de frustração em que o niilismo alcançou, tirando da existência humana qualquer propósito, torna-se possível a apresentação do Existencialismo, que, ainda que não seja uma corrente filosófica, como o niilismo, é uma postura que procurou superar a desilusão niilista. Os 24 existencialistas, sejam eles ateístas ou teístas8, surgiram com o intuito de ressaltar a dignidade humana, aquilo que diferencia o ser humano do restante do mundo. Para isso, enfatizaram um aspecto fundamental, a natureza humana com as suas experiências subjetivas, ou seja, a existência humana dá sentido para a sua essência. Seja contra a falta de sentido da vida humana do naturalismo extremado – niilismo – ou contra a falta de vida na ortodoxia morta do cristianismo moderno, os existencialistas ressaltaram a existência humana como uma jornada de aquisição de experiências que dão sentido para a vida. A razão ou a tradição doutrinária, para os existencialistas não estão acima da experiência pessoal no que tange o sentido da vida. Por ser difícil a compreensão do que seja o existencialismo, a fim de elucidá-lo melhor, vale a menção dos seis temas existenciais mais comuns elencados pelo padre e filósofo I. M. Bochenski, que Josh McDowell e Don Stewart (1993, p. 92) resumiram da seguinte maneira: 1) a experiência como base da descoberta; 2) a existência como objeto supremo da investigação; 3) a existência precedendo a essência; 4) o homem como subjetividade pura e não como parte de um processo cósmico vida; 5) a interdependência entre o homem e o mundo; e 6) uma desvalorização do conhecimento intelectual. Contudo, assim como as outras cosmovisões, o existencialismo – mesmo o teísta – criou um modelo subjetivo demais, voltando ao principal problema das demais cosmovisões: a falta de um amparo objetivo que realmente traga sentido para a vida. James Sire, tratando do existencialismo, deixa um alerta. Enquanto aqueles que seriam crentes em Deus ansiarem por uma fé que não demanda muita crença no sobrenatural ou na precisão da Bíblia, o existencialismo teísta será uma opção viva. Enquanto os naturalistas, que não podem (ou se recusam) a crer em Deus, buscarem por um caminho, visando encontrar significado em sua vida, o existencialismo ateísta terá a sua serventia. Prevejo que as duas formas – provavelmente em versões sempre novas e variáveis – estarão conosco por um longo tempo. (2009, p. 177) Nesse contexto, torna-se oportuna uma breve consideração sobre o relativismo, que pode ser resumido como uma conduta que procura tirar 8 O existencialismo surgiu com Søren Kierkegaard, ainda no século XIX, com um teor religioso, no intuito de promover vida em meio a uma ortodoxia religiosa seca da época, contudo, já no século XX, seus promotores no mundo moderno,dentre eles Jean Paul Sartre, Albert Camus e Martin Heidegger, usando de seus pressupostos ateístas, buscaram ir além da desilusão oferecida pelo niilismo de Nietzsche. 25 qualquer autoridade dos valores absolutos, inclusive da Bíblia, como revelação de Deus. Quem se propôs a levar para a teologia tal conduta foram os liberais, como Rudolf Bultmann, que fundamentavam-se no racionalismo, e os neo- ortodoxos, como Karl Barth, que partiam dos pressupostos existencialistas. No século passado, esses buscaram tirar das Escrituras alguns dos seus atributos clássicos, como a autoridade divina, infalibilidade e inerrância. A respeito do liberalismo talvez a característica mais distinta do movimento seja o seu acomodacionismo – isto é, a sua insistência em que doutrinas cristãs tradicionais devem ser reafirmadas ou reinterpretadas a fim de harmonizá-las com a tendência da época. Considerável ênfase foi colocada na necessidade de estar aberto para os novos insights apresentados pelo avanço filosófico, social e religioso, em vez de se estar amarrado a dogmas do passado. O liberalismo era hostil a qualquer forma de particularismo, tal como a noção de uma revelação divina especial. Para o liberalismo, a religião precisa ser baseada em recursos humanos universais, tais como a cultura humana ou a experiência comum. (McGrath, 2007, p. 103.) Já sobre a neo-ortodoxia, Schaeffer (2003) comenta que a teologia existencial neo-ortodoxa diz que a Bíblia contém erros na área da razão, mas que assim mesmo é capaz de providenciar uma experiência religiosa no campo do irracional. Para os teólogos da neo-ortodoxia, a Bíblia não pode ser vista como algo que forneça uma verdade que possa ser declarada em proposições de conteúdo, especialmente no que diz respeito ao cosmos e à História, além de não ser a Bíblia fonte de absolutos morais. Tanto a postura cética e a arrogância dos modelos racionalistas que tiraram o elemento divino da vida; como a tentativa existencialista de tornar o divino adequado a cada indivíduo por meio da sua experiência, não foram suficientes para satisfazer a necessidade humana em dar sentido para a vida. Em meio ao colapso dos modelos científicos e filosóficos humanistas propostos desde a Renascença, o mundo ocidental, a partir do séc. XX, se depara com algumas alternativas para a busca insaciável pelo sentido da vida, dentre eles: o Pragmatismo e o Misticismo Oriental. Ainda que John Dewey9 defenda que o pragmatismo americano, em sua origem, desaprova aqueles aspectos da vida americana que fazem da ação um 9 John Dewey foi um filósofo e pedagogo norte-americano, que fundamentado nas ideias de Charles Sanders Peirce, tornou-se um dos principais proponentes do pragmatismo, “embora ele preferisse o 26 fim em si mesmo e que concebem os fins de maneira estreita e muito "praticamente" (DEWEY, 1931), a conduta de muitos adeptos do pensamento pragmático, inclusive do próprio Dewey, caracterizou-se pelo desprezo da epistemologia e pela decorrente perda de propósitos das coisas (SPROUL, 2002), o que levou, em última instância, à ação como um fim em si mesmo. Além disso, o pragmatismo herdou uma marcante influência do relativismo, particularmente por William James – outro proponente de destaque dessa escola filosófica – que exaltava a experiência como juízo da verdade. Esse culto ao individual, como discorre John Benton em seu livro Cristãos em uma sociedade de consumo, é a marca da sociedade contemporânea. A queda do racionalismo está abrindo caminho para o emocionalismo, subjetivismo e, às vezes, para a irracionalidade. Tudo torna-se relativo. Tudo depende do meu “modo de ver as coisas”. Portanto, o que importa para o indivíduo, acima de todas outras coisas, é o que é “verdade para mim” e “o que funciona para mim”. [...] É uma sociedade na qual o sentido psicológico de estar bem consigo mesmo e com a vida é a principal prioridade. De certo modo, não importa se ouvi mentiras (se não há verdade, o que é mentira?), contanto que essas mentiras façam com que eu e sinta bem. Afinal os secularistas contemporâneos diriam que só existe esta vida e que você só pode vivê-la uma vez,e o único propósito é aproveitar a vida enquanto é possível. (BENTON, 2002, p.36) A presença do relativismo existencial na proposta pragmatista pode ser visto no comentário de Sandra Rosenthal (2002), que conclui seu artigo sobre o pragmatismo americano clássico, da seguinte forma: A visão pragmatista [...], que surge diretamente de seu foco no método científico como atividade experimental vivida, revela tanto a irredutibilidade da experiência significativa às categorias causais da explicação científica, quanto o acesso ao real, através da riqueza da experiência pré-científica cotidiana, do organismo biológico humano imerso em um ambiente natural. Ao fazer isso, ela nega todas as formas de reducionismo filosófico ou científico, e elude as alternativas falsas ou dicotomias inadequadas que ainda perseguem a filosofia hoje em dia. O que deve ser ressaltado a respeito do pragmatismo é que, independente das intenções originárias de Peirce, James e Dewey, o pragmatismo que se popularizou foi aquele que aproximou-se do utilitarismo, ou seja, aquele que reduziu o sentido dos fenômenos à avaliação de seus aspectos úteis, necessários. O pragmatismo popular criou a máxima de que a teoria só possui alguma validade se a mesma consegue trazer alguma solução nome instrumentalismo - uma vez que, para essa escola de pensamento, as ideias só têm importância desde que sirvam de instrumento para a resolução de problemas reais” (RAMALHO, 2011). 27 prática. E essa conduta, atualmente, possui inúmeras implicações para a condução da fé, que será abordada mais adiante. Outra tentativa do ocidente em superar a crise do pensamento humano no final do século XIX, foi a busca pelo misticismo oriental. À medida que a razão e a subjetividade tornaram-se incapazes de satisfazer os anseios do homem ocidental pelo sentido da vida, o pensamento oriental tornou-se uma alternativa a ser verificada. Com seu antirracionalismo, seu sincretismo, sua quietude, sua ausência de tecnologia, seu estilo de vida simples e descomplicado, bem como sua estrutura religiosa radicalmente diferente, o Oriente torna-se altamente atraente. Além disso, o Oriente goza de uma tradição muito mais longa que o Ocidente. Sendo nossos vizinhos por séculos, o Oriente possui métodos de conceber e enxergar o mundo diametralmente contrário aos nossos. Talvez o Oriente, aquela terra de gurus meditativos e vida simples, tenha a resposta aos nossos anseios de significância e propósito. (SIRE, 2009, pp. 181-182) Foi com esse pensamento que o homem ocidental abriu-se para as propostas do hinduísmo, do budismo, do Zen, enfim, às inúmeras propostas orientais. Dentre as cosmovisões do Oriente com maior expansão entre o Ocidente, encontra-se o monismo panteísta oriental, que acredita na presença de um ser impessoal constituinte da realidade, ou seja, tudo, inclusive a existência de cada indivíduo humano, a sua alma, converge-se na alma do cosmo: Brahma. Disso, parte a ideia mística de cada um ser Deus, ou parte do divino, que na concepção panteísta é a realidade única, infinita, impessoal e suprema, enfim, o próprio cosmo. Nessa concepção de mundo, é como se o universo fosse particularizado em cada indivíduo, inclusive no homem. Portanto, em última instância, toda e qualquerpossibilidade de atribuir significância e dignidade ao homem – como a personalidade, os sentimentos, a ética, a moral e os valores – em si mesma é ilusão, só podendo encontrar algum sentido, na unidade final, que é o Brahma. O Uno, que é essa unidade final, é a única realidade, podendo ser alcançada por diversos caminhos, como as religiões. Ainda sobre o monismo panteísta oriental, vale ressaltar que todos os homens devem ter como alvo o alcance da unidade com o Uno, geralmente obtido por técnicas de meditação e isolamento, mesmo que tais técnicas não possua conteúdo algum compreendido. A questão é alcançar as vibrações do cosmo e atingir Brahma, que é o que une todas as coisas e dá sentido para as mesmas. 28 Se não bastasse, o Zen budista, ainda que semelhante ao Brahma hindu na busca pela ausência de distinções, ao invés da unidade substancial, considera a essência das coisas o vazio, o não-ser, o que é uma proposta ainda mais anuladora do indivíduo. Em essência, tal monismo oriental é como o naturalismo filosófico ocidental, que tira toda e qualquer dignidade e personalidade do indivíduo do teísmo. Na tentativa de assimilar de maneira mais suave o misticismo oriental, o ocidente apresentou outra relevante alternativa para o homem ocidental frustrado: a Nova Era. Apropriando-se de várias porções de outras cosmovisões, o movimento é consideravelmente sincrético e eclético. Por meio desse movimento, o naturalismo frio que culmina no niilismo, buscou roupagens mais sofisticadas, mesmo que não inéditas, para tentar sossegar a alma frustrada do homem. A Nova Era concorda com muitas considerações do naturalismo, especialmente no que refere-se à negação do transcendental e à exaltação do homem, como um ser evolutivo, capaz de experimentar em um período vindouro, uma nova consciência, muito mais abrangente e capaz do que a atual. Com o monismo panteísta oriental, a Nova Era aproxima-se da experiência mística, que nega a racionalidade e busca a fuga da razão, por meio das drogas, por exemplo, para se atingir a realidade. Sem contar que, paradoxalmente, o movimento, também, apropria-se de um conjunto de crenças animistas, ainda que tentando desmistificar alguns dos elementos transcendentais do paganismo religioso. E até o teísmo encontra convergências com a Nova Era, pois ao contrário do monismo panteísta oriental, esse movimento valoriza o ser humano como indivíduo A respeito desse movimento, David Noebel comenta que O movimento da Nova Era mistura antigas religiões orientais (especialmente o hinduísmo e o zen-budismo) com um toque de outras tradições religiosas, adiciona uma dose de jargão científico e traz o bolo recém-saído do forno para a sociedade consumir. [...] Entretanto, a suposição que a verdade reside dentro de cada indivíduo torna-se a pedra fundamental para a cosmovisão. Dar a alguém o poder de discernir toda verdade é uma faceta da teologia e 29 essa teologia tem ramificações que muitos membros do movimento de Nova Era também descobriram. Enfim, seja pelo misticismo oriental, bem como pela nova consciência ocidental, a sociedade busca reafirmar a negação que o naturalismo filosófico, com as suas diferentes manifestações, faz a respeito da existência de um Deus pessoal e criador, que interfere em sua criação. Essa constatação não é incomum para a igreja cristã contemporânea, ou seja, a existência das muitas vozes que destoam da Bíblia é um fato desde o tempo em que as Escrituras começaram a ser produzidas e propagadas, contudo, o que merece a atenção e, por causa disso, caracteriza-se como o cerne do presente estudo, é o fato dessas vozes conseguirem encontrar abrigo dentro da igreja contemporânea sem a devida contestação por parte, não apenas da comunidade cristã, mas, também, de muitos dos seus líderes. É sobre essa realidade, ou seja, a conivência da igreja com cosmovisões opostas à Bíblia, que aqui convencionou-se a denominar de espiritualidade independente, que o presente trabalho se propõe a tratar no restante desse capítulo. 1.3 Que espiritualidade é essa? Augustus Nicodemus, em seu livro O ateísmo cristão e outras ameaças à igreja, a respeito do período em que vive a igreja evangélica brasileira, comenta Eu sei que o mundo sempre vai zombar dos crentes, mas que esta zombaria, como queria Paulo, seja o resultado da pregação da cruz, da proclamação das verdades do evangelho, e não o fruto de nossa insensatez. Eu não me envergonho da loucura do evangelho, mas das loucuras de alguns que se chamam evangélicos. (2011, p. 15) Ainda que as considerações acima, particularmente, estejam vinculadas à insensatez do movimento neopentecostal, o âmago da denúncia de Nicodemus encontra-se exatamente na religiosidade descompromissada com a revelação de Deus, presente na igreja contemporânea, que leva a essa espirtualidade independente. Se não bastasse as inúmeras cosmovisões não-critãs que procuram minar a credibilidade do evangelho, os ditos cristãos, ao invés de se apegarem, com intenções sinceras, às Escrituras Sagradas, vêm anexando à sua fé, uma série de concessões a ideias anti-bíblicas. 30 Um fato evidente na igreja ocidental, inclusive, a brasileira, é o número de crentes que consideram Deus alguém que existe para atender os interesses do homem, um tipo de gênio da lâmpada mágica que está disponível para atender mais um pedido imediatista e egoísta do ser humano. A presença de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa, empregados a termos que fazem alusão ao desejo pessoal – como ‘eu vencerei’, ‘eu sou’, ‘meus sonhos’, ‘minha promessa’, ‘minha sorte’, entre outros – é uma marca de inúmeras letras de músicas do gênero gospel. Também, é notória a quantidade de pregações que usam um trecho da Bíblia como pretexto para uma homilia totalmente anti- bíblica, como as praticadas pela teologia da prosperidade, onde Deus se torna uma espécie de chantagista, com o discurso “só lhe dou o que quer, se, antes, fizer o que eu quero”. Sem contar o pseudoevangelho que enfatiza o fazer coisas boas e buscar a felicidade, que leva ao moralismo; aos milhões de casamentos desfeitos, pela “alegação da incompatibilidade”, e a tantos outros recasamentos na “busca da felicidade”; ao sexo entre namorados “em nome do amor”, entre outros absurdos. Michael Horton nomeia esse comportamento como deísmo moralista e terapêutico, que vem encarcerando a igreja contemporânea. A respeito dessa realidade, George Barna comenta: Para um número crescente de americanos, Deus – caso pelo menos se acredite em uma divindade sobrenatural – existe para o prazer da humanidade. Ele reside no reino celestial exclusivamente para proveito e benefício nosso. Embora sejamos espertos demais para confessar isso em voz alta, vivemos pela noção de que o verdadeiro poder nãoé acessado olhando para cima, mas nos voltando para dentro de nós. [...] Em resumo, a espiritualidade da América é cristã apenas no nome. (...) Queremos experiência mais que conhecimento. Preferimos escolhas a absolutos. Abraçamos preferências em vez de verdades. Buscamos conforto no lugar de crescimento. A fé deve ser de acordo com nossos termos ou não a aceitamos. Nós nos entronizamos como supremos árbitros da justiça, governantes supremos de nossa própria experiência e destino. Somos os fariseus do novo milênio. (BARNA apud Michael Horton, 2010, pp. 26-27) A espiritualidade independente, a que se refere o presente estudo, é essa condução pessoal da religiosidade, sem absolutos, em que o indivíduo traça as suas próprias regras, ou melhor, as suas conveniências. O deus desses “cristãos”,mesmo que não se admita, é limitado, não tem o controle de todas 31 as coisas, vive em função das reações humanas, enfim, é o Deus do teísmo aberto, que Bruce Ware (2010, p. 15) define, conforme a seguir: Esse movimento é assim denominado pelo fato de seus adeptos verem grande parte do futuro como algo que está em “aberto”,e não fechado, mesmo para Deus. Boa parte do futuro está ainda indefinida e, consequentemente, Deus o desconhece. Deus conhece tudo o que pode ser conhecido, assegura-nos os teístas abertos. Mas livres escolhas e ações futuras, por não terem ocorrido ainda, não existem e, desse modo, Deus (até mesmo Deus) não pode conhecê-las. Deus não conhece o que não existe – afirmam eles – e, uma vez que o futuro não existe,Deus não pode conhecê-lo agora. Mais especificamente, ele não pode conhecer, de antemão, uma grande parte do futuro que virá à tona à medida que criaturas livres decidirem e fizerem tudo segundo lhes aprouver. Em conformidade com isso, momento após momento Deus aprende o que fazemos, e seus planos devem constantemente se ajustar ao que acontece de fato, na medida em que isso for diferente do que ele previu. Como visto, anteriormente, no deísmo, esse comportamento é um passo anterior da negação da divindade como um criador e regente da criação, levada às últimas consequências pelo naturalismo. Infelizmente essa tem sido a postura de muitos crentes, inclusive de pastores e teólogos, o que evidencia duas situações: a covardia que não permite admitir viver distante de Deus ou a hipocrisia em viver algo diferente do que se diz crer. Ao analisar o relativismo e o agnosticismo na teologia da igreja contemporânea, Augustus Nicodemus (2011), ressalta que essa postura é, no mínimo, insustentável, afinal, se a teologia boa resume-se naquela que se faz agora, isso significa que a verdade depende de quem – no caso, do teólogo – a produz. Sendo assim, a teologia relativista é agnóstica, pois, alegando a impossibilidade de um conhecimento pleno da verdade, abandona a verdade absoluta, inclusive a Bíblia como revelação de Deus. Nessa condição, fica a pergunta de Nicodemus: os teólogos relativistas acreditam em quê? A resposta é: em tudo e, ao mesmo tempo, em nada. Esse impasse, vale mencionar, deve-se ao fato do culto ao individual, que, além de exaltar o hedonismo10, o relativismo e reafirmar o existencialismo da era moderna, tira do cristianismo uma das suas principais características: o ser contracultura. Jesus Cristo, em várias ocasiões alertou que os seus discípulos seriam rejeitados pelo mundo por causa da verdade. Os apóstolos, dentre eles 10 Doutrina filosófica que faz do prazer o objeto da vida, o bem supremo a ser alcançado. 32 Paulo e Pedro, exortaram a igreja a não se conformarem com os padrões seculares, mas se apegarem a verdade. Enfim, o cristianismo, desde o seu início, por auto-considerar verdade, sempre foi visto como um movimento contracultura, ou melhor, supracultural, já que os valores do reino de Deus excedem os padrões das culturas desse mundo. A espiritualidade independente da igreja do século XXI não traz consigo essa preocupação de oposição aos valores seculares. Tal espiritualidade, às vezes, nem cogita sobre a eternidade, sobre a realidade do pós-morte. O apelo para “não tomar a forma deste mundo”, que o apóstolo Paulo fez aos romanos e, por conseguinte, a todo crente, parece que foi esquecido pela igreja. As palavras de despertamento para se priorizar as coisas não corruptíveis, de igual forma, parece não serem válidas. John Benton (2002, p. 42), ao tratar do assunto, comenta: O que aconteceu com a contracultura? De que maneira os cristãos estão diferentes? Parecemos frequentemente tão envolvidos e imersos na promessa de felicidade proposta pelo consumismo quanto a qualquer outra pessoa. [...] É provável que a nossa alegria esteja alicerçada nas criaturas em vez de firmada no Criador. A espiritualidade independente, também, confunde justiça do Reino com lutas de classe ou com o ativismo. O interesse com questões emergenciais da sociedade, como por exemplo, a justiça social, leva os adeptos dessa espiritualidade a posicionarem-se de maneira que a justiça anunciada pelas Escrituras seja alcança com movimentos de classe, com piquetes ou protestos. Também pensam que o exercício de tal justiça lhes dá o direito de priorizar ações individuais, desconexas da igreja local, em favor dos necessitados. Um exemplo típico de tais ações são os crentes que negligenciam a contribuição na comunidade local em que frequentam, alegando que investem recursos em projetos sociais. Não é incomum encontrar esse pensamento e atitude na igreja. Entretanto, é necessário expor que os que assim procedem se aproximam de um tipo de pragmatismo, que desconsidera – ou melhor, acredita que a prática supera em autoridade os princípios escritos – os preceitos bíblicos do novo nascimento em Cristo: o instaurador da verdadeira justiça. Para esses crentes, o fazer algo, mesmo com as intenções equivocadas, importa mais do que 33 voltar-se para a motivação correta, que gera a justiça do Reino. Em muitos casos, crentes assim se escondem atrás de projetos e mais projetos, no intuito de não serem expostos à Palavra de Deus. Outro exemplo dessa espiritualidade descompromissada com as Escrituras está na proposta da teologia da libertação. Com a roupagem de piedade, motivada por uma grande preocupação social, seus adeptos, com o intuito de amenizar o sofrimento do mundo, procuram conciliar uma cosmovisão ateísta – como o marxismo – com o cristianismo. À medida que a igreja concentra os seus esforços nas questões sociais – não que ela deva ser indiferente à injustiça social – ela desvia-se do seu fundamento principal e se lança às soluções do materialismo dialético, sem Deus. Não é possível ser um marxista ortodoxo e um cristão ortodoxo [...] O fato de o marxismo ortodoxo abraçar o cristianismo ortodoxo significa privar o marxismo de sua base: o materialismo dialético. O fato de o marxismo ortodoxo abraçar cristianismo ortodoxo significa privar o cristianismo de sua fonte e sustento derradeiros, que são a divindade, a pessoa e a obra de Jesus Cristo. (MCDOWELL; STEWART, 1993) Se não bastasse as características, já mencionadas, dessa espiritualidade encontrada na igreja estranha ao conteúdo bíblico, torna-se ainda mais preocupante a percepção de que ela manifesta-se, invariavelmente, em meio ao orgulho, à exaltação da capacidade humana de conseguir as coisas almejadas a sua maneira. A respeito disso, ao retratar o cristianismo norte- americano, Michael Horton (2010, p. 57) faz o seguinte comentário: Nós, americanos, não somos conhecidos no mundo como pessoas que se envergonham. Pelo contrário, somos um povo muito autoconfiante. A última coisa que queremos ouvir de alguém é que não podemos fazer nada para nos salvar do problema mais grave que já tivemos ou que vamos ter – que estamos inteiramente à mercê de Deus. Sem um milagre, o sucesso religioso neste ambiente sempre vai para aqueles que podem efetivamente apelar para este espírito “de isso pode ser feito” e empurrar o mais longe possível qualquer coisa que possa tirar nosso arrogante ego do equilíbrio. Quando procuramos respostas definitivas, voltamo-nos para dentro de nós mesmos, confiando em nossa própria experiência,em vez de olharmos para fora de nós, para a externa Palavra de Deus. Este orgulho, que não é exclusivo dos crentes americanos, mas característico à espiritualidade independente, carrega consigo resquícios da conduta da Nova Era, debuscar dentro do próprio indivíduo, por meio da consciência em evolução, a resposta para os dilemas da vida. Nesse sentido, para a espiritualidade independente, Deus torna-se um mero coadjuvante de um sistema místico que não consegue se conformar com o ateísmo, mas não se 34 satisfaz com a perda da autonomia do teísmo cristão. Com essa conduta, a igreja atinge o status quo, defendido por Michael Horton, de lugar de palavra suaves e cristianismo sem Cristo, de anúncio de bons conselhos ao invés das boas-novas, enfim, do Jesus que cada um define como adequado. A espiritualidade independente, ao mesmo tempo em que é fruto, também, é a semente da sociedade que desprezou o pensamento antigo do cristianismo, e passou a adotar a visão reduzida a dois valores: paz pessoal e prosperidade. Paz pessoal significa ser deixado em paz e não ser incomodado pelos problemas alheios sejam eles problemas mundiais ou locais [...] significa ter seu próprio estilo de vida pessoal, sem ser perturbado por toda a vida, não interessando as consequências na vida dos meus filhos e netos. Prosperidade significa um extraordinário e sempre crescente padrão de vida material [...] um sucesso medido por um nível cada vez maior de abundância material. (SCHAEFFER, 2003, p. 145). Nota-se que as sociedades contemporâneas, em sua maioria, têm se caracterizado por um individualismo considerável, que vem acompanhado da ausência de absolutos, da relativização, da ação pela conveniência, da inversão de valores e das mais diversificadas tentativas pessoais de solucionar a sua crise existencial. A geração do “eu acho”, das tribos urbanas, das redes sociais, dos tablets, dos fones de ouvido, dos serviços personal, dos fast-foods, do dinheiro virtual, das organizações não-hierárquicas e das famílias multifacetadas, tem chegado à igreja e encontrado outras gerações que ainda aprendem a se posicionar nesse turbilhão de pressões. Pode-se dizer que a igreja cristã contemporânea é aquela que tem se preocupado cada vez mais com a comodidade de seus membros, mesmo que para isso a verdade tenha que ser minimizada ou ocultada; que procura obter ou manter o status de mais frequentada ou mais ativa, mesmo que os relacionamentos de seus membros não sejam tão estreitos; é uma igreja em que seus membros desejam ser servidos e participam mais como expectadores do que atores; que tem aceitado com mais naturalidade as influências da mídia, mesmo que sejam declaradamente ofensivas à mensagem do evangelho; uma igreja sincrética, que tem perdido a reverência, que busca chamar a atenção mais pelas promessas do hoje do que as do porvir; enfim, é uma igreja mais organizacional do que orgânica. 35 Ainda que a cultura popular esteja em busca de espiritualidade, tais valores como a paz pessoal e a prosperidade, fazem da teologia e das doutrinas bíblicas itens descartáveis, cedendo campo para o misticismo oriental, para a Nova Era e para o humanismo secular e seus desdobramentos. O buffet self- service está posto, para agradar a todo anseio pelo consumo de espiritualidade. Por justiça, vale mencionar que tais características não podem ser atribuídas a todas as igrejas e muito menos relacioná-las a uma ou outra denominação, contudo, a manchete a seguir requer atenção daqueles que expressam a espiritualidade cristã. Pela bagatela de 20 mil euros – cerca de R$ 60 mil -, qualquer interessado pode comprar uma igreja na Alemanha. O Arcebispo de Berlim quer se desfazer de templos, alguns tricentenários, que ficaram órfãos de fiéis numa Europa cada vez mais secularizada. Apenas em 2011, 400 paróquias católicas fecharam as portas no país que foi o berço da Reforma Protestante. Um site especializado oferece 170 construções outrora dedicadas ao culto a Deus, anunciando que são indicadas para montar boates ou casas de comércio. Uma ex-igreja evangélica na cidade de Hamburgo já virou um centro mulçumano. (CRISTIANISMO HOJE, 2013, p. 6) O cenário consolidado no continente europeu, avançado no norte da América, proliferando-se em países como o Brasil, no mínimo, deveria estimular a comunidade cristã brasileira a uma análise sobre a espiritualidade em que a mesma vem cultivando e confrontá-la com o que deveria ser o fundamento da mesma, ou seja, as Escrituras Sagradas. Sendo assim, no intuito de estimular a igreja cristã a analisar a sua conduta contemporânea no que refere-se à espiritualidade, o presente estudo se propõe, nos próximos capítulos, considerar algumas doutrinas bíblico-cristãs consolidadas na história da igreja e colocá-las em evidência perante algumas posturas da espiritualidade independente. 36 2. A OBJETIVIDADE E AUTORIDADE DAS ESCRITURAS VERSUS A ESPIRITUALIDADE INDEPENDENTE A Bíblia11, ou seja, o conjunto de pequenos livros reunidos no cânon cristão, termo este, melhor explicado mais adiante, torna-se o centro das atenções deste capítulo. Também conhecida como as Escrituras (JOÃO, 5.39); as Sagradas Escrituras (ROMANOS, 1.2); o Livro do Senhor (ISAÍAS, 34.16); a Palavra de Deus (EFÉSIOS, 6.17); os Oráculos de Deus (ROMANOS, 3.2); as Sagradas Letras (2TIMÓTEO, 3.15); a lei, os testemunhos, os preceitos, os mandamentos e o temor do Senhor (SALMOS, 19.7-9); a Bíblia se constitui como a base para as análises a seguir. No capítulo anterior caracterizou-se o que se entende como espiritualidade independente, portanto, a partir do presente capítulo, pretende-se confrontar algumas posturas adotadas por essa espiritualidade com os ensinamentos bíblicos – já que os tais são o fundamento da espiritualidade cristã histórica –, a fim de consolidar a premissa de que a espiritualidade independente, por não considerar as Escrituras Sagradas como regra de fé e vida, é uma deturpação daquilo que a igreja cristã é em seu propósito inicial. Nesse sentido, é oportuno ressaltar que as emoções pessoais e as circunstâncias – que são parâmetros para a espiritualidade independente – não eram o padrão de autoridade sobre o povo de Deus. Ao considerar a história israelita torna-se notório que a revelação de Deus, antes e a partir dos escritos inspirados, possuía um sentido balizador para as experiências do povo com a divindade e para o exercício diário da vida. Sobre a questão, Ronaldo Cavalcante (2007) trabalha a ideia de que a espiritualidade de Israel está intimamente relacionada com o conhecimento de um Deus salvador, cujo nome é Iahweh, que se dá a conhecer, ou seja, se revela por meio do cosmo, das suas alianças com o ser humano e dos seus atos soberanos na história em favor desse povo, o que inclui a revelação escrita. Portanto, pode-se dizer que a espiritualidade cristalizada em Israel não esteve desconexa da vida cotidiana nem da revelação de Deus transmitida de pai para filho e registrada por homens sobrenaturalmente orientados por Deus. 11 Nome derivado do termo grego biblos, que indicava textos escritos em papiro. 37 O episódio do pós-exílio de Judá reflete bem como a revelação escrita de Deus fazia parte da espiritualidade da descendência de Israel. Mesmo tendo seu início cerca de mil anos antes, o povo que havia padecido no exílio babilônico e retornado a Jerusalém, como predito pelos profetas, volta-se para a revelação de Deus em reconhecimento de que a história recente apontava para a necessidade de uma reaproximação com Deus. E essa reconciliação não poderia estar desvinculada da revelação de Deus. Todo o povo juntou-se como se fosse um só homem na praça, em frente da porta das Águas. Pediram ao escriba Esdras que
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